terça-feira, 31 de dezembro de 2013

de 2013 para 2014

a vida acontece e desacontece... e eu sigo não gostando de balanços pontuais... a vida não tem balanços pontuais... a vida está em permanente balanço... a vida, quando acontece, perde o contorno de exatidão das existências prontas e acabadas!
viver, para mim, é ter coragem de experimentar aquilo que nos desacomoda... é, um dia compor poesia com a alegria e, noutro, lidar com as tristezas que nos fazem (des)acontecer... é, ora rir, ora chorar, ou mesmo fazer tudo ao mesmo tempo... é saber se desfazer das velhas certezas e produzir novas (in)certezas... é cair, andar, tropeçar, rastejar, deitar um pouco, voar, levitar... é cansar, parar um pouco e seguir em frente, para os lados, para baixo, para cima e em muitas direções descardealizadas... é andar e desandar... é sorrir de canto e também gargalhar... é dar de ombros às efemeridades que sustentam vaidades... é inventar a paz e desinventar a guerra... é pisar um passo leve, pra não espantar as coisas poucas que nos alimentam... é compor silêncios... é fazer a coisa do seu jeito, sem seguir ou inventar receitas... vida tem disso... tem fissuras e sulcos, dobras e irregularidades, continuidades e descontinuidades... tem conexões que fazem fluir a existência e inventar movimentos... a vida é também outras coisas... talvez rir de bobagens e de não bobagens... puxar o facão para as ameaças que nos batem à porta... reconhecer quando vale e quando não vale a pena uma peleia... cantarolar no meio de protocolos... sorrir para a hipocrisia... pegar pela mão e ajudar a andar, a quem cambaleia das pernas e dos quereres... é pedir a mão quando cambaleamos...
enfim, 2013 trouxe-me muitas coisas... nada pequeno... nenhuma coisa pouca... desterritorializou-me por completo... trouxe-me empreitadas nunca dantes vividas, das quais tenho o maior orgulho... trouxe-me a desterritorialização de 2012 e exige-me que em 2014 eu re-cartografe a vida... trouxe-me os teares do cuidado de uma forma absolutamente ampliada... ensinou-me a cuidar e proteger com muito mais carinho e amorosidade... me fez outra, que não a que por tanto tempo conheci... ainda, neste instante, me faz outra!
hoje recolho as baterias, porque já faz um tempo que pedem recarga... porque em 2013, além de lidar com a vida, lidei também -e bastante- com a morte... com a morte provocada nos viveres alheios por gente hipócrita, pequena e rasa... por gente arrogante... por gente desvairada pelo alucinatório poder (efêmero poder)... por gente putrefata... mas, enquanto isso, também lidei com muita gente linda... gente feito gente... gente que inventa a vida a cada desacontecer... gente que se alegra com alegrias... gente que não se importa com efêmeros poderes... gente que produz bons encontros e boas intensidades... gente que luta e rala pra viver, e que não rouba os viveres dos outros... gente que faz poesia em cada dobra da existência... gente que desiste e gente que segue andando... gente que vacila... gente que não se assusta com fragilidades... gente que se encoraja, fica pelado de si e inventa um outro para viver...
assimassim, entro 2014 de idade e de energia nova... porque a vida me precisa... porque a poesia é nossa... porque a minha toada não é só minha... porque vida que reverbera não para de acontecer... e faço isso porque reverbera em mim, também a vida das pessoas lindas da minha vida, dos amigos lindos e de todas as pessoas lindas com quem transverso minha existência... nomais, nomais, que venham também aqueles que, daninhos, nos ajudam a nos tornarmos melhores e mais gente!
um abraço grande a todos aqueles que transversam a minha vida e em cujas existências também transverso meus versos... porque a vida segue... e a alegria é uma invenção permanente...

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Memorial descritivo do percurso profissional e acadêmico

hoje a colega e amiga sabrina corrêa me chamou pra uma conversa que me jogou nuns pensamentos que fizeram com que retomasse algumas coisas que tem poucos dias se desenharam em minhas letras... interessada em fazer um curso de doutorado, fui juntar minhas ideias para a candidatura e eis que das muitas coisas que me faltavam para as formalidades acadêmicas uma era a boia que se deve tratar regularmente ao césar lattes... faltou boia... faltou tempo pra fazer a boia e tratar... faltou disponibilidade para fazer e tratar a boia ao lattes... mas não faltou tempo e nem disponibilidade para fazer boia com as gentes que não comem da mesma coisa que o lattes... sempre fico a pensar sobre as importâncias e (des)importâncias daquilo que tecemos nos teares dos dias e nas tramas das vidas... aquilo que possibilita outras escrevinhaduras nas vidas e nas existências das pessoas com quem transversamos nossas existências... isso... essas coisas não aparecem e não dão boia ao lattes... essas coisas pulsam nas vidas e as fazem potentes... não são boia pra coisa pouca!

Maria Luiza Diello[1]

Tínhamos também, possivelmente, uma concepção comum de filosofia. (...) Nossa tarefa era analisar estados mistos, agenciamentos, aquilo que Foucault chamava de dispositivos. Era preciso não remontar aos pontos, mas seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que implicava numa microanálise (o que Foucault chamava de microfísica do poder e Guattari, micropolítica do desejo). É nos agenciamentos que encontraríamos focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem sempre desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe uma linha agitada. Não buscaríamos origens mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras. Não buscaríamos o eterno, ainda que fosse a eternidade do tempo, mas a formação do novo, a emergência ou o que Foucault chama de ‘a atualidade’
Gilles Deleuze[2]
BOCÓ
Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas na beira do rio até duas horas da tarde, ali também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia de ver aquele moço a catar caracóis na beira do rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele que fala sempre com sotaque das suas origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É alguém que constrói sua casa com pouco cisco. É um que descobriu que as tardes fazem parte de haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que olhando para o chão enxerga um verme sendo-o. Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi o que o moço colheu em seus trinta e dois dicionários. E ele se estimou.
Manoel de Barros[3]
Antes de abordar a minha prática profissional, gostaria de falar um pouco do meu percurso de formação pessoal e acadêmica. Confesso que já perdi no horizonte o motivo pelo qual quis fazer formação em psicologia, mas na época minha família condicionou que eu fosse estudar em uma Universidade que não fosse muito longe de casa, então escolhi a UNIJUÍ, mas isso era 1988 e eu havia concluído o então 2º grau (com formação em Magistério) e já passara um ano em casa (por questões familiares). O curso de Psicologia, na UNIJUÍ, abriria somente em 1990, então decidi fazer Filosofia durante 1989. Quando ingressei na Psicologia, ainda continuei cursando algumas disciplinas em Filosofia, mas algum tempo depois não foi mais possível custear financeiramente e interrompi a graduação em Filosofia, mas continuei freqüentando, como aluna ouvinte, algumas disciplinas dos cursos de Especialização da Filosofia (na época havia 3 cursos).
Durante o curso de psicologia fui tendo necessidade de ter mais contato com outros campos de conhecimento para além da Psicologia e da Filosofia, então transitei muito nas áreas de artes, literatura, ciências sociais, história, enfim, tentando conhecer esses campos que são tão importantes para o entendimento e para o trabalho com as gentes; isso, somado a certo desconforto que sentia com relação à teoria psicanalítica (que era a linha predominante na formação no curso de psicologia da UNIJUÍ), acabou provocando uma atrapalhação em minha vida acadêmica e fiquei na Universidade mais tempo do que o previsto formalmente, principalmente porque na época (e não sei como isso está hoje) não contávamos com um apoio humano em nossa trajetória acadêmica, sendo apenas preconizado que fizéssemos análise e que nos virássemos com isso!
Foi um tempo muito difícil para mim e teria sido muito mais tranqüilo se pudesse contar com um acolhimento humanizado na Universidade. Veja-se que eu tinha uma vinculação familiar muito forte, saí de casa aos 14 anos para fazer o 2º grau numa escola de freiras e, além disso, tinha uma formação humana absolutamente conservadora, ao mesmo tempo em que estava lidando com crises e questionamentos pessoais. O que foi de uma importância imensurável para mim, naquela época, e que me deu suporte para seguir em frente, foi o convívio com o pessoal da filosofia, assim como, com modos de vida esquizos e anárquicos. Isso tudo, somado à minha imaturidade, ajudou-me a entender, também, que o fato de uma pessoa escolher e passar a freqüentar um curso superior, não significa, necessariamente, que ela tenha suficiente sabedoria para lidar com as coisas da própria vida!
Quando escolhi fazer o curso na UNIJUÍ, sabia que sua linha teórica predominante seria a psicanálise e, na época, não entendia muito o que isso significava, mas era um campo do conhecimento que tinha amplo crédito no meio acadêmico e me fixei nesse idealismo, tendo tido uma formação acadêmica muito consistente nessa área. Na época, não havia um núcleo de estudos da psicanálise em Ijuí e algumas pessoas estavam começando a estudar a teoria psicanalítica, vinculadas à APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre (que também deu o suporte teórico para a construção do projeto do curso), portanto, as primeiras turmas do curso, puderam contar com professores com uma formação bastante consistente, os quais se deslocavam de Porto Alegre para trabalhar no curso da UNIJUÍ, e isso, garantiu, também, a qualidade da formação daqueles que tinham uma trajetória intelectual mais intensa. Assim, tive uma excelente formação teórica, mas não quis seguir a “ordenação” da formação institucional em Psicanálise, porque discordava daquele formato desenhado por um espectro ortodoxo, assim como, sentia certo desconforto com os liames da teoria psicanalítica, pois a minha própria situação pessoal não tinha enquadre em seus pressupostos.
Segui nessa trilha durante um considerável tempo de minha atuação profissional – o que, sem, dúvida, provocava muito sofrimento -, e, mesmo sendo uma apaixonada leitora de Foucault – por influência de meu trânsito na Filosofia e, principalmente, de um amigo filósofo que era foucaultiano -, não consegui, naquele tempo, fazer uma leitura mais precisa, da forte crítica ao campo psicanalítico. Mas, ao mesmo tempo em que tomava os referencias psicanalíticos como fundamentos de minha leitura de gentes e de mundo, tinha uma prática muito bonita, cujos fundamentos foram, à época, as coisas e as ideias em que eu realmente acreditava e que, por falta de uma visada disso durante minha formação, eu não sabia exatamente o que era... eis que, uma amiga que é do Serviço Social, atentava-me com provocações respeitosas sobre o que eu estaria fazendo, ancorada no campo psicanalítico se minha prática e meu entendimento de mundo eram absolutamente diversos disso... aos poucos fui me liberando de parte de minha antiga biblioteca e fornicando, devagarzinho, com a biblioteca dessa amiga... fui fazendo cópias de algumas coisas de Deleuze e de Guattari... algumas coisas eu própria já dispunha... e assim, fui me dando conta das coisas que estavam bem na frente do meu nariz e que eu ainda não havia reconhecido... algum tempo depois, já era 2007 e aí fiz seleção para o Mestrado Interinstitucional em Filosofia – UFSM/UNIJUI, no qual desenvolvi a pesquisa sobre “A Problematização da Subjetivação em Michel Foucault – para o cuidado e a transformação de si –“.
Para desenvolver a pesquisa e produzir a dissertação, tive que superar a leitura apaixonada que tinha de Foucault para, distanciada da passionalidade, poder fazer um exercício racional com relação ao seu pensamento... isso foi muito importante para minha formação, pois realocou minhas leituras e minhas andanças a partir de então! Evidencio  isso através de um excerto do Excurso de minha Dissertação, intitulado “Para uma escrita de si – uma apresentação dos rumos da pesquisa e da escrita”, cujo texto segue:
“Saio dessas tecituras[4] e faço, aqui, um retorno a Foucault, circundando a relação teórica com ele e com sua obra. Reapaixonar-me pelo autor foi uma das tarefas mais gostosas da pesquisa; reaproximar-se devagarzinho, desvencilhando-me aos poucos daquilo que já estava recortado em outro formato em meu imaginário e, re-tecendo, com outro olhar e com outros fios, aquilo que já me era tão familiar, além de encontrar o inesperado (me permitir encontrar o inesperado) - para usar um termo deleuziano ao se referir à condição necessária a um filósofo - ou como interroga o próprio Foucault, ao se perguntar sobre a tarefa do exercício filosófico: ‘Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe?’ (FOUCAULT). Este foi um exercício fundamental que tive que fazer para deixar de tomar seu pensamento como instrumento de legitimação do meu próprio pensamento, sem o que, não haveria curiosidade e nem pesquisa. Reconheço que ainda fiquei muito longe do desejado e esperado, mas é um passo dado, sem o qual não haveria a perspectiva de, daqui por diante, seguir nesta trilha.
 Então, além de encontrar o inesperado, senti-me na prazeroza condição de produzir em mim mesmo e em minha nova relação com Foucault, o inesperado. O inesperado que nos faz criar e, por sua vez, produzir. Isso me possibilitou acordes para a tessitura de um novo som, nesta que é uma caminhada cujas calosidades só o pesquisador pode curar. Ainda, no pensar deleuziano: fez-se a dobra na pretensa e equivocada linearidade de meu pensamento, dobra que irá projetar uma outra direção, uma outra questão, uma outra idéia, um rumo para a pesquisa e para o tecimento da dissertação, saindo do desenho tão ingênuo que no início me propunha dar a ver, e buscando traçar um riscado pelo menos mais coerente e que possa permitir, agora ou mais tarde, uma costura mais consistente”[5].
 Para dizer um pouco mais das coisas teóricas e práticas que me interessam, faço uso das palavras de Baremblitt, ao falar do pensamento de Deleuze e de Guattari, dizendo: “Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, mas pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. (...) eles estão sempre integrados a um tipo particular de militância. Eles têm um ‘pé’ numa ação concreta que se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a proposta analítica desses autores, que se chama ‘Esquizoanálise’. A Esquizoanálise é uma leitura do mundo, praticamente de ‘tudo’ o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro sobre As Três Ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma ‘episteme’ que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potenciação da vida”[6].
Colocadas essas questões, digo que minha atuação profissional sempre foi voltada para o campo das políticas públicas e, além disso, meu interesse pesquisador sempre esteve dirigido às questões filosóficas, humanas, políticas, éticas e sociais... faço de minha práxis cotidiana uma permanente potenciação da vida, criando e produzindo movimentos que ajudam a transformar a realidade!
Assim, cumpre esclarecer que, quando completei minha graduação em Psicologia, pensava em imediatamente fazer um curso de mestrado, mas logo que passei a atuar na área da Assistência Social (e isso se deu em 1998), percebi que nada sabia da vida, do mundo e das gentes... propus-me, então, a vivenciar a atuação profissional por várias áreas e, desta forma, poder produzir uma condição profissional que propiciasse, além do entendimento teórico sobre as coisas da vida e do mundo, o entendimento sobre as formas e as proposições teóricas que realmente importavam ao meu percurso profissional; desta forma, já tendo transitado e atuado nas áreas da Assistência Social, da Educação (Docência em Ensino Médio e Superior, e Institucional) e da Saúde Pública (Clínica), pude, ainda, atuar no campo do Judiciário e, depois, voltar ao da Saúde Mental, que é o espaço em que pretendo seguir, doravante, minha vida profissional (devo que dizer que esse percurso foi atrapalhado em abril/2013, quando fui intempestiva e autoritariamente removida da Secretaria Municipal de Saúde para a de Desenvolvimento Social, onde desenvolvo trabalho junto à Política de Atenção ao Idoso, sendo que pretendo retornar ao trabalho no campo público da saúde mental).
Acredito que seja importante esclarecer as motivações que me levaram a permitir o atravessamento pelo viés teórico da Esquizoanálise, visto que isso se deu por uma necessidade que eu própria tinha de alcançar um campo teórico que respeitasse e contemplasse o sujeito como ele é a partir de sua história e de suas vivências e não a partir de protótipos ou enquadramentos paralisantes, e, já tendo tecido o olhar sobre as leituras dessa perspectiva teórica, o que decorreu daí, foi só um desandar teórico que me colocou ao compasso do que penso e do que estudo, assim como, da forma como atuo.
Atualmente já ultrapassei o dualismo “corpo-mente”, pois penso que não haja dois, mas sim, uma coisa só que se atravessa de uma a outra parte... enfim, teoricamente, ainda olho para essa questão como se fosse a primeira vez que a visse, apesar de ter clareza disso em minha atuação profissional cotidiana.
No que se refere à prática clínica, penso que sejamos somente e tão somente comportas de contensão e passagem dos afetos da pessoa que atendemos e, para isso, é fundamental produzir uma experiência de vida que possibilite aprender a ler e entender as coisas da vida e do mundo, pois sem isso, resta impossível a tarefa de dar passagem aos afetos do outro... assim, a prática esquizoanalítica não se faz possível através da configuração ou formatação de enquadramentos que culminam em padrões, mas sim, a partir do cruzamento do entendimento teórico sobre a dimensão humana e social da subjetivação, com a produção da experiência do próprio analisador (que pode ser decorrente de um processo esquizoanalítico formal ou pessoal), para isso, é importante que a produção dessa experiência não seja apenas uma intencionalidade teórica, mas principalmente uma disponibilidade subjetiva ao ultrapassamento de modos de vida de enquadramento ou adestramento, para a constituição de modos de vida, autônomos, libertários e protagonistas.
No mais, acabo de completar 16 anos de trabalho (15 destes em instituições públicas) e já andei por vários campos, tecendo teias que nunca paro de ver se juntando a outras teias... comecei a atuar em espaço público em 1998, na então Ação Social, depois fui para a Saúde Mental e Docência (nível médio e técnico) e para a atuação institucional na área da educação...  depois para o Desenvolvimento Humano... depois fui para o Desenvolvimento Social... depois para o judiciário... durante esse tempo, atuei também em espaços acadêmicos de docência e pesquisa... e agora parei com tanta diversidade... já experienciei as atuações que desejava nesses campos e, desde 2009 venho me dedicando especificamente ao trabalho em saúde mental, polinizando minha atuação através dos referenciais da esquizoanálise, da psicologia social e institucional, e embalada pelos ideais de solidariedade, justiça social, simplicidade, humanidade, participação popular, protagonismo das gentes, entre outras coisas que embalam os pensamentos dos viventes!
Estou vivendo um tempo atípico em minha atuação profissional e, assim, enquanto cuido em manter meu trabalho público dentro do que seja possível desenvolver no espaço em que atuo, concomitantemente vou tecendo outras possibilidades de trabalho. No mais, mantenho o consultório privado durante todo esse tempo em que atuo no campo público, visto que é um lugar em que se pode arredar o banco e ter uns dedos de prosa a qualquer tempo, independente das vontades de gestores afoitos e apegados à efemeridade do poder.
A atuação intersetorial no trabalho público tem possibilitado o meu trânsito permanente no campo da saúde e, para além da manutenção do meu trabalho privado em saúde mental (assim como, do trânsito intersetorial nessa área), pretendo retomar minha atuação diretamente na saúde mental pública.
Nessa toada, perscruto os caminhos da clínica ampliada, do atendimento de rua, da atuação comunitária (que é uma experiência que já consolidei em minha história profissional) e da redução de danos (não enquanto viabilização e distribuição de insumos, mas enquanto modo de vida relacionando à invenção de uma estética existência enquanto).
Afora isso, devo sublinhar que nunca fui apegada a alimentar meu Lattes... o dito existe, pois é uma entidade formal exigida em muitos espaços e que a academia considera em grande conta, mas não me estrebuchei para cuidar dele... há umas poucas coisas que faço que ali aparecem... esqueço de recolher os certificados, mas não esqueço de transversar as vidas e os afetos de todos aqueles com que cruzo em minhas andanças pessoais e de trabalho... minha escrita se dá cotidianamente na vida das gentes... acoiero as letras nos descampados de afetos e faço delas alguma coisa que possa ser dita, porque d’as vezes aquele sujeito que pomposamente chamamos de usuário, precisa que a gente lhe dê um retrato para re-ajeitar sua vida no cenário de sua própria existência ou n’algum outro que o tenham metido (ou que ele mesmo tenha se metido).
Falta-me tempo físico para as escritas formais... e não é que não goste disso, aliás, é o que mais gosto... na verdade, se tivesse com que garantir os meneios da vida prática e material, não arredaria a bunda da beirada dos livros e dos lápis... anseio para ter uns tempos só pra isso... anseio por fazer a escrita de tanta coisa que está ajuntada no tempo longo dos meus existires... anseio pra deixar correr a linha e ir trazendo devagarzinho pra beira d’água, o peixe arisco que me ponteia os pensamentos.
No mais, sou uma conversadeira... portanto, é me convidar para uma roda de conversa e já me baixa um preto velho, puxo do meu palheiro (imaginário) e sento para um dedo de prosa... sou daquelas que acredita que um banquinho de madeira com três pernas seja suficiente para segurar uma boa conversa... além disso, a vida é um permanente devir que, além de ser atravessado pelo coletivo, é produção do sujeito! Assim, termino com mais um excerto de minha dissertação:
“Assim sendo e sem fazer apologias desnecessárias, encerro este primeiro momento, com Melville citado por Deleuze, quando diz: ‘gosto de todos os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas é preciso ser uma grande baleia para descer a cinco milhas ou mais. Desde o começo do mundo, os mergulhadores do pensamento voltam à superfície com os olhos injetados de sangue’ (MELVILLE apud DELEUZE, 2006, p. 128-9).
Talvez seja nessa perspectiva que podemos contemplar Foucault e, estudando sua obra e as problematizações que formaram o conjunto do seu pensamento, que possamos, mesmo não sendo grandes baleias, pelo menos mergulhar profundamente e voltar sempre à superfície com o pensamento injetado de sangue e, ainda, se não for de sangue, que seja com o propósito de ao final podermos fazer algo diferente ou melhor do que nos propúnhamos no início de nosso itinerário de pesquisa”[7].
Assimassim apresento-me para esta Seleção para o Curso de Doutorado em Psicologia Social e Institucional, não basicamente pela titulação, mas principalmente pelo desejo forte de transversar meus versos com os versos de outras gentes... de juntar meus ideamentos com outros pensamentos... de seguir juntando letras para melhorar o tino das palavras com que adentro as fissuras de tantos existires no dia-a-dia, no afeto pouco de quem precisa de uns versos –miúdos que sejam- no cisco pouco de suas vidas.



