RESENHA por tony hara*
DOS LIVROS: Frédéric Gros (org.). Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola Editorial,2004, 268 pp. & Margareth Rago. Foucault, História & Anarquismo. Rio de
Janeiro, Achiamé, 2004, 87 pp.
O jornalismo radical empreendido por Michel Foucault não cessa de surpreender e de se desdobrar de múltiplas maneiras na atualidade. O trabalho de diagnosticar as forças que sublevam e de tornar visível o que não se vê, justamente, por estar tão próximo e colado a nós mesmos, parece ser cada vez mais urgente. É necessário, nessa época confusa na qual se implementa o controle social à distância, fazer aparecer as novas estratégias de monitoramento e controle das formas de conduta. Mais ainda, o legado intelectual de Michel Foucault é fundamental para compreender as recentes configurações do espaço político gangrenado por palavras de ordem politicamente corretas e completamente vazias, como rezam os manuais de marketing.
Fazer a história do presente, atuar na atualidade, com coragem. As últimas aulas de Foucault no Collège de
France (1983-1984) foram consagradas ao estudo da parrésia e levaram o título de “A coragem da verdade”. Quem dá notícias desses últimos cursos de Foucault, ainda não publicado, é o professor Frédéric Gros da Universidade de Paris-XII. Em novembro do ano passado, ele esteve no Brasil a fim de participar do Colóquio Internacional Foucault: 20 anos depois, organizado por Margareth Rago. Nesta ocasião, Frédéric Gros abriu os trabalhos do Colóquio com uma conferência centrada no problema do “Cuidado de Si”, enfatizando as repercussões e as virtuais transformações que esse antigo exercício ético grego pode provocar na moral e no jogo político dominante da modernidade.
A Coragem da Verdade. Além da conferência de abertura do Colóquio — que contou com a participação de mais de 30 intelectuais especializados na obra de Foucault —, o professor Frédéric Gros trouxe também na bagagem um livro organizado por ele, intitulado Foucault: a coragem da verdade. Os seis ensaios que compõem o livro destacam, sob diferentes perspectivas, um antigo problema que assombra a atividade intelectual. A saber, o problema do cruzamento, da aliança entre a teoria e a prática, entre o que se diz e o que se faz, entre a verdade e a vida. É por isso que Frédéric Gros reconhece nos estudos de Foucault sobre a parrésia na cultura grega, algo mais do que uma nova invenção conceitual. Trata-se, segundo seus termos, de uma “grade de leitura da obra e da vida enquanto indissociáveis, aquilo que, simultaneamente, fundamenta a escrita de livros e a ação política” (p. 12). Em outros termos, seria a retomada de um ponto de articulação entre os discursos e as ações e, o reconhecimento de critérios éticos, e não lógicos, para a avaliação da legitimidade e da validade de uma opinião. O critério de verdade, em última análise, encontra-se na absoluta e visível correspondência entre o dizer e o fazer, daí a questão da coragem, da conexão entre coragem e verdade.
Como explica Michel Foucault a parrésia é um tipo de atividade verbal na qual o falante arrisca a vida ao manifestar sua relação pessoal com a verdade, por meio do falar francamente. “Na parrhesia — afirma Foucault —, o falante faz uso de sua liberdade e opta por falar francamente em vez de persuadir, pela verdade em vez da mentira ou do silêncio, pelo risco de morte, em vez da vida e da segurança, pela crítica, em vez da bajulação, pelo dever moral, em vez de seus interesses e da apatia moral”. O dizer verdadeiro é, na parrésia, um dever, uma obrigação que visa tanto a transformação da subjetividade daquele que pronuncia o ato de verdade, quanto a transformação dos outros, que também devem ter, pelo menos entre os estóicos, coragem para ouvir e participar francamente do confronto. Neste jogo a relação corre um sério risco de se romper, pois é aceito entre os participantes o desafio e as possíveis hostilidades que emergem do conflito.
É interessante destacar que nos dois primeiros artigos do livro, assinados por Phillippe Artières e Francesco Paolo Adorno, a noção da parrésia é utilizada para a construção e o entendimento da própria figura de Michel Foucault, enquanto intelectual que procurou incessantemente articular as intervenções na cena política com o trabalho filosófico. Ressalta-se nessas abordagens a coragem do diagnosticador do presente, do ativista político engajado em lutas específicas, do corpo a corpo com os aparelhos de controle e, finalmente, a coragem de romper com a função e com as representações já desgastadas e pouco efetivas de intelectual universal. Segundo os autores, Foucault rejeita, não sem provocar polêmica, a figura do intelectual enquanto consciência universal da sociedade. O papel do intelectual não é dizer aos outros o que eles devem fazer ou modelar suas vontades políticas, afirma Foucault, mas, a partir de uma análise de um campo específico “reinterrogar as evidências e os postulados, abalar os costumes, os modos de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades admitidas e, a partir dessa reproblematização, participar da formação de uma vontade política.”
