sábado, 1 de outubro de 2011

por que tenho que ir à escola?


RESENHA por ana maria preve*
DO LIVRO DE Guilherme Corrêa.  Educação, comunicação, anarquia: procedências da sociedade de controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006, 197 pp.
O tabuleiro onde acontece o jogo está sobre a mesa, a mesa sobre o assoalho que está sobre os pilares apoiados no chão... o chão é tanto, tanto que nem se sabe. E sobre ele o céu! Vamos brincar de esconde-esconde.
Comecemos pelo fim: pela frase mesma com que o livro termina. O jogo todo que vai da escolarização aos satélites acontece sobre o tabuleiro. Ele, com sua reduzida geografia, comporta jogadas limitadas. Além dele tem a mesa, o chão, a casa e sobre ele o céu. As linhas dos dispositivos que nos atrelam ao regime de verdade do nosso tempo expressam as limitações do jogo. O tabuleiro encerra a lógica do jogo manifestada em nossa crença nos benefícios incontestes de grandes promessas forjadoras de futuro. Alfabetização, justiça, paz e até computadores para todos, ou o ideal de que o bem vencerá o mal são exemplos dessas operações práticas.
Permanecer dentro dessa lógica, empenhada em fazer aparecer coerentemente um todo pautado pelo universal e suas instâncias de padronização e uniformização, é condição para pertencermos ao nosso tempo e à sociedade.
Aqui, nesse final, o céu e o chão são outra coisa que o céu no qual se suspendem os satélites ou a terra sobre a qual se desenham os Estados, são espaço intensivo, território, mais que extensão loteável. É mais ou menos a diferença entre jogar o videogame com o programador participando às ocultas e jogar (brincar de esconde-esconde) com a possibilidade de inventar e de destruir as regras.
São vários percursos, climas, encontros para se entender como a escola se torna, na nossa sociedade, espaço privilegiado da educação consentida pelas leis e condição obrigatória na vida de cada um sob o pretexto de direito à educação. É na escola que as forças se conjugam para a produção do indivíduo útil e dócil. A escola, sua história, seus  comos e  porquês é, no entanto, apenas uma das peças do tabuleiro que está sobre uma mesa e esta sobre um assoalho e...
Como se produz uma escola que vai produzir os controláveis? É necessário que se instale como algo natural, como necessidade de educação para todos. Com isso
as culturas diversas e singulares serão substituídas pela
cultura escolar baseada nas ciências psicopedagógicas
da modificabilidade, conjugadas com a teoria dos sistemas e com a atividade frenética crescente das mensagens de comunicação.
Em “Pinos quadrados para encaixar em buracos redondos”, um dos subtítulos provocativos deste livro, fica bastante clara a relação entre a rede de escolas nacionais e as investidas militares para fazer funcionar um Estado Nacional empenhado na criação de uma massa de cidadãos obediente e funcional por meio da disciplina escolar. O surgimento, no Brasil, da escola nacional, não é senão resultado de estratégias militares. Uma afirmativa dessa natureza desconcerta aqueles que acreditam ser a escola uma conquista das lutas sociais em nome da democratização da educação e do País. A riqueza documental da pesquisa não nos deixa desviar os olhos, nos faz encarar as reduzidas intenções da escolarização nacional. O percurso da leitura é por uma série de excertos, trechos, figuras e esquemas. Alguns até parecem impossíveis como o das páginas 139 a 141 em que uma pesquisadora em psicologia apresenta o procedimento para medir a criatividade dos alunos por meio de um tratamento estatístico dos desenhos produzidos por eles. Nestes esquemas estão contidos o modus operandi para produzir os indivíduos controláveis. A escola dos anos 1970 no Brasil é parte de uma estratégia de segurança nacional para a criação das regras necessárias à produção do Estado.
A escola está ativa na vida de cada um para produzir o corpo desejável ao aparelho de Estado. É o nosso corpo de cidadão assalariado, votante e pagador de impostos, acostumado com a escola desde os seus primeiros anos de vida. Tamanha familiaridade acaba por produzir um agenciamento indivíduo-escola, no qual formamos um corpo com ela, desenvolvemos um pensamento-escola e um querer-escola atingindo um ponto em que temos uma vontade própria comum a todos (p. 159), um ponto em que a pergunta de criança “o que é a escola?” não pode mais ser formulada. Esse corpo-escola é o corpo do cidadão, formado por meio do exercício mais efetivo de nossas vidas: a imobilização durante quatro horas diárias na carteira escolar a partir dos seis anos de idade. Exercitar-se para a imobilização do nosso corpo de criança em favor de um sempre incompleto corpo-cidadão, combina-se com a congestão do pensamento pela exposição quase incessante às mensagens, aos informes de conteúdos escolares veiculados nas aulas — não importa aula de quê, qual conteúdo ou matéria. Essa dupla imobilização configura as quase inacreditáveis — por serem ao mesmo tempo tão cotidianas e tão absurdas — situações de comunicação. Não há como ficar de fora, mesmo que esta seja uma opção individual. Podemos estar cumprindo pena máxima num complexo penitenciário, isolados numa reserva indígena, num remanescente de quilombolas ou sermos empregados
de numa fábrica, mesmo assim a escola chega até nós, com seus pacotes de ensino à distância, seus programas de escolas especiais, suas propostas inclusivas. É aí que nos damos conta do quanto a escola investe em ocupar o tempo de vida de cada um de nós e, na ocupação desse tempo que é cada vez maior, imobilizar o corpo e produzir o pensamento uniforme. Caso queiramos abrir mão do direito, garantido pela Constituição, à educação, toparemos, certamente, com uma série de instituições, bastante desenvolvidas na última década, voltadas ao ajustamento dos que não se adaptam ao funcionamento escolar. Aos que não querem freqüentar a escola regular são oferecidos como opções ONGs, escolas abertas, conselhos tutelares, delegacias e serviços proteção e reeducação de menores. Crianças que não querem freqüentar escolas logo se dão conta de que o direito à educação é obrigatório.
Todos os alunos (potencialmente todas as crianças) do Brasil precisam aprender, num determinado período de suas vidas, fórmulas de física, conceitos da biologia, fatos marcantes da historiografia brasileira e um acúmulo de temas eleitos para, com isso, receberem um certificado que os assegure a participação na sociedade pela via do trabalho assalariado. Quanto mais tempo
sendo processado pela maquinaria escolar, mais marcado um corpo fica e mais difícil se torna viver experimentações livres dos códigos escolares. A vida parece, então, se produzir a partir da escola. Crianças preenchidas pelo conhecimento escolar — tomados como “lugar” vazio de saber a ser preenchido pelos conteúdos — conservam, mesmo quando se revoltam ou se opõem, os modos de vida que garantem uma sociedade estável. Pode-se dizer que o grande trabalho desse livro é colocar a escola em questão, encará-la como dispositivo sabendo que “não se pode problematizar um dispositivo sem que ele se coloque como problema” (p.171). Problematizar um dispositivo é já diferença. Ao fazer esse movimento, raro na pesquisa acadêmica, o trabalho nos aponta para um  outro da educação que não pretende produzir efeitos escolarizantes, mas interessa-se por outros territórios.
Por que tenho que ir à escola? O livro possibilita fazer a impossível pergunta que só as crianças são, ainda,
capazes de fazer porque capazes de pensar que não precisam dela para aprender a viver, a ler, a desenhar. Basta um ano na escola e a criança já está pronta para operar com a mecânica escolar, já sabe dar aulas, exigir silêncio, avaliar por meio de notas, recompensar e punir segundo a ritualística bem intencionada, corrente nas instituições de ensino. À medida que permanecemos mais e mais tempo na escola, acentua-se nossa adaptação ao que espera de nós a sociedade. “Sair. Sair para onde? Para dentro, para o interior do dispositivo. As saídas que levam para dentro dos universais são muitas e confundem oferecendo liberdade, liberdade que é um enleamento, um pertencimento, um encaixar-se dentro de figuras identitárias nas quais não cabemos sem um grande exercitamento, e, é preciso dizer, violência. Sair da cela e ocupar a torre panóptica, achando que assim as coisas estariam melhores. (...)” (p. 171).
Através dessa leitura, que atravessa o nosso corpo, nos descobrimos desconhecedores de um cem números de situações, contextos, histórias, conexões desse grande lugar e suas maquinarias. Nos damos conta a cada página lida que nosso olhar reduzido é uma produção das estratégias comunicacionais que se dão no seu interior e são fortalecidas por professores e pedagogos e por toda a rede de estratégias de ensino aprendizagem — racionalmente escolhidas — até a definição do que deve ser ensinado para preencher o sensível de cada um.
O livro é um convite à viagem por entre as linhas do dispositivo e por entre a mesa, o assoalho, o tabuleiro, o chão. Nele, textos, figuras e desconcertantes  textosfiguras combinam-se como se fossem curvas inventadas pra que a leitura aconteça num forte clima de estranhamentos. Curvas-passagens, “passagens para outras intensidades possíveis” (p.18). Curvas-derrapagens.
Educação, comunicação, anarquia é uma viagem que começa nos anos quarenta no Brasil e se estende até os dias de hoje. Longe de fazer um percurso linear pela historiografia da educação brasileira, Guilherme dá muitas voltas com a gente, mostra muitos percursos, nos possibilita, através de seus textos-figuras, uma parada nas curvas e chega àqueles lugares escondidos, empoeirados e, portanto, infelizmente esquecidos: as estantes de livros de professoras aposentadas. Haveria relação entre essas estantes abandonadas nos sebos e
nas casas de professoras com a escola que vivemos hoje? Ali, ali mesmo, no que parece morto e não fazer mais sentido, Guilherme encontra um verdadeiro arsenal de material revelador da escola, daquilo que nela mais funciona: o controle para produzir um homem sem asas. Nos livros amarelados e empoeirados, o que chama de livros-blocos, estavam contidos os saberes responsáveis pela “transformação da educação tradicional, no Brasil, em educação do futuro” (p.17) e é com eles que tomamos conhecimento dos elementos universais e individuais que se articulam para produzir a educação escolar igual para todos. Entre esses livros desbotados e mofados, satélites e carteiras escolares se cruzam. Levamos um susto. Nos perdemos na curva. É daqueles livros para pensar no que nos tornamos ou no que fizeram de nós. É forte. Ao fazermos isso já está em curso um abalo, uma invenção de si, uma desterritorialização, uma anarquia, um outro. Já não somos mais os mesmos. Anarquia, no sentido mais largo de desmonte do duplo mando-obediência, estaria aqui como possibilidade para a invenção de outros mundos: a possibilidade de brincar de esconde-esconde?
* Professora da UDESC e doutoranda em Educação na área de concentração Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte na FE/UNICAMP.

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