[1] Formação principal: Pescadora, bolicheira, conversadeira, inventadeira, poeteira, escrevinhadeira e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco conhecimento).
Formação complementar: Psicóloga, Especialista em Ciência Política, Mestre em Filosofia, Trabalhadora Pública na Prefeitura Municipal de Cruz Alta/RS e, também, arredo o banco pra trabalhar num canto não tão público.
[2] DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1 Ed. (1992) 5 Reimp. 2006.
[3] BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.
[4] Uso o termo “tessitura” que se refere ao conjunto dos sons e que melhor dá sua tonalidade, e que me faz pensar na música produzida e emitida pela obra, pelo texto, pelas elaborações de um autor, tratando-se, então, da musicalidade de um autor ou de um escrito; e, em outros momentos, uso tecitura que é uma corruptela para tecedura e que diz do tecer das idéias e do pensamento, feito fios que se cruzam e formam o pano, no caso, o pano de idéias. E ainda vale esclarecer que a origem do termo “texto” é anterior à difusão cultural da escrita: vem da atividade das mulheres que “teciam tecidos” com a roca. Com o advento da ampliação da escrita, o escrito passou a se chamar texto.
[5]DIELLO, M.L. Michel Foucault e a Problematização da Subjetivação – para o cultivo e a transformação de si -.  Dissertação de Mestrado. 2009, p. 14-5). Disponível: http://cascavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_arquivos/24/TDE-2009-10-28T141810Z-2307/Publico/DIELLO,%20MARIA%20LUIZA.pdf.
[6] BAREMBLITT, G. Introdução à Esquizoanálise. Biblioteca Instituto Félix Guattari, 1998, p.14-15.
[7] DIELLO, 2009, p. 31-2.

sábado, 2 de novembro de 2013

flecheira.libertária.316

depois da queda!
A sondagem de um jornal paulistano indica que houve queda de reconhecimento popular ao movimento que avança por ruas e avenidas. A queda identificada não ofusca que mais de 60% da população é favorável a este movimento. A queda é irrelevante considerando haver algo insuportável que não se cala e permanece. A designação de vândalos parece não surtir os efeitos desejados pelos governos e mídias. A situação indica o que não é negociável para os jovens das ruas, seja a reivindicação de transporte gratuito, sejam os combates a edificações do capital, a conduta ou a existência da polícia.
pela culatra
No final da semana, passada nova manchete: um jovem foi preso e acusado de fazer parte de linchamento de coronel da polícia. Foi o efeito imprevisto da tecnologia da negociação feita missão de um coronel. Foi a expressão real da impulsividade alheia ao próprio movimento com suas diferenciadas forças. Foi a resultante do espelhamento da invariante conduta policial. É comum em qualquer movimentação concentrada que vários policiais ataquem violentamente um manifestante que por algum deslocamento diante deles ficou só. Somos regularmente informados disso por meio de fotos e vídeos em jornais, televisões e mídias alternativas. De certa maneira, a polícia viu contra si o resultado de seus covardes espancamentos regulares. Se na era das tolerâncias é intolerável a revanche contra um policial, também deveria ser inaceitável que policiais espancassem cidadãos em qualquer situação. 
sem uniformes
É surpreendente como um abundante movimento diante de uma polícia numericamente inferior evita o massacre do oponente. Se não há reconhecimento da legitimidade da polícia, há o respeito pela vida e o corpo do policial assujeitado que defende o que lhe é exterior, a lucratividade de poucos. A polícia está confusa, os policiais cumprem ordens e as autoridades governamentais permanecem reativas, então, exigir uniformidade neste movimento é tentar reduzi-lo, equivocadamente, a uma identidade que não tem e nem pretende ter. 
por onde passam os militantes da tática black bloc
Rio de Janeiro, UERJ, Colóquio Internacional Michel Foucault, semana passada. Zunzum repentino: corre informação que o black bloc fará uma intervenção no colóquio. Seguranças são acionados, alguns participantes ficam sobressaltados. É a última sessão de um concentrado e fino colóquio lotado de interessados nas exposições densas e intensas dos convidados pela sua organização. Inicia-se a sessão e jovens encapuzados adentram no recinto. Sente-se no ar certa tensão, afinal, eles são identificados e fichados como vândalos. Os participantes da mesa expõem suas reflexões em duas horas diante do silêncio atento da plateia e dos militantes. Nada ocorreu de extraordinário; ao final, somente a constatação de um medo infundado. 
com as portas e as janelas abertas
Melhor para cada participante do evento. Melhor para os jovens irredutíveis que usam a tática black bloc. melhor para quemse dispõe, como o filósofo francês, em estar atento às forças que enunciam o insuportável. Na moderação neoliberal vigente, que coloniza a direita e a esquerda do Estado, nada melhor que conviver, ainda que brevemente, com rostos mascarados. Nada melhor que universidades de portas abertas. Que elas façam menos festinhas populistas e se abram, com seus professores, estudantes e funcionários para discutir o que é um rosto real sem lhes imputar a priori suas moralidades emboloradas! 
por onde passam as interpretações?
As interpretações variam e todas mostram suas solicitudes. Nelas, os chamados de black bloc são do partido da violência, similares às torcidas uniformizadas, os que clamam pelo ausente Estado, os que escancaram a necessidade de limpar a política de políticos corruptos e desejosos de reeleição... Os black blocs são descritos em pesquisa empírica como jovens, classe média baixa, decepcionados com o Estado etc., etc. São interpretações que buscam uma aplicação da lei, qualquer lei, medidas de segurança, força policial, para que eles sejam condenados ou capturados para preencherem o chamado vácuo de poder. Sondagem mostra também que 95 entre 100 paulistanos são contra o black bloc. O futuro da tática dependerá destes e demais jovens que enunciam as forças e, dentre elas, a manifestação do insuportável.
uma diferença
Com os praticantes do black bloc não cabem definições apressadas. Nada indica serem o partido da violência (eles também são antipartidários) ou semelhanças com torcidas uniformizadas (muito mais próximas dos micro-fascismos). Neles pode haver uma oscilante contestação entre a regra da corrupção que sustenta a política, a seletividade do Estado, a crítica à propriedade e a antipolítica. Se há sempre infiltrados em qualquer movimento contestador, haverá também infiltrados em qualquer agrupamento de contestadores. É disso que vive a ordem para se atualizar. Assim como não é inesperado aparecer no meio da contestação e entre estes contestadores efeitos imprevisíveis e a insossa polêmica. Os jovens que aderiram à tática black bloc expuseram e expõem a dureza da propriedade que a democracia representativa e participativa não é capaz de absorver. Estes jovens falam uma linguagem que não é irredutível ao confronto e às meras palavras. Exigem mais diante do que não pode ser pacificado. Cabe aos intérpretes menos solicitude ou indiferença, mas tocarem desarmados nesta diferença.

