sábado, 29 de outubro de 2011

Drogas: o proibicionismo nos movimentos sociais


Quem quer transformar o mundo deve reproduzir, em nome da eficácia, o controle sobre os corpos e as ações de disciplinamento praticadas pelo Estado ?
Por Júlio Delmanto
No último dia 15 de outubro, mais de 900 cidades de 82 países atenderam ao chamado proveninente dos “indignados” espanhóis e ocuparam praças e ruas demandando democracia real e o fim da ditadura financeira global. Em São Paulo, um movimento bastante plural se formou e decidiu montar um acampamento no Vale do Anhagabaú, a fim de dialogar com a população e estabelecer articulações internas que resultem em ações pautadas pelos consensos propostos no manifesto do movimento.
De sábado para cá, ao menos cem pessoas têm dormido diariamente debaixo do Viaduto do Chá, suportando chuva, frio e achaques da polícia — que não permite nem que barracas sejam levantadas — para levar suas demandas adiante. O modelo é de assembleia permanente. As decisões apenas são tomadas por consenso e sempre podem ser revogadas. Uma delas, creio que dialoga profundamente com nosso objetivo aqui — o de debater os diferentes aspectos políticos e sociais das “drogas”. Trata-se da proibição do uso de álcool no interior do movimento.
Foi uma decisão polêmica, e ainda carece de novos debates para ser, digamos, “ajustada”, já que o consenso não foi pleno, inclusive por parte deste que os escreve. Mas, a princípio, estabelece que o uso de “drogas” no interior do acampamento (que ainda não é um acampamento por conta do controle quase absoluto que o aparato estatal exerce sobre o cotidiano da cidade) está proibido. Entende-se como drogas, neste caso, o álcool e as substâncias ilícitas, e não a definição medicinal, que afirma: drogas são as substâncias que alteram o funcionamento dos organismos, resultando em mudanças comportamentais ou fisiológicas. Ou seja, partimos já de uma definição problemática do objeto. Maconha, cocaína e crack são drogas, mas também o são álcool, tabaco, medicamentos, café etc.
A proibição consensuada no que diz respeito ao uso de drogas ilícitas é mais facilmente defensável: seu porte e consumo sujeitaria o movimento à ação repressora policial. Isso traria consequências para o projeto político que se tenta implementar. Mas e quanto ao álcool, por exemplo? O que justifica que uma iniciativa de ativismo com fins de transformação social busque legislar sobre e reprimir a priori condutas individuais de seus membros? Por que um movimento social deve agir partindo de mistificações e com as mesmas premissas de disciplinamento e intervenção sobre os corpos com as quais trabalha o Estado a ser combatido?
Um dos argumentos — a meu ver o mais frágil, moralista e contraditório ao movimento em geral — é que poderia ser resumido como o espírito do “sacrifício militante” ou da “sobriedade ativista”. Não podemos estar drogados (música de terror ao fundo). Se queremos mudar o mundo, a droga (esse terrível ente dotado de vida própria) pode corroer nossos acordos e relações, pode nos levar à ruína na qual nunca cairíamos sem um ente externo e maligno.
Outro enfoque é mais consequente, mesmo que ainda questionável, e é trazido principalmente pelas feministas, que dizem que o uso de álcool acirra o comportamento violento masculino, cujo alvo invariavelmente são as mulheres. Assim como em Chiapas, no México, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) proibiu consumo de álcool (o que não quer dizer que ele não ocorra) a partir de uma demanda das mulheres, a defesa é a de que o álcool gera violência, principalmente de gênero.
Drogas, um fetiche
Mais ou menos elaborados, creio que estes dois conjuntos de argumentos esbarram no mesmo equívoco: a fetichização das substâncias alteradoras de consciência, como se seus efeitos não variassem de acordo com seus usos. Assim como uma caneta pode escrever palavras de amor ou ser usada para perfurar uma jugular, uma substância, qualquer que seja, não detém vida própria, podendo servir tanto de veneno como de remédio, como o conceito de farmácon nos lembra.
Da mesma forma como o “combate ao crack” fetichiza a substância e convenientemente obscurece processos sociais muitos mais amplos — ou alguém defende que desaparecendo o crack a vida das populações de rua estaria melhor? —, a responsabilização de uma substância como o álcool como geradora de problemas como a violência de gênero serve apenas para que a questão não seja encarada com a seriedade e a profundidade que necessita, além de ser uma “fórmula mágica” que prima pela coerção e não pela solução dialogada, definida caso a caso, dos problemas concretos.
Certamente, em determinadas conjunturas o uso do álcool em determinadas formas — e novamente é preciso fugir das generalizações, e diferenciar por exemplo cachaça de vinho, cerveja de tequila, cada um tem sua história e cultura de uso — potencializa a violência. Mas é o álcool que a cria? Um homem que se dá o direito de agredir uma mulher quando alcoolizado deixará de submetê-la ao seu entendimento machista e opressor da realidade somente por estar “sóbrio”? Ou eleger o álcool como responsável pelo problema não serve simplesmente para evitar o debate de fundo, que deve questionar por que esse tipo de comportamento existe, mesmo no seio do movimento social?
E mesmo que sim, que fosse comprovada a conexão absoluta entre álcool e violência, a proibição resolve o problema? Não estamos partindo aí da mesma premissa proibicionista, a de que a repressão à oferta extingue a demanda? Uma solução impositiva como essa só tende a jogar o problema para baixo do tapete, uma vez que aquele que quiser realmente fazer uso dessas substâncias pode simplesmente fazê-lo em outros ambientes ou de forma escondida. Ou daremos consequênca a esta decisão e criaremos uma política absoluta de monitoramente e policiamento dos indivíduos?
Assim como é a lei que cria o crime, e a repressão seletiva (já que é impossível que um aparato repressor, por mais amplo que seja, consiga capturar todas as infrações cometidas) a este nunca ataca suas causas nem diminui sua incidência, a mera proibição de uma conduta que se vê como totalmente problemática, mesmo que o seja apenas parcialmente, só ataca os sintomas do problema, não os processos que o geraram. Além disso, novamente procedendo da mesma forma como o direito penal burguês, esta forma de resolução individualiza as condutas ofensivas, vendo nelas apenas responsabilidade individual e não suas determinações sociais.
Prefiro acreditar em uma alternativa que discuta as divergências caso a caso, que coloque os causadores de danos e as vítimas para dialogarem e para refletirem sobre os fatores sociais e coletivos que produziram a desavença. Pode ser mais difícil, assim como é dificílimo decidir tudo por consenso. Mas certamente é mais coerente com um projeto de fato libetário e questionador das premissas capitalistas não só da exploração como da dominação.

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