sábado, 26 de outubro de 2013

flecheira.libertária.315

os conselheiros da criadagem...
Primeiro, uma filósofa identifica black bloc com fascismo em solene palestra à polícia. Depois, um filósofo foucaultiano estrangeiro, escudado por organizador de eventos filosóficos brasileiros, fala solenemente à polícia sobre alternativas para o bom procedimento policial diante do até então aclamado estilo Bope. No passado, os filósofos não eram tão rápidos e midiáticos. Pretendiam oscilar entre o filósofo-rei e o rei-filósofo, aconselhando o soberano ou simplesmente governando a cidade. Em passado recente, Foucault assumiu deliberadamente posição ao lado dos presos. Outros filósofos brasileiros se posicionaram contra a ditadura e a polícia em função dos direitos humanos. No presente, os presos são governados pelo Estado e organizações próprias para o controle de prisioneiros. Os filósofos são cerejinhas no bolo oco. Estado, filósofos fluorescentes, organizações criminosas e polícia, como sempre irmanados no governo dos abúlicos assujeitados em nome ou não dos direitos humanos!
libertação animal
Um grupo de ativistas invadiu a sede do Instituto Royal, em São Roque, para soltar animais que estavam sendo usados pela empresa como cobaias de testes de qualidade de produtos. O grupo soltou dezenas de cães beagle e coelhos, duas espécies muito utilizadas por grandes empresas para essa finalidade. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência declarou considerar a ação um ato de “desconhecimento”. Desconhecimento?! Pelo contrário, aqueles envolvidos na ação mostram não desconhecer o fato das indústrias farmacêuticas e de cosméticos, atreladas ao Estado e às agências de fomento de pesquisa na área das ciências biológicas, preferirem poupar alguns de seus trocados e utilizar animais para fazer seus testes de qualidade. Em nome da ciência, querem prosperar seus lucrativos empreendimentos pouco se importando com os confinamentos e as contínuas violências exercidas sobre a existência dos outros.
qual é, bicho?
Cientistas a serviço dos capitalistas empregados no Instituto balbuciam que os animais não sentiam dor e que o terror foi causado pelos vândalos que invadiram a propriedade da empresa. A Anvisa, que autoriza a prática de testes em animais por grandes empresas, quer a justiça: investigação do que acontecia nos laboratórios e julgamento dos ativistas por furto qualificado de animais. A polícia intenta “resgatar” todos os animais tirados do Royal, eles serão utilizados como provas e passarão por avaliação de especialistas para saber se podem ou não estar em convívio com outros animais. Alguns dos envolvidos na ação, diferente dos ativistas cagões que julgam “excesso” e não conseguem viver sem mediações nem autoridades, se negam a entregar os bichos. A recusa explicita a coragem de enfrentar canalhas que matam e torturam por mais grana escudados pela chamada autoridade da ciência.
errou mas dá pra consertar, né? 
A Justiça Desportiva brasileira anunciou que diminuirá as penas de suspensