domingo, 31 de julho de 2011

pavão mysterioso

o domingo me acordou com essa canção!

estamira morre

Morre protagonista do filme ''Estamira''
Estamira Gomes de Sousa (1941-2011), ex-funcionária de um lixão que teve a vida retratada no documentário "Estamira", premiado no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2004, morreu anteontem, aos 70, no Rio de Janeiro. A causa da morte foi uma infecção generalizada.
A reportagem é de Juliana Vaz e está publicada no jornal Folha de S.Paulo, 30-07-2011.
Natural de Jaraguá (GO), trabalhava havia mais de 20 anos no aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, quando o diretor do filme, Marcos Prado, a conheceu.
Em 1996, Prado já ganhara um prêmio de fotografia pelos registros realizados por três anos no lixão. Continuou indo ao local e, em 2000, pediu para tirar fotos de uma mulher que viu no caminho.
Era Estamira. Ela, que sofria de distúrbios mentais, lhe contou que tinha uma missão: "Revelar e cobrar a verdade". Questionou o fotógrafo se ele sabia qual era a dele. Antes que respondesse, disse: "A sua missão é revelar a minha missão". Assim, ele decidiu rodar o filme.
Segundo o filho Ernane, a mãe continuou recebendo atenção do diretor mesmo após o lançamento do filme. Ganhava uma mesada. À Folha Prado afirmou que cuidou dela diversas vezes.
Sobre sua morte, contou: "Ela foi totalmente negligenciada, ficou horas sem ser atendida no [hospital] Miguel Couto". Ernane diz que a mãe esperou mais de cinco horas. O hospital informou que ela deu entrada na terça com quadro infeccioso grave e que recebeu todo o acompanhamento necessário.
Segundo o filho, o enterro será hoje, às 11h, no cemitério do Caju, no Rio.

Henri Lefebvre, inventor do direito à cidade

Notas sobre um pensador marxista que alertou: a força das metrópoles está na reinvenção permanente da vida social, não na matemática dos planejadores.
buscado em: http://ponto.outraspalavras.net/2011/07/23/direito-a-cidade/
Por João Telésforo em Brasil em desenvolvimento
Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra a dentro.

Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.

Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.

Paulo Leminski,
Ruinogramas, anos 1980
O “direito à cidade” foi pioneiramente concebido como tal por Henri Lefebvre, na obra-manifesto Le droit à la ville, publicado poucos meses antes de maio de 1968. Lefebvre repudia a postura determinista e metafísica do urbanismo modernista: tem ciência de que os problemas da sociedade não podem ser todos reduzidos a questões espaciais, muito menos à prancheta de um arquiteto.
A crítica ao urbanismo positivista, porém, não se reduz à questão de que ignora os limites da capacidade de o planejamento racionalista abstrato transformar a realidade. Mais do que apontar a falência do resultado, Lefebvre repudia o caráter alienante da própria pretensão de tornar os problemas urbanos uma questão meramente administrativa, técnica, científica, pois ela mantém um aspecto fundamental da alienação dos cidadãos: o fato de serem mais objetos do que sujeitos do espaço social, fruto de relações econômicas de dominação e de políticas urbanísticas por meio das quais o Estado ordena e controla a população.
O Estado autoritário planificador pode até eventualmente resolver necessidades materiais como moradia e transporte, mas também priva as pessoas da condição de sujeitos da construção da sua própria cidade. No livro Contra os tecnocratas, de 1967, Lefebvre critica inclusive os regimes do “socialismo real”, por se calcarem numa concepção produtivista que ignora que o direito à cidade não se realiza simplesmente pela construção de moradias e outros bens materiais, mas de uma sociabilidade alternativa à da sociedade burocrática – seja a de consumo, seja a planificada –, dominada por uma racionalização automatizadora que torna a vida cotidiana trivial, desprovida de sentido e autenticidade, mutiladora da personalidade.
Em oposição a essa perspectiva administrativista, Lefebvre politiza a produção social do espaço: assume a ótica dos cidadãos[1] (e não a da administração), assentando o direito à cidade na sua luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social. Avança numa concepção de cidadania que vai além do direito de voto e expressão verbal: trata-se de uma forma de democracia direta, pelo controle direto das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva em que cada indivíduo e comunidade tem espaço para manifestar sua diferença.
Sua realização só pode acontecer quando, confrontando a lógica de dominação, prevalece a apropriação do espaço pelos cidadãos, sua transfomação para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade. Apropriação não tem a ver com propriedade, mas com o uso, e precisa acontecer coletivamente como condição de possibilidade à apropriação individual. Lefebvre verifica que é essa a forma de uso da cidade em períodos nos quais ocorre produção do povo pelo povo, como na experiência da Comuna de Paris, quando os trabalhadores se reapropriaram do centro da cidade, após terem sido jogados para a periferia pelo planejamento haussmanniano.
Em vez da ciência e da técnica, Lefebvre propõe, assim, outro ator como protagonista do processo de transformação do espaço urbano: “[a] classe trabalhadora deve ser agente dessa luta. Aqui e ali ela nega e contesta, aqui e ali, a estratégia de classe dirigida contra ela”[2]. O novo urbanismo idealizado por ele é o da utopia experimental, que parte dos problemas de lugares concretos, onde se desenvolvem relações sociais, e os submete à crítica e à imaginação de novas possibilidades. O papel da ciência é auxiliar, cabendo-lhe fazer a crítica da vida cotidiana por meio da análise do ritmo da vida diária das pessoas, e estudar as implicações e consequências das novas formas de apropriação inventadas pelos cidadãos.
Lefevbre pensa o espaço como “a inscrição do tempo no mundo”: os ritmos da população urbana definem o cotidiano, formado por uma multiplicidade de momentos, com diferentes durações: trabalho profissional, voluntário, descanso, arte, jogo, amor, luta, conhecimento, lazer, cultura… A nova sociedade urbana nascerá da alteração dos seus ritmos, de modo a propiciar o uso completo dos lugares, com plena fruição de direitos. Para tanto, é preciso contrariar o status quo de segregação e uniformização do cotidiano (com hipertrofia dos momentos de trabalho alienado), por meio da contestação e da vivência concreta de experiências alternativas, mais espontâneas e autênticas, propiciadas, por exemplo, pela arte e por atividades lúdicas comunitárias, como festas e jogos no espaço público. Para Lefebvre, por meio dessas formas de contracultura, de primado da imaginação sobre a razão, da arte sobre a ciência, da criação sobre a repetição, é possível restaurar a cidade como obra dos cidadãos.
Lutar pelo direito à cidade é romper com a sociedade da indiferença e caminhar para um modo diferencial de produção do espaço urbano[3], marcado pelo florescimento e interação igualitária de diversos ritmos de vida, expressão das diferentes formas de apropriação do espaço. Avesso às “impecáveis matemáticas”, ao planejamento metafísico que pretende resolver em definitivo os problemas sociais e declarar o fim da história, a intervenção transformadora desse espaço é ciente de sua historicidade, procurando no tempo sua reconstrução cotidiana pelas tensões entre as experiências do real e as utopias construídas a partir delas.
Como no poema de Leminski, a luta – inclusive contra a lei, ou à margem dela – e a pluralidade das vidas das pessoas vão subvertendo os esquemas de redução da complexidade social, minando, aberta ou clandestinamente, a estratégia dominante de sufocar o aparecimento de diferenças autênticas e sua integração igualitária.
[1] Lefebvre distingue citadins (todos os habitantes da cidade) de citoyens (aqueles a quem o Estado reconhece a cidadania política), esclarecendo que o direito à cidade é de todos os seus habitantes, independentemente de seu reconhecimento legal como cidadãos. Nossa compreensão de cidadania extrapola o aspecto formal e estatal: reivindicamos a plena cidadania para todos os habitantes da cidade, e é por isso que aqui os chamamos todos de cidadãos, independentemente de serem ou não, em maior ou menor extensão, reconhecidos assim pelo sistema jurídico formal (ao qual tampouco reduzimos o direito).
[2] LEFEBVRE, 1996: p. 158.
[3] BETTIN, 1982: p. 118
*Este texto corresponde ao fragmento de um artigo escrito em co-autoria com Gabriel Santos Elias.

No retrato

Recém saído pela rua para ver a exposição dos retratos que registraram outros tempos da vida, num repente alguém lhe perguntou: “se reconheceu no retrato?”. Ele, estupefato, voltou pra olhar melhor e só então percebeu que o artista era ele. Fez-se outro retrato dele, capturado pelo encontro com seu próprio retrato. Não sendo nem um, nem outro, ou, sendo um e outro, procurava a si nos entremeios da arte. Na profissão, fazia arte desenhando coisas e lugares. Na música, fazia arte desenhando canções e dedilhando melodias. Demorou pra se reconhecer no retrato, porque demorou para entender que era exatamente ali que se encontrava.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

bulitaço de guri novo!

hoje li um escrito de um jovem trabalhador do campo jurídico, em que ele praticamente me chama de burra, dizendo, ao se referir a uma interpretação que fiz de suas letras: “a indignação da signatária certamente decorre da deficiência na interpretação da determinação judicial (...)”... me senti tão sábia com isso! apenas vi a obliqüidade de seu olhar... aliás, somente os cegos conseguem perceber isso! minha deficiência de interpretação está nisso! e mesmo com minha idade avançada, ainda sou de prestar atenção em bulitaço de guri novo tentando acertar o gude... às vezes o guri tá com sorte, mas geralmente acerta nas canelas dos outros!

terça-feira, 26 de julho de 2011

FILOSOFIA: Os Personagens Conceituais

para os colegas que estão empenhados na leitura de deleuze e guattari e que não tiveram acesso à cópia impressa do livro "O que é a filosofia?", sigo na postagem da sequência de textos, agora com o terceiro texto do capítulo FILOSOFIA: Os Personagens Conceituais
EXEMPLO V
O cogito de Descartes é criado como conceito, mas tem pressupostos. Não como um conceito supõe outros (por exemplo, "homem" supõe "animal" e "racional"). Aqui os pressupostos são implícitos, subjetivos, pré-conceituais, e formam uma imagem do pensamento: todo mundo sabe o que significa pensar. Todo mundo tem a possibilidade de pensar, todo mundo quer o verdadeiro... Há outra coisa além destes dois elementos: o conceito e o plano de imanência, ou imagem do pensamento que vai ser ocupada por conceitos de mesmo grupo (o cogito e os conceitos que a ele se ligam)? Há outra coisa, no caso de Descartes, além  o cogito criado e da imagem pressuposta do pensamento? Há efetivamente outra coisa, um pouco misteriosa, que aparece em certos momentos, ou que transparece, e que parece ter uma existência fluida, intermediária entre o conceito e o plano pré-conceitual, indo de um a outro. No momento, é o Idiota: é ele que diz Eu, é ele que lança o cogito, mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que traça o plano. O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público (o escolástico): o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal racional), enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso). Eis um tipo muito estranho de personagem, aquele que quer pensar e que pensa por si mesmo, pela "luz natural". O idiota é um personagem conceitual.
Podemos dar mais precisão à questão: há precursores do cogito? De onde vem o personagem do idiota, como ele apareceu, seria numa atmosfera cristã, mas em reação contra a organização "escolástica" do cristianismo, contra a organização autoritária da Igreja? Encontram-se traços dele já em Santo Agostinho? É Nicolau de Cusa quem lhe dá pleno valor de personagem conceituai? É a razão pela qual este filósofo estaria próximo do cogito, mas sem poder ainda fazê-lo cristalizar como conceito(1). Em todo caso, a história da filosofia deve passar pelo estudo desses personagens, de suas mutações segundo os planos, de sua variedade segundo os conceitos.
E a filosofia não pára de fazer viver personagens conceituais, de lhes dar vida. O idiota reaparecerá numa outra época, num outro contexto, ainda cristão, mas russo. Tornando-se eslavo, o idiota permaneceu o singular ou o pensador privado, mas mudou de singularidade. É Chestov que encontra em Dostoievski a potência de uma nova oposição do pensador privado e do professor público(2). O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo, mesmo de 3 + 2 = 5; colocaria em dúvida todas as verdades da Natureza. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, não se "resignará" jamais a que 3 + 2 = 5, ele quer o absurdo — não é a mesma imagem do pensamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. O antigo idiota queria não prestar contas senão à razão, mas o novo idiota, mais próximo de Jó que de Sócrates, quer que se lhe preste contas de "cada vítima da história", esses não são os mesmos conceitos. Ele não aceitará jamais as verdades da História. O antigo idiota queria dar-se conta, por si mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido ou salvo, mas o novo idiota quer que lhe devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo. Seguramente não é o mesmo personagem, houve uma mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas, como se fosse necessário que o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro tinha perdido a princípio, ganhando-a. Descartes na Rússia tornou-se louco?
Pode acontecer que o personagem conceitual apareça por si mesmo muito raramente, ou por alusão. Todavia, ele está lá; e, mesmo não nomeado, subterrâneo, deve sempre ser reconstituído pelo leitor. Por vezes, quando aparece, tem um nome próprio: Sócrates é o principal personagem conceitual do platonismo. Muitos filósofos escreveram diálogos, mas há perigo de confundir os personagens de diálogo e os personagens conceituais: eles só coincidem nominalmente e não têm o mesmo papel. O personagem de diálogo expõe conceitos: no caso mais simples, um entre eles, simpático, é o representante do autor, enquanto que os outros, mais ou menos antipáticos, remetem a outras filosofias, das quais expõem os conceitos, de maneira a prepará-los para as críticas ou as modificações que o autor lhes vai impor. Os personagens conceituais, em contrapartida, operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor, e intervém na própria criação de seus conceitos. Assim, mesmo quando são "antipáticos", pertencem plenamente ao plano que o filósofo considerado traça e aos conceitos que cria: eles marcam então os perigos próprios a este plano, as más percepções, os maus sentimentos ou mesmo os movimentos negativos que dele derivam, e vão, eles mesmos, inspirar conceitos originais cujo caráter repulsivo permanece uma propriedade constituinte desta filosofia. O mesmo vale, com mais forte razão, para os movimentos positivos do plano, os conceitos atrativos e os personagens simpáticos: toda uma Einfühlung filosófica. E freqüentemente, entre uns e outros, há grandes ambigüidades.
O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os "heterônimos" do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens. Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste. O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é  e transformar-se em seu ou seus personagens conceituais, ao mesmo tempo que estes personagens se tornam, eles mesmos, coisa diferente do que são historicamente, mitologicamente ou comumente (o Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa). O personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia, que vale para o filósofo, de tal modo que Cusa ou mesmo Descartes deveriam assinar "o Idiota", como Nietzsche assinou "o Anticristo" ou "Dioniso crucificado". Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais, que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente: eu decreto a mobilização enquanto presidente da república, eu te falo enquanto pai... Igualmente, o dêictico filosófico é um ato de tala em terceira pessoa, em que é sempre um personagem conceitual que diz Eu: eu penso enquanto Idiota, eu quero enquanto Zaratustra, eu danço enquanto Dioniso, eu aspiro enquanto Amante. Mesmo a duração bergsoniana precisa de um corredor. Na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceituai. Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação. Quem é Eu? é sempre uma terceira pessoa.
Invocaremos Nietzsche, porque poucos filósofos operaram tanto com personagens conceituais, simpáticos (Dioniso, Zaratustra) ou antipáticos (Cristo, o Sacerdote, os Homens superiores, o próprio Sócrates tornado antipático...). Poderíamos acreditar que Nietzsche renuncia aos conceitos. Todavia ele cria imensos e intensos conceitos ("forças", "valor", "devir", "vida", e conceitos repulsivos como "ressentimento", "má consciência"...), bem como traça um novo plano de imanência (movimentos infinitos da vontade de potência e do eterno retorno) que subvertem a imagem do pensamento (crítica da vontade de verdade). Mas jamais nele os personagens conceituais implicados permanecem subentendidos. É verdade que sua manifestação por si mesma suscita uma ambigüidade, que faz com que muitos leitores considerem Nietzsche como um poeta, um taumaturgo ou um criador de mitos. Mas os personagens conceituais, em Nietzsche e alhures, não são personificações míticas, nem mesmo pessoas históricas, nem sequer heróis literários ou romanescos. Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche, como não é o Sócrates da História que está em Platão. Devir não é ser, e Dioniso se torna filósofo, ao mesmo tempo que Nietzsche se torna Dioniso. Aí, ainda, é Platão quem começou: ele se torna Sócrates, ao mesmo tempo que faz Sócrates tornar-se filósofo. A diferença entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte: uns são potências de conceitos, os outros, potências de afectos e de perceptos. Uns operam sobre um plano de imanência que é uma imagem de Pensamento-Ser (número), os outros, sobre um plano de composição como imagem do Universo (fenômeno). As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance, mas também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as afecções e percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes. Melville dizia que um romance comporta uma infinidade de caracteres interessantes, mas uma única Figura original, como o único sol de uma constelação do universo, como começo das coisas, ou como um farol que tira da sombra um universo escondido: assim o capitão Ahab, ou Bartleby(3). O universo de Kleist é percorrido por afectos que o atravessam como flechas, ou que se petrificam subitamente, lá onde se erguem a figura de Homburg ou aquela de Pentesiléia. As figuras não têm nada a ver com a semelhança, nem com a retórica, mas são a condição sob a qual as artes produzem afectos de pedra e de metal, de cordas e de ventos, de linhas e de cores, sobre um plano de composição do universo. A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos.
Isto não impede que as duas entidades passem freqüentemente uma pela outra, num devir que as leva a ambas, numa intensidade que as co-determina. A figura teatral e musical de Don Juan se torna personagem conceitual com Kierkegaard, e o personagem de Zaratustra em Nietzsche já é uma grande figura de música  de teatro. É como se de uns aos outros não somente alianças, mas bifurcações e substituições se produzissem. No pensamento contemporâneo, Michel Guérin é um daqueles que descobrem mais profundamente a existência de personagens conceituais no coração da filosofia; mas ele os define num "logodrama" ou numa "figurologia" que põe o afecto no pensamento(4). É que o conceito como tal pode ser conceito de afecto, tanto quanto o afecto, afecto de conceito. O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro. Em cada caso, com efeito, o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas, relativamente heterogêneas. Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem do pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele o povoa com outras instâncias, outras entidades, poéticas, romanescas, ou mesmo pictóricas ou musicais. E o inverso também. Igitur é precisamente um desses casos, personagem conceitual transportado sobre o plano de composição, figura estética transportada sobre um plano de imanência: seu nome próprio é uma conjunção. Esses pensadores são filósofos "pela metade", mas são também bem mais que filósofos, embora não sejam sábios. Que força nestas obras com pés desequilibrados, Hõlderlin, Kleist, Rim-baud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa, Artaud, muitos romancistas ingleses e americanos, de Melville a Lawrence ou Miller, nos quais o leitor descobre com admiração que escreveram o romance do espinosismo... Certamente, eles não fazem uma síntese de arte e de filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios híbridos, que não apagam a diferença de natureza, nem a ultrapassam, mas, ao contrário, empenham todos os recursos de seu "atletismo" para instalar-se na própria diferença, acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo. Com mais forte razão, os personagens conceituais (como as figuras estéticas) são irredutíveis a tipos psicossociais, embora haja ainda aqui penetrações incessantes. Simmel e depois Goffman levaram muito longe o estudo destes tipos que parecem freqüentemente instáveis, nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o estrangeiro, o excluído, o migrante, o passante, o autóctone, aquele que retorna a seu país...(5). Não é por gosto de anedota. Parece-nos que um campo social comporta estruturas e funções, mas nem por isso nos informa diretamente sobre certos movimentos que afetam o Socius. Já nos animais, sabemos da importância dessas atividades que consistem em formar territórios, em abandoná-los ou em sair deles, e mesmo em refazer território sobre algo de uma outra natureza (o etólogo diz que o parceiro ou o amigo de um animal "eqüivale a um lar", ou que a família é um "território móvel"). Com mais forte razão, o hominídeo: desde seu registro de nascimento, ele desterritorializa sua pata anterior, ele a arranca da terra para fazer dela uma mão, e a reterritorializa sobre galhos e utensílios. Um bastão, por sua vez, é um galho desterritorializado.
É necessário ver como cada um, em toda idade, nas menores coisas, como nas maiores provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterritorializações, e se reterritorializa quase sobre qualquer coisa, lembrança, fetiche ou sonho. Os ritornelos exprimem esses dinamismos poderosos: minha cabana no Canadá... adeus, eu estou partindo..., sim, sou eu, era necessário que eu retornasse... Não se pode mesmo dizer o que é primeiro, e todo território supõe talvez uma desterritorialização prévia; ou, então, tudo ocorre  no mesmo tempo. Os campos sociais são nós inextrincáveis, em que os três movimentos se misturam; é necessário pois, para desmisturá-los, diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens. O comerciante compra num território, mas desterritoriali-za os produtos em mercadorias, e se reterritorializa sobre os circuitos comerciais.
No capitalismo, o capital ou a propriedade se desterritorializam, cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre meios de produção, ao passo que o trabalho, por sua vez, se torna trabalho "abstrato" reterritorializado no salário: é por isso que Marx não fala somente do capital, do trabalho, mas sente a necessidade de traçar verdadeiros tipos psicossociais, antipáticos ou simpáticos, O capitalista, O proletário. Se se procura a originalidade do mundo grego, será necessário perguntar que espécie de território os gregos instauram, como se desterritorializam, sobre o que se reterritorializam e, para isso, isolar tipos propriamente gregos (por exemplo, o Amigo?). Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado, numa sociedade dada: assim, o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tcheu, figura do Excluído, do qual o sinólogo Tõkei fez o retrato detalhado. Acreditamos que os tipos psicossociais têm precisamente este sentido: nas circunstâncias mais insignificantes ou mais importantes, tornar perceptíveis as formações de territórios, os vetores de desterritorialização, o processo de reterritorialização.