O organizador do livro, Frédéric Gros, encerra a coletânea com um artigo repleto de surpresas e de inquietantes relatos e análises sobre as últimas aulas de Foucault, dedicadas ao problema da parrésia no contexto da filosofia cínica. O filósofo se interessou pela trama elaborada pelos cínicos gregos entre um estilo de vida despojado, portanto descolado das convenções, e um certo uso da fala, que se caracterizava por ser rude, áspera e provocadora. Em um jogo insinuante de comparações, Gros sugere um deslocamento vivido por Foucault em suas últimas pesquisas.
Em síntese, trata-se do trânsito entre o tema do cuidado de si para o da coragem da verdade. Talvez, mais do que uma passagem de um problema para o outro há, efetivamente, um movimento de tensionamento entre duas formas, radicalmente, diferentes de relacionar a vida e a verdade. De um lado a ética estóica, junto com as técnicas de cuidado de si, que estabelecem uma harmonia ideal entre a vida e a verdade. A ética estóica, segundo Gros, era uma ética da correspondência regrada, disciplinada, ordenada entre a ação e o discurso. Já entre os cínicos, “trata-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo(...). Tornar diretamente legível no corpo a presença explosiva e selvagem da verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade” (p.163).
Como se percebe, dois sentidos diferentes de verdade que determinam duas formas singulares de estilização da vida. Uma mais persistente, paciente, na qual a vida é regulada por princípios verdadeiros apesar do caos,
dos acasos e golpes do destino. No estilo de vida cínico, a verdade é vivida como escândalo, o corpo se torna o espaço de manifestação da verdade, daquelas verdades que, como afirma Gros, todos conhecem e ninguém se dá o trabalho de viver.
Foucault, História & Anarquismo. Foucault encontra as atualizações da atitude cínica de viver e de dizer a verdade de forma provocadora, em certas manifestações, como por exemplo, em algumas correntes do ascetismo cristão, entre os artistas modernos que rejeitavam, a-gressivamente, as normas e convenções sociais e, em certos movimentos revolucionários do século XIX, como o anarquismo.
O que há em comum entre essas manifestações é a atitude provocadora, ousada, que gera um certo incômodo e desconforto àqueles que se afundaram na pasmaceira e no sossego das idéias prontas. Essa energia expansiva, atrevida, profundamente libertária, atravessa os textos da historiadora Margareth Rago que buscam tecer as possíveis relações entre o pensamento foucaultiano, o anarquismo e a História. Ao justificar um dos ensaios que compõem o livro, o recado é direto e fulminante: “ainda muito indignada com a falta de abertura dos historiadores diante de um pensamento tão energizado, radical, libertário e aberto à diferença, tive declarada intenção de apresentar o filósofo para os jovens estudantes insatisfeitos com concepções históricas autor i t á r i a s , e x c l u d e n t e s , e n s ime sma d a s e , p o r t a n t o , insuficientes para enxergar e problematizar nosso presente” (p. 11)
Há, nestes artigos, um irrefreável instinto de libertar a História das concepções tradicionais, do modelo antropológico da memória e das lentes inadequadas que embaçam a visão que se tem da atualidade. O método genealógico, criado pelo filósofo francês, torna-se no texto de Margareth Rago um instrumento muito sensível, que flagra os mais sorrateiros sonhos dos historiadores tradicionais. Isto é, o desejo de uma síntese totalizadora, de uma identidade estável portadora da consciência histórica, a ilusão de alcançar a realidade objetiva e a essência das coisas, os procedimentos de exclusão dos acontecimentos que não se encaixam na linha de continuidade preconcebida e as promessas de um futuro redentor.
A desconstrução, a crítica a esses mitos que por tanto tempo habitaram o mundo dos historiadores, tem como objetivo o reconhecimento das linhas de fuga na atualidade. Como alerta a autora em diversos momentos, não se pretende com as críticas provocadoras estimular um sentimento de desprezo em relação ao passado. Mas, ao contrário, pretende-se criar condições para que se efetue um reencontro com a tradição libertária do pensamento soterrada por essas visões autoritárias e metafísicas da História.
Para além desse reencontro com a tradição libertária, Margareth Rago sugere um outro movimento: a reinvenção dos antigos libertários como estratégia para fugir da alienação da atualidade e da obediência ao totalitarismo. É por causa disso, talvez, que as suas reflexões sobre a experiência anarquista e sobre a constituição de subjetividades anárquicas soem tão estranhamente belas. Belas porque fogem ao campo restrito da produção intelectual e afetam o plano da vida. Há livros que inevitavelmente nos levam para além dos livros.
*Jornalista e Doutor em História pela Unicamp. Publicou Caçadores de notícias: história e crônicas policiais de Londrina (Editora Aos Quatro Ventos) e a biografia do poeta Paulo Leminski para a coleção Rebeldes Brasileiros (Editora Casa Amarela).
buscado em: http://www.nu-sol.org/verve/pdf/Verve7.pdf
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