segunda-feira, 29 de agosto de 2011

flecheira.libertária.n. 215

por nu-sol
23 de agosto de 2011. Ano V.
os outros 120 dias de sodoma
Não é de hoje que pais, mães, tios, tias, avôs, avós, padrastos, madrastas, primos, irmãos, irmãs, dispões dos corpos de jovens e crianças, vendendo seu sexo para sedentas autoridades. Em Nuporanga, interior de SP, uma mulher vendeu a virgindade de sua filha, tida como deficiente mental, para o ex-prefeito da cidade: o canalha noticiado do momento. Neste mercado ilegal, que reproduz a mesma lógica de consumo de sexos e corpos no mercado legal, cretinos e mau-caráteres da ocasião usam e desusam e trituram e mastigam e cospem os corpos daqueles que, sob a tutela da família ou do Estado, são disponibilizados como carnes de açougue.
a baba do bem-estar
Perante o escândalo, estas crianças e jovens continuam circulando de mãos em mãos de assistentes sociais, conselheiros tutelares, polícia, professores, pedagogos, psicólogos, médicos, psiquiatras. São moídas, dissecadas, exprimidas, até que se conformem em restos. Tidos como vulneráveis, estão à mercê de toda a sociedade para qualquer tipo de uso. É inaceitável que alguém, sob qualquer circunstância, seja encarcerado ou que seu sexo seja disponibilizado para o comércio ou para a “boa saúde” do Estado e da sociedade.
participação eletrônica
Está em alta, na cidade de São Paulo, um novo aplicativo para aparelhos celulares que consiste em fazer reclamações e denúncias. Por exemplo: ao passar por um farol quebrado ou uma rua esburacada o “cidadão” aciona o aplicativo informando o local e o problema. O objetivo é criar mais um banco de dados para a prefeitura. Isso explicita o funcionamento da sociedade de controle que, além da formação de inúmeros bancos de dados, estimula a participação de todos por meio de novos aparatos tecnológicos e de forma instantânea. E depois, o babaca vai para casa e toma quatro comprimidos – em média – para dormir em paz.
tecnologia para policiamento
Três mil viaturas da Polícia Militar do Estado de São Paulo já rodam pela cidade equipadas com tablets. Substituindo a comunicação antes feita por rádio, os tablets permitem aos policiais pesquisarem placas de carros e documentos de identidade, o recebimento de mapas fixos, consultar dados sobre ocorrências e funcionam como rastreadores das viaturas. No próximo ano, com a implantação da tecnologia 4G, também poderão acessar bancos de dados fotográficos e imagens online de câmeras fixas e móveis. Expande-se o policiamento em que fluxos computo-informacionais colocam os efetivos em comunicação instantânea e disponibilizam a “ficha” e informações de cada cidadão ao toque de um dedo. Próximo passo: utilize seu dedo para experimentar a paz do sono eterno.
abissal
Nos cadernos de jornais de domingo, uma socióloga catita argumenta que as ruas do planeta tornaram-se palco para a política e compara a chamada Primavera Árabe, a movimentação dos denominados Indignados na Espanha, os protestos nos subúrbios de Londres e as reivindicações por reformas advindas de jovens no Chile, com os acontecimentos de 1968. Porém, segundo a pop star do abre aspas do momento, os reclames escutados atualmente pelas ruas são mais amplos do que as afirmações do final da década de 1960, pois agora visam educação e emprego de qualidade, uma sociedade mais razoável. Certas ruas de 1968 tornaram-se espaços de lutas contra ditaduras, guerras, polícias, os governos e suas razões. Atualizar 1968 é retomar o ânimo desse fogo. Entre a chama nas ruas e o coro das marchas atuais há uma diferença abissal.

domingo, 28 de agosto de 2011

em flor

o cheiro da primavera-em-flor é algo! a cor da primavera-em-flor também é algo! o boldo, a begônia, o beijo, a orquídea, o pessegueiro, o limoeira, a laranjeira... tudo-em-flor aqui em casa! tempo único!

Foucault e o Anarquismo

por Salvo Vaccaro
Introdução
“Nos dois primeiros anos de vida em Clermont (60-62), Michel Foucault tomou-se amigo de Jules Vuillemin. Faziam longas caminhadas pelas ruas do centro histórico, almoçavam juntos com freqüência, por vezes na companhia de colegas da faculdade de filosofia. Muitas vezes em mesas de dez pessoas. (...) E ainda assim eram muitas as diferenças entre os dois professores. (...) A distância que os separava era também considerável: Vuillemin aproximou-se gradualmente da direita, enquanto que Foucault, bem ou mal, permaneceu um homem de esquerda. Discutiam muito entre si e Foucault concluía em geral com o comentário: “No fundo, você é uma anarquista de direita e eu um anarquista de esquerda” (1 Didier Eribon, Michel Foucault, trad. it. Leonardo, Milão, 1991, p. 174).

De que posição Foucault pode auto-identificar-se dessa maneira? Com que grau de compreensão, principalmente no que diz respeito a uma ampla tradição histórica? Qual acepção dada à expressão “anarquista de esquerda”, em contraposição à idéia de um “anarquista de direita” (para além da pessoa em questão)? Será somente uma afinidade eletiva para com o herético, o marginal, o anômalo?
São estas as questões que tentaremos compreender ao longo deste artigo. Gostaria, em primeiro lugar, que me fosse concedida uma motivação autobiográfica. Juntamente aos pensadores da Escola de Frankfurt - textos como O Homem Unidimensional de Herbert Marcuse, A Teoria Crítica de Horkheimer, Mínima Moralia de Theodor W Adorno, A Dialética do Iluminismo de Horkheimer e Adorno - Michel Foucault é o autor (filósofo, historiador, crítico) que me aproximou do anarquismo entre os anos 1976-77; sobretudo, a sua história do nascimento da prisão, Vigiar e Punir, e os seus artigos na coletânea Microfisica do Poder.
1 Indícios Inéditos
Obviamente li também os clássicos do pensamento anarquista, mas ainda hoje esta específica formação preliminar me dá a oportunidade, assim como no passado, de não me fossilizar no caminho traçado de Bakunin a Malatesta, para citar o título do famoso livro de Pier Carlo Masini. Acima de tudo, permaneceu em mim indelevelmente colocado um estilo de leitura, uma curiosidade de pesquisa, um tipo de reflexão: o uso do pensamento como uma “caixa de utilidades” de onde se deve retirar aquilo que serve em um momento oportuno, ou seja, cada vez que apareça a necessidade de um sustentáculo para firmar o caminho tomado por uma reflexão, por uma autônoma construção conceitual.
Afastando todo academicismo, Foucault nos ensinou, acima de tudo, uma utilização anarquista do texto teórico, que não negue a prática, sem reverências filológicas ou formalismos sistemáticos, sem respeito pela autoridade do Nome (“O que importa quem fala?”, era comum repetir), enfrentando o conteúdo do pensar e as condições sócio-históricas dentro das quais torna-se possível pensar uma coisa e não uma outra. Torna-se possível, assim, maturar um processo de deslizamento do pensamento em direção a indícios inéditos, em horizontes antes velados, escancarando vínculos de compatibilidade que refletem-se no campo do próprio pensamento. Não há limites intransponíveis, como demonstra a utopia. Apesar disso, Foucault não a vislumbra em um amanhã palingenético de liberdade adquirida em sua plenitude, mas sim em um presente no qual seja possível atirar as flechas de uma crítica genealógica (de acordo com uma feliz imagem de Habermas) que encontre, hoje, dinâmicas de subtração e liberação das relações de poder dominantes.
Mas não é deste último que se pretende fazer a história de uma possível relação com o pensamento anarquista, mas sim de Foucault, em relação ao qual o movimento sempre ostentou uma certa desconfiança - recordo-me de minha desavença para com Mássimo La Torre em Umanità Nova (nº. 19 de 21/5/1978 e nº. 28 de 30/7/1978, para ser preciso) - que hoje não haveria existido graças à atividade do CSOA. Godzilla de Livorno, que organizou, entre outras coisas, algumas reuniões delicadas ao autor francês, publicou as atas da primeira, e promoveu a publicação, junto às edições Biblioteca Franco Serantini de Pisa, das relações anuais dos cursos acadêmicos sobre Foucault no Collège de France (cátedra de História dos Sistemas de Pensamento, criada pelo próprio em 1970) - (2 Respectivamente, A partire da Foucault. Studi su Potere e Soggettività, organização de Andrea Grillo, La Zisa, Palermo, 1993; e Resumés de Cours - 1970-1982, BFS, Pisa, 1994).
A auto-identificação de Foucault como “anarquista de esquerda” não deve nos enganar: indica menos um reconhecimento de pertencimento a uma identidade a ser revelada que uma tensão na direção que chamaria posteriormente de “insurreição dos saberes sujeitos.” De resto, nas milhares de páginas que, entre livros, artigos e entrevistas, compreendem os "ditos e escritos” (3 É recente a coleção completa, intitulada exatamente "Dits et Ecrits” organizada por Daniel Defert e François Ewald, 4 vol., Gallimard, Paris, 1994), há raros traços de anarquismo e anarquistas. Por exemplo, Foucault cita uma só vez o nome de Bakunin (ao fazer uma conexão com Wagner, em um artigo sobre a versão do Anel de Nibelungo apresentada por Pierre Boulez, famoso compositor) - (4 Michel Foucault, L’immaginazione dell’Ottocento, in Corriere della Sera, 30/9/1980, nº. 223, p. 3) , e de Kropotkin (uma citação das Confissões de um Revolucionário, assinalada por Georges Canguilhem, seu professor e estudioso de epistemologia) - (5 Michel Foucault, Sorvegliare e Punire (1975), trad. ít. Einaudi, Turim, 1976, p. 206).
Além disso, Foucault conhece certamente os intelectuais Etienne de La Boétie (6 Michel Foucault, Monstrosities in Criticism, in Diacritics, I, nº. 1, 197 1) e Pierre Clastres (7 Michel Foucault, As Malhas do Poder (1976), in Barbarie, nº. 4-5, 1981182) , e um outro conhecido anarquista Noam Chomsky, com o qual teve uma conversação em 1971 em um colégio holandês (em Eindhoven) intermediado pelo anarquista Fons Elders (8 Noam Chomsky - Michel Foucault, Giustizia e Natura Umana, organização de Salvo Vaccaro, trad. it. ILA Palma/ Associate, Palermo/Roma, 1994). Apesar de discordar das posições políticas de Chomsky, declaradamente anarquista, Foucault não cita o anarquismo durante a conversa, nem mesmo como pano de fundo ou ponto de polêmica. En passant, mencionamos uma entrevista de 1970 na neo-Universidade de Vincennes, quando Foucault, no meio de uma polêmica dirigida contra os docentes de filosofia de esquerda, recorda como também no início do século era censurado aos docentes de filosofia “divulgar idéias anarquistas” (9 Le Piège de Vincennes, entrevista de P. Loriot, Le Nouvel Observateur, nº.274, 9-15 de fevereiro de 1970).
2 "Não sou Anarquista na medida em que..."
No que diz respeito mais especificamente ao anarquismo, é possível recuperar uma discussão ocorrida durante algumas conferências sobre o poder, verdade e a forma jurídica que Foucault ministrou de 21 a 25 de março de 1973 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (10 Desta conferência, existe uma versão, italiana, organizada por Lucio D'Alessandro, La Verità e le Forme Giuridiche, La Città del Sole, Napoli, 1994, que todavia não leva à discussão ampla, encontrável em Dits et Ecrits, cit., v 11, p. 623-46). No debate após as conferências, alguns interlocutores pareciam ver em Foucault uma certa aversão à idéia de transformar o caráter repressor do poder em fetiche, sem distingui-lo do aspecto produtivo de positividade. “Seria mais prudente analisar as condições negativas e positivas do poder, pois, se não fizesse esta distinção, recuperaria simplesmente uma base anarquista ou uma versão acadêmica, erudita de um pensamento hippie, em uma forma mais contemporânea” (11 Ibidem p. 641-2).
Foucault responde a uma polêmica levantada, que julgava não haver nada de mal com o pensamento anarquista ou hippie - e de acordo com um interlocutor até mesmo o pensamento do filósofo Gilles Deleuze (autor, entre outras obras, de Anti-Édipo, juntamente com Félix Guattari) é hippie e anarquista - fazendo a distinção entre poder opressivo e poder produtivo, dando ênfase a este último. “Eu não aprovo a análise simplista que consideraria o poder como uma coisa só. Foi dito a esse respeito que os revolucionários procuram tomar o poder. Pois bem, eu seria muito mais anárquico quanto a isso. Costuma-se dizer que eu não sou anarquista na medida em que não admito essa concepção totalmente negativa do poder; mas não concordo com vocês quando dizem que os revolucionários procuram tomar o poder” (12 Ibidem, p. 642).
Foucault considerou diversas vezes o anarquismo durante o decorrer das aulas do primeiro semestre de 1976 dedicado ao tema: “Defender a sociedade.” Na aula de 7 de janeiro de 1976, sobre algumas lutas da época contra a justiça e os aparatos judiciários e psiquiátricos (Foucault, além de percorrer o caminho histórico do nascimento das prisões, estava pessoalmente engajado nos GIP - Grupos de Informação sobre as Prisões - e também estava ligado ao movimento da antipsiquiatria de Basaglia, Szasz, Cooper, Laing e outros) ao lado daquelas ligadas à justiça de classe, de tradição maoísta, ou aquelas de fundo psicanalítico, inspiradas nas indicações de Reich e Marcuse, Foucault lembra aquelas que "se relacionavam de forma precisa à temática anarquista” (13 Michel Foucault, Difendere la Società, trad. it. Ponte alle Grazie, Firenze, 1990. p. 21. Em 1983, Foucault aqui retorna de forma mais detalhada, descrevendo algumas tipologias comuns de lutas antiautoritárias de oposições ao poder, ou seja, “lutas anárquicas”, esclareceu “transversais”, “imediata” (seja no sentido que atingem o aspecto do poder mais próximo aos indivíduos, seja no sentido que não adiam para o futuro) ligadas aos “efeitos do poder enquanto tais” (cf. Perché Studiare il Potere: La Questione del Soggetto, in Aut Aut, nº. 205, 1985, p. 2-10, especialmente p. 5)).
Ao final do ciclo de 12 aulas, no dia 17 de março de 1976, Foucault enfrentou de forma problemática o “componente racial” (e também racista) das diversas formas de socialismo francês do século XIX, incluindo aquelas fourierianas e anarquistas (até o caso Dreyfus, incluindo a Comuna) - (14 Ibidem, p. 170-2. A transcrição das lições mostra as argumentações da tese foucaultiana, sem prová-la ou verificá-la através das cabeças da época. Por parecer estravagante uniformizar os diversos socialismos dos oitocentos, seria interessante investigar a plausibilidade e veracidade do anti-semitisino, que atinge apenas o anarquismo).
3 Vigiar e Punir
É mais ou menos neste período, quando o anarquismo estava ligado à política da ilegalidade delinqüêncial da segunda metade do século XIX, que Foucault terminou seu livro sobre a prisão: as polêmicas e as discussões desenvolvidas na primeira metade do século “serão despertadas pelo eco de resposta aos anarquistas quando, na segunda metade do século XIX, colocaram o problema político da delinqüência tomando como ponto de ataque o aparato penal; quando pensaram poder reconhecer nela a forma mais combativa de recusa à lei; quando tentaram nem tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes como desconectar a delinqüência da legalidade e ilegalidade burguesas que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares” (15 Michel Foucault, Sorvegliare e Punire, cit., p. 323).
Foucault voltou ao tema do anarquismo em novembro de 1977, por ocasião da súbita extradição para a Alemanha do advogado francês Klaus Croissant, impedido de exercer sua profissão e acusado de cumplicidade com a RAF, refugiado na França por asilo político, preso e finalmente expulso depois do aparecimento dos cadáveres de Baader, Meinhof e companheiros (16 Michel Foucault, Vat-on Extrader Klaus Croissant?, in Le Nouvel Observateur, nº. 679,14-20/11/1977) . Denunciando a traição da França, tradicional terra da tolerância e de asilo por questões políticas, Foucault recupera as origens das medidas de repressão nos acordos dos governos entre os séculos XIX e XX, anos marcados pelo “terror” dos anarquistas (no duplo sentido da expressão). Foucault denuncia a continuação de tais políticas, apesar de nesse meio-tempo terem-se constituído as Declarações dos Direitos do Homem de 1948, a convenção européia de 1957 e, em geral, leis (aparentemente) mais liberais em relação àquelas da virada do século.
Em uma tournée pelo Japão, em 1978, Foucault deu algumas conferências sobre o poder, já que a tradução para o japonês de Vigiar e Punir e A Vontade de Saber suscitou um grande interesse. Falando em 27 de abril sobre a “filosofia analítica da política”, Foucault em um certo momento toca um exemplo bem atual para o público local: o embate popular contra a construção do novo aeroporto de Tokio em Narita. Naquelas lutas, nota Foucault, não se trata de colocar em prática os princípios leninistas da aliança mais fraca ou do inimigo mais importante. “São lutas imediatas” que não remetem a um momento futuro libertador e revolucionário, “o desaparecimento das classes ou do definhamento do estado” que possam ser delegados como “a solução dos problemas”; “com relação a uma hierarquia teórica de motivações ou a uma ordem revolucionária que polarizaria a história e que articularia hierarquicamente os momentos, pode-se dizer que estas lutas são anarquistas, inscrevendo-se em uma história imediata, aceita e reconhecida como infinitamente aberta” (17 Michel Foucault, Dits et Ecrits, cit., p. 546).
Exatamente um mês depois, em 27 de maio de 1978, em frente a um auditório, dessa vez de especialistas, na Sociedade Francesa de Filosofia, Foucault deu uma conferência entitulada “O que é a crítica?”, referindo-se ao Iluminismo dos dias de ouro nos séculos XVII e XVIII. Interrogando-se sobre o governo e sobre a vontade de subtrair-se ao governo de qualquer tipo, Foucault, por solicitação de um ouvinte, detém-se na base do “anarquismo fundamental”, ou seja, sobre qual a motivação e o horizonte no momento de sua análise genealógica do surgimento de uma atitude crítica e de uma “vontade” de não se fazer governar - que, de fato, define o anarquismo. Foucault não esclarece se de fato o sabia; afirma simplesmente que “não o excluía em absoluto”, mesmo não sendo esta sua perspectiva (18 Michel Foucaul, Qu'est-ce que la Critique?, sessão de 27 maio de 1978, Bulletin de la Socíété Française de Philosophie, LXXXIV , nº. 2, abril-junho de 1990, especialmente p. 59. recentemente recordou tal momento Wilhelm Schmid, De l'Ethique comme Esthétique de L’existence, Magazine Litéraire, nº. 325, outubro 1994, p. 36-9, especialmente p. 38).
Enfim, em uma entrevista na Bélgica em 22 de maio de 1981 durante uma série de seis conferências na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Louvaine, Foucault revelou em um certo momento como uma certa esquerda francesa e européia tenha se esclarecido com o subproletário, enquanto outra tenha tomado partido do proletariado, renegando uma potencial solidariedade, especificamente quanto ao estilo de vida e preferências sexuais. Foucault disse com respeito a este fato, que “acaba sendo verdade que há duas grandes famílias ideológicas que jamais conseguiram entender-se: de um lado, os anarquistas, de outro, os marxistas”. E quando os entrevistadores arriscaram fazer um paralelo com o “anarquismo libertário”, Foucault replicou: “É o que vocês gostariam que fosse. Não, eu não me identifico com os anarquistas libertários, porque há uma certa filosofia libertária que acredita nas necessidades fundamentais do homem. Eu não as quero, me nego acima de tudo ser identificado, ser localizado pelo poder” (19 Michel Foucault, Dits et Ecrits, cit., p. 664 e 667).
4 Herético, Iconoclasta, Libertário
Parece-me que são somente estas as passagens em que Foucault explícita, cita ou mostra algum conhecimento sobre o anarquismo, sem na verdade jamais aprofundar ou demonstrar uma atenção específica e direta. Além disso, uma entrevista em Berkeley em 1983 (um ano antes de morrer de Aids), Foucault parece ignorar as solicitações que lhe são feitas para que se declare politicamente. Na maioria das vezes, os seus interlocutores associam às suas obras valores “anarquistas” (por exemplo, Habermas o considera como “o herdeiro anárquico” de Nietzsche, assim como Heidegger representaria o herdeiro conservador); e Foucault, afirmando interessar-se fundamentalmente pela ética, e se tanto por uma política enquanto ética, parece mostrar sua indiferença quanto às tentativas de rotulá-lo: “Fui considerado um tecnocrata, agente do governo gaullista pelos democratas e pelos gaullistas, pela direita, como um perigoso anarquista; até mesmo um docente americano indignou-se porque nunca um veterano marxista como eu, certamente um agente da KGB, seria convidado pelas universidades americanas, e assim por diante” (20 Politics and Ethic: an Interview, in Paul Rabinow (Ed.), The Foucault Reader. Penguin, Londres 1984, p. 373 e p. 376. Em entrevista concedida a Paul Rabinow em maio de 1984, apenas um mês antes de morrer, analogamente Foucault se manifesta de maneira irônica sobre as legendas políticas arregimentadas no curso dos anos, acrescentado: “nenhuma destas imagens é importante em si; tomadas juntas, de outro lado, significam qualquer coisa. E devo admitir que me alegra bastante aquilo que desejam tentar” (Polemics, Politics and Problematizations.- an Interview, in ibidem p. 384)).
Como justificar ou motivar aquela imagem dos anos 60, anterior à época de seu famoso engagement político (em favor dos presos, dos loucos psiquiátricos, dos dissidentes dos países da Europa oriental, dos boat-people, dos opositores do franquismo, etc.)? Somente um típico vício intelectual? Vontade de épater la bourgeoise? Além da intenção de participar do concurso mundial para rotulá-lo, em que sentido Foucault participa de uma certa idéia de anarquismo?
Provavelmente a resposta não está contida em uma obra em particular: deve ser procurada em uma bibliografia de citações de anarquistas e de outras relacionadas a esse pensamento, como foi sumariamente elaborado até agora. Mesmo porque, as intervenções dos críticos e autores (alguns deles conhecidos pelo próprio Foucault) que testemunham positiva ou negativamente sobre um certo anarquismo teórico e político de Foucault, são muito mais numerosas (valorativa e qualitativamente) que as raras citações textuais dele próprio.
Enquanto algums destes autores se limitam a dar-lhe uma rotulação genérica, como “herético”, “iconoclasta” (O'Connor), “libertário” (Sawicki), ou até mesmo indicando uma acepção crítica/depreciativa (Cohen, Arato, Rorty, Racevskis, Hacking), que no final das contas são bastante semelhantes, outros esforçam-se para entrar no mérito destas posições (21 Veja-se respectivamente: Tony O'Connor, Foucault and the Transgression of Limits, in Hugh Silverman (Ed.), Philosophy and non-Philosophy since Merleau-Ponty, Routledge, Londres, 1988, p. 136-5 1, especialmente p. 136; Jana Sawicki, Disciplining Foucault, Routledge, Nova Iorque, 1991, especialmente p. 34; falamos de "erro anárquico" Jean Cohen - Andrew Arato, Civil Society and Political Theory, MIT Press, Cambridge, 1992especialmente p. 462; Richard Rorty, Foucault et l'Epistémologie, in David Couzens Hoy (Ed.), Michel Foucault. Lectures Critiques, De Boeck-Wesmael, Bruxelas, 1989, p. 55-63, especialmente p. 62 (onde se encontra escrito sobre um “galanteio radical complacente”); Karlis Racevskis, Michel Foucault and the Subversions of Intellect, Cornell U. P., Ithaca, 1983, especialmente p. 101 (“retórica de igualitarismo e libertarismo”); Ian Hacking, L'Archéologie de Foucault, in David Camns Hoy (Ed.), op. cit., p. 39-53, especialmente p. 52).
Um filão abre caminho para um “anarco-nietzscheanismo” (22 Veja-se Terry Hoy, The Moral Ontology of Charles Taylor: contra, Deconstructivism, in Philosophy and Social Criticism, XVI, nº. 3, 1990, p. 207-25, especialmente p. 215; Harry Redner, The Infernal Recurrence of the Same: Nietzsche and Foucault on Knowledge and Power, in Marcelo Dascal - Ora Gruengard (Eds.), Knowledge and Politics, Westview Press, Boulder, 1989, p. 291-315, especialmente p. 300 e 307; John Rajchman, Nietzsche, Foucault and the Anarchism of Power, in Semiotexte, III, nº. 1. 1978, p. 96-107) . A ligação Nietzsche -Foucault é determinada, entre outras coisas, por sua comum impostação metodológica de pesquisa filosófica, histórica e, em um sentido amplo, social, denominada genealogia Esta última tenta descobrir as condições materiais e discursivas de uma certo evento em sua singularidade, individualizando a proveniência das “palavras” e das “coisas” inerentes a este evento (querendo-se parafrasear o título de um célebre livro de Foucault).
Onde pode surgir, de forma plausível, o elo de conjunção entre nietzscheanismo (isto é uma posição teórico-interpretativa que ultrapassa a limitada fidedignidade ao texto do filósofo alemão) e o anarquismo? Provavelmente na não utilização da dialética por parte de Nietzsche e Foucault, os quais não crêem e nem mesmo usam o método dialético (em qualquer versão em que este apareça: hegeliana, marxista e historicista) para derivar do presente aquilo que ele negou ou exclui. Enquanto a dialética intui uma continuidade rompida entre o existente e a utopia, de tal forma que esta última alimenta-se da inversão da primeira, Nietzsche e Foucault acreditam ser oportuno cortar todo elo de continuidade para que o não-ainda-existente não seja prejulgado conservando elementos do presente.
Trata-se de uma interpretação da possível leitura anarquista de um nietzscheanismo contemporâneo (muito francesa, mediada por Deleuze, reelaborando Heidegger), que é elaborada pela combinação entre o uso do texto de Nietzsche e a acepção de Foucault.
Um ótimo intérprete dessa teorização é sem dúvida Reiner Schürmann, que refaz o caminho de formação do sujeito no pensamento foucaultiano. Nele, o sujeito é efeito de um duplo processo de sujeição, segundo um exercício de poder ativo e um passivo. Negando ambos os momentos, Foucault esboça uma perspectiva de cura libertária do sujeito, que não deve deixar-se subjugar nem deve subjugar outros (diferentemente do sujeito grego da polis, cujo cidadão dominador, masculino, homem público domina a mulher esposa no oikos). O sujeito “anárquico”, de acordo com Schürmann, é aquele que se autoconstitui nas lutas contra os dispositivos disciplinares de poder e analíticos da verdade, ou seja, que determinam a torsão das relações sociais com base hierárquica e autoritária, fixando aquilo que é possível ou não, que é ou não lícito por ser verdadeiro (23 Cf. Reiner Schürmann, Se Constituer Soi-Même comme Sujet Anarchique, in Les Etudes Philosophiques, nº. 4, 1986, p. 451-471: “O sujeito anárquico se constitui através de micro-intervenções diretas contra as configurações recorrentes da subjeção e da objetivação” (p. 470)).
Foucault pretende declarar a “morte do homem”, soberano centralizador metafísico: os sujeitos constituem-se no interior de relações de saber e poder prefixadas, que cada um encontra e herda, e das quais é necessário libertar-se sem que se tenha que reconstituir a mais primitiva posição de soberania centralizada para poder somente então dominar e filtrar qualquer processo social e cultural.
5 Para uma Política Antiestatal
Há uma outra corrente que vê em Foucault um “anarco-existencialismo”. A escritora feminista inglesa Kate Soper, por exemplo, demonstra a equivalência da “dimensão anarco-existencialista” de Foucault com a “lógica emancipativa e utópica do feminismo”, já que ambos aspiram “a uma libertação anárquica do domínio” (24 Kate Soper, Productive Contradictions, in Caroline Ramazanoglu (Ed.), Up Against Foucault, Routledge, Londres, 1993, p. 29-50, especialmente p. 37. Em relação à utopia da mudança, a semelhança entre Foucault e o utopismo socialista e anárquico, como por exemplo aquele de Charles Fourier, é posta em discussão por Alan Megill, que faz notar como em Foucault não existe uma visão final de libertação ou de felicidade (Alan Megill, Prophets of extremity, University of Califomia Press, Berkeley, 1985, p. 197)).
Hayden White compara algumas passagens de Foucault sobre a defesa do indivíduo em relação ao Estado às passagens de Albert Camus sobre o “homem em revolta”, nas quais se opõe “ao totalitarismo auspiciando a anarquia como uma adorável alternativa” (25 Hayden White, Foucault's Discourse: The Historiography of AntiHuinanism, in The Content of the Form, Johns Hopkins U. P., Baltimore, 1987, p. 128).
Philip Knee, por sua vez, faz um paralelo entre um pretenso anarquismo sartriano e o anarquismo “niilista” de Foucault, o primeiro “de inspiração marxista, no sentido do anarquismo antipolítico do jovem Marx quando critica a separação da política para uma esfera distorcida da economia. (...) E nesse sentido está muito próximo da idéia anarquista de uma política antiestado, sem governo nem lei, como se encontra, por exemplo, na crítica de Proudhon a Rousseau”. Dessa forma é entendida sua aproximação ao anarquismo “niilista” de Foucault, que exalta os excluídos, as resistências ao poder (qualquer que seja a forma destas), a provocação permanente de um desafio libertário (26 Philíp Knee, Le Problème Politique chez Sartre et Foucault in LavalThéologique et Philosophique, XL VII, 1, fevereiro de 1991, p. 83-93, especialmente p. 90-1).
Por fim, Alex Callinicos, retomando o “anarco-nietzscheanismo”, o distingue “dos tipos precedentes de anarquismo - especialmente a versão atomista de Stirner.. A diferença consiste no fato de Foucault e Deleuze terem substituído o sujeito individual, cuja soberania e unidade substancial Stirner e companheiros não só mantinham, bem como levavam ao extremo, ao se referir a uma multiplicidade de sujeitos” (27 Alex Callinicos, Is There a Future for Marxism?, McMillan, Londres, 1982, p. 111. Retorne-se acima Fred R. Dallmayr, Democracy and Post-modernism, in Human Studies X, 1986, p. 143-170, especialmente p. 166). Parece uma diferença insignificante, mas trata-se de fato não só da pluralidade, mas sim da qualidade dos sujeitos: na teoria de Foucault e, principalmente na de Deleuze, o sujeito pode reconstituir-se somente de forma descentrada, nômade, sem deixar-se recolocar no círculo mágico da sua institucionalização simbólica e jurídica.
Wolfgang Essbach também estabelece orna ligação Stirner-Foucault, ancorada em Urs Marti, que afirma detectar em Foucault “simpatias anarquistas” reconhecendo-as naquelas (raras) passagens em que Foacault falou dos anarquistas, além da predileção e da solidariedade para com grupos espontâneos e movimentos experimentais, típicos de 1968 (28 Wolfgang Essbach, Gegenzüge, Frankfurt, 1982; Urs Marti, Michel Foucault, Beck, Munique, 1988, especialmente p. 125-7).
O historiador francês Jacques Léonard, que polemizou com Foucault a respeito da metodologia histórica, não hesita em afirmar que "o autor de Vigiar e Punir situa-se na linha de pensadores políticos individualistas que criticam firmemente tais noções [de poder]. Não seria difícil indicar que os seus precursores são os anarquistas do século XIX que denunciam com intransigência quase todas as formas de poder: patronal, estatal, policial, judiciário, clerical, médico, jurídico, paterno, colonial...”. E lembra os artigos de Sébastien Faure em Le Libertaire, os de Jean Grave em Les Temps Modernes, de Paul Robin e de Albert Thierry, além de reproduzir por inteiro a célebre idéia de Proudhon “Ser governado significa...”, à qual confronta de forma indireta a crítica foucaultiana das relações dominantes de poder (29 Jacques Léonard, Lo Storico e il Filosofo, in Michelle Perrot (Organização), Limpossibile Prigione, trad. it. Rizzoli, Milano, 1981, p. 20 e notas, 17 e 18 e p. 240).
6 Política e/ou Ética
O individualismo reivindicado por Foucault não é, entretanto, político, mas ético. A possibilidade que cada um tem de traçar o trajeto da própria existência, não como elemento de uma estratégia política, que ao mesmo tempo substitui e enfraquece a violência bélica introduzindo lógicas distorcivas e dissuasivas, mas sim como obra de arte: a vida como criação estética individualizada que comunica, solidária e reciprocamente, as diferentes formas de cuidado de si não-hegemônicas.
Dana Polan se interroga, portanto, se a posição foucaultiana consiste “em uma anarcopolítica na qual tudo aquilo que não é sistemático é valorizado como subversivo, ou seja é uma ironia infinita muitas vezes próxima a um gélido niilismo” (30 Dana B. Polan, Fables of Transgression: The Reading of Politics and the Politics of Reading in Foucauldian Discourse, in Boundary 2, X, nº. 3, primavera 1982, p. 369). Quase como resposta, Alan Megill sustenta que “a recusa do sistema por parte de Foucault poderia induzir-nos a considerá-lo anarquista, embora seu anarquismo não presuma, como o anarquismo clássico, uma ordem subjacente que deva ser expressa para que prevaleça a harmonia: em Foucault não existe uma ordem natural, nem uma harmonia possível” (31 Alan Megill, op. cit., p. 255. Por seu lado Edith Kurzweil afirma que “o seu pensamento é completamente anárquico” (Edith Kurzweil, Michel Foucault's History of Sexuality as Interpreted by Feminist and Marxists, Social Research, LIII, nº. 4, inverno 1986, p. 657). Richard Porty recupera, por outro lado, “a sua política anárquica”, “indissociável do trabalho histórico”: “trata-se de denunciar a sutileza dos mecanismos repressivos ativados pelas classes dirigentes” (32 Richard Rorty, Foucault et L’épistémologíe, cit., p. 6 1. “Na medida em que é possível atribuir uma política ao Foucault francês, deve-se falar de crenças anárquicas mais que liberais (...) são estes passos ‘anárquicos’ que os seus admiradores franceses parecem agradecer mais que tudo". (Richard Rorty, Identità Morale e Autonomia Privata: il Caso Foucault in Scritti Filosofici II, trad. it. Laterza, Bari, 1993, p. 261 e p. 263). Veja-se outrossim J. Simpson, Archaeology and Politicism: Foucalt's Epistemic Anarchism, in Man and the World, XXVII, nº. 1, 1994).
“Mas Foucault é realmente um propugnador de seu comportamento anarconiilista?”, questiona Michael Walzer. Acreditando encontrar nele um meio-termo entre a posição teórica e o engajamento político, Walzer critica a incongruência entre expressão e empenho, entre teoria crítica, ao seu ver incompleta e contraditória, e o ímpeto generoso claramente perceptível. “Quando Foucault é anarquista, o é tanto de um ponto de vista moral quanto político; moral e política, para ele, caminham lado a lado: a culpa e a inocência são criadas pelo código jurídico, a normalidade e a anormalidade pelas disciplinas científicas. Abolir os sistemas de poder significa abolir de uma só vez as categorias jurídicas, morais e também científicas. Mas o que sobra, então? Foucault não acredita, como faziam os primeiros anarquistas, que o ser humano livre sei a um sujeito de um certo tipo, bom por natureza e sinceramente sociável -, pelo contrário, está convencido que não existe algo que possa ser definido como um ser humano livre, que não existam homens ou mulheres naturais. Homens e mulheres são sempre criações sociais, produtos de códigos e disciplinas. E assim o radical abolicionismo de Foucault, se é sério, possui menos um caráter anarquista que niilista” (33 Michael Walzer, La Politica di Foucault in L’intellettuale Militante, trad. it. Il Mulino, Bolonha, 1991, respectivamente p. 258 e 257-8. Veja-se também Introduzione di David Couzens Hoy na coleção dos textos por ele organizada, cit., p. 22).
7 Em 68
José Guilherme Merquior parece concordar com este julgamento, falando inclusive de um “niilismo de cátedra” (da mesma forma que se falava de “socialismo de cátedra”, provocação criada pelos marxistas revolucionários do início do século contra os teóricos reformistas e social-democratas). Merquior identifica, entretanto, um neo-anarquismo em Foucault: “O rótulo de libertário é efetivamente o melhor para indicar Foucault enquanto teórico social. Mais precisamente, ele foi (mesmo que não tenha utilizado essa palavra) um anarquista moderno” (34 José Guilherme Merquior, Foucault, trad. it, Laterza, Bari, 1988, p. 162) . Segundo Merquior, há “pelo menos três momentos em que Foucault aderiu à atmosfera efervescente do anarquismo que inspirava a revolta dos estudantes (e fez alçar a bandeira do anarquismo na Sorbonne ocupada em maio de 1968)”: a simpatia pelas formações políticas descentralizadas, espontâneas, concentradas em experiências particulares, mais do que na global luta de classes, e, “por último, e em sintonia ainda mais acentuada com a mais pura tradição anarquista, Foucault era convicto na sua falta de crença nas instituições” (mesmo naquelas revolucionárias, como demonstra a dissensão em relação aos maoístas no que diz respeito à justiça revolucionária, concebível somente além dos ritos, estruturas, tribunais e coreografias típicas da burguesia) - (35 Ibidem, p. 162-3, O autor se refere a uma discussão em 1972, encontrável em Michel Foucault, Microfisica del Potere, Einaudi Turim, 1977, p. 71-106. Contrariamente ao que se pode imaginar, Foucault não estava na França em maio de 1968 (mas em Tunis) e não exerceu então qualquer influência sobre o movimento, se bem que apenas sucessivamente).
“Mas Foucault não se limitou a seguir o anarquismo. Na realidade o que o tomou um neo-anarquista foi a colocação de dois novos aspectos junto à teoria clássica do anarquismo. Em primeiro lugar o seu sincero antiutopismo. Os principais pensadores anárquicos do século XIX eram também grandes utopistas. Apesar de nutrir profundas suspeitas com relação às instituições impessoais, preocuparam-se em propor novas formas de vida econômica e social, como o mutualismo de Proudhon ou as cooperativas de Kropotkin. O neo-anarquismo de hoje, parece ser absolutamente negativo. Parece não ter nenhuma pars construens, as suas crenças consistem naquilo que recusa, e não em idéias positivas” (36 Ibidem p. 163-4. “O fantasma de Bakunin, o romântico incendiário que em seu coração amava voluptuosamente a destruição, talvez tenha no fim prevalecido sobre o são e humano espírito de Kroptkin?...” (p. 164)).
Em segundo lugar, Merquior aponta para o predomínio do componente irracional nas “bases científicas” que orgulhavam Kropotkin, provavelmente reflexo do niilismo da modernidade. Negativismo e irracionalismo, conclui Merquior, são os elementos de fundo na crítica radical da contracultura contemporânea, que Foucault e Marcuse representam, oficializando seu matrimônio com o anarquismo, com prejuízo, assim, para o marxismo.
É importante, todavia, chamar a atenção para o motivo pelo qual Foucault não dá espaço para o utopismo. Como é possível subtrair da conversa com Chomsky, o temor de que a prefiguração imaginária de uma outra sociedade contenha de forma fantasmagórica (ou seja, como retomo, no sentido psicanalítico) elementos de ponderação já presentes na constelação de idéias, discursos e valores que se pretende negar, lhe sugere imediatamente a recusa de todo “o conjunto desta sociedade”, mesmo que esta seja encarada como fonte original da qual se distanciar. Somente a destruição da “lei do ‘até hoje’” (37 Entrevista com Michel Foucault (Actuel, 197 1, trad. it. in AA. VV., Aspettando la Rivoluzione, Guaraldi, Firenze, 1975, p. 19-38, especialmente p. 37-8) poderá apresentar um terreno sobre o qual constituir uma diferente articulação das relações sociais não correlacionadas a hierarquias dominantes e a formações hegemônicas de soberania.
De qualquer forma, as lutas do presente constituem o possível espaço de mudança, pois para Foucault são significativas as práticas que determinam uma ordem vigente. O percurso que vai do geral ao particular, típico das manifestações que aspiram alcançar o ápice do poder para promover a modificação da qualidade de vida, é drasticamente invertido por Foucault que dedica atenção específica à microfísica das relações de poder, cujo exercício atinge e atravessa indivíduos constituídos em sua materialidade, que seriam em outras condições potenciais vetores de dissonância dos discursos e práticas afirmados.
8 Novas formas de subjetividade
Ao final deste reconhecimento, é possível chegar de forma suscinta a algumas conclusões (parciais) sobre a relação Foucault-anarquismo, que vão além de uma mera identificação ou designação de idéias. Fiéis à busca de “otoutils” na “boîte” de seu pensar, é possível evidenciar o que dentro das idéias do autor é útil para uma elaboração contemporânea do anarquismo.
E indubitavelmente a analítica do poder esboça mapas de relações de poder assimétricas, hierárquicas, reversíveis, biunívocas, que mais se assemelham a uma sensibilidade libertária (como mutação, por exemplo, do pensamento radical das mulheres) e servem para uma crítica, em linhas anarquistas da dominação.
Foucault não nos fornece uma teoria geral, já que acredita que o poder não consiste em uma substância possuída a ser utilizada no momento oportuno, mas sim em uma particular relação topológica, ou seja uma relação entre sujeitos com referência a um específico campo de possibilidades tanto materiais (práticas, comportamentos, vínculos normativos, etc.) quanto discursivas (idéias, valores, imaginários, etc.). A relação de poder assim constituída engloba elementos típicos do domínio moderno: anonimato, transversalidade, transferibilidade, integrabilidade, fascinação. Não há nenhuma garantia absoluta de isenção do exercício de poder, pois são as práticas em que cada um está imbuído que ditam a posição individual no campo de tensões tomado em consideração (família, escola, prisão, hospital, etc.).
Torna-se importante, então, mudar comportamento, alterar as práticas, adotar estilos de vida diferenciados, subtrair-se ao grilhão disciplinar que regulamenta a existência singular e coletiva dos indivíduos nos vários e específicos âmbitos da vida cotidiana e institucional.
Não é verdade que Foucault não indica caminhos de forma positiva. Quando enuncia a famosa frase sobre a “ morte do homem”, entende referir-se à dimensão histórico-moderna do sujeito soberano que superinstitucionalizou corpos e desejos de cada indivíduo, dissociado de vínculos de gênero, identidade, grupo étnico. O Iluminismo tinha-nos prometido o resgate do homem da menoridade à qual tinha sido reduzido, permitindo-lhe alcançar a autonomia desejada na esfera intelectual, política e social. As relações de poder não são estranhas a esta estratégia capiciosa que utiliza a liberdade para revertê-la contra si mesma: “o que se coloca é o seguinte: de que forma é possível desligar o elo entre desenvolvimento das capacidades e intensificação das relações de poder?” (38 Michel Foucault, What is Enlightenment?, in Paul Rabinow (Ed.) op. cit., p. 48).
Subtrair-se às relações de poder torna-se praticável somente para as singularidades que não seguem os mesmos horizontes constitutivos do individualismo moderno (em última instância sempre os burgueses enquanto proprietários). Dessa forma, sujeitos nômades (tomando a expressão emprestada de Deleuze) indicariam a presença de um corpo de um desejo que não se fixam a nada, não no sentido niilista do querer o nada, pelo contrário: não são constituídos por alguma coisa e sim se constituemautonomamente a partir de um “cuidado consigo mesmo” simétrico a uma interpenetração recíproca e horizontal para com o outro.
“Sem dúvida, nos dias de hoje, o objetivo principal não é o de descobrir o que somos, mas sim o de recusar aquilo que somos. Devemos imaginar e construir aquilo que poderíamos ser, para liberar-nos deste tipo de “dupla ligação” política que são a individualização e a totalização simultânea das modernas estruturas de poder. A conclusão seria então que o problema político, ético, social, filosófico dos dias de hoje não é aquele de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas tentar nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização a ele vinculada. Devemos promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto por tantos séculos” (39 Michel Foucault, Perché Studiare il Potere, cit., p. 9-10 (tradução italiana ligeiramente modificada)).
cooperação.sem.mando/coletivo.sabotagem

A GOVERNAMENTALIDADE - michel foucault

aos colegas e parceiros empenhados na leitura de foucault, estou postando seu escrito A GOVERNAMENTALIDADE.
Curso do College de France, 1 de fevereiro de 1978
em: MICROFÍSICA DO PODER
Através da análise de alguns dispositivos de segurança, procurei ver como surgiu historicamente o problema especifico da população, o que conduziu à questão do governo: relação entre segurança, população e governo. E esta temática do governo que procurarei agora inventariar.
Certamente, na Idade Média ou na Antigüidade greco−romana, sempre existiram tratados que se apresentavam como conselhos ao príncipe quanto ao modo de se comportar, de exercer o poder, de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus, introduzir na cidade dos homens a lei de Deus, etc. Mas, a partir do século XVI até o final do século XVIII, vê−se desenvolver uma série considerável de tratados que se apresentam não mais como conselhos aos príncipes, nem ainda como ciência da política, mas como arte de governar. De modo geral, o problema do governo aparece no século XVI com relação a questões bastante diferentes e sob múltiplos aspectos: problema do governo de si mesmo − reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao estoicismo no século XVI; problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante; problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes. Como se governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor governante possível, etc.
Todos estes problemas, com a intensidade e multiplicidade tão características do século XVI, se situam na convergência de dois processos: processo que, superando a estrutura feudal, começa a instaurar os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais; processo, inteiramente diverso mas que se relaciona com o primeiro, que, com a Reforma e em seguida com a Contra−Reforma, questiona o modo como se quer ser espiritualmente dirigido para alcançar a salvação. Por um lado, movimento de concentração estatal, por outro de dispersão e dissidência religiosa: é no encontro destes dois movimentos que se coloca, com intensidade particular no século XVI, o problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral do governo em geral.
Em toda esta imensa e monótona literatura do governo, gostaria de isolar alguns pontos importantes que dizem respeito à definição do que se entende por governo do Estado, aquilo que chamaremos governo em sua forma política. Com este objetivo, o mais simples sem dúvida é opor esta literatura a um único texto que, do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão, implícito ou explícito, em relação ao qual por oposiçâo ou recusa − se situa a literatura do governo: O Príncipe, de Maquiavel.
É importante lembrar que O Príncipe não foi imediatamente abominado: foi reverenciado pelos seus contemporâneos e sucessores imediatos como também no inicio do século XIX − sobretudo na Alemanha, onde foi lido, apresentado, comentado por pessoas como Rehberg, Leo, Ranke, Kellermann, etc., e na Itália − exatamente no momento em que desaparece toda esta literatura sobre a arte de governar. O que se deu no contexto preciso da Revolução Francesa e de Napoleão, quando se colocou a questão de como e em que condições se pode manter a soberania de um soberano sobre um Estado; no contexto do aparecimento, com Clausewitz, da relação entre política e estratégia e da importância política, manifestada por exemplo pelo Congresso de Viena, em 1815, que se atribui ao cálculo das relações de força considerado como princípio de inteligibilidade e de racionalização das relações internacionais; finalmente, no contexto da unificação territorial da Itália e da Alemanha, na medida em que Maquiavel foi um dos que procuraram definir em que condições a unificação territorial da Itália poderia ser realizada.
Entre estes dois momentos, houve porém uma volumosa literatura anti−Maquiavel, às vezes explicitamente − uma série de livros que em geral são de origem católica, como por exemplo o texto de Ambrogio Politi, Disputationes de Libris a Christiano detestandis, e de origem protestante, como o livro de Innocent Gentillet, Discours d'Etat sur les moyens de bien gouverner contre Nicolas Machiavel, 1576 − às vezes implicitamente, em oposição velada, como por exempIo Guillaume de La Pernére, Miroir Politique, 1567, P. Paruta, Della Perfezione della Vita politica, 1579, Thomas Elyott, The Governor, 1580.
O importante é que esta literatura anti−Maquiavel não tem somente uma função negativa de censura, de barragem, de recusa do inaceitável: é um gênero positivo que tem objeto, conceitos e estratégia, e é em sua positividade que gostaria de analisá−lo. Sem dúvida encontramos uma espécie de retrato negativo do pensamento de Maquiavel, em que se representa um Maquiavel adverso. O Príncipe, contra o qual se luta, é caracterizado por um principio: o príncipe está em relação de singularidade, de exterioridade, de transcendência em relação ao seu principado; recebe o seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, estabelecidos por tratado com a cumplicidade ou aliança de outros príncipes, laços puramente sintéticos, sem ligação fundamental, essencial, natural e jurídica, entre o príncipe e seu principado. Corolário deste princípio: na medida em que é uma relação de exterioridade, ela é frágil e estará sempre ameaçada, exteriormente pelos inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu principado e internamente, pois não há razão apriori, imediata, para que os súditos aceitem o governo do príncipe. Deste principio e de seu corolário se deduz um imperativo: o objetivo do exercício do poder será manter, reforçar e proteger este principado, entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e o território, o principado objetivo, mas como relação do príncipe com o que ele possui, com o território que herdou ou adquiriu e com os súditos. É este liame frágil do príncipe com seu principado que a arte de governar apresentada por Maquiavel deve ter como objetivo. Consequentemente, o modo de análise terá dois aspectos: por um lado, demarcação dos perigos (de onde vêm, em que consistem, qual é sua intensidade); por outro lado, desenvolvimento da arte de manipular as relações de força que permitirão ao príncipe fazer com que seu principado, como liame com seus súditos e com o território, possa ser protegido. Esquematicamente, se pode dizer que O Príncipe de Maquiavel é essencialmente um tratado da habilidade do príncipe em conservar seu principado e é isto que a literatura anti−Maquiavel quer substituir por uma arte de governar. Ser hábil em conservar seu principado não é de modo algum possuir a arte de governar.
Para caracterizar esta arte de governar, examinarei o Miroir politique contenant diverses maniéres de gouverner, de Guillaume de La Perriére, um dos primeiros textos desta literatura anti−Maquiavel, que apresenta alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, o que o autor entende por governar e governante? Diz ele, na página 24 de seu texto: "governante pode ser chamado de monarca, imperador, rei, príncipe, magistrado, prelado, juiz e similares". Como La Perriére, também outros, tratando da arte de governar, lembram continuamente que também se diz governar uma casa, almas, crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa, uma família. Estas observações, que parecem simplesmente terminológicas, têm de fato implicações políticas importantes. O príncipe "maquiavélico" é, por definição, único em seu principado e está em posição de exterioridade, transcendência, enquanto que nesta literatura o governante, as pessoas que governam, a prática de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. Existem portanto muitos governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes governos estão dentro do Estado ou da sociedade. Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem radicalmente á singularidade transcendente do príncipe de Maquiavel.
É certo que entre todas estas formas de governo, que se cruzam, que se imbricam no interior da sociedade e do Estado, uma forma é bastante especifica: trata−se de definir qual é a forma particular que se aplica a todo o Estado. É assim que, procurando fazer a tipologia das diferentes formas de governo, La Mothe Le Vayer, em um texto do século seguinte (uma série de escritos pedagógicos para o Delfim), diz que existem basicamente três tipos de governo, cada um se referindo a uma forma específica de ciência ou de reflexão. O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política. Em relação à moral e à economia, a política tem sua singularidade, o que La Mothe Le Vayer indica muito bem. Mas o importante é que, apesar desta tipologia, as artes de governar postulam uma continuidade essencial entre elas. Enquanto a doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano procura incessantemente marcar uma descontinuidade entre o poder do príncipe e as outras formas de poder, as teorias da arte de governar procuram estabelecer uma continuidade, ascendente e descendente.
Continuidade ascendente no sentido em que aquele que quer poder governar o Estado deve primeiro saber se governar, governar sua família, seus bens, seu patrimônio. É esta espécie de linha ascendente que caracterizará a pedagogia do príncipe. La Mothe Le Vayer escreve assim para o Delfim primeiro um tratado de moral, em seguida um livro de economia e finalmente um tratado de política. Continuidade descendente no sentido em que, quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar suas famílias, seus bens, seu patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam como devem. E esta linha descendente, que faz repercutir na conduta dos indivíduos e na gestão da família o bom governo do Estado, que nesta época se começa a chamar de polícia. A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente da forma de governo; a policia, a continuidade descendente. E nos dois casos o elemento central a esta continuidade é o governo da família, que se chama de economia.
A arte de governar, tal como aparece em toda esta literatura, deve responder essencialmente à seguinte questão: como introduzir a economiaa − isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família − ao nível da gestão de um Estado? A introdução da economia no exercício político será o papel essencial do governo. E se foi assim no século XVI, também o será no século XVIII, como atesta o artigo Economia Política, de Rousseau, que diz basicamente: a palavra economia designa originariamente o sábio governo da casa para o bem da família. O problema, diz Rousseau, é como ele poderá ser introduzido, mutatis mutandis, na gestão geral do Estado. Governar um Estado significará portanto estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto a do pai de família. Uma expressão importante no século XVIII caracteriza bem tudo isto: Quesnay fala de um bom governo como de um "governo econômico". E se Quesnay fala de governo econômico − que no fundo é uma noção tautológica, visto que a arte de governar é precisamente a arte de exercer o poder segundo o modelo da economia – é porque a palavra economia, por razões que procurarei explicitar, já começa a adquirir seu sentido moderno e porque neste momento se começa a considerar que é da própria essência do governo ter por objetivo principal o que hoje chamamos de economia. A palavra economia designava no século XVI uma forma de governo; nó século XVIII, designará um nível de realidade, um campo de intervenção do governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para nossa história. Eis portanto o que significa governar e ser governado.
Em segundo lugar, encontramos no livro de Guillaume de La Perriére a seguinte afirmação: "governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi−las a um fim conveniente". Gostaria também de fazer uma série de observações sobre esta frase, começando com a palavra coisa. No Príncipe de Maquiavel, o que caracteriza o conjunto dos objetos sobre os quais se exerce o poder é o fato de ser constituído pelo território e seus habitantes. Com relação a esse ponto, Maquiavel não fez mais do que retomar um princípio jurídico pelo qual se caracterizava a soberania no direito público, da Idade Média até o século XVI. Neste sentido, pode−se dizer que o território é o elemento fundamental tanto do principado de Maquiavel quanto da soberania jurídica do soberano, tal como a definem os filósofos e teóricos do direito. O território pode ser fértil ou estéril, a população densa ou escassa, seus habitantes ricos ou pobres, ativos ou preguiçosos, etc., mas estes elementos são apenas variáveis com relação ao território, que é o próprio fundamento do principado ou da soberania.
No texto de La Perriére, ao contrário, a definição do governo não se refere de modo algum ao território. Governam−se coisas. Mas o que significa esta expressão? Não creio que se trate de opor coisas a homens, mas de mostrar que aquilo a que o governo se refere é não um território e sim um conjunto de homens e coisas. Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas em suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.; os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar, etc.; finalmente, os homens em suas relações com outras coisas ainda que podem ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a morte, etc. Que o governo diga respeito às coisas entendidas como a imbricação de homens e coisas temos a confirmação em uma metáfora que aparece em todos esses tratados: o navio. O que é governar um navio? É certamente se ocupar dos marinheiros, da nau e da carga; governar um navio é também prestar atenção aos ventos, aos recifes, às tempestades, às intempéries, etc.; são estes relacionamentos que caracterizam o governo de um navio. Governar uma casa, uma família, não é essencialmente ter por fim salvar as propriedades da família; é ter como objetivo os indivíduos que compõem a família, suas riquezas e prosperidades; é prestar atenção aos acontecimentos possíveis, às mortes, aos nascimentos, às alianças com outras famílias; éesta gestão geral que caracteriza o governo e em relação ao qual o problema da propriedade fundiária para a família ou a aquisição da soberania sobre um território pelo príncipe são elementos relativamente secundários. O essencial é portanto este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis.
Este tema do governo das coisas que aparece em La Perriére será encontrado ainda nos séculos XVII e XVIII. Frederico II, em seu Anti−Maquiavel, escreveu passagens significativas. Diz, por exemplo: comparemos a Holanda e a Rússia; a Rússia pode até ser o país de maior extensão em relação aos outros Estados europeus, mas é composta de pântanos, florestas, desertos, é povoada apenas por um bando de miseráveis, sem atividade nem indústria; a Holanda, que é pequeníssima e constituída de pântanos, possui ao contrário uma população, uma riqueza, uma atividade comercial e uma frota que fazem dela um país importante da Europa, o que a Rússia está apenas começando a ser. Portanto, governar é governar as coisas.
Voltemos ao texto citado de La Perriére: "governo é uma correta disposição das coisas de que se assume o encargo para conduzi−las a um fim conveniente". O governo tem uma finalidade, e nisto ele também se opõe claramente à soberania. Certamente nos textos filosóficos e jurídicos a soberania nunca foi apresentada como um direito puro e simples. Nunca foi dito nem pelos juristas nem afortiori pelos teólogos que o soberano legítimo teria razões para exercer o poder. Para ser um bom soberano, é preciso que tenha uma finalidade: "o bem comum e a salvação de todos".
Tomarei como exemplo um texto do final do século XVII em que seu autor, Pufendorf, diz: "Só lhe será conferida autoridade soberana para que ele se sirva dela para obter e manter a utilidade pública". Um soberano não deve se beneficiar de nada se ele não beneficiar o Estado. Em que consiste este bem comum ou esta salvação de todos que regularmente são colocados como o próprio fim da soberania? Se examinarmos o conteúdo que os juristas e teólogos dão ao bem comum, vemos que há bem comum quando os súditos obedecem, e sem exceção, às leis, exercem bem os encargos que lhe são atribuídos, praticam os ofícios a que são destinados, respeitam a ordem estabelecida, ao menos na medida em que esta ordem é conforme às leis que Deus impôs à natureza e aos homens. Isto quer dizer que o bem público é essencialmente a obediência à lei: seja a do soberano terreno seja a do soberano absoluto, Deus. De todo modo, o que caracteriza a finalidade da soberania é este bem comum, geral, é apenas a submissão à soberania. A finalidade da soberania é circular, isto é, remete ao próprio exercício da soberania. O bem é a obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam a ela. Qualquer que seja a estrutura teórica, a justificação moral e os efeitos práticos, isto não é muito diferente de Maquiavel quando afirmava que o objetivo principal do príncipe devia ser manter seu principado. Estrutura essencialmente circular da soberania ou do principado com relação a si mesmo.
Com as tentativas de definição de governo de La Perriére, vê−se aparecer um outro tipo de finalidade. O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzi−las não ao bem comum, como diziam os textos dos juristas, mas a um objetivo adequado a cada uma das coisas a governar. O que implica, em primeiro lugar, uma pluralidade de fins específicos, como por exemplo fazer com que se produza a maior riqueza possível, que se forneça às pessoas meios de subsistência suficientes, e mesmo na maior quantidade possível, que a população possa se multiplicar, etc. Portanto, uma série de finalidades específicas que são o próprio objetivo do governo. E para atingir estas diferentes finalidades deve−se dispor as coisas. E esta palavra dispor é importante, na medida em que, para a soberania, o que permitia atingir sua finalidade, isto é, a obediência à lei, era a própria lei; lei e soberania estavam indissoluvelmente ligadas. Ao contrário, no caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas,
isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que determinados fins possam ser atingidos. Isto assinala uma ruptura importante: enquanto a finalidade da soberania é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a finalidade do governo está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem constituídos por leis, são táticas diversas. Na perspectiva do governo, a lei não é certamente o instrumento principal; e este é um tema freqüente nos séculos XVII e XVIII que aparece nos textos dos economistas e dos fisiocratas, quando explicam que não é certamente através da lei que se pode atingir os fins do governo.
Finalmente, quarta observação sobre o texto de La Perriére. Ele diz que um bom governante deve ter paciência, soberania e diligência. O que entende por paciência? Para explicá−la, ele toma o exemplo do "rei dos insetos do mel", isto é, o zangão, dizendo que o zangão reina sobre a colmeia sem ter necessidade do ferrão; Deus quis mostrar com isso, de modo místico, diz ele, que o verdadeiro governante não deve ter necessidade de ferrão, isto é, de um instrumento mortífero, de uma espada, para exercer seu governo; deve ser mais paciente que colérico; não é o direito de matar, não é o direito de fazer prevalecer sua força que deve ser essencial a seu personagem. E que conteúdo positivo é possível dar a esta ausência de ferrão? A sabedoria e a diligência. Sabedoria: não, como para a tradição, o conhecimento das leis humanas e divinas, da justiça ou da eqüidade, mas o conhecimento das coisas, dos objetivos que deve procurar atingir e da disposição para atingi−los; é este conhecimento que constituirá a sabedoria do soberano. Diligência: aquilo que faz com que o governante só deva governar na medida em que se considere e aja como se estivesse ao serviço dos governados. E La Perriére se refere mais uma vez ao exemplo do pai de família, que é o que se levanta antes das outras pessoas da casa, que se deita depois dos outros, que pensa em tudo, que cuida de tudo pois se considera a serviço da casa. Vê−se como esta caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe que se encontra ou que se pensava encontrar em Maquiavel.
Creio que este esboço da teoria da arte de governar não ficou pairando no ar no século XVI. Não se limitou somente aos teóricos da política. Pode−se situar suas relações com a realidade: em primeiro lugar, a teoria da arte de governar esteve ligada desde o século XVI ao desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial: aparecimento dos aparelhos de governo; em segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e de saberes que se desenvolveram a partir do final do século XVI e que adquiriram toda sua importância no século XVII: essencialmente o conhecimento do Estado, em seus diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua força, aquilo que foi denominado de estatística, isto é, ciência do Estado; em terceiro lugar, esta arte de governar não pode deixar de ser relacionada com o mercantilismo e o cameralismo.
Esquematicamente, se poderia dizer que a arte de governar encontra, no final do século XVI e início do século XVII, uma primeira forma de cristalização, ao se organizar em torno do tema de uma razão de Estado. Razão de Estado entendida não no sentido pejorativo e negativo que hoje lhe é dado (ligado à infração dos princípios do direito, da eqüidade ou da humanidade por interesse exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e pleno: o Estado se governa segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que de outro tipo. Por sua vez, a arte de governo, em vez de fundar−se em regras transcendentes, em um modelo cosmológico ou em um ideal filosófico−moral, deverá encontrar os princípios de sua racionalidade naquilo que constitui a realidade específica do Estado. Os elementos desta primeira racionalidade estatal serão estudados nas próximas aulas. Mas desde logo se pode dizer que esta razão de Estado constituiu para o desenvolvimento da arte do governo uma espécie de obstáculo que durou até o início do século XVIII.
E isto por algumas razões. Em primeiro lugar, razões históricas em sentido estrito: a série de grandes crises do século XVII, como a guerra dos 30 anos com suas devastações; em meados do século, as grandes sedições camponesas e urbanas; finalmente, no final do século, a crise financeira, a crise dos meios de subsistência que determinou a política das monarquias ocidentais. A arte de governar só podia se desenvolver, se pensar, multiplicar suas dimensões em períodos de expansão, e não em momentos de grandes urgências militares, políticas e econômicas, que não cessaram de assediar o século XVII.
Em segundo lugar, esta arte de governo, formulada no século XVI, também foi bloqueada no século XVII por outras razões, que dizem respeito ao que se poderia chamar de estrutura institucional e mental. A primazia do problema da soberania, como questão teórica e princípio de organização política, foi um fator fundamental deste bloqueio da arte de governar. Enquanto a soberania foi o problema principal, enquanto as instituições de soberania foram as instituições fundamentais e o exercício do poder foi pensado como exercício da soberania, a arte do governo não pôde se desenvolver de modo específico e autônomo. Temos um exemplo disto no mercantilismo. Ele foi a primeira sanção desta arte de governar ao nível tanto das práticas políticas quanto dos conhecimentos sobre o Estado; neste sentido, podemos dizer que o mercantilismo representa um primeiro limiar de racionalidade nesta arte de governar, de que o texto de La Perriére indica somente alguns princípios, mais morais que reais. O mercantilismo é a primeira racionalização do exercício do poder como prática de governo; é com ele que se começa a constituir um saber sobre o Estado que pôde ser utilizável como tática de governo. Entretanto, o mercantilismo foi bloqueado, freado, porque se dava como objetivo essencialmente a força do soberano: o que fazer não tanto para que o pais seja rico mas para que o soberano possa dispor de riquezas, constituir exércitos para poder fazer política. E quais são os instrumentos que o mercantilismo produz? Leis, ordens, regulamentos, isto é, as armas tradicionais do soberano. Objetivo: o soberano; instrumentos: os mesmos da soberania. O mercantilismo, assim, procurava introduzir as possibilidades oferecidas por uma arte refletida de governar no interior de uma estrutura institucional e mental da soberania, que ao mesmo tempo a bloqueava.
De modo que, durante o século XVII e até o desaparecimento dos temas mercantilistas no início do século XVIII, a arte do governo marcou passo, limitada por duas coisas. Por um lado, um quadro muito vasto, abstrato e rígido: a soberania, como problema e como instituição. Esta arte de governo tentou compor com a teoria da soberania, isto é, procurou−se deduzir de uma teoria renovada da soberania os princípios diretores de uma arte de governo. É neste sentido que os juristas do século XVII formulam ou reatualizam a teoria do contrato: a teoria do contrato será precisamente aquela através da qual o contrato fundador − o compromisso recíproco entre o soberano e os súditos − se tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios gerais de uma arte do governo. Que a teoria do contrato, que esta reflexão sobre as relações entre o soberano e seus súditos tenha desempenhado um papel muito importante na teoria do direito público, o exemplo de Hobbes o prova com evidência (mesmo se o que Hobbes quis formular tenham sido os princípios diretores de uma arte de governar, na verdade ele não foi além da formulação dos princípios gerais do direito público).
Portanto, por um lado, um quadra muito vasto, abstrato, rígido da soberania e, por outro, um modelo bastante estreito, débil, inconsistente: o da família. Isto é, a arte de governar procurou fundar−se na forma geral da soberania, ao mesmo tempo em que não pôde deixar de apoiar−se no modelo concreto da família; por este motivo, ela foi bloqueada por esta idéia de economia, que nesta época ainda se referia apenas a um pequeno conjunto constituído pela família e pela casa. Com o Estado e o soberano de um lado, com o pai de família e sua casa de outro, a arte de governo não podia encontrar sua dimensão própria.
Como se deu o desbloqueio da arte de governar? Alguns processos gerais intervieram: expansão demográfica do século XVII, ligada á abundância monetária e por sua vez ao aumento da produção agrícola através dos processos circulares que os historiadores conhecem bem. Se este é o quadro geral, pode−se dizer, de modo mais preciso, que o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com a emergência do problema da população; trata−se de um processo sutil que, quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados.
Foi através do desenvolvimento da ciência do governo que a economia pôde centralizar−se em um certo nível de realidade que nós caracterizamos hoje como econômico; foi através do desenvolvimento desta ciência do governo que se pôde isolar os problemas específicos da população; mas também se pode dizer que foi graças á percepção dos problemas específicos da população, graças ao isolamento deste nível de realidade, que chamamos a economia, que o problema do governo pôde enfim ser pensado, sistematizado e calculado fora do quadro jurídico da soberania. E a estatística, que no mercantilismo não havia mais podido funcionar a não ser no interior e em beneficio de uma administração monárquica que também funcionava nos moldes da soberania, tornar−se−á o principal fator técnico, ou um dos principais fatores técnicos, deste desbloqueio.
De que modo o problema da população permitirá desbloquear a arte de governo? Em primeiro lugar, a população − a perspectiva da população, a realidade dos fenômenos próprios à população − permitirá eliminar definitivamente o modelo da família e centralizar a noção de economia em outra coisa. De fato, se a estatística tinha até então funcionado no interior do quadro administrativo da soberania, ela vai revelar pouco a pouco que a população tem uma regularidade própria: número de mortos, de doentes, regularidade de acidentes, etc.; a estatística revela também que a população tem características próprias e que seus fenômenos são irredutíveis aos da família: as grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral do trabalho e da riqueza, etc.; revela finalmente que através de seus deslocamentos, de sua atividade, a população produz efeitos econômicos específicos. Permitindo quantificar os fenômenos próprios à população, revela uma especificidade irredutível ao pequeno quadro familiar. A família como modelo de governo vai desaparecer. Em compensação, o que se constitui nesse momento é a família como elemento no interior da população e como instrumento fundamental.
Em outras palavras, até o advento da problemática da população, a arte de governar só podia ser pensada a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa para um plano secundário em relação à população, aparece como elemento interno à população, e portanto não mais como modelo, mas como segmento. E segmento privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população − quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. − é pela família que se deverá passar. De modelo, a família vai tornar−se instrumento, e instrumento privilegiado, para o governo da população e não modelo quimérico para o bom governo. Este deslocamento da família do nível de modelo para o nível de instrumentalização me parece absolutamente fundamental, e é a partir da metade do século XVIII que a família aparece nesta dimensão instrumental em relação à população, como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, as campanhas de vacinação, etc. Portanto, aquilo que permite à população desbloquear a arte de governar é o fato dela eliminar o modelo da família.
Em segundo lugar, a população aparecerá como o objetivo final do governo. Pois qual pode ser o objetivo do governo? Não certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc. E quais são os instrumentos que o governo utilizará para alcançar estes fins, que em certo sentido são imanentes à população? Campanhas, através das quais se age diretamente sobre a população, e técnicas que vão agir indiretamente sobre ela e que permitirão aumentar, sem que as pessoas se dêem conta, a taxa de natalidade ou dirigir para uma determinada região ou para uma determinada atividade os fluxos de população, etc. A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual − como consciência de cada indivíduo constituinte da população − e o interesse geral − como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem − constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da população. Nascimento portanto de uma arte ou, em todo caso, de táticas e técnicas absolutamente novas.
Em terceiro lugar, a população será o ponto em torno do qual se organizará aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido em que a população será o objeto que o governo deverá levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à população em sentido lato, daquilo que chamamos precisamente de "economia . A economia política pôde se constituir a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população. Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população, o território, a riqueza, etc., se constituirá uma ciência, que se chamará economia política, e ao mesmo tempo um tipo de intervenção característico do governo: a intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da económia política.
Com isto não quero de modo algum dizer que a soberania deixou de desempenhar um papel a partir do momento em que a arte do governo começou a tornar−se ciência política. Diria mesmo o contrário: nunca o problema da soberania foi colocado com tanta acuidade quanto neste momento, na medida em que se tratava precisamente não mais, como nos séculos XVI e XVII, de procurar deduzir uma arte de governo de uma teoria da soberania, mas de encontrar, a partir do momento em que existia uma arte de governo, que forma jurídica, que forma institucional, que fundamento de direito se poderia dar á soberania que caracteriza um Estado.
Tomemos, por exemplo, dois textos de Rousseau. Em primeiro lugar, o artigo Economia Política da Enciclopédia, o primeiro cronologicamente. Nele, Rouseau coloca o problema do governo e da arte de governar nos seguintes termos: a palavra economia designa essencialmente a gestão dos bens da família pelo pai; mas este modelo não 'deve mais ser aceito, mesmo se era este o modelo a que as pessoas se referiam no passado; atualmente, diz Rousseau, sabemos que a economia política não é mais a economia familiar; sem referir−se explicitamente à fisiocracia, à estatística ou ao problema geral da população, ele registra bem uma ruptura: o fato de que a "economia política" tem um sentido totalmente novo que não pode mais ser reduzido ao velho modelo da família. Seu objetivo portanto neste artigo é o de definir uma arte de governar. Em segundo lugar, O Contrato Social. Nele, o problema será: como se pode formular, com noções tais como natureza, contrato, vontade geral, um princípio geral de governo que substitua tanto o princípio jurídico da soberania quanto os elementos através dos quais se pode definir e caracterizar uma arte de governo. Portanto, o problema da soberania não é de modo algum eliminado pela emergência de uma nova arte de governo; ao contrário, ele torna−se ainda mais agudo que antes.
A disciplina também não é eliminada; é certo que sua instauração − todas as instituições no interior da qual ela se desenvolveu no século XVII e início do século XVIII, a escola, as oficinas, os exércitos, etc. − só se compreende a partir do desenvolvimento da grande monarquia administrativa. Mas nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do momento em que se procurou gerir a população. E gerir a população não queria dizer simplesmente gerir a massa coletiva dos fenômenos ou geri−los somente ao nível de seus resultados globais. Gerir a população significa geri−la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. A idéia de um novo governo da população torna ainda mais agudo o problema do fundamento da soberania e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver a disciplina. Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo. Trata−se de um triângulo: soberania−disciplina−gestão governamental, que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais.
O que gostaria de mostrar é a relação histórica profunda entre: o movimento que abala a constante da soberania colocando o problema, que se tornou central, do governo; o movimento que faz aparecer a população como um dado, como um campo de intervenção, como o objeto da técnica de governo; e o movimento que isola a economia como setor específico da realidade e a economia política como ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da realidade. São estes três movimentos − governo, população, economia política − que constituem, a partir do século XVIII, um conjunto que ainda não foi desmembrado.
Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas:
1 − o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e' reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.
2 − a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros − soberania, disciplina, etc. − e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.
3 − resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado.
Sabemos que fascínio exerce hoje o amor pelo Estado ou o horror do Estado; como se está fixado no nascimento do Estado, em sua história, seus avanços, seu poder e seus abusos, etc. Esta supervalorização do problema do Estado tem uma forma imediata, efetiva e trágica: o lirismo do monstro frio frente aos indivíduos; a outra forma é a análise que consiste em reduzir o Estado a um determinado número de funções, como por exemplo ao desenvolvimento das forças produtivas, à reprodução das relações de produção, concepção do Estado que o torna absolutamente essencial como alvo de ataque e como posição privilegiada a ser ocupada. Mas o Estado − hoje provavelmente não mais do que no decurso de sua história − não teve esta unidade, esta individualidade, esta funcionalidade rigorosa e direi até esta importância. Afinal de contas, o Estado não é mais do que uma realidade composita e uma abstração mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita. O que é Importante para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a estatização da sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado.
Desde o século XVIII, vivemos na era do governamentalidade. Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver. Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado do que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade.
Talvez se possa assim, de maneira global, pouco elaborada e portanto inexata, reconstruir as grandes formas, as grandes economias de poder no Ocidente: em primeiro lugar, o Estado de justiça, nascido em uma territorialidade de tipo feudal e que corresponderia grosso modo a uma sociedade da lei; em segundo lugar, o Estado administrativo, nascido em uma territorialidade de tipo fronteiriço nos séculos XV−XVI e que corresponderia a uma sociedade de regulamento e de disciplina; finalmente, um Estado de governo que não é mais essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície ocupada, mas pela massa da população, com seu volume, sua densidade, e em que o território que ela ocupa é apenas um componente. Este Estado de governo que tem essencialmente como alvo a população e utiliza a instrumentalização do saber econômico, corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança.
Nas próximas lições, pretendo mostrar como a governamentalidade nasceu a partir de um modelo arcaico, o da pastoral cristã, apoiou−se em seguida em uma técnica diplomático−militar e finalmente como esta governamentalidade só pôde adquirir suas dimensões atuais graças a uma série de instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo e que se chama, no velho sentido da palavra, o dos séculos XVII e XVIII, a policia. Pastoral,novas técnicas diplomático−militares e finalmente a polícia: eis os três pontos de apoio a partir de que se pôde produzir este fenômeno fundamental na história do Ocidente: a governamentalização do Estado.
cooperação.sem.mando

sábado, 27 de agosto de 2011

Com legalização distante, Frente pró-aborto quer conter retrocessos

Em reunião plenária, Frente Nacional pela legalização do aborto discute como enfrentar conservadorismo reacendido pela eleição presidencial de 2010. Com poucas chances de ver bandeira ser votada, Frente tenta conter a aprovação de retrocessos, como o Estatuto do Nasciturno, que proíbe cirurgia mesmo em casos de estupro.
por Bárbara Lopes - Especial para a Carta Maior
BRASÍLIA – A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto aproveitou que milhares de militantes feministas foram a Brasília participar da Marcha das Margaridas e realizou, na última quinta-feira (18/08), uma reunião plenária. O era clima defensivo e tinha uma interrogação no ar: como enfrentar o avanço do conservadorismo?
Ao colocar o aborto no centro do debate político, a eleição presidencial de 2010 reacendeu sentimentos conservadores na sociedade e, por consequência, entre os representantes dela no Congresso Nacional, onde aliás aconteceu a plenária.
Para as militantes da Frente, não apenas aumentaram as dificuldades no debate sobre a legalização do aborto, como agora é preciso lutar contra projetos que restringem ainda mais as possibilidades de interrupção da gravidez já permitidas pela legislação brasileira.
Na Câmara dos Deputados, por exemplo, há uma proposta de Estatuto do Nascituro, que proíbe o aborto mesmo em casos de estupro, ao dar a embriões a mesma proteção jurídica de crianças e adolescentes. Uma outra proposta oferece benefício financeiro para vítimas de estupro que decidam levar a gravidez adiante.
Os dois projetos foram aprovados pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara. “Tem pelo menos quatro projetos tramitando no Congresso para transformar o aborto em crime hediondo e dois deles para transformar em crime de tortura”, disse Silvia Camurça, da Articulação de Mulheres Brasileiras, uma das entidades participantes da Frente, ao lado da Marcha Mundial de Mulheres, da Liga Brasileira de Lésbicas e da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Além de tentar barrar essas propostas no Legislativo, a plataforma da Frente passa por garantir o atendimento do SUS para o aborto legal, melhorar a oferta de métodos contraceptivos nos serviços de saúde e promover o Estado laico, se opondo ao ensino religioso e ao acordo Brasil-Vaticano.
“Nós queremos fazer o debate do aborto a partir da realidade que as mulheres vivem, e não a partir dos valores e concepções de alguns setores da sociedade”, afirmou Sonia Coelho, da Marcha Mundial de Mulheres.
Para outra representante da Marcha, Nalu Farias, a situação atual é paradoxal. Houve um retrocesso na discussão sobre a legalização do aborto ao mesmo tempo em que se acumulam vitórias de governos populares na América Latina.
Na avaliação de Nalu, a ruptura que o Brasil fez com alguns aspectos do neoliberalismo dos anos 1990 foi incompleta, pois não chegou a usos e constumes. A situação se agravou durante as eleições presidenciais de 2010.
Uma pesquisa do instituto Sensus divulgada dois dias antes da plenária da Frente dá uma ideia da força conservadora no país. A aprovação do casamento gay pelo Congresso tem apoio de 37% dos brasileiros e a da descriminalização das drogas, de 17%. Já a redução da maioridade penal é defendida por 81%.
Apesar disso, a possibilidade de legalização do aborto no Uruguai e na Argentina é vista como uma oportunidade pelas militantes defenderem a bandeira no Brasil. No Uruguai, um projeto havia sido aprovado pelo Parlamento, mas vetado pelo então presidente Tabaré Vázquez. O atual presidente, José Mujica, anunciou que não vetará a lei se for apresentada novamente.
Na Argentina, um projeto de descriminalização da prática está em andamento e as organizações feministas locais estão otimistas com relação às chances de aprovação. Com esse quadro, Nalu Farias defendeu que a Frente leve o debate sobre o aborto para os espaços de integração latino-americana, como a Cúpula dos Povos, que será realizada em 2012.
Na plenária, também foi apresentado o estudo “Advocacy para o acesso ao aborto legal e seguro”, que analisou os efeitos do aborto clandestino em Pernambuco, Bahia, Paraíba, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Coordenada pelo Ipas Brasil e Grupo Curumin, a pesquisa demonstrou que os maiores impactos – com mortes e seqüelas para a saúde – se dá entre mulheres pobres, negras ou indígenas, jovens e de baixa escolaridade. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que complicações decorrentes do aborto matem 6 mil mulheres todos os anos na América Latina.
Antes da plenária, algumas militantes participaram de audiência pública da Subcomissão Permanente em Defesa da Mulher, vinculada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
A senadora Lídice da Mata (PSB-BA) opinou que o retrocesso no debate sobre o aborto aconteceu pela presença de uma mulher na disputa presidencial. “O movimento de mulheres está sendo lançado ao gueto, cada vez mais colocado na ‘marginalidade’, depois que se colocou no debate político no Brasil no período eleitoral ser contra ou a favor do aborto. Nenhum homem enfrentou essa discussão”, disse.
*Matéria alterada para correção de informação. Como disse o comentarista Emanuel, a senadora Lídice da Mata pertence ao PSB, não ao PT.