Mas não há, também, territórios e desterritorializações que não são somente físicas e mentais, mas espirituais — não somente relativas, mas absolutas, num sentido a determinar mais tarde? Qual é a Pátria ou o Chão Natal invocados pelo pensador, filósofo ou artista? A filosofia é inseparável de um Chão Natal, do qual dão testemunho também o a priori, o inato ou a reminiscência. Mas por que esta pátria desconhecida, perdida, esquecida, fazendo do pensador um Exilado? O que é que vai lhe devolver um equivalente de território, como valendo um lar? Quais serão os ritornelos filosóficos? Qual é a relação do pensamento com a Terra? Sócrates, o Ateniense que não gosta de viajar, é guiado por Parmênides de Eléia quando é jovem, substituído pelo Estrangeiro quando envelheceu, como se o platonismo tivesse necessidade de dois personagens conceituais pelo menos(6). Que espécie de estrangeiro há no filósofo, com seu ar de retornar do país dos mortos? Os personagens conceituais têm este papel, manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento. Os personagens conceituais são pensadores, unicamente pensadores, e seus traços personalísticos se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos dos conceitos. Tal ou tal personagem conceitual pensa em nós, e talvez não nos preexistia. Por exemplo, se dizemos que um personagem conceitual gagueja, não é mais um tipo que gagueja numa língua, mas um pensador que faz gaguejar toda a linguagem, e que faz da gagueira o traço do próprio pensamento enquanto linguagem: o interessante é então "qual é este pensamento que só pode gaguejar?". Por exemplo, ainda, se dizemos que um personagem conceitual é o Amigo, ou então que é o Juiz, o Legislador, não se trata mais de estados privados, públicos ou jurídicos, mas do que cabe de direito ao pensamento e somente ao pensamento. Gago, amigo, juiz não perdem sua existência concreta, ao contrário, assumem uma nova existência, como condições interiores do pensamento para seu exercício real, com tal ou tal personagem conceituai. Não são dois amigos que se exercem em pensar, é o pensamento que exige que o pensador seja um amigo, para que o pensamento seja partilhado em si mesmo e possa se exercer. É o pensamento mesmo que exige esta partilha de pensamento entre amigos. Não são mais determinações empíricas, psicológicas e sociais, ainda menos abstrações, mas intercessores, cristais ou germes do pensamento.
Mesmo se a palavra "absoluto" se revela exata, não diremos que as desterritorializações e reterritorializações do pensamento transcendem as psicossociais, mas tampouco que se reduzem a elas ou são delas uma abstração, uma expressão ideológica. É antes uma conjunção, um sistema de remissões ou de substituições perpétuas. Os traços dos personagens conceituais têm, com a época e o meio históricos em que aparecem, relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar. Mas, inversamente, os movimentos físicos e mentais dos tipos psicossociais, seus sintomas patológicos, suas atitudes relacionais, seus modos existenciais, seus estatutos jurídicos, se tornam suscetíveis de uma determinação puramente pensante e pensada que os arranca dos estados de coisas históricos de uma sociedade, como do vivido dos indivíduos, para fazer deles traços de personagens conceituais, ou acontecimentos do pensamento sobre o plano que ele traça ou sob os conceitos que ele cria. Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro e se conjugam, sem jamais se confundir. Nenhuma lista de traços dos personagens conceituais pode ser exaustiva, já que dela nascem constantemente, e que variam com os planos de imanência. E, sobre um plano dado, diferentes gêneros de traços se misturam para compor um personagem. Presumimos que haja traços páticos (pathiques): o Idiota, aquele que quer pensar por si mesmo, e é um personagem que pode mudar, tomar um outro sentido. Mas também um Louco, uma espécie de louco, pensador cataléptico ou "múmia" que descobre, no pensamento, uma impotência para pensar. Ou então um grande maníaco, um delirante, que procura o que precede o pensamento, um Já-Aí, mas no seio do próprio pensamento... Tem-se freqüentemente aproximado a filosofia e a esquizofrenia; mas, num caso, o esquizofrênico é um personagem conceitual que vive intensamente no pensador e o força a pensar, no outro é um tipo psicossocial que reprime o vivo e lhe rouba seu pensamento. E os dois, por vezes, se conjugam, se enlaçam como se, a um acontecimento forte demais, respondesse um estado vivido por demais difícil de suportar.
Há traços relacionais: "o Amigo", mas um amigo que só tem relação com seu amigo através de uma coisa amada portadora de rivalidade. São o "Pretendente" e o "Rival", que disputam a coisa ou o conceito, mas o conceito precisa de um corpo sensível inconsciente, adormecido, o "Jovem" que se acrescenta aos personagens conceituais. Não estamos já sobre um outro plano, pois o amor é como a violência que força a pensar, "Sócrates amante", ao passo que a amizade pediria somente um pouco de boa vontade? E como impedir uma "Noiva" de assumir, por sua vez, o papel de personagem conceituai, com o risco de perdê-la, mas não sem que o próprio filósofo "se torne" mulher? Como diz Kierkegaard (ou Kleist, ou Proust), não vale uma mulher mais do que o amigo competente? E que acontece se a própria mulher se torna filósofa, ou então um "casal", que seria interior ao pensamento e faria de "Sócrates casado" o personagem conceituai? A menos que sejamos reconduzidos ao "Amigo", mas depois de uma provação forte demais, uma catástrofe indizível, portanto em mais um novo sentido, num mútuo desamparo, numa mútua fadiga que formam um novo direito do pensamento (Sócrates tornado judeu). Não dois amigos, que comunicam e se relembram conjuntamente, mas passam ao contrário por uma amnésia ou uma afasia capazes de fender o pensamento, de dividi-lo em si mesmo. Os personagens proliferam e bifurcam, se chocam, se substituem...(7).
Há traços dinâmicos: se avançar, trepar, descer são dinamismos de personagens conceituais, saltar à maneira de Kierkegaard, dançar como Nietzsche, mergulhar como Melville são outros, para atletas  filosóficos irredutíveis uns aos outros. E se nossos esportes hoje estão em plena mutação, se as velhas atividades produtoras de energia dão lugar a exercícios que se inserem, ao contrário, sobre feixes energéticos existentes, não é somente uma mutação no tipo, são outros traços dinâmicos ainda que se introduzem num pensamento que "desliza" com novas matérias de ser, vaga ou neve, que fazem do pensador uma espécie de surfista como personagem conceituai; renunciamos, então, ao valor energético do tipo esportivo, para sublinhar a diferença dinâmica pura que se exprime num novo personagem conceitual.
Há traços jurídicos, na medida em que o pensamento não cessa de exigir o que lhe cabe de direito, e de enfrentar a Justiça desde os pré-socráticos: mas seria o poder do Pretendente, ou mesmo do Queixoso, tal como a filosofia o retira do tribunal trágico grego? E não será, por muito tempo, proibido ao filósofo ser Juiz, ele que, no máximo, será doutor recrutado a serviço da justiça de Deus, enquanto ele próprio não for acusado? Surge um novo personagem conceituai, quando Leibniz faz do filósofo o Advogado de um deus ameaçado em toda a parte? E os empiristas, o estranho personagem que lançam, com o Inquiridor? É Kant que faz enfim do filósofo um Juiz, ao mesmo tempo que a razão forma um tribunal; mas é o poder legislativo de um juiz determinante, ou o poder judiciário, a jurisprudência de um juiz reflexionante? Dois personagens conceituais muito diferentes. A menos que o pensamento não inverta tudo, juizes, advogados, queixosos, acusadores e acusados, como Alice, sobre um plano de imanência em que a Justiça se iguala à Inocência, em que o Inocente se torna o personagem conceitual que não tem mais de se justificar, uma espécie de criança-jogador, contra a qual não se pode mais nada, um Espinosa que não deixou subsistir nenhuma ilusão de transcendência. Não é necessário que o juiz e o inocente se confun-dam, isto é, que os seres sejam julgados de dentro: de maneira alguma em nome da Lei ou dos Valores, nem mesmo em virtude de sua consciência, mas pelos critérios puramente imanentes de sua existência ("para além do Bem e do Mal, isto ao menos não quer dizer para além do bom e do mau..."). Há com efeito traços existenciais: Nietzsche dizia que a filosofia inventa modos de existência ou possibilidades de vida. É por isso que bastam algumas anedotas vitais para fazer o retrato de uma filosofia, como Diógenes Laércio soube fazê-lo escrevendo o livro de cabeceira ou a lenda dourada dos filósofos, Empédocles e seu vulcão, Diógenes e seu tonei. Objetar-se-á a vida muito burguesa da maioria dos filósofos modernos; mas a liga das meias de Kant não é uma anedota vital adequada ao sistema da Razão(8)? E o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas deriva do fato de que reproduzem, de maneira pura, relações de modos no sistema da Ética entendida como etologia superior. E que estas anedotas não remetem simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo (o príncipe Empédocles ou o escravo Diógenes), elas manifestam, antes, os personagens conceituais que o habitam. As possibilidades de vida ou os modos de existência não podem inventar-se, senão sobre um plano de imanência que desenvolve a potência de personagens conceituais. O rosto e o corpo dos filósofos abrigam estes personagens que lhes dão freqüentemente um ar estranho, sobretudo no olhar, como se algum outro visse através de seus olhos. As anedotas vitais contam a relação de um personagem conceitual com animais, plantas ou rochedos, relação segundo a qual o próprio filósofo se torna algo de inesperado, e adquire uma amplitude trágica e cômica que ele não teria sozinho. Nós, filósofos, é por nossos personagens que nos tornamos sempre outra coisa, e que renascemos como jardim público ou zoológico.
EXEMPLO VI
Mesmo as ilusões de transcendência nos servem, e fornecem anedotas vitais. Pois, quando nós nos vangloriamos de encontrar o transcendente na imanência, nada fazemos senão recarregar o plano de imanência com a própria imanência: Kierkegaard salta fora do plano, mas o que lhe é "restituído" nesta suspensão, nesta parada de movimento, é a noiva ou o filho perdidos, é a existência sobre o plano de imanência(9). Kierkegaard não hesita em dizê-lo: no que concerne à transcendência, um pouco de "resignação" bastaria, mas é necessário, além disso, que a imanência seja devolvida. Pascal aposta na existência transcendente de Deus, mas o que se aposta, aquilo sobre o que se aposta, é a existência imanente daquele que crê que Deus exista. Só esta existência é capaz de cobrir o plano de imanência, de adquirir um movimento infinito, de produzir e de reproduzir intensidades, ao passo que a existência daquele que crê que Deus não existe cai no negativo. Aqui mesmo se poderia dizer o que François Jullien diz do pensamento chinês: a transcendência é nele relativa e não representa mais do que uma "absolutização da imanência"(10). Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam e decidiriam que um é "melhor" que o outro. Ao contrário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida. É o que Pascal e Kierkegaard sabem bem, eles que são bons em movimentos infinitos, e que tiram do Antigo Testamento novos personagens conceituais capazes de fazer frente a Sócrates. O "cavaleiro da fé" de Kierkegaard, aquele que salta ou o apostador de Pascal, aquele que lança os dados são os homens de uma transcendência ou de uma fé. Mas não cessam de recarregar a imanência: são filósofos, ou antes os inter-cessores, os personagens conceituais que valem por estes dois filósofos, e que não se preocupam mais com a existência transcendente de Deus, mas somente com possibilidades imanentes infinitas que traz a existência daquele que crê que Deus existe.
O problema mudaria se fosse um outro plano de imanência. Não que aquele que crê que Deus não existe pudesse então ser vencedor, já que ele pertence ainda ao antigo plano como movimento negativo. Mas, sobre o novo plano, poderia acontecer que o problema dissesse respeito, agora, à existência daquele que crê no mundo, não propriamente na existência do mundo, mas em suas possibilidades em movimentos e em intensidades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos animais e dos rochedos. Pode ocorrer que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência por descobrir, hoje, sobre nosso plano de imanência. É a conversão empirista (temos tantas razões de não crer no mundo dos homens, perdemos o mundo, pior que uma noiva, um filho ou um deus...). Sim, o problema mudou.
O personagem conceitual e o plano de imanência estão em pressuposição recíproca. Ora o personagem parece preceder o plano, ora segui-lo. É que ele aparece duas vezes, intervém duas vezes. Por um lado, ele mergulha no caos, tira daí determinações das quais vai fazer os traços diagramáticos de um plano de imanência: é como se ele se apoderasse de um punhado de dados, no acaso-caos, para lançá-los sobre uma mesa. Por outro lado, para cada dado que cai, faz corresponder os traços intensivos de um conceito que vem ocupar tal ou tal região da mesa, como se esta se fendesse segundo os resultados. Com seus traços personalísticos, o personagem conceitual intervém pois entre o caos e os traços diagramáticos do plano de imanência, mas também entre o plano e os traços intensivos dos conceitos que vêm povoá-lo. Igitur.
Os personagens conceituais constituem os pontos de vista segundo os quais planos de imanência se distinguem ou se aproximam, mas também as condições sob as quais cada plano se vê preenchido por conceitos do mesmo grupo. Todo pensamento é um Fiat, emite um lance de dados: construtivismo. Mas é  um jogo muito complexo, porque o ato de lançar é feito de movimentos infinitos reversíveis e dobrados uns sobre os outros, de modo que a queda só ocorre em velocidade infinita, criando as formas finitas que correspondem às ordenadas intensivas destes movimentos: todo conceito é uma cifra que não preexistia. Os conceitos não se deduzem do plano, é necessário o personagem conceitual para criá-los sobre o plano, como para traçar o próprio plano, mas as duas operações não se confundem no personagem, que se apresenta ele mesmo como um operador distinto.
Os planos são inumeráveis, cada um com curvatura variável, e se agrupam ou se separam segundo os pontos de vista constituídos pelos personagens. Cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros personagens, sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de personagens conceituais. Há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano: eles ressoam, ligam-se através de pontes móveis, mas é impossível prever o jeito que assumem em função das variações de curvatura. Eles se criam por saraivadas e não cessam de bifurcar. O jogo é tanto mais complexo quanto os movimentos negativos infinitos são envolvidos nos positivos sobre cada plano, exprimindo os riscos e perigos que o pensamento enfrenta, as falsas percepções e os maus sentimentos que o envolvem; há também personagens conceituais antipáticos, que colam estreitamente nos simpáticos e dos quais estes não chegam a se desgrudar (não é somente Zaratustra que está impregnado por "seu" macaco ou seu bufão, Dioniso que não se separa do Cristo, mas Sócrates que não chega a se distinguir de "seu" sofista, o filósofo crítico que não pára de conjurar seus maus duplos); há enfim conceitos repulsivos enlaçados nos atrativos, mas que desenham, sobre o plano, regiões de intensidade baixa ou vazia, e que não cessam de se isolar, de desconjuntar, de romper as conexões (a transcendência ela mesma não tem "seus" conceitos?). Mas, mais ainda que uma distribuição vetorial, os signos de planos, de personagens e de conceitos são ambíguos, porque se dobram uns nos outros, se enlaçam ou se avizinham. É por isso que a filosofia opera sempre lance por lance.
A filosofia apresenta três elementos, cada um dos quais responde aos dois outros, mas deve ser considerada em si mesma: o plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), o ou os personagens prófilosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos filosóficos que ela deve criar (consistência). Traçar, inventar, criar, esta é a trindade filosófica. Traços diagramáticos, personalísticos e intensivos. Há grupos de conceitos, caso eles ressoem ou lancem pontes móveis, cobrindo um mesmo plano de imanência que os une uns aos outros. Há famílias de planos, caso os movimentos infinitos se dobrem uns nos outros e componham variações de curvatura ou, ao contrário, selecionem variedades não componíveis.
Há tipos de personagens segundo suas possibilidades de encontro, mesmo hostil, sobre um mesmo plano e num grupo. Mas é freqüentemente difícil determinar se é o mesmo grupo, o mesmo tipo, a mesma família.Para isso é necessário todo um "gosto".
Como nenhum dos elementos se deduz dos outros, é necessário uma co-adaptação dos três. Chamase gosto esta faculdade filosófica de co-adaptação, e que regra a criação de conceitos. Se se chama Razão ao traçado do plano, Imaginação à invenção dos personagens, Entendimento à criação de conceitos, o gosto aparece como a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda transparente. É por isso que é necessário criar, inventar, traçar, mas o gosto é como que a regra de correspondência das três instâncias que diferem em natureza. Não é certamente uma faculdade de medida. Não se encontrará nenhuma medida nestes movimentos infinitos que compõem o plano de imanência, estas linhas aceleradas sem contorno, estes declives e curvaturas, nem nestes personagens sempre excessivos, por vezes antipáticos, ou nestes conceitos de formas irregulares, de intensidades estridentes, de cores tão vivas e bárbaras que podem inspirar uma espécie de "desgosto" (notadamente nos conceitos repulsivos). Todavia, o que aparece em todos os casos como gosto filosófico é o amor do conceito bem feito, chamando "bem feito" não a uma moderação do conceito, mas a uma espécie de novo lance, de modulação, em que a atividade conceitual não tem limite nela mesma, mas somente nas duas outras atividades sem limites. Se os conceitos preexistissem já prontos, teriam limites a observar; mas mesmo o plano "pré-filosófico" só é assim nomeado porque se o traça como pressuposto, e não porque ele existiria antes de ser traçado. As três atividades são estritamente simultâneas e não têm relações senão incomensuráveis. A criação de conceitos não tem outro limite senão o plano que eles vêm povoar, mas o próprio plano é ilimitado, e seu traçado só se confunde com os conceitos por criar, que deve juntar, ou com os personagens por inventar, que deve entreter. É como em pintura: mesmo para os monstros e os anões, há um gosto segundo o qual eles devem ser bem feitos, o que não quer dizer neutralizados, mas que seus contornos irregulares devem ser postos em relação com uma textura da pele ou um fundo da Terra, como matéria germinal com a qual eles parecem brincar. Há um gosto pela cor que não vem moderar a criação de cores num grande pintor mas, ao contrário, conduz a criação até o ponto em que as cores desposam suas figuras feitas de contornos, e seu plano feito de fundos uniformes(*No original, aplat (N. dos T.), curvaturas, arabes-cos. Van Gogh só conduz o amarelo até o ilimitado inventando o homem-girassol, e traçando o plano das pequenas vírgulas infinitas. O gosto pelas cores testemunha, ao mes mo tempo, o respeito necessário a sua aproximação, a longa espera pela qual é necessário passar, mas também a criação sem limite que as faz existir. O mesmo ocorre com o gosto dos conceitos: o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com temor e respeito, hesita muito em se lançar, mas só pode determinar o conceito criando-o sem medida, um plano de imanência tendo como única regra que traça e como único compasso os personagens estranhos que ele faz viver. O gosto filosófico não substitui a criação de conceitos, nem a modera, é, ao contrário, a criação de conceitos que faz apelo a um gosto que a modula.
A livre criação de conceitos determinados precisa de um gosto do conceito indeterminado. O gosto é esta potência, este ser-em-potência do conceito: não é certamente por razões "racionais ou razoáveis" que tal conceito é criado, tais componentes escolhidos. Nietzsche pressentiu esta relação da criação de conceitos com um gosto propriamente filosófico, e se o filósofo é aquele que cria conceitos, é graças a uma faculdade de gosto como um "sapere" instintivo, quase animal — um Fiat ou um Fatum que dá a cada filósofo o direito de aceder a certos problemas, como um sinete marcado sobre seu nome, como uma afinidade da qual suas obras promanam(11).
Um conceito está privado de sentido enquanto não concorda com outros conceitos, e não está associado a um problema que resolve ou contribui para resolver. Mas importa distinguir os problemas filosóficos e os problemas científicos. Não se ganharia grande coisa, dizendo que a filosofia coloca "questões", já que as questões são somente uma palavra para designar problemas irredutíveis aos da ciência.
Como os conceitos não são proposicionais, eles não podem remeter a problemas que concerniriam às condições extensionais de proposições assimiláveis às da ciência. Se insistimos, de qualquer modo, em traduzir o conceito filosófico em proposições, só podemos fazê-lo na forma de opiniões mais ou menos verossímeis, e sem valor científico. Mas topamos assim com uma dificuldade, que os gregos já enfrentavam.
É mesmo o terceiro caráter pelo qual a filosofia passa por uma coisa grega: a cidade grega promoveu o amigo ou o rival como relação social, ela traça um plano de imanência, mas também faz reinar a livre opinião (doxa). A filosofia deve então extrair das opiniões um "saber" que as transforma e que também se distingue da ciência. O problema filosófico consiste em encontrar, em cada caso, a instância capaz de medir um valor de verdade das opiniões oponíveis, seja selecionando umas como mais sábias que as outras, seja fixando a parte que cabe a cada uma. Tal foi sempre o sentido do que se chama dialética, e que reduz a filosofia à discussão interminável12. Vemo-lo em Platão, no qual os universais de contemplação supostamente medem o valor respectivo das opiniões rivais, para elevá-las ao saber; é verdade que as contradições subsistentes em Platão, nos diálogos ditos aporéticos, forçam já Aristóteles a orientar a pesquisa dialética dos problemas na direção dos universais de comunicação (os tópicos). Em Kant ainda, o problema consistirá na seleção ou na partilha das opiniões opostas, mas graças a universais de reflexão, até que Hegel tenha a idéia de se servir da contradição das opiniões rivais, para delas extrair proposições supra-científicas, capazes de se mover, de se contemplar, se refletir, se comunicar em si mesmas e no absoluto (proposição especulativa, em que as opiniões se tornam os momentos do conceito). Mas, sob as mais altas ambições da dialética, e qualquer que seja o gênio dos grandes dialéticos, recaímos na mais miserável condição, a que Nietzsche diagnosticava como a arte da plebe, ou o mau gosto em filosofia: a redução do conceito a proposições como simples opiniões; a submersão do plano de imanência nas falsas percepções e nos maus sentimentos (ilusões da transcendência ou dos universais); o modelo de um saber que constitui apenas uma opinião pretensamente superior, Urdoxa; a substituição dos personagens conceituais por professores ou chefes de escola. A dialética pretende encontrar uma discursi-vidade propriamente filosófica, mas só pode fazê-lo, encadeando as opiniões umas às outras. Ela pode ultrapassar a opinião na direção do saber, a opinião ressurge e persiste em ressurgir. Mesmo com os recursos de uma Urdoxa, a filosofia permanece uma doxografia. É sempre a mesma melancolia que se eleva das Questões disputadas e dos Quodlibets da Idade Média, em que se aprende o que cada doutor pensou, sem saber porque ele o pensou (o Acontecimento), e que se encontra em muitas histórias da filosofia nas quais se passa em revista as soluções, sem jamais saber qual é o problema (a substância em Aristóteles, em Descartes, em Leibniz...), já que o problema é somente decalcado das proposições que lhe servem de resposta.
Se a filosofia é paradoxal por natureza, não é porque toma o partido das opiniões menos verossímeis, nem porque mantém as opiniões contraditórias, mas porque se serve das frases de uma língua standard para exprimir algo que não é da ordem da opinião, nem mesmo da proposição. O conceito é bem uma solução, mas o problema ao qual ele responde reside em suas condições de consistência intensional, e não, como na ciência, nas condições de referência das proposições extensionais. Se o conceito é uma solução, as condições do problema filosófico estão sobre o plano de imanência que ele supõe (a que movimento infinito ele remete na imagem do pensamento?) e as incógnitas do problema estão nos personagens conceituais que ele mobiliza (que personagem precisamente?). Um conceito como o de conhecimento só tem sentido com relação a uma imagem do pensamento a que ele remete, e a um personagem conceitual de que precisa; uma outra imagem, um outro personagem exigem outros conceitos (a crença, por exemplo, e o Inquiridor). Uma solução não tem sentido independentemente de um problema a determinar em suas condições e em suas incógnitas, mas estas não mais têm sentido independentemente das soluções determináveis como conceitos. As três instâncias estão umas nas outras, mas não são de mesma natureza, coexistem e subsistem sem desaparecer uma na outra. Bergson, que contribuiu tanto para a compreensão do que é um problema filosófico, dizia que um problema bem colocado era um problema resolvido. Mas isso não quer dizer que um problema é somente a sombra ou o epifenômeno de suas soluções, nem que a solução é apenas a redundância ou a conseqüência analítica do problema. Significa, antes, que as três atividades que compõem o construcionismo não cessam de se alternar, de se recortar, uma precedendo a outra e logo o inverso, uma que consiste em criar conceitos, como caso de solução, outra em traçar um plano e um movimento sobre o plano, como condições de um problema, outra em inventar um personagem, como a incógnita do problema. O conjunto do problema (de que a própria solução faz parte) consiste sempre em construir as duas outras quando a terceira está em curso. Nós vimos como, de Platão a Kant, o pensamento, o "primeiro", o tempo recebiam conceitos diferentes, capazes de determinar soluções, mas em função de pressupostos que determinavam problemas diferentes; pois os mesmos termos podem aparecer duas vezes, e mesmo três vezes, uma vez nas soluções como conceitos, outra vez nos problemas pressupostos, uma outra vez num personagem como intermediário, intercessor, mas a cada vez sob uma forma específica irredutível. Nenhuma regra e sobretudo nenhuma discussão dirão a princípio se é o bom plano, o bom personagem, o bom conceito, pois é cada um deles que decide se os dois outros deram certo ou não; mas cada um deles deve ser construído por sua conta: um criado, o outro inventado, o outro traçado. Constroem-se problemas e soluções dos quais se pode dizer "Deu certo... Não deu certo...", mas somente na medida de e segundo suas co-adaptações. O construtivismo desqualifica toda discussão, que retardaria as construções necessárias, como denuncia todos os universais, a contemplação, a reflexão, a comunicação, como fontes do que se chama de "falsos problemas", que emanam das ilusões que envolvem o plano. É tudo o que se pode dizer de antemão. Pode acontecer que acreditemos ter encontrado uma solução, mas uma nova curvatura do plano, que não tínhamos visto de início, vem relançar o conjunto e colocar novos problemas, uma nova série de problemas, operando por empuxos sucessivos e solicitando conceitos futuros, por criar (nós nem mesmo sabemos se não é antes um novo plano que se destaca do precedente). Inversamente, pode acontecer que um novo conceito venha insinuar-se como uma cunha entre dois conceitos que acreditávamos vizinhos, solicitando por sua vez, sobre a mesa de imanência, a determinação de um problema que surge como uma espécie de ponte. A filosofia vive assim numa crise permanente. O plano opera por abalos, e os conceitos procedem por saraivadas, os personagens por solavancos. O que é problemático, por natureza, é a relação das três instâncias.
Não se pode dizer, de antemão, se um problema está bem colocado, se uma solução convém, se é bem o caso, se um personagem é viável. É que cada uma das atividades filosóficas não encontra critério senão nas outras duas, é por isso que a filosofia se desenvolve no paradoxo. A filosofia não consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas categorias como as do Interessante, do Notável ou do Importante que decidem sobre o sucesso ou o fracasso. Ora, não se pode sabê-lo antes de ter construído. De muitos livros de filosofia, não se dirá que são falsos, pois isso não é dizer nada, mas que são sem importância nem interesse, justamente porque não criam nenhum conceito, nem trazem uma imagem do pensamento ou engendram um personagem que valha a pena. Só os professores podem pôr "errado" à margem, e...; mas os leitores podem ter ainda assim dúvidas sobre a importância e o interesse, isto é, a novidade do que se lhes dá para ler. São categorias do Espírito. Um grande personagem romanesco deve ser um Original, um Único, dizia Melville; um personagem conceitual também. Mesmo antipático, ele deve ser notável; mesmo repulsivo, um conceito deve ser interessante. Quando Nietzsche construía o conceito de má consciência, podia ver nele o que há de mais asqueroso no mundo, nem por isso gritava menos: é aí que o homem começa a se tornar interessante!, e considerava, com efeito, que acabava de criar um novo conceito para o homem, que convinha ao homem, em relação com o novo personagem conceitual (o sacerdote) e com uma nova imagem do pensamento (a vontade de potência apreendida sob o traço negativo do niilismo)...(13).
A crítica implica novos conceitos (da coisa criticada), tanto quanto a criação mais positiva. Os conceitos devem ter contornos irregulares, moldados sobre sua matéria viva. Que é desinteressante por natureza? Os conceitos inconsistentes, o que Nietzsche chamava de os "informes e fluidos borrões de conceitos" — ou então, ao contrário, os conceitos por demais regulares, petrificados, reduzidos a uma ossatura? Os conceitos mais universais, os que são apresentados como formas ou valores eternos são, deste ponto de vista, os mais esqueléticos, os menos interessantes. Não fazemos nada de positivo, mas também nada no domínio da crítica ou da história, quando nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação, sem ver que os antigos filósofos, de que são emprestados, faziam já o que se queria impedir os modernos de fazer: eles criavam seus conceitos e não se contentavam em limpar, em raspar os ossos, como o crítico ou o historiador de nossa época. Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido, a relançá-lo numa nova cena, mesmo a preço de voltá-lo contra ele mesmo.
(1) Sobre o Idiota (o profano, o privado ou o particular, por oposição ao técnico e ao sábio) em suas relações com o pensamento, Nicolau de Cusa, Idiota (Obras Escolhidas por M. de Gandillac, Ed. Aubier). Descartes reconstitui os três personagens, sob o nome de Eudoxo, o idiota, Poliandro, o técnico, e Epistemon, o sábio público: La recherche de Ia vérité par Ia lumière naturelle (Oeuvres Philosophiques, Ed. Alquié, Garnier, II). Sobre as razões pelas quais Nicolau de Cusa não chega a um cogito, cf. Gandillac, p. 26.

(2) É primeiro de Kierkegaard que Chestov empresta a nova oposição: Kierkegaard et Ia philosophie existentielle, Ed. Vrin.
(3) Melville, Le grana escroc, Ed. de Minuit, cap. 44.
(4) Michel Guérin, La terreur et Ia pitié, Ed. Actes Sud.
(5) Cf. as análises de Isaac Joseph, que invoca Simmel e Goffman: Le passant considérable, Librairie des Méridiens.

(6) Sobre o personagem do estrangeiro em Platão, J.-F. Mattéi, L'é-tranger et le simulacre, P.U.F.

(7) Não se busque aqui senão alusões sumárias: à ligação de Eros e da philia nos gregos; ao papel da Noiva e do Sedutor em Kierkegaard; à função noética do Casal segundo Klossowski (Les lois de 1'hospitalité, Gallimard); à constituição da mulher-filósofa segundo Michelle Le Doeuff (Uétude et le rouet, Ed. du Seuil); ao novo personagem do Amigo em Blanchot.
(8) Sobre este aparelho complexo, cf. Thomas de Quincey, Les derniers jours d'Emmanuel Kant, Ed. Ombres.
(9) Kierkegaard, Crainte et tremblement, Ed. Aubier, p. 68.
(10) François Jullien, Procès ou création, Ed. du Seuil, pp. 18, 117.

(11) Nietzsche, Musarion-Ausgabe, XVI, p. 35. Nietzsche invoca freqüentemente um gosto filosófico, e faz derivar o sábio de "sapere" ("sa-piens", o degustador, "sisyphos", o homem de gosto extremamente "sutil"): La naissance de Ia philosophie, Gallimard, p. 46.
(12) Cf. Bréhier, "La notion de problème en philosophie", Études de philosophie antique, P.U.F.
(13) Nietzsche, Généalogie de Ia morale, I, § 6.

cooperação.sem.mando

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Castells propõe outra democracia

buscado em: http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=9386/castells-propoe-outra-democracia
Num diálogo com acampados em Barcelona, sociólogo sugere: política é muito mais que representação; internet livre é chave da mudança.
Por Daniela Frabasile
Estranha Europa. No terreno dos direitos sociais e da política institucional, um passo atrás sucede o outro, numa espiral descendente que parece não ter fim. Na última semana, a Itália promoveu nova rodada de privatizações e ataques ao estado de bem-estar social (entre outros pontos, acabou a gratuidade das consultas médicas com especialistas, na rede pública de saúde). Medidas semelhantes têm sido adotadas há pelo menos um ano e meio, desde que o continente decidiu cobrar das sociedades o desfalque provocado nas finanças públicas pelo socorro aos bancos… As eleições, que deveriam corrigir tais retrocessos, parecem impotentes. Os partidos com chances reais de chegar ao poder igualaram-se, ao aderirem a um “pensamento único” que nunca ousa tocar os lucros do sistema financeiro. A esquerda mais radical parece, como tantas vezes, incapaz de dialogar com as maiorias.
E no entanto, engana-se quem julga que tudo são misérias. Nos últimos meses, a Europa converteu-se num laboratório de novas formas de mobilização da sociedade civil – marcadas pela autoconvocação e busca de autonomia. O processo começou em setembro de 2010, quando os estudantes britânicos e italianos mobilizaram-se maciçamente (e de modo muito criativo) contra a cobrança de mensalidades (no Reino Unido) e uma contra-reforma universitária (na Itália). Ampliou-se a partir de maio, quando a juventude espanhola transformou em acampamentos as praças principais de dezenas de cidades, para protestar contra o sequestro do futuro coletivo por “políticos e banqueiros”. Daí derivou a ocupação da Praça Syntagma, em Atenas.
De que modo estas novas formas de expressão e de luta poderão transformar a sociedade? Em todas as mobilizações recentes, busca-se uma nova democracia (e se procura praticá-la em micro-escala, na gestão de assuntos como alimentação, limpeza e segurança dos acampamentos). Constata-se que, na Europa, as instituições que deveriam representar a sociedade – Parlamentos e governos – perderam ou abandonaram este papel.
No entanto, é nestas instituições que ainda se concentra o poder – inclusive o de estabelecer ou extinguir direitos. É preciso, portanto, incidir sobre elas, pressioná-las – ainda que se procurem caminhos para superá-las, Como articular esta dialética, que exige reivindicar de quem se considera ilegítimo?
As praças espanholas foram, além de tudo, palco de importantes reflexões teóricas a este repeito. Os debates eram feitos ao ar livre, sem nenhuma solenidade – mas com muita densidade e empenho criador. Na Praça Catalunha, em Barcelona, o sociólogo e filósofo Manuel Castells compareceu a um dos diálogos. Falou cerca de 50 minutos, sobre Comunicação, Poder e Democracia. Lembrou sua condição de participante ativo dos movimentos de maio de 1968 – talvez o primeiro momento em que se reivindicou coletivamente a superação democrática das instituições surgidas da revolução francesa. Foi, como é de seu costume, claro e incisivo. Em alguns momentos, não se furtou a recomendar ações e posturas: por exemplo, a luta pela universalização do acesso à internet e a atitude de não-violência ativa.
Os vídeos com a fala de Castells estão disponíveis na internet (veja ao final do texto). Para que possa circular mais amplamente e despertar reflexão mais profunda, Outras Palavras transformou-o em texto escrito e traduziu-o para o português. Ótima leitura!
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Meu nome é Manuel Castells. Sou professor e investigador da Universidade da Catalunha. Estou aqui para falar com vocês sobre Comunicação, Poder e Democracia. Uma das acampadas perguntou-me se gostaria de comparecer ao acampamento para falar de algumas das ideias que tenho desenvolvido há muitos anos, precisamente sobre este tema, e que estão reunidas num livro que lancei há pouco, Comunicação e Poder. Fiquei encantado, porque acho central debater publicamente estes temas. Quis contribuir à maneira que posso para um movimento que ocorre em Barcelona, na Catalunha, na Espanha e em outros países. Ontem, já havia 706 acampamentos em todo o mundo e continuam a se multiplicar. São como a água. Quando ela corre, passa por qualquer lugar, supera obstáculos.
Quando há uma necessidade real, sentida em muitas sociedades, baste que a luta por ela comece a se expressar em alguma parte para que se difunda um sentimento de que “nós também podemos”. Foi o que ocorreu, por exemplo, com as revoluções árabes. É interessante que um dos sites mais atualizados sobre o movimento [espanhol] chama-se “Yes, we camp”, reproduzindo o que Obama disse em sua campanha – embora saibamos que agora as coisas estão mais complicadas. O importante é que muitas pessoas, em todo o mundo, não aceitam a fatalidade da crise e pensam que podem fazer algo – o quê, ainda não sabem – para enfrentar a miséria política predominante e recuperar o papel de protagonistas que as pessoas sempre desejaram ter em seu futuro.
Não estou aqui para fazer um discurso político, mas para compartilhar o que pude fazer, em termos de investigação, reflexão e análise a este respeito, durante muitos anos. Começarei debatendo qual a relação entre comunicação e poder. Debaterei em seguida a crise que a democracia está vivendo e as soluções concretas que se propõem para a reconstrução desta democracia.
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As relações de poder são essenciais em todas as sociedades e através da História. São, aliás, as relações essenciais em nossas sociedades, porque quem tem poder constrói as instituições em função de seus interesses e valores. As instituições que vivemos são, cada vez mais, simples expressões destas relações de poder.
Mas como se forma o poder? Ele está fundamentalmente em nossas mentes: não fora, mas dentro de nós. Claro que há, também, a violência e a intimidação, para o caso de nos atrevermos a pensar diferente – mas a História demonstra que um poder que se apoia apenas na violência é sempre débil. Para superá-lo, é preciso passar por muito sofrimento. Mas, em última instância, a dominação das mentes é muito mais eficaz que a tortura.
Por isso, a batalha do poder está em nossas mentes, na forma que pensamos. Ela determina o que fazemos. E as mentes são redes: redes neuronais, que formam suas visões de mundo, suas concepções, em relação com outras pessoas, outras mentes, outras redes de neurônios e com as redes de nosso entorno social e natural.
Tudo isso é o processo de comunicação. Ela é simplesmente a conexão entre distintas redes neuronais. O entorno comunicativo e o que se passa nele é, portanto, o elemento fundamental através do qual nossas mentes funcionam e, portanto, formam-se as relações de poder.
Felizmente há sempre, nas sociedades, não apenas poder mas, também, contrapoder. Se existe uma lei social geral certamente válida, é que sustenta: onde quer que haja dominação, haverá resistência a ela. Em consequência, ao longo do tempo e também aqui, hoje, o que aparece como “normal”, “natural”, “estabelecido”, “acordado” são simplesmente os resultados dos compromissos de luta e negociação que se dão entre distintos interesses e valores na sociedade. Quem ganha, vai ampliando seu poder nas instituições. Quem contesta o poder e apresenta ideias novas, se tem poder suficiente, vai mudando estas instituições. Esta é a História, continuamente. O vai-e-vem entre o velho e o novo; entre os interesses que já estão cristalizados, burocratizados nas instituições e as interesses e valores de quem quer propor uma nova maneira de ser e viver.
É por isso que o controle da informação e da comunicação foi sempre a forma fundamental de exercício do poder. O controle dos governos, das grandes empresas midiáticas – esta é a forma essencial. E por isso a política transformou-se, hoje, em algo midiático. O que não existe nos meios, não chega aos cidadãos – e, portanto, não existe. Aliás, o mais importante da política mediática não é tanto o que dizem os meios, mas o que eles ocultam: a ausência de mensagens, opiniões e alternativas.
Na medida em que há uma mudança organizativa e tecnológica no entorno da comunicação, mudam também os processos de comunicação, e como consequência as relações de poder. Qual a mudança fundamental que temos observado nos últimos anos? É a passagem de um sistema totalmente dominado pela comunicação de massas, e centrado nos meios de comunicação de massas, para um sistema que chamo de auto-comunicação de massas, através da internet.
Por auto-comunicação de massas podemos entender a capacidade de cada pessoa para emitir suas mensagens, selecionar as que quer receber e organizar suas próprias redes – nas quais os conteúdos, as formas e os participantes são definidos de forma autônoma. É claro que isso acontece em um cenário dominado por grandes empresas de comunicação e pelas empresas de internet. Porém, dentro desse espaço existem possibilidades infinitamente maiores que havia no espaço tradicional dos meios de comunicação de massa. Pode-se organizar redes horizontais de comunicação interativa, que chagam à sociedade através de pessoas, interesses, valores e grupos sociais não representados pelos sistemas corporativos de poder. Em consequência, ampliou-se extraordinariamente o espaço para a comunicação conflitiva, e portanto o espaço de auto-representação das pessoas na sociedade.
Durante anos, minhas observações dos movimentos sociais mostram que essa autonomia comunicativa tem sido aproveitada, para organizar e ampliar a mobilização. Desde março de 2004, na Espanha, existe um movimento espontâneo, através de mobilizações, provocadas pelas mentiras do governo naquele momento. Tudo o que se passou nos últimos anos e as revoluções árabes, toda essa experiência mostra que o processo muda a partir do momento em que é produzida alguma indignação por algum ato que já não se pode suportar. A partir dessa indignação organiza-se um debate. Desse momento em diante, as iniciativas de rede, do ciberespaço, passam ao espaço urbano, e se organiza uma interação entre o espaço urbano e o da rede virtual. Ela organiza, mobiliza, gera uma dinâmica que modifica instantaneamente as relações de poder na sociedade, e começa a influenciar o mais importante: as mentalidades das pessoas.
As pessoas percebem que não estão sozinhas e se tornam mais fortes. O sistema passivo de comunicação e democracia consiste em isolar as pessoas e agregá-las em função dos que controlam o poder
De repente, as pessoas percebem que não estão sozinhas. O que sentem, o que pensam, outros também sentem e pensam. E quando não estão sozinhas, as pessoas são mais fortes. Porque todo o conjunto do sistema passivo de comunicação e de democracia consiste em isolar essas pessoas e agregá-las em função dos que controlam os sistemas de poder nas instituições. A separação e agregação segundo o que já está estabelecido fazem com que só se possa pensar através dos sistemas predeterminados pelos interesses que dominam as instituições. A partir do momento em que surge uma dinâmica espontânea de organização em rede, na internet, nas ruas e nas relações interpessoais – a partir daí, a dinâmica muda. Quando as pessoas já não estão sozinhas, quando sabem que estão juntas, produz-se a mudança mais importante nas mentes,. Perde-se o medo de dizer e de fazer. Porque o medo é a emoção primordial do ser humano, porque todos somos descendentes de covardes, pois se os valentes não corressem o suficiente, eram pegos pelas feras.
Portanto, toda a sociedade está baseada na capacidade de instigar o medo nas pessoas, e na capacidade das pessoas em superar esse medo. Essa superação só pode ser feita em grupos, nunca individualmente. É da superação do medo, através da reunião de indivíduos em grupos – mas sem deixar a sua individualidade – que começam a surgir críticas, alternativas e debates sobre que outras formas de vida são possíveis.
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Isso permite colocar saídas para a crise da democracia atual. Em todo o mundo, estamos vivendo uma crise muito séria e profunda da democracia. A democracia representativa foi uma conquista histórica dos povos, que custou muito sangue, suor e lágrimas, contra os despotismos que dominaram grande parte do mundo. Porém, a partir do momento em que já se constituem instituições democráticas, imediatamente formam-se partidos políticos, que definem as regras da participação política de acordo com seus interesses e os interesses que representam. Fecham-se outras vias de representação e se assegura por lei eleitoral que apenas os partidos majoritários podem governar.
A democracia representativa é reduzida, a distância em relação aos cidadãos aumenta, e a classe política organiza-se como classe própria, como trabalho profissional. Já não importa qual ideologia o político segue, ou se é corrupto ou não. Eles podem dizer: “a política sou eu, a política é o partido e o partido sou eu”. Qualquer tipo de intervenção política tem que passar por essa instância estrutural dos partidos. Em consequência, quando há corrupção, há impunidade. Quando há erros graves na condução de políticas sobre a crise econômica, não se responsabiliza ninguém por tais erros e pelas consequências que produziram sobre os cidadãos. Só quando chegam as eleições os políticos pagam por seus erros. Mas o eleitor deve escolher entre dois menus da mesma cozinha. Porque as leis eleitorais foram construídas para que os partidos majoritários continuem sendo majoritários. A menos que ocorram “terremotos eleitorais”, o que não é impossível, mas só acontece como consequência de mudanças sociais profundas.
Dois terços dos cidadãos do mundo acreditam que não são governados democraticamente. As pessoas dizem que vivem em uma democracia, porém ela não é democrática. E isso é considerado normal. A classe política é o grupo mais desprestigiado em todas as pesquisas internacionais sobre prestígio profissional. Inclusive, na Itália, os mafiosos e as prostitutas se saíram melhor que os políticos. As pessoas diziam que pelo menos eles dizem o que fazem, diferentemente dos políticos. Insisto que isso é prejudicial para a maioria dos políticos, que são honestos e tentam fazer seu trabalho. Mas quando há um sentimento tão generalizado no mundo, os políticos fizeram algo que os colocou como classe homogênea, porque não é excepcional: foi empiricamente constatado pelos estudos de sociologia política.
Quando as coisas vão “mais ou menos”, tudo continua igual. Estudos mostram que 75% das pessoas votam contra alguma coisa, e não a favor. As mensagens na propaganda política são, na maioria das vezes, negativas, pois os profissionais de marketing político sabem que uma mensagem negativa tem cinco vezes mais impacto que uma mensagem positiva. Portanto, todos atacam todos, e assim todos os políticos afundam na opinião das pessoas.
Porém, quando as coisas vão mal, quando há uma crise, há um despertar de interesse por saber como as coisas poderiam ser diferentes. Quando os cidadãos percebem que não estão satisfeitos com as alternativas que existem, cria-se uma insatisfação. Então, rompe-se a confiança básica entre os cidadãos e aqueles que os deveriam representar. Esse desencontro entre o que as pessoas pensam e seus representantes significa que os representantes da democracia caminham para um lado, enquanto o sentimento dos representados vai por outro.
Devemos lembrar que, de acordo com o modo como se organiza a insatisfação popular, podem ocorrer movimentos extremistas, fascistas, racistas, xenófobos, que já se vê na Catalunha. Foi o que ocorreu na crise dos anos 30 – da qual não surgiu a revolução socialista, mas o fascismo. Por esse motivo, é importante que outros movimentos coletivos, com valores positivos, humanos, humanistas ocupem o espaço para preencher essa lacuna entre a política e a sociedade.
Portanto é necessário que a ideia de uma reconstrução da democracia esteja nas ruas, aqui e no mundo. Aqueles que representam a democracia hoje não podem fazer essa reconstrução, pois ela vai contra seus interesses como grupo profissional e grupo político. Muitos tentaram implantar mudanças, porém seus próprios partidos cortaram esses projetos. É o sistema que bloqueia essa reconstrução, e não os indivíduos. Esses sistemas têm interesses poderosos, relacionados ao poder político, econômico, cultural, tecnológico. Se não houver uma pressão social, não haverá mudança. E a mudança social inicia com as mentes: o que muitas pessoas estão fazendo, aqui e em outros lugares, é mudar a forma de pensar de si mesmas e das demais, pensar diferente e pensar juntos.
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Três temas me parecem básicos para a reconstrução da democracia. Poderiam ser debatidos aqui. Um é a democracia através da comunicação. Outro é que tipo de instituições democráticas e de reforma democrática necessitamos. Por último, se existem outras formas de democracia.
A comunicação é fundamental, pois é a base da relação entre poder e contrapoder. A democratização da comunicação é o princípio da democratização das instituições da sociedade. A comunicação para toda a sociedade é um direito fundamental: a comunicação livre, autônoma e para todo o mundo é um direito tão fundamental quanto a saúde e a educação. Esse direito concretiza-se hoje pela internet e pelas redes móveis como direito humano fundamental.
O acesso à internet precisa ser universal. Também o acesso à telefonia foi subsidiado. É essencial multiplicar pontos de acesso.
As pessoas precisam poder acessar quando necessitarem
O acesso à rede precisa ser universal e subsidiado. A forma de financiar este direito depende das negociações entre os reguladores públicos e as empresas de telecomunicação. Na história das telecomunicações, o acesso à telefonia foi subsidiado em diversos países e o mesmo pode ser feito com a internet. Também é essencial a multiplicação de pontos de acesso público e gratuito, nos centros sociais, nas escolas, nas bibliotecas, para que a internet seja sempre algo possível para todos. As pessoas precisam poder acessar quanto necessitarem. Porém, isso não significa que só devemos nos comunicar pela internet. Por exemplo, a ideia de votar pela internet é um gravíssimo atentado à democracia, e a ideia de que as consultas médicas só deveriam ser feitas pela internet também é prejudicial. É preciso ter opções. O direito fundamental é ao acesso. Ele permite que todos se comuniquem com todos; permite a construção de uma rede em função de nossos projetos, nossos interesses e nossos sonhos.
Além disso, é preciso lutar pela liberdade de internet, pois o acesso à internet não é o mesmo que uma internet livre. Acabar com a censura, acabar com a invasão de privacidade, que é uma prática constante, e a livre circulação de conteúdos digitais. Implica ir a quem está por trás das leis: empresas de conteúdos culturais e os grupos de pressão que atuam para que não haja liberdade na internet (…).
Também é preciso que se crie instituições e processos democráticos de forma concreta. Existem medidas muito concretas para uma reforma política e institucional.. A reforma na lei eleitoral para que não se discrimine as minorias políticas, e a possibilidade de contabilizar votos nulos e brancos. Como fazê-lo? Para isso, é preciso imaginação. Mas acredito que a ideia de representar os votos nulos e brancos no parlamento é muito interessante. Entre outras coisas, porque nas eleições de Barcelona, por exemplo, eles somam quase 7%.
A possibilidade de eleger pessoas não filiadas a partidos é básica. Um dos maiores escândalos da democracia é que se vote apenas em um partido. (…) Infelizmente, ninguém diz nada sobre isso, tudo continua igual, porque os que podem mudar são aqueles que se beneficiam desse sistema.
Quanto ao governo, insisto na transparência informativa absoluta pela internet. Tudo o que os cidadãos têm o direito a saber, tem que estar na internet, acessível. Mas não em letras pequenas em cinza, e sim como um sistema dinâmico, usando técnicas como as da publicidade, que torna as informações compreensíveis. Dessa forma se abriria a possibilidade de começar a construir alguma confiança nas instituições democráticas.
A internet deveria se utilizada em processos participativos e de consulta.
A participação precisa ser mais que presenciar uma
reunião burocrática, ao final de um dia de trabalho
As enormes possibilidades da internet também deveriam ser utilizadas para processos participativos e de consulta, em uma grande quantidade de problemas concretos, particularmente em nível municipal. A democracia participativa pode ser muito ampliada, se puder ir além da presença em uma comissão municipal burocrática, depois de um cansativo dia de trabalho. Se os processos de participação fossem estendidos a internet, inclusive com voto indicativo, a democracia poderia ser mais abrangente. Os representantes políticos teriam que ser submetidos a organismos que os supervisionem, mas isso daria muito trabalho. Insisto nesse ponto que as propostas do acampamento são muito precisas e vale a pena pensar nelas, refletir sobre elas e debatê-las.
Mas há algo mais importante. É a criação de novas formas de democracia, a partir dos processos de debates em curso. O mais importante, na minha opinião, não é o que se propõe, mas como se propõe. Não é tanto o que se faz, mas como se faz. Pois é aí que está a questão. Uma democracia futura não sairá de documentos, por mais completos e bem formulados que sejam. Sairá de práticas coletivas, que vão experimentando novos mecanismos de deliberação, representação e decisão. Vamos aprendendo no caminho. Esse é o método, diria eu, político e científico. Através de experiências, pois é muito difícil que alguém invente um sistema novo, que substituiria o outro sem que haja debates e sem que as pessoas saibam exatamente o que está acontecendo. Daí a importância do que está sendo feito aqui e em outras ocupações de praças:, a participação em comissões, a coordenação de comissões e o poder de decisão das assembleias; que cada coletivo específico gere suas próprias formas que podem ser controladas pelas pessoas que participam. É o que está sendo feito aqui, mas não apenas aqui, não apenas nos acampamentos, mas na sociedade.
O resultado disso seria a substituição da democracia dos partidos para a democracia das pessoas. É essencial o que já está sendo feito, que não haja líderes no processo, que se troquem as posições de influência, que se mantenha a abertura total, e tolerância total ao debate. O direito à estupidez é um direito humano fundamental, e deve ser respeitado. Que não haja mecanismos formais de militância, como não há aqui, que se confie, sobretudo, na capacidade coletiva, por interação, por uma estrutura em rede, de autocorreção dos defeitos, no conjunto da sociedade. Isso não é uma utopia, isso está sendo feito aqui, e se é feito aqui, pode ser feito na sociedade.
Não defendo isso como modelo único, mas em uma fase de experimentação. Essa forma de participação permite ver a emergência de modelos distintos, na prática. É um processo lento, porque queremos ir longe. Vamos fazer o que gostamos, vamos criar uma democracia, tranquilamente, e não depressa, como o é a vida hoje em dia.
Minha grande experiência com movimentos sociais – começando com maio de 68, do qual participei ativamente – me diz que aqui, e que em todos os acampamentos ao redor do mundo, existem raízes. Porque quaisquer que sejam as formas, elas se expandirão. Impulsionarão mudanças profundas, precisamente por ser este um movimento de pessoas, não de organizações. E as pessoas não são criadas ou destruídas, mas as pessoas se transformam.
Mas não será fácil. E quando os poderes se derem conta de que as praças falam sério – pois ainda não se dão conta disso – reagirão, provavelmente de forma violenta. Existem muitos interesses em jogo. Por isso é essencial que esse processo lento e profundo de reconstrução da democracia viva com um princípio fundamental. Um imperativo categórico, que na minha opinião, já se expressa aqui, que é a não violência.
Depois de 11 dias de acampamentos por toda a Espanha, não houve nenhum incidente violento. Por isso, a violência provável do poder deve ter como resposta a não-violência das pessoas. E para isso é preciso muita coragem, porque responder a violência com violência é uma reação de medo. Será preciso trabalhar muito com as pessoas que têm tanto medo, que não o superam, e que se tornam violentas. É preciso ir a um nível superior, o da superação do medo a partir da aceitação medo. A única forma de superar o medo é sair da solidão, juntar-se com os demais, e se superarem o medo sem violência, tudo é possível.
Se precisasse criar um slogan, ele seria: medrosos do mundo inteiro, uni-vos pela rede, pois só podem perder seu medo.




Guerras psi

Publicada há 50 anos, obra de Michel Foucault defende 
que a loucura é uma construção histórica e cultural
por Joel Birman
Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora francesa Plon, a obra de Foucault já tem a duração de 50 anos. Se foi intitulada inicialmente como Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica, em contrapartida, na edição de 1972, pela Gallimard, o livro foi publicado com o título História da Loucura na Idade Clássica, que permanece até hoje.
A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos anos 1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa internação asilar estava em pauta.
Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norte-americana. Daí porque foi no mesmo contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra Szasz publicou O Mito da Doença Mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos (1959), ambos nos Estados Unidos.
Logo em seguida iniciou-se o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a concepção da loucura como enfermidade mental.
Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica que o distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no qual criticava a tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com o discurso teórico da história, situada esta na escala da longa duração.
Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente a genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da existência.
Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico foram problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de pesquisa – a razão, a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito – tinham um alcance estratégico para a leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição ocidental, iniciada no Renascimento e desdobrando-se na modernidade.
Portanto, a História da Loucura na Idade Clássica foi o pontapé inicial conduzido por Foucault na longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrando-se na oposição razão e desrazão.
O livro transformou-se num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências humanas, as ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial crítico, de maneira que pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos.
Pressupostos filosóficos
Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra?
Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault sustentava que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo assim com uma leitura naturalista dela.
Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura.
Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a 
experiência da loucura foi objeto de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio. Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse silenciamento para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito, sem verdade e marcada pela ausência da obra.
Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário dos loucos por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e política fundamental, mas que não foram necessariamente na direção de constituir uma sociedade democrática, como suporiam posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do Espírito Humano – A Instituição Asilar e a Revolução Democrática (1980).
Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então, denominou de psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado “Concepção Ideológica da História da Loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo 2, 1971).
Da mesma forma, Ellenberger, em A Descoberta do Inconsciente (1972), não podia aceitar que a loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras sociais e culturais.
Entre Bosch e Erasmo
No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura de maneira fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo em Elogio à Loucura.
Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já estaria domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo da livre circulação da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de verdade – e o tempo posterior no qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e à verdade, caracterizando-se como ausência de obra.
Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciou-se assim a grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia moderna e a configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de Descartes, forjou a razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência.
Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi que existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas Meditações (1641) e a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos aqueles inscritos no registro da desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos, traidores etc.
Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já que Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a loucura não seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem sujeito nem tampouco verdade.
O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante séculos em nossa tradição, até bem recentemente.
Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais sejam: a crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não existiria nela nem sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade e pela possibilidade de produção de obra.
Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica manteve-se sempre marginal nos registros da literatura (Holderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e Artaud), da pintura (Van Gogh e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade puderam efetivamente se conjugar.
Terceira margem da loucura
É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para parafrasear Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do Ocidente. Por isso mesmo, a literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da tradição trágica na modernidade.
Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma genealogia da punição, em Vigiar e Punir (1974), 
e uma genealogia da sexualidade 
baseada no dispositivo da confissão, em A Vontade do Saber (1976).
Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria centrado na figura do alienista.
Assim, descartando-se das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço psicanalítico centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do sujeito se realizariam desde então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em continuidade com o dispositivo psiquiátrico do tratamento moral.
Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da Loucura (1961-1986)”, no colóquio comemorativo dos 30 anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée, 1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então obras de história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da loucura.
A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica baseada em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da psicanálise, que teve na obra de Roudinesco sua grande realização.
Debate com Derrida
Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizou-se no campo da filosofia, tendo em Derrida o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de Philosophie, intitulada “Cogito e História da Loucura”, Derrida não aceitou o pecado metafísico de Foucault de inscrever a filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão.
Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer circunstância. Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a invenção da psicanálise, na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa tradição, com a formulação do conceito do inconsciente.
Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas que, quando formulou a História da Loucura na Idade Clássica, estava rompendo com a tradição filosófica de que Derrida era o porta-voz em sua crítica, na medida em que retirara do discurso filosófico qualquer superioridade 
teórica sobre os demais discursos e que procurara colocar em evidência, com o conceito de “episteme”, a existência de um inconsciente do saber.
Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer Justiça a Freud”, indicando as múltiplas ambiguidades de Foucault face à psicanálise.
Pode-se afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro-acontecimento, mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca.
Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em questão com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão ainda em pauta, quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da loucura na atualidade e onde o discurso da loucura é francamente interditado.
Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso fazer justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso Schreber inscreveu a loucura no campo do discurso.
Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o delírio, como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se inscreveria na tradição trágica sobre a loucura.
Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força bioquímicas?
Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor-adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj