segunda-feira, 29 de abril de 2013

"Seja o primeiro, seja o mais inteligente ou trapaceie". Que lógica é esta?


crise do capitalismo pode ser retratada sob mais de um ponto de vista. Em geral, é muito analisada a partir das grandes linhas da macroeconomia, integrada numa leitura histórica de suas causas e das consequências de decisões técnicas e burocráticas, nos mais diversos governos, pressionados pelos interesses das grandes transnacionais. E se, de repente, utilizando-se um binóculo, a crise fosse vista a partir dos indivíduos presentes dentro de uma grande corporação, permeados pelo que a ideologia capitalista tem de mais nodal? Como poderiam ser imaginados os dramas desses indivíduos? Em certa medida, é isto que o filme “Margin Call. O dia antes do fim”, do diretor J. C. Chandor, procura abordar.
Essa abordagem foi debatida no ciclo “A crise do Capitalismo no Cinema”, promovido pelo Cepat/CJ-Cias, em parceria com a Pastoral e o Curso de Economia da PUCPR, em Curitiba, além do nosso já histórico parceiro Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Para comentar este filme, tivemos a presença do professor Gilberto Faggion (foto), integrante do IHU e do corpo docente da Unisinos.
Margin Call é um drama, uma ficção que procura evidenciar a crise financeira a partir dos indivíduos, de suas decisões, de suas angústias pessoais frente ao que consideram o mais importante para suas vidas: o dinheiro, o poder e a ambição. A partir do momento em que alguns personagens percebem que a instituição financeira, na qual trabalham, caminha para a falência total, diante de uma crise insolúvel que coloca em risco seus salários exorbitantes e suas margens de lucros, escancara-se a verdadeira crise moral desses grandes executivos.
Neste sentido, o professor Faggion enfatizou o ambiente sombrio e escuro do escritório, retratado no filme, nas vésperas de sua falência. Tal cenário faz lembrar as decisões que são tomadas às escuras, onde são definidos os rumos que serão tomados, as cabeças que serão cortadas de uma grande empresa. A marca da impessoalidade, da indiferença e da frieza constroi um ambiente depressivo e triste. Na verdade, são executivos muito ricos em dinheiro, mas, ao mesmo tempo, muito pobres em humanismo.
Aos poucos, diante do cenário emergente do colapso da instituição, os mitos vão se quebrando, como na mensagem explícita daquele que está no auge da pirâmide dos mandos e desmandos: “não foi minha inteligência que me trouxe aqui”. Dentro disto, a ordem é obedecer, pois os ditames da empresa estão acima de qualquer possibilidade de fraternidade nas relações pessoais. Assim como, também, quando o risco de prejuízo nos lucros é inexorável, não há mais meritocracia que dê conta de justificar a apregoada racionalidade de uma grande corporação.
Como, então, resistir aos assédios do poder, quando apenas se exige de você um simples sim, sem questionamento? Quando está em jogo a permanência de seus privilégios e status na hierarquia de uma sociedade? É neste ponto que o professor Faggion foi categórico. Mesmo diante de tamanha pressão corrosiva, o indivíduo ainda é o responsável por sua decisão, seja ela a que for. Ser ético, neste sentido, exige dizer não para “uma vontade de potência generalizada”, muito presente neste mundo de hierarquias e ambições. 
Faggion destacou algumas máximas do filme, como os imperativos: “seja o primeiro, seja o mais inteligente ou trapaceie”. O que faz lembrar que, em momentos de crise, muitos executivos recebem bônus ainda maiores do que em outras situações. E, ainda neste contexto, da anulação do princípio ético, os prejuízos sempre se tornam públicos e os lucros privados.
Qual a concepção de ser humano por trás dessa trama? O que esperar de pessoas absorvidas por esta lógica? Como bem observou um dos participantes deste ciclo de cinema, estes grandes executivos “ao administrarem uma economia podre, apodrecem juntos”.
Enfim, não dá para ignorar a carga pessimista que este filme joga sobre os ombros das pessoas. Inclusive, no próprio debate, entre o professor Faggion e os que estavam presentes, esse ar melancólico se espraiou. Isto não quer dizer que não existem alternativas para esse modo de sociabilidade capitalista, mas apenas quer atentar que as presas do capitalismo sempre estão próximas de nosso cangote e que, num vacilo qualquer, a indiferença, a ambição e poder podem nos devorar.
Texto de Jonas Jorge da Silva e fotos de Ana Abranoski, ambos da equipe do Cepat/CJ-Cias.

‘A redução da maioridade penal só favorece o crime’


"Tenho uma posição consolidada há muitos anos: sou contra a redução da maioridade penal. A Constituição prevê inimputabilidade penal até os 18 anos de idade. É um direito consagrado e uma cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Nem mesmo uma emenda pode mudar isso. Qualquer tentativa de redução é inconstitucional. Essa é uma discussão descabida do ponto de vista jurídico. No mérito, também sou contra. Mesmo que pudesse, seria contra. Diante da situação carcerária que temos no Brasil, a redução da maioridade penal só vai agravar o problema", afirmaJosé Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, em entrevista publicada na coluna de Sônia Racy, jornalista, O Estado de S. Paulo, 29-04-2013.
O ministro explica a sua posição: "Nossos presídios são verdadeiras escolas de criminalidade. Muitas vezes, pessoas entram nos presídios por terem cometido delitos de pequeno potencial ofensivo e, pelas condições carcerárias, acabam ingressando em grandes organizações criminosas. Porque, para sobreviver, é preciso entrar no crime organizado".
Segundo ele, "temos de melhorar nosso sistema prisional. Reduzir a maioridade penal significa negar a possibilidade de dar um tratamento melhor para um adolescente. Vai favorecer as organizações criminosas e criar piores condições. Boa parte da violência no Brasil, hoje, tem a ver com essas organizações que comandam o crime de dentro dos presídios. Quem não quer perceber isso é alienado da realidade. Quem quer encontrar outras explicações para os fatos ignora que, nos presídios brasileiros, existem os grandes comandos de criminalidade. Criar condições para que um jovem vá para esses locais, independentemente do delito cometido, é favorecer o crescimento dessa criminalidade e dessas organizações. É uma política equivocada e que trará efeitos colaterais gravíssimos".
A solução, explica o ministro, consiste em "desenvolver políticas em diversos campos. A criminalidade não tem respostas simplistas. Quem achar que, com uma varinha mágica, com um projeto de lei, vai resolver o problema da criminalidade, está escondendo da sociedade os reais problemas que a afligem. Por que existe a criminalidade? Há vários fatores. A exclusão social e a impunidade são dois deles. Três: é preciso combater os grupos de extermínio. Quatro: o crime organizado se enfrenta com coragem e determinação, não com subterfúgios. O governo federal tem desenvolvido programas em todas essas áreas. Mas é uma luta difícil e que tem de ser discutida com profundidade, sem políticas cosméticas".

Planalto apoia internação à força de viciado


Após reunião no Palácio do Planalto, o governo chegou a um consenso e fechou questão em relação à internação compulsória de usuários de drogas, chamada de "involuntária". No encontro, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, disse que o governo quer dar uma resposta à sociedade quanto ao "grave problema" das drogas.
A reportagem é de Tânia Monteiro e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 26-04-2013.
A internação deverá ser permitida em todo o País, desde que seja feita com a família pedindo e o médico determinando a internação. Em caso de ausência absoluta de um familiar, a internação involuntária poderá ser feita por pedido de um agente público vinculado ao sistema de saúde ou sistema de proteção social. A especificação foi feita para evitar que a internação involuntária possa ser pedida por um agente policial.
A medida está no projeto do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), que deve ser votado no dia 8. Ele defende a internação involuntária do dependente de drogas como forma de antecipar o início do tratamento. O deputado lembrou que esse tipo de internação só poderá ser feito em ambiente hospitalar e pelo período de 15 dias a seis meses. O prazo máximo foi ampliado por acordo partidário.
Postos de saúde
Segundo o parlamentar, na reunião no Planalto, o governo pediu que fosse incluído no texto que todos os postos de saúde sejam obrigados a encaminhar a internação involuntária, tornando-se porta de entrada para o atendimento. Com isso, o posto de saúde não poderá se negar a fazer o atendimento.
Nesse caso, o médico ouvirá a família, avaliará o caso e, após assinatura do termo de pedido de internação dos familiares, ele determinará a internação e encaminhará o paciente para o local específico. O texto prevê ainda que, em caso de internação involuntária, em até 72 horas o Ministério Público terá de ser informado sobre a entrada do paciente, assim como ser comunicado da alta.
A internação involuntária é um tema polêmico e sofre crítica de alguns setores da sociedade, uma vez que permite que o dependente químico seja internado para tratamento sem que um juiz autorize. No caso das comunidades terapêuticas, por exemplo, as internações só podem ser voluntárias.

Nova Educação: que papel terá o professor?



Professor-Designer-de-Curriculo
Ele nunca reassumirá condição de fonte do saber. Fará algo muito mais refinado: identificar potencialidades dos alunos e orientar sua pesquisa
Por Vagner Alencar, no Porvir
O termo é desconhecido no Brasil, mas é bom você já ir se familiarizando com ele. O professor tradicional – esse com o qual estudamos anos e que conhecemos hoje – vem gradativamente se transformando no que em algumas escolas por aqui, mas mais intensamente nos Estados Unidos, chamam de designer de currículo. A principal função desse “novo” profissional está a de desenvolver currículos e projetos interdisciplinares, integrando às novas tecnologias. “O professor designer de currículo é a expressão maior e mais completa do mestre contemporâneo. Vai além de ministrar o conteúdo estrito senso, mas é também responsável por preparar o educando para o hábito de aprender a aprender, desenvolvendo habilidades de aprendizagem que são consideradas imprescindíveis aos profissionais e cidadãos em um mundo centrado na inovação”, afirma Ronaldo Mota, ex-secretário Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e atualmente professor visitante do Instituto de Educação da Universidade de Londres.
Esses profissionais tanto podem se dedicar exclusivamente ao design de currículo quanto podem ser professores que intercalam essa função com sua prática de sala de aula. De acordo com Mota, eles poderão, por exemplo, criar portais interativos para abrigar suas videoaulas e outros recursos multimídia ou ainda estimular os estudantes para que criem seus próprios blogs. Os portais poderão servir como ambientes – além da sala de aula – para relação permanente entre o educador e os educandos, bem como os educandos entre si.
Mota, que também foi Secretário Nacional de Educação Superior, aponta como outra nova demanda desses designers de currículo a criação de Moocs (Massive Open On-line Course, cursos on-line gratuitos e em grande escala) . “Isso vai ser uma enorme revolução, uma vez que o professor tradicional gradativamente se transformará no designer educacional, que vai precisar dominar a tecnologia para produzir essas aulas”, afirma.
Mas nem tudo é tecnologia. Em escolas onde o modelo vigente inclui aprendizado baseado por projeto, por exemplo, esse profissional cria aulas que envolvem ações transdisciplinares. Na norte-americana High Tech High, que desenvolve esse modelo de ensino, os docentes se reúnem diariamente para discutir como um determinado conteúdo pode se tornar um projeto que envolva a sua disciplina e as dos demais docentes. Um dos pilares da instituição é exatamente ter o professor como um designer, função que empodera o educador e lhe dá a responsabilidade de ser o guia de sua classe.
Na instituição, as aulas são estruturadas em blocos mais longos – ao contrário dos tradicionais tempos de 50 minutos – com o intuito de integrar o currículo, unificando as matérias e facilitando o aprendizado dos estudantes. Física e matemática são ensinadas juntas, assim como história, filosofia e língua inglesa são aglomeradas em única disciplina: humanidades. “Acreditamos na integração do currículo. Em vez de ir a uma aula de história e uma de inglês, o aluno tem um professor de humanidades. A escola tem um time de professores trabalhando para criar projetos juntos. Existe um aluno que aprende colaborativamente, com tutores virtuais, sozinhos, com material impresso ou não. Nós damos a ele a oportunidade de estudar em cada uma dessas modalidades, de acordo com o que cada um precisa”, afirmou Melissa Agudelo durante o Transformar 2013.
Assim como na High Tech High, a rede Summit Public Schools – grupo de escolas californianas que está ajudando jovens de famílias pobres a ingressar na universidade – usa momentos sistemáticos de encontros entre docentes para fazer o design de seu currículo. Nas escolas, os professores desenvolvem projetos de aprendizado interdisciplinares, que normalmente associam as disciplinas curriculares ao cotidiano dos estudantes, para que façam sentido ao que estão aprendendo, com o objetivo de fazê-los pensar criticamente, além de desenvolver suas habilidades cognitivas.
A rede também está construindo sua própria plataforma de aprendizado on-line e são os professores os responsáveis por inserir conteúdos nesse ambiente virtual. A partir do próximo semestre, as escolas Summit vão adotar o modelo de blended learning – conhecido também como ensino híbrido – o que irá ajudar os designers de currículo a trabalharem mais integradamente, já que precisarão se elaborar juntos os conteúdos baseados tanto em ferramentas on-line quanto em momentos presenciais.

Mafalda e a poderosa crítica de valores


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Argentina e universal, personagem de Quino segue jovem aos 50: sua ironia permanece viva, numa sociedade cada vez mais desigual
Por Carlos Eduardo Rebuá Oliveira
Difícil encontrar alguém que não conheça uma baixinha argentina chamadaMafalda. Seja como souvenir, estampando camisas e cartazes do movimento estudantil, ou através dos já clássicos livros-coletânea, a quase “cinquentona” menina insiste em se fazer presente. Apesar da curta trajetória (1964 a 1973), trata-se da personagem de histórias em quadrinhos (hq’s) mais popular da Argentina e uma das mais conhecidas no mundo.
Ao contrário do que muitos pensam, Mafalda não foi contemporânea da ditadura do triunvirato Videla, Massera e Agosti, conhecida como Proceso de Reorganización Nacional (1976-1983) – um dos seis golpes civil-militares pelos quais aquele país passou no século XX, com um saldo de cerca de trinta mil mortos/desaparecidos. A personagem de Quino“nasceu” na conturbada década de 1960, durante o governo de Arturo Umberto Illia (1963-1966), derrubado por outro golpe – a chamadaRevolução Argentina,que colocou no poder os generais Onganía, Levingston e LanusseMais exatamente, o “nascimento” de Mafalda se dá no mesmo ano em que no Brasil é deflagrado o Golpe que duraria vinte e um anos.
Em seu curto período de vida, Mafalda e sua turma (ela só “existe” a partir das relações que constrói com a família e com os amigos Manolito, Miguelito, Susanita, Felipe, Libertad ) “assistiram” a inúmeros acontecimentos significativos – a caça aos comunistas pós-Revolução Cubana; as ditaduras civil-militares na América do Sul, também com forte ingerência estadunidense; o assassinato de líderes como Martin Luther King (em 1968) e Malcom X (em 1965), bem como o de Che Guevara (1967), na Bolívia, com participação da CIA; o Maio de 1968 na França, sob o lema “a imaginação no poder”, que incendiou a juventude; o Festival de Woodstock (1969), com seu pacifismo à moda flower power ; a Primavera de Praga, que tentou construir uma democracia socialista na Tchecoslováquia de Dubcek; a derrota estadunidense no Vietnã, à custa de milhares de vidas dos dois lados; a eleição de Salvador Allende no Chile (1970), a chegada do homem (estadunidense) à Lua (em 1969), no contexto da corrida espacial com a URSS; o fim dos Beatles (fato que sem dúvida afetou profundamente Mafalda…) e o tricampeonato da seleção brasileira de futebol no México (o que também não deve ter agradado os conterrâneos da “baixinha”), ambos em 1970.
Mafalda na aula de História
Até há pouco tempo, as histórias em quadrinhos “entravam” na escola pela “porta dos fundos” e, na universidade, após um pedido de desculpas. Eram considerados uma subarte, uma subliteratura, representando uma linguagem “menor” e assumindo um caráter apenas de brincadeira. Felizmente, muita coisa mudou nestes últimos trinta anos no que diz respeito ao olhar acadêmico sobre as hq’s.
A criticidade na aula de História é requisito fundamental, bem como a associação entre processos históricos e a identificação de rupturas e permanências ao longo do tempo. Mafalda faz isso a todo instante: analisa criticamente a realidade, sem buscar uma pretensa neutralidade. (Esse é outro requisito importante nos debates realizados numa aula de História: tomar partido.) Ela não aceita o mundo que “recebeu” e o questiona constantemente. Ora tem atitudes de uma criança “típica” (que tem medo, depende dos pais, é ingênua…), ora age como uma criança excepcional (não no sentido de superdotada) e constrói belas metáforas, “saindo” da dimensão do concreto que caracteriza a criança em seus anos iniciais. Lúcida, crítica, consegue discutir a Guerra do Vietnã, por exemplo, e muitas vezes colocar os adultos em situações embaraçosas.
Em minha dissertação, defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, intitulada “Mafalda na aula de História: a crítica aos elementos característicos da sociedade burguesa e a construção coletiva de sentidos contra-hegemônicos”, analisei Mafalda buscando investigar como é possível, a partir da baixinha argentina, “tocar” em elementos basilares do tipo de sociedade da qual fazemos parte, grosso modo, há mais de duzentos anos: o individualismo, a democracia burguesa, o estímulo ao consumo, a valorização do lucro, a propriedade privada, o progresso, o livre-comércio, a naturalização das diferenças, a desumanização e a competição.
Como professor da Educação Básica (Ensinos Fundamental e Médio) e do Ensino Superior, a experiência com hq’s tem sido muito rica. Como um apaixonado porMafalda, gosto de usá-la em provas, debates, trabalhos, tentando “extrair” ao máximo sua criticidade, suas indagações diante de um mundo confuso e “ao contrário”. O curioso é que Mafalda – uma personagem criança que não foi produzida pensando no público infantil – dialoga com diferentes faixas etárias. A partir dela é possível, por exemplo, tanto debater a democracia grega com o sexto ano como problematizar o conceito de alienação, a partir da mídia e do consumo, com uma turma de graduação em Pedagogia. Eis as tiras usadas nesses casos:
 tira Mafalda
tiraMafalda2_maior
As hq’s são recursos poderosos, ferramentas importantes na relação de ensinar-aprender. E Mafalda é um exemplo paradigmático, dada a atualidade da crítica e o alcance da narrativa tecida pelo artista argentino. Todavia, é fundamental lembrar que as hq’s sozinhas não tornam uma aula mais ou menos atraente, tampouco transmitem um conteúdo em toda a sua integridade.
A genialidade de Quino
Quino é um dos artistas mais completos que surgiram em nuestra America. EmboraMafalda não tenha sido editada na forma de gibi (como a Turma da Mônica, por exemplo), seja datada (trata da Guerra Fria, das ditaduras na América Latina, etc.) e tenha durado apenas sete anos, a personagem fez e continua a fazer sucesso, tendo sido traduzida em países como Japão, Noruega, Austrália – sociedades muito distintas das existentes em nosso continente.
O enorme alcance da obra de Quino (cuja genialidade vai muito além de Mafalda ) deve-se ao fato de que o artista argentino abordou questões “permanentes”, como a da liberdade ou da soberania de um povo, por exemplo. Esta talvez seja a marca fundamental de um gênio – seja Beethoven, Dostoiévski ou… Quino.
Ao responder pergunta sobre se é possível modificar algo através do humor, Quino certa vez afirmou: “Não. Acho que não. Mas ajuda. É aquele pequeno grão de areia com o qual contribuímos para que as coisas mudem”.1Não tenho dúvidas de queMafalda e sua turma representam importantes “grãos de areia” na construção de outras leituras/interpretações de nossa realidade, e logo, no limite, na construção de um outro mundo possível e necessário.

Carlos Eduardo Rebuá Oliveira, licenciado em História pela UFF, mestre e doutorando em Educação, é professor de ensino superior e da educação básica nas redes pública e privada.
Referências
QUINO. Toda Mafalda. Rio de Janeiro: Martins Fontes Editora, 2002.
REBUÁ, Eduardo. Mafalda na aula de História: a crítica aos elementos característicos da sociedade burguesa e a construção coletiva de sentidos contra-hegemônicos.Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ProPEd/UERJ. Rio de Janeiro, 2011.
1 Em entrevista traduzida para o português pelo site http://www.mafalda.net/(sem data).

Quem resgatará a indústria farmacêutica


Expensive medicine

Pode ser você: vêm aí testosterona spray, ritalina plus, patologização da insônia, “controle de distúrbios imunológicos” e outras promessas fármaco-publicitárias…
 Por Martha Rosenberg, no Alternet | Tradução: Gabriela Leite
Está chegando ao fim, para a indústria farmacêutica mundial, a farra de lucros com alguns dos medicamentos mais vendidos. Nos Estados Unidos, expiraram as patentes de comprimidos como LipitorSeroquelZyprexaSingulairConcerta. Mas não se preocupe, Wall Street. A indústria farmacêutica não vai desapontar suas expectativas de ganhos só porque pouca ou nenhuma droga nova está surgindo e porque falhou na sua razão mesma de existir. Eis aqui seis novas iniciativas do marketing farmacêutico que vão garantir que as expectativas dos investidores continuem altas, par-e-passo com as mensalidades dos seguros-saúde. O segredo? Reciclar drogas antigas e descreditadas e explorar o marketing de doenças para vender algumas poucas novas drogas.
1. Repaginando a Ritalina
Agora que a indústria farmacêutica foi bem sucedida ao conseguir que cinco milhões de crianças de quatro a oito milhoes de adultos fossem diagnosticados com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), está procurando novos mercados para as drogas. Um novo uso da Ritalina (metilfenidato), a avó das drogas para TDAH, poderia ser para tratar transtornos alimentares. Pesquisadores dizem que uma mulher que sofreu de bulimia nervosa, transtorno bipolar I, dependência de cocaína e álcool, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e transtorno do pânico “conseguiu uma remissão sustentada (por mais de um ano)” quando o metilfenidato foi adicionado à sua lista de remédios.
Mas também existem as grávidas. Um novo artigo sugere que tirar o metilfenidato durante a gravidez de uma mulher pode “representar risco significativo” e que, “em todos os casos, as crianças se desenvolveram normalmente e nenhum efeito adverso foi relatado,” apesar de terem sido expostas no útero. Sim, crianças podem receber medicamentos para TDAH na mais tenra idade: ainda como fetos.
A indústria farmacêutica também está de olho nos idosos, como um novo mercado para as drogas que tratam TDAH. O metilfenidato pode “melhorar a função da caminhada nos mais velhos”, escreveram pesquisadores recentemente. E uma grande clínica patrocinada pela Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg está a caminho de descobrir se o metilfenidato pode reduzir a apatia em pacientes com Alzheimer. É claro que muitos pacientes com esse mal não têm apatia, mas agitação e agressividade; estes serão excluídos.
2) Reposição hormonal masculina
Mulheres acima de 40 anos devem sentir um élan de justiça médica, diante do novo impulso para o tratamento do “Baixo T” nos homens, uma “doença” recente que agora está sendo agressivamente comercializada, incentivando a reposição de testosterona. Por mais de 50 anos, as publicações médicas foram implacáveis em dizer às mulheres que elas estavam “sobrevivendo aos seus ovários” (frase de propaganda real) e que a única esperança para manter a aparência, o marido e a sanidade era a reposição hormonal. Agora, são os homens que estão ouvindo que a decaída no desempenho sexual e na energia, perda de massa muscular e ganho de peso os colocam na mesma posição. A lacuna em ambas campanhas de marketing é o fato de que pessoas não ficam velhas porque perdem hormônios; elas perdem hormônios porque estão ficando velhas.
Muitos produtos de reposição de testosterona têm sido aprovados pela FDA [Food and Drug Administration, agência reguladora da indústria farmacêutica nos Estados Unidos]: pílulas, injeções e adesivos a géis e soluções para uso tópico. Em novembro, foi aprovado o primeiro produto de reposição de testosterona feito para ser aplicado nas axilas, como um desodorante.
Os produtos de TRH (terapia de reposição hormonal) masculinos também implicamriscos. Eles podem agravar problemas benignos de próstata, causar falha do coração, apneia, toxidade hepática e possivelmente estimular o câncer de próstata, apesar de este permanecer como um risco teórico. Testosterona injetada tem sido associada a embolias e reações alérgicas extremas (anafilaxia), sendo que ambas podem ser fatais. Homens que tomam Propecia contra a perda de cabelo podem especialmente desenvolver baixa testosterona, o que pode não ser reversível, pois reduz-se uma enzima envolvida na síntese do hormônio.
3) Tratar dependentes de álcool e drogas como doentes mentais que precisam de vacinas
Uma das poucas coisas boas no alcoolismo e na adição às drogas é que eles podem ser tratados de graça. Programas de doze passos como o dos Alcoólicos Anônimos utilizam grupos de apoio em vez de drogas, pessoal treinado ou seguro-saúde – e funciona. Não surpreende que as milhões de pessoas que se recuperam sem a ajuda da indústria farmacêutica sejam o seu mais recente alvo, na tentativa de alavancar receitas. Cada vez mais, as corporações estão pressionando clínicas de reabilitação e médicos a imputar diagnósticos de doença mental a pacientes em recuperação, para vender medicamentos caros.
Pior, Nora Volkow, a chefe do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos, está conduzindo experimentos cruéis em primatas na tentativa de desenvolver uma vacina para alcoolismo ou dependência. Existe algum alcoólico ou viciado no mundo que tomaria uma dessas vacinas? Ela não sabe que bebidas e drogas são divertidas (até determinado momento…) e que ninguém quer parar com elas antes da festa acabar? Ela não sabe que quando beber e usar drogas deixa de ser divertido, uma coisa chamada negação se abate e os aditos novamente não vão tomar sua vacina?
Essas vacinas para vícios serão vendidas a pessoas “em risco” de dependência com base em seu histórico familiar e varreduras de seu cérebros, o que soa um pouco, digamos, não-voluntário. E a comercialização de tratamentos precoces agressivos para doenças que pessoas nem têm ainda (“pré-osteoporose”, “pré-diabetes”, “pré-asma” e “pré-doenças mentais”) é um modelo de negócio infalível para a indústria farmacêutica porque as pessoas nunca saberão sequer se vão precisar dessas drogas – ou se precisam agora.
4) Patologizar a insônia
A insônia tem sido uma mina de ouro para a indústria dos medicamentos. Para encher os bolsos no mercado da insônia, as corporações criaram subcategorias para o problema – crônica, aguda, transitória, de início retardado e no meio-da-noite, assim como o despertar cansado. Sua insônia é tão única quanto você! Tampouco é coincidência que as medicações para “manter acordado” causem insônia e que as drogas para insônia, em razão da ressaca, criem o mercado das drogas para manter acordado.
Agora a indústria está anunciando que a insônia é na verdade um fator de “risco” para adepressão e que “tratar a insônia pode ajudar a tratar a depressão”. O novo Manual de Diagnósticos e Estatística (DSM-5 [Diagnostic and Statistical Manual]) da Associação Norte-Americana de Psiquiatria que saiu em maio [leia mais a respeito, em Outras Palavras] também acaba de patologizar o sono. Considerada a bíblia dos tratamentos com drogas psiquiátricas, a última versão do DSM trouxe uma revisão do modo como a insônia é diagnosticada e classificada. “Se o distúrbio do sono é persistente e prejudica o funcionamento do corpo ao longo do dia, ele deve ser reconhecido e tratado”, escrevem os autores em um artigo na edição de dezembro da Journal of Clinical Psychiatry [Revista de Psiquiatria Clínica].
5) “Vender” doenças imunológicas crônicas
A artrite reumatóide, artrite psoriática, a espondilite anquilosante e a psoríase em placas são transtornos raros, mas você não saberia disso pelos últimos esforços da indústria farmacêutica. Suas condições autoimunes são cada vez mais tratadas com medicamentos frutos de engenharia genética injetáveis como Humira, Remicide,Enbrel e Cimzia, que dão às corporações 20 mil dólares por ano por paciente. Não causa espanto que uma recente campanha publicitária tente convencer as pessoas com dores nas costas “que nunca passam” de que elas realmente têm espondilite anquilosante. Não espanta que a propaganda da “AR” (artrite reumatóide) esteja por todos os lugares e as de remédios para psoríase em placas prometam “pele mais clara” como se fossem cremes de beleza. Em Chicago (EUA), propagandas de drogas caras e injetáveis apareceram em jornais de universidades, como se fossem para a população em geral, não para pessoas com doenças incomuns.
Como tais drogas, chamadas de inibidoras de TNF, suprimem o sistema imunológico, elas atraem super infecções bactericidas e fúnguicas, herpes e cânceres raros, estes principalmente em crianças. Eles estão conectados com o crescimento de hospitalizações, reações alérgicas extremas e eventos cardiovasculares, tudo o que a indústria farmacêutica tenta minimizar. Bloqueadores de TNF também são vendidos para o enfraquecimento dos ossos e asma, condições que iriam raramente garantir seus riscos. Xolair, vendido para asma apesar dos avisos da FDA, recentemente foi muito falado como um grande tratamento para a coceira crônica.
6) A reciclagem do Neurontin
A apreensão da droga Neurontin (gabapentin) não foi o melhor momento da indústria de medicamentos. Uma repartição da Pfizer Inc. foi declarada culpadaem 2008, por promover o remédio para o transtorno bipolar, dores, enxaquecas e para afastar as drogas e o álcool, quando tinha sido aprovado apenas para neuralgia pós-herpética, epilepsia e dor causada por herpes zoster. A multa foi de 430 milhões de dólares. Ops. A Pfizer realmente promoveu os usos ilegais enquanto estava sob inquérito por atividades ilegais relacionadas ao Lipitor; e mais tarde promoveu usos ilegais para uma droga similar, a Lyrica, enquanto estava sob o acordo relacionado ao Neurontin! Ela parece, de fato, incorrigível.
Para vender Neurontin, a Parke-Davis, da Pfizer, lançou um elaborado “plano de publicação”, cujo objetivo era conseguir peças de marketing disfarçadas de ciência, em revistas médicas. Em apenas três anos, a Parke-Davis colocou 13 artigos escritos por fantasmas em publicações de medicina, promovendo usos que estão fora da bula para o Neurontin. Isso incluiu um suplemento no prestigioso Cleveland Clinic Journal of Medicine (Revista Clínica de Medicina de Cleveland, tradução livre), que a empresa transformou em 43 mil reimpressões disseminadas por seus representantes. “Veja, doutor, dizem aqui que…”
E há ainda mais duplicidade. Em 2011, três anos antes do acordo de 430 milhões de dólares, a tentativa da Pfizer chamada STEPS (“Study of Neurontin: Titrate to Effect, Profile of Safety” — “Estudo da Neurontin: dosagem efetiva, perfil de segurança”, tradução livre) foi denunciado por também ser publicidade, e não um estudo científico; era uma ferramenta de vendas criada para inspirar os 772 investigadores que participavam do experimento a prescrever o Neurontin.
Recentemente, os novos usos do remédio para tosse crônicamenopausa einsônia estão aparecendo na literatura científica. Por que ninguém parece acreditar neles?

quarta-feira, 24 de abril de 2013

flecheira.libertária.291


dois irmãos
Eram dois irmãos. Vieram do exterior longínquo para obter cidadania estadunidense. Seus amigos eram pessoas procedentes dos quistos deixados pelo socialismo soviético, recobertos de religiosidades e nacionalismos, que se encontravam eventualmente no país sede das melhorias do mundo. A vida estadunidense lhes ensinou um pouco mais a traçar suas trajetórias de perdedores radicais. A irmandade secreta, própria do terrorismo, ofereceu-lhes a possibilidade da formação de uma irmandade literal composta de dois perdedores radicais individuais. Os irmãos decidiram atirar suas bombas caseiras elementares em evento cívico, e com isso ampliaram o repertório dos atos desesperados e solitários dos jovens perdedores radicais estadunidenses afeitos a metralharem colegas e professores em escolas estruturantes. Explicitaram seu niilismo diante da euforia pelas melhorias sustentáveis. Mostraram que sempre haverá o insustentável, absurdamente violento, e cada vez mais propenso a se diversificar. E que para o insustentável a população quer mesmo é pena de morte. 
niilismo rasteiro
As razões que moveram estes perdedores radicais são irrelevantes. Um está morto e o outro se encontra monitorado no hospital. O governo estadunidense e a mídia com seus comentaristas classificaram este ato como terrorismo, pois ocorreu no chamado espaço público. A distinção é meramente retórica. Os perdedores radicais tendem a aumentar! Viram notícias, expressam o insustentável no limite do espetáculo e põem na cara de cada um o avesso do empreendedorismo de si. Este niilismo rasteiro diz mais a cada jovem do que os programas inclusivos e participativos voltados para efetivar as metas do milênio com cultura de paz. Ou não diz nada, como dizem quase nada as estatísticas maquiadas sobre as mortes regulares de jovens miseráveis entre si e pela polícia. Ou dizem muito sobre a atual incapacidade de formatar o insuperável ressentimento dos conformistas. Ouvimos o clamor por segurança, que quanto mais se aprimora exige mais novas tecnologias blindáveis e paranóias. Houve um tempo em que o niilismo de jovens direcionou o insuportável à guerra aberta contra o Estado e a propriedade. Outros tempos... 
perdedor rotineiro
Na semana passada, em São Paulo, ganhou a dimensão do espetacular o que seria um corriqueiro homicídio de um jovem por outro, caso a vítima não fosse um jovem promissor e seu algoz um simples miserável. Nada houve de similar ao perdedor radical, mas somente a ação corriqueira praticada por um perdedor rotineiro. Os perdedores rotineiros não praticam ações radicais. Quando muito formam suas irmandades para governarem o chamado mundo do crime, a parte constitutiva, escandalosa e irreparável da propriedade conectada à polícia, à justiça e à comunicação. Atacam a si próprios ou ao alvo mais próximo. São incapazes de produzir um levante contra a ordem. Colaboram para que se exija mais segurança! Enquanto isso, seguros mesmos estão os burgueses para os quais a indústria da blindagem destina seus produtos. A parte da sociedade civil organizada ou desorganizada, composta de milhões dos chamados vulneráveis, sobrevive às mínguas dos bens de consumo sonhados conseguidos a mão armada e/ou dos negócios sociais. 

hypomnemata 155


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 155, abril de 2013.

Morte, punição e uma questão urgente

A prisão está cercada. Por juízes, promotores, diretores e o Primeiro Comando da Capital.
Nela não se entra mais facilmente em nome do interesse público em fiscalizar, retratar, analisar. Nem mesmo como matéria jornalística.
O governo da prisão está recomposto segundo os negócios estabelecidos e confirmados entre os que mandam e os que estão ali confinados.
A sociedade civil organizada concorda com a nova gestão fechada da prisão, pois esta é imprescindível para quem não tem mais jeito e pouco se importa com a sobrevivência lá dentro.
A sociedade civil organizada quer esquecer os prisioneiros e não se envolve, propositalmente, com os novos vínculos da prisão com o exterior. Ela não suporta mais rebeliões.
Todavia, a prisão não é mais só um covil de desajustados. Tornou-se espaço para novos negócios lucrativos, novas formas de exploração e sujeições.
Para tal, conta com a obsessão de cada um por mais e mais punições.
Quando as lutas por direitos negligenciam a prisão, cresce a economia e cultura da punição.

a habitação cercada
Casas, edifícios, ruas sem saída hoje em dia estão cercados de muros e grades altas adornadas por concertinas e câmeras de monitoramentos.
Trata-se da materialidade da segurança particular e pública, que tornam indispensáveis polícias de vigilâncias, empresas de seguros, rastreamentos de movimentos irregulares em seus interiores.
Acopla-se a este arsenal a sedimentada subjetividade policialesca e penalizadora que governa crianças e jovens desde bem pequeninos.
A renovação da família, com pletora de direitos, consolidou a cultura do castigo como princípio e meta.
Diante das teses que, no passado, situavam a pobreza relacionada com as infrações, tomou dianteira a tese neoliberal do infrator como portador de desvio moral incorrigível.
Desde então, ouve-se aqui e ali, que a pobreza não é condição da violência, mas sim do déficit moral de cada pobre.
Não há só prisões, mas casas-prisões, subjetividades-prisões, variadas penalizações.
A prisão e o castigo ajustam-se ao escopo da verdadeira educação democrática.

matar e morrer
Um jovem de 17 anos procedente de família pobre, com formação religiosa, emprego sazonal, escolaridade regular e seletivamente capturado pelas instituiçõespenalizadoras está registrado com passagens pela Fundação Casa.
Ele aborda um jovem universitário de 19 anos, apontando-lhe uma arma, na porta de um edifício-prisão, e o intima a entregar o celular.
O jovem acossado, monitorado pelo sistema de segurança e diante das grades altas que protegem o edifício, entrega o celular.
Em seguida é alvejado pelo outro e morre.
A estúpida cena é veiculada pela mídia televisiva.
De imediato os pais, os colegas universitários em passeata e demais cidadãos ajuizados clamam pela redução imediata da idade penal.
O governador de São Paulo a endossa.
Entretanto, em breve tempo, desvenda-se um mistério: o jovem que acionou o revólver o fez quando o assaltado pronunciou algo como “eu sou polícia”!
O que era visto como falta de juízo até aquele momento passou ao entendimento: diante da polícia, o acionar do gatilho pelo jovem assaltante esclarece que não houve nada de surpreendente além de sórdida rotina.
Os dois jovens foram alvejados pelas misérias de suas sobrevivências.

matar e julgar
Um jovem estava investido de convicção policial. O outro, convencido pela infração.
Quem estiver armado atira e mata.
Não há policiamento, equipamentos de segurança ou educação democrática que contenha o desesperado desejo pelo consumo.
Os jovens das classes superiores não matam por provisórios celulares. Matam pela propriedade.
Uns e outros querem mais e mais bens, com ou sem juízo, com ou sem a perda momentânea do juízo.
A propriedade é um roubo ardiloso praticado pelo mais forte com a finalidade de perpetuar os demais em condições de miséria e pobreza.
Em ocasiões problemáticas, os que clamam por justiça querem simplesmente a morte do outro, a justiça de talião escorada na impessoalidade da lei.
Exigir redução da idade penal, então, não passa de dissimulação. Ela expressa a verdade da propriedade, da lei, da justiça e dos juízos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Fundação Casa reiteram a seletividade do sistema penal.
O desejo de morte do outro pela população moralmente sã renova sua conformada e abjeta vida encarcerada.

matar e prender
A prisão e a casa formam um duplo semelhante.
Muros altos, monitoramentos e agendas de seguros devem garantir que as vidas dos que as habitam sejam governadas como bons negócios, discretos conflitos, e com amor pela moradia.
Desde que nada interfira em lucros, que os ilegalismos permaneçam e que a permissividade seja passível de bom governo.
Matar e prender são efeitos deste racismo social que não prescinde do racismo biológico.
O astuto cordato de ocasião apenas pronuncia o desejo de escalar quem deve morrer.
Os miseráveis que preferem furtar e inevitavelmente matar qualquer um diante das circunstâncias não são apenas os infames que, com suas condutas, alimentam a continuidade de ricos proprietários.
Eles não pensam em acabar com a propriedade, nem com sua condição de pobre desprezível.
A seu modo expressam a vitória dos proprietários, de seus governos, de sua seletiva justiça, de sua polícia que emprega e arma outros miseráveis como eles para manter a moral do bem e que para assegurar esta decadente sociedade permite matar.

punir jovens, punir jovens mais cedo: o pleonasmo do mesmo
Punir mais cedo é o ideal da política de prevenção ao crime.
Mas este não é o velho argumento da falácia da prevenção geral exercitado desde o século XVIII?
E este já não foi, também, o argumento que ensejou a lei de crimes hediondos no país há poucos anos?
E crime hediondo é o que?
Crime + hediondo = crime criminoso.
Será que não faremos senão confirmar pelas tautologias e pleonasmos o que na vida não existe?
E a natureza ontológica do crime? Não e-xis-te.
Isto que chamam de crime e direito universal é uma construção política recente, uma verdade que reafirma o interesse dos poderosos.

diante do mesmo, uma questão urgente!
Será que somos incapazes de lidar com cada situação-problema sem esvaziá-la, para preenchê-la pela velha ideia do castigo que se naturalizou pelo costume em cada um?
Quem está disponível a enfrentar a sanha que atravessa sua voluntária mortificação?
Que tal experimentar o inédito?
Não aprisionar mais jovem algum?
Esta sim é uma questão urgente para quem está interessado em afirmar liberdades que não se apartam do curso livre da vida.
O resto é a carcomida encenação do juízo, dos códigos e suas reformas, dos negócios políticos rentáveis na continuidade dos aprisionamentos dentro e fora de cárceres em espaços variados, que sempre se iniciam pelos corpos de crianças e jovens.