sábado, 26 de outubro de 2013

flecheira.libertária.315

os conselheiros da criadagem...
Primeiro, uma filósofa identifica black bloc com fascismo em solene palestra à polícia. Depois, um filósofo foucaultiano estrangeiro, escudado por organizador de eventos filosóficos brasileiros, fala solenemente à polícia sobre alternativas para o bom procedimento policial diante do até então aclamado estilo Bope. No passado, os filósofos não eram tão rápidos e midiáticos. Pretendiam oscilar entre o filósofo-rei e o rei-filósofo, aconselhando o soberano ou simplesmente governando a cidade. Em passado recente, Foucault assumiu deliberadamente posição ao lado dos presos. Outros filósofos brasileiros se posicionaram contra a ditadura e a polícia em função dos direitos humanos. No presente, os presos são governados pelo Estado e organizações próprias para o controle de prisioneiros. Os filósofos são cerejinhas no bolo oco. Estado, filósofos fluorescentes, organizações criminosas e polícia, como sempre irmanados no governo dos abúlicos assujeitados em nome ou não dos direitos humanos!
libertação animal
Um grupo de ativistas invadiu a sede do Instituto Royal, em São Roque, para soltar animais que estavam sendo usados pela empresa como cobaias de testes de qualidade de produtos. O grupo soltou dezenas de cães beagle e coelhos, duas espécies muito utilizadas por grandes empresas para essa finalidade. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência declarou considerar a ação um ato de “desconhecimento”. Desconhecimento?! Pelo contrário, aqueles envolvidos na ação mostram não desconhecer o fato das indústrias farmacêuticas e de cosméticos, atreladas ao Estado e às agências de fomento de pesquisa na área das ciências biológicas, preferirem poupar alguns de seus trocados e utilizar animais para fazer seus testes de qualidade. Em nome da ciência, querem prosperar seus lucrativos empreendimentos pouco se importando com os confinamentos e as contínuas violências exercidas sobre a existência dos outros.
qual é, bicho?
Cientistas a serviço dos capitalistas empregados no Instituto balbuciam que os animais não sentiam dor e que o terror foi causado pelos vândalos que invadiram a propriedade da empresa. A Anvisa, que autoriza a prática de testes em animais por grandes empresas, quer a justiça: investigação do que acontecia nos laboratórios e julgamento dos ativistas por furto qualificado de animais. A polícia intenta “resgatar” todos os animais tirados do Royal, eles serão utilizados como provas e passarão por avaliação de especialistas para saber se podem ou não estar em convívio com outros animais. Alguns dos envolvidos na ação, diferente dos ativistas cagões que julgam “excesso” e não conseguem viver sem mediações nem autoridades, se negam a entregar os bichos. A recusa explicita a coragem de enfrentar canalhas que matam e torturam por mais grana escudados pela chamada autoridade da ciência.
errou mas dá pra consertar, né? 
A Justiça Desportiva brasileira anunciou que diminuirá as penas de suspensão de jogadores de futebol flagrados nos exames antidoping caso haja um compromisso do atleta e do clube a que pertence em se tratar. Até hoje, o jogador poderia ser condenado a até dois anos de suspensão, sem que tratamentos pudessem atenuar a sentença. Agora, cartolas, advogados e atletas condenados comemoram a decisão “inclusiva” e “humana”, chancelada pela FIFA e pronta para virar nova jurisprudência internacional.
drogas e grana
No futebol e em todos os esportes de competição, drogas rolam soltas. As drogas legais, usadas para remediar os excessos sobre um corpo do qual se exige alto desempenho, as drogas quase (i)legais usadas para bombar performances e, também, as drogas ilícitas. As organizações desportivas com seus tribunais classificam, perseguem e estipulam procedimentos para verificar o uso de drogas proibidas. Treinadores, atletas, clubes e laboratórios correm atrás de novas e poderosas drogas ainda não identificadas ou vedadas. Recordes são conquistados, prêmios e patrocínios inflam. Até que alguém é pego e punido exemplarmente. Então, novas drogas são desenvolvidas. E os negócios batem novos recordes.
moral dos dopados
Chegou ao esporte a prática de considerar doente quem usa uma substância ilegal. Se a droga for apenas para aumentar a potência, as penas são duras. Mas se forem drogas psicoativas ilegais, como a cocaína, a tendência parece ser a de tratar esse atleta como um doente que pode se recuperar. Exatamente como parece caminhar a nova versão do proibicionismo (dura com o traficante, humanitarista e caridosa com o “usuário”). Tudo deve começar com um ato de contrição, seguido pela cura. E aí, o atleta, reforçando com a sua “reabilitação” a moral da abstinência e da saúde, pode voltar a render grana para seus clubes e para si mesmo... e também para os patrocinadores de drogas legais, os traficantes de drogas ilegais e os laboratórios farmacêuticos com seu leque de drogas legais e quase ilegais. 

flecheira.libertária.314

vandalismo organizado?
Depois da formulação de um anarquismo organizado, agora aparece, em meio às manifestações de rua, os que pleiteiam um vandalismo organizado. Em entrevista por celular a um jornal de grande circulação de São Paulo, certo grupo reivindicou parte das ações contra o monumento aos Bandeirantes, em São Paulo. O entrevistado, com um capuz negro na cabeça, se dizia próximo do MPL e distante do black bloc, por estes serem contra a organização e não possuírem um líder. A salutar ação contra o monumento aos assassinos de indígenas não é propriedade de um grupo político, não foi feito apenas por eles. Preocupa a busca por organização e justificativa racionalizável à simples expressão do que é intolerável. A revolta quando busca legitimidade não é mais revolta e pode preparar a entrada do terror de Estado.
não é balada...
Uma revista que se define alternativa veicula por internet vídeos e textos acerca das revoltas de rua na Grécia. A forma de descrição “vende” o acontecimento como uma grande festa que reúne um amplo escopo de esquerda, e na qual os “anarquistas são a principal estrela”. As lutas na Grécia expressam efeitos da revolta entre os que produzem uma cultura libertária. Estas lutas envolvem enfrentamentos, perseguições, anos de luta, publicações, centros de cultura, estudantes e professores universitários e o intolerável assassinato de um jovem pela polícia. São um registro da atual agonística libertária. No interior destes embates reativou-se a pertinência do terrorismo anarquista contra qualquer Estado. Não é balada, morô?! Nem matéria a ser malhada por acadêmicos oportunistas.a sanha autoritária.
Um delegado aplicou a Lei de Segurança Nacional, de 1983, nº 7.170, contra os manifestantes de rua, especificamente os black bloc. O código, caído no esquecimento constitucional, mas ainda em vigor, atingiu dois jovens presentes na manifestação de 7 de outubro. Ficou exposta utilidade política do direito: a defesa da propriedade é mais importante que qualquer pessoa. A menina presa já foi libertada e se retrai clamando inocência no feicibuque, ao contrário do que todos dizem, ela não é nem anarquista, nem black bloc, estava filmando os protestos com um amigo. Não está em jogo a defesa diante de uma injustiça, não se deve clamar por inocência, mas é urgente expor o jogo desta democracia incapaz de lidar com eventos não esperados. Vivemos sob uma sanha autoritária.
uma pergunta
Nas manifestações do dia 7 de outubro da praça da república, quantos eram black bloc e quantos eram policiais infiltrados? É vital a moçada corajosa se ligar para não virar laranja ou ir junto com os laranja s, ou mesmo virar boi de piranha na mão da polícia.
nova-velha ordem penal
Declaração de líder do PCC capturada por gravação de investigação deflagrada pela PF essa semana: “para matar alguém hoje é a maior burocracia”. Eis o terror sistematizado. Eis a eficiência da principal parceria público-privada para administração das prisões no Brasil.
policiamento compartilhado
Moradores da avenida Higienópolis, na capital paulista, testam um aplicativo de smartphones desenvolvido para combater o crime. Porteiros, taxistas, funcionários de escolas e o dono de uma banca de jornal receberão gratuitamente celulares para colaborar com a segurança. Ao menor sinal suspeito, pode-se apertar o “botão de pânico” do aplicativo que alerta todos os cadastrados na rede, inclusive a polícia, sobre casos de roubo, sequestro, tráfico e até mesmo bullying. O aplicativo também pode ser utilizado para denunciar “problemas públicos” como alagamento, incêndio, explosão e até mesmo pedintes nas ruas. Com o novo aplicativo alimenta-se os fluxos de informação que compartilham o monitoramento da segurança. Agora, com um rápido toque no celular, informa-se sobre o que pode ser fonte de ameaças. Amplia-se o papel de polícia exercitado por cada um.
viva o fogo da liberdade!
Há algum tempo jovens rabiscam nos muros da cidade de São Paulo: Mais amor, por favor! Frase que é sombra de uma geração emo, e que atualmente é tomada como lema de novos indignados. Em cenários de tragédias recentes replica-se a frase insistentemente. Reproduzem-na em seus tuíter, feicebuqui e similares. São sombras emotivas e estúpidas. Não falta amor em São Paulo, não falta amor no Brasil, não falta amor no e pelo planeta. Em nome do amor massacrou-se e ainda se massacra. Genocídios, etnocídios, ditaduras, holocaustos, não foram senão em nome do amor. Amor à pátria, amor à propriedade, amor à subserviência, amor à segurança. O amor como juízo, nada tem a ver com o tesão e a liberdade dos amantes e dos amigos. O amor asfixia, sufoca, mata. Que se exploda o amor servil e viva o fogo da liberdade! .

flecheira.libertária.313

confinados na nação I
No último dia 5, a Constituição Federal de 1988 completou 25 anos. Entre tantas mudanças, a Carta retirou os povos indígenas da condição de tutela e lhes atribuiu direitos como os habitantes originários do território brasileiro. Determinou-se a necessidade de identificação e demarcação de terras ocupadas por estes povos até 5 de outubro de 1993. Atualmente, cabe à FUNAI, autarquia federal, o mapeamento de áreas a serem demarcadas, a partir da realização de laudos antropológicos que objetivam definir os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas. Passados 20 anos do fim do prazo determinado, grande parte dos territórios já identificados como indígenas não foi homologado ou demarcado pelo executivo. A liberdade dos agora cidadãos de direito permanece confinada nos limites do princípio do governado do Estado. 
confinados na nação II
O artigo 60º da Constituição de 1988 prevê a possibilidade de modificações na Carta por meio de Propostas de Emendas Constitucionais (PEC). Entre centenas de propostas, tramita desde 2000 a PEC 215, que pretende transferir para o poder legislativo a demarcação de terras indígenas. Com a aprovaçãoda PEC 215, os parâmetros para a definição de tais territórios e sua aprovação passariam a ser regulamentados pelo Congresso Nacional. Encurralados, os povos indígenas lutam agora para que sua possibilidade de existência, diretamente ligada à experiência do espaço que habitam, não seja entregue às bancadas ruralistas que, em grande parte dos casos de demarcação, representam justamente os interesses daqueles que historicamente os massacram. A cada ano, mais e mais índios são assassinadosem situações de disputas territoriais por jagunços de fazendeiros, com a conivência dissimulada doEstado. 
mancha de sangue
Na última semana, uma série de protestos de povos indígenas ocorreu por todo o país. Milhares de pessoas – indígenas e não-indígenas – ocuparam a Avenida Paulista. De lá, seguiram para o Monumento às Bandeiras, obra célebre do modernista Victor Brecheret encomendada pelo Governo do Estado em comemoração ao IV Centenário de São Paulo. Tida como cartão-postal da cidade, a imensa escultura em homenagem aos bandeirantes que partiam da cidade para ocupar as terras do interior, dizimando inúmeros indígenas pelo assassinato ou escravidão, é apenas um dos monumentos erguidos em todo o país em homenagem aos massacres sobre os quais a Nação pôde se fundar. O imenso bloco de pedra foi pichado e tingido de vermelho, escancarando a violência colonizadora que se tentou pacificar. Atentando contra a sacralidade atribuída às obras de arte, o gesto corajoso serviu para mostrar que, mesmo diante de todas as tentativas de pacificação e dos massacres que já duram mais de 500 anos, os povos indígenas continuam vivos e com gana de lutar. Antes do direito, trata-se da vida. 
solapando estradas, entradas e bandeiras
E o Borba Gato que não se sinta incólume e intocável! Os índios, mais uma vez, com arcos e flechas certeiras afirmaram o fogo vivo da palavra manifestar: aquilo que ainda dá sinais de vida. E danem-se os adeptos da tutela e os de face renovada dos bandeirantes nas caras dos abutres coronéis ruralistas. E que se dane este monumento-patrimônio-tombado em nome da institucionalização regulamentar de direitos e etnocídios.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A resistência à felicidade substitutiva e o futuro da Igreja.

Entrevista com Zygmunt Bauman

Por reconhecimento geral, o sociólogo Zygmunt Bauman é um dos mais renomados intérpretes da condição humana da época atual. Nascido de pais judeus em 1925 em Poznan, na Polônia (embora resida há muitos anos naInglaterra), Bauman cunhou a feliz imagem da "modernidade líquida" para indicar uma situação de incerteza difusa, em que parece desaparecer qualquer ponto estável de referência.
A reportagem é de Giulio Brotti, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 20-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Depois de muitos anos, não parece ter se cumprido a profecia positivista pela qual a dimensão religiosa iria declinar fatalmente, com o progresso da modernidade: na América Latina, por exemplo, o pentecostalismo e o protestantismo evangélico têm um grande sucesso. Mas, quanto ao hemisfério Norte do planeta e à Europa em particular, que traços estão assumindo a fé e a espiritualidade nesta primeira parte do século XXI? A quais mudanças elas poderiam ir ao encontro no futuro próximo?
O meu colega Ulrich Beck, há alguns anos, publicou um livro intitulado Der eigene Gott (em edição italiana, Il Dio personale. La nascita della religiosità secolare [O Deus pessoal. O nascimento da religiosidade secular], Ed. Laterza). O argumento desse livro é o retorno da espiritualidade, ou talvez fosse mais correto dizer: do desejo de espiritualidade na sociedade contemporânea. Falando de um desejo, de um anseio, entende-se que ele se orienta a uma certa representação da espiritualidade, concebida como algo que poderia conferir um sentido pleno às nossas vidas, preenchendo-as.
Evidentemente, constata-se que os prazeres materiais ("da carne", se diria tempos atrás) não bastam: é preciso um contato com algo que transcenda as nossas ocupações e preocupações cotidianas. No entanto, Beck defende – com razão, acredito eu – que esse retorno à cena da espiritualidade não corresponde necessariamente a uma adesão às instituições e aos códigos religiosos tradicionais. Ao contrário, a tendência que prevalece hoje não encontra como interlocutores naturais as Igrejas e, talvez, ao contrário do que você sugeria, nem mesmo as inúmeras seitas que confluem no vasto leito do pentecostalismo. Os gostos da nova espiritualidade não propendem pelos dogmas, pelas regras disciplinares compartilhadas: justamente para sublinhar essa novidade, Beck cunhou a fórmula do "Deus pessoal".
Também poderíamos falar de uma religião à la carte: sobretudo os jovens operam uma seleção entre diversas fontes, às vezes decididamente exóticas, em outros casos escavando no interior da tradição católica ou, em menor medida, da anglicana e protestante. Prevalece, contudo, a atitude de hibridizar elementos diferentes, segundo as necessidades particulares e a sensibilidades dos indivíduos: nessa base, é muito difícil que se constituam grupos organizados, comunidades de fé, propriamente ditas.
Trata-se, em essência, de uma religião "psicológica", destinada a tranquilizar e a consolar o sujeito humano?
É uma reação à instabilidade que caracteriza a vida na modernidade "líquida": em uma época de incessantes e repentinas mudanças, busca-se uma faixa de terra para se poder plantar os pés firmemente. Um dos aspectos mais inquietantes do nosso tempo é que não se conseguem prever as consequências a médio prazo das decisões pessoais: são numerosos demais os fatores que interferem nos nossos projetos. Pensemos no que aconteceu há poucos dias nos Estados Unidos, onde, por causa do déficit do orçamento, centenas de milhares de funcionários públicos foram deixados em casa sem salário. E essa situação também pode ter pesadas recaídas na economia mundial inteira, em perspectiva. Busca-se, portanto, um ponto de ancoragem existencial, e essa exigência desemboca, em certos casos, em um neofundamentalismo religioso, mas também pode se expressar de forma diferente: ainda nestes dias, tomamos conhecimento pela imprensa que, na França, o Front National de Marine Le Pen é virtualmente o primeiro partido, segundo as pesquisas que lhe credenciam o favor de 24% dos eleitores, na perspectiva das eleições europeias.
A busca frenética por certezas também pode assumir um aspecto político?
Certamente, e pode até se traduzir na situação sui generis da política italiana, em que os partidos estão desesperadamente em busca de alguém para atacar e para desacreditar, não conseguindo se definir de modo positivo, mediante um programa próprio. O problema de uma incerteza difusa, no entanto, certamente não se deixa reduzir a uma questão interna à Itália: a perda de confiança é global, não se refere apenas a determinados partidos ou líderes, mas sim ao sistema da democracia representativa. O mundo inteiro entrou em uma fase de interregno, para usar uma expressão de Antonio Gramsci: a humanidade tenciona buscar desesperadamente dentro ou fora de si pontos de apoio para se manter de pé, ou freios para parar o fluxo indistinto que, caso contrário, ameaçaria derrubá-la.
Em nível coletivo, essa necessidade também se encontra no movimento dos Indignados, na Espanha, no Occupy Wall Street, em Nova York, ou nas reuniões na Praça Tahrir, no Cairo. Avança-se às apalpadelas, no escuro, em busca de modos para poder agir eficazmente: as instituições que tradicionalmente se faziam intérpretes das necessidades e das preocupações dos indivíduos, traduzindo-os em propostas políticas, não parecem mais à altura do desafio. Quanto tempo durará essa passagem e aonde chegaremos? Eu não acredito nos milagres em sentido tradicional, mas acredito nos milagres da realidade, por assim dizer: na abertura de novas estradas onde o percurso parecia bloqueado, na capacidade inventiva dos seres humanos. Nós, porém, por definição, não somos capazes de prever desde agora como essa capacidade poderá se expressar no futuro.
Atualmente, não parece justamente ter se atrofiado a capacidade de pensar sobre o futuro? A expectativa dos tempos messiânicos no judaísmo, a das coisas últimas no cristianismo sempre foram um elemento essencial dessas tradições religiosas. Agora, porém, tendemos a avançar à vista, como se o nosso horizonte temporal se reduzisse ao próximo fim de semana. A espiritualidade pode abrir mão da dimensão do futuro? Ela poderá sobreviver em uma condição de presente dilatado?
Não é fácil responder à pergunta que você me faz. Eu me limitaria a salientar que, nos nossos dias, a indústria do consumo propõe substitutos para a espiritualidade tradicional, fruíveis on the spot, no momento presente. Muitos produtores não se limitam a pôr no mercado bens materiais, mas os cercam com uma aura religiosa. As agências de viagens e as companhias aéreas, por exemplo, publicizam os destinos turísticos com a promessa de experiências imortais, de metas paradisíacas: os seus slogans muitas vezes são variações sobre o tema da imortalidade agora, a ser obtida imediatamente, e não depois que estivermos mortos. Visitando uma certa localidade, hospedando-se em um certo resort, assistindo a um show de rock, pode-se logo experimentar o que você pode imediatamente experimentar o que as pessoas religiosas esperam poder conseguir em outra vida. O modelo é o do café solúvel, que pode ser saboreado em poucos segundos, depois que o pó se dissolveu na água quente. As agências de marketing capitalizam o desejo de uma fuga da incerteza e da desconfiança difusas na modernidade líquida: as mercadorias atraem os possíveis compradores, prometendo-lhes uma redenção da insensatez normal da cotidianidade.
Como o senhor avalia a "novidade" do pontificado do Papa Bergoglio? Há oito meses, os seus gestos e palavras parecem ter induzido uma sensação de feliz desorientação em muitos observadores e comentaristas, crentes e não crentes. Pensemos, por exemplo, na insistência do papa sobre a necessidade de que a Igreja seja pobre, e na responsabilidade do Ocidente para com as populações do Sul do planeta.
Ah, eu estou encantado com o que Francisco [Bauman pronuncia o nome em italiano, sorrindo] está fazendo: acredito que o seu pontificado constitui uma oportunidade, não só para a Igreja Católica, mas para a humanidade inteira. O fato de o líder de uma grande confissão religiosa chamar a atenção do Norte do mundo sobre o destino dos mais miseráveis já é de enorme importância. Mas eu também fui ler o que ele afirmava em um texto seu de 1991,Corrupción y pecado (publicado na Itália pela Editrice Missionaria Italiana com o título Guarire dalla corruzione, Bolonha, 2013, 64 páginas). Nessas páginas, retornando à parábola evangélica do publicano pecador e do fariseu irrepreensível na implementação das obras da lei, ele sublinha como o relato depõe em favor do primeiro, do coletor de impostos.
Nesse livrinho, há algumas passagens muito bonitas sobre a maior gravidade da corrupção com relação ao pecado: "Poderíamos dizer – afirma Bergoglio, por exemplo – que o pecado é perdoado; a corrupção não pode ser perdoada. Simplesmente pelo fato de que, na raiz de qualquer atitude corrupta, há um cansaço da transcendência. Diante do Deus que não se cansa de perdoar, o corrupto se ergue como autossuficiente na expressão da sua salvação: cansa-se de pedir perdão".
A rejeição do legalismo e a capacidade de Jorge Mario Bergoglio de tocar os corações das pessoas lembram a atitude semelhante de João XXIII. O atual papa é intrépido, eu diria, no seu modo de proceder: eu penso nos gestos que ele fez em Lampedusa, nos discursos dedicados aos "fora da casta" do mundo globalizado. Para voltar ao tema do qual havíamos começado, poderíamos afirmar que Bergoglio sabe falar à espiritualidade típica do nosso tempo: os seguidores do "Deus pessoal", com efeito, não estão muito interessados nas prescrições morais emitidas pelos representantes das instituições religiosas, mas desejam reencontrar um sentido na fragmentariedade das suas existências individuais. Ainda estão à espera de um "evangelho", na acepção original do termo – de uma boa notícia.
Os gestos e as palavras do Papa Francisco não poderiam contribuir para "recolocar em ação" justamente a religiosidade individualista do nosso tempo? Não poderiam oferecer-lhe uma perspectiva, impedindo que ela permaneça em uma espécie de limbo, sem relações com a realidade concreta?
É uma hipótese sugestiva a que você prospecta. Pessoalmente, permaneço à espera – com muita esperança e ansiedade, eu diria – dos futuros desenvolvimentos deste pontificado. Também fiquei impressionado com a ênfase que Bergoglio põe na prática do diálogo: um diálogo efetivo, que não deve ser conduzido escolhendo como interlocutores aqueles que, mais ou menos, pensam como você, mas se torna interessante quando você se confronta com pontos de vista realmente diferentes do seu. Nesse caso, realmente pode acontecer que os dialogantes sejam induzidos a modificar as próprias ideias com relação às posições iniciais. Nós temos uma urgente necessidade desse tipo de debate, porque somos chamados a gerir problemas de porte imenso, para os quais não dispomos de soluções já prontas: pensemos nas questões relativas ao fosso entre os ricos e uma considerável parte da população mundial, que ainda vive na miséria; ou na necessidade de frear a exploração indiscriminada dos recursos do planeta, de encontrar uma alternativa para um modelo de desenvolvimento – a expressão já soa irônica – que é claramente insustentável.
Todos esses problemas não param nas fronteiras nacionais: não dizem respeito aos italianos, em vez dos poloneses ou dos chineses, mas a humanidade no seu conjunto. E, de novo, parecem exigir não soluções temporárias, mas sim uma mudança radical do nosso modo de viver. A segunda parte do século passado, no campo econômico, foi dominada por dois pressupostos aparentemente indiscutíveis, que influenciaram profundamente os comportamentos individuais e coletivos dos seres humanos. O primeira foi que o Produto Interno Bruto de um país era a panaceia para todos os problemas sociais: aumentando o PIB, estes seriam automaticamente resolvidos; se, ao invés, o seu crescimento se bloqueasse ou – Deus me livre! – diminuísse, os equilíbrios sociais entrariam em crise. Em suma, o lema era: para enfrentar um problema coletivo, incrementar o PIB (e, portanto, também o consumo, porque o PIB ainda é medido sobre a quantidade de dinheiro que passa de mão em mão).
Qual era o segundo assunto?
Que a busca da felicidade andava de mãos dadas com o aumento do consumo: os lugares naturais de satisfação pessoal eram as lojas, em vez das relações sociais ou das atividades com as quais cada um podia ser útil aos seus semelhantes, cooperando com eles. Essas duas convicções produziram, de fato, uma grande quantidade de miséria material e espiritual, além de atacar gravemente os recursos naturais do planeta inteiro: de um lado, temos vivido acima dos nossos meios; de outro, descobrimos dolorosamente que a felicidade não pode ser comprada. Portanto, a todos nós hoje se pede que mudemos radicalmente a ordem das nossas vidas. Para expressar essa mesma ideia, oPapa Bergoglio provavelmente usaria um antigo termo da tradição cristã: conversão.

domingo, 13 de outubro de 2013

O poder da psiquiatria

O que está por trás do DSM-5 e sua tentativa de transformar a experiência do sofrimento em patologia a ser tratada

Vladimir Safatle
Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão ideológica, com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na clínica do sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a definição de causas dificilmente observáveis (como, por exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes com a figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que organiza distinções a partir de uma certa lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e condições que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento patológico. Desta forma, nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas, observável, imune aos juízos subjetivos do médico-observador e, acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em tons edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes, demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo, modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa performance no trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá, então, cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido, não haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. A comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado pela medicalização, pela institucionalização crescente das discussões através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicização crescente dos diagnósticos.
Doença e política
Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?  Por um lado, uma sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e nos afetos por meio da definição do campo das doenças e das patologias. No interior desses modos de intervenção, não é apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também padrões esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para definir o transtorno de personalidade histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das atenções; 2) comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8 ) considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que se vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona exatamente a falta de especificidade de um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente qualquer pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau, todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira,  de “psiquiatrização da vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da doença, ou seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de sofrimento. Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como conflitos relativamente naturais em processos globais de transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em certos comportamentos. O que não poderia ser diferente se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não descreve uma espécie natural (natural kind), como talvez seja o caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação interessa.
Vladimir Safatleé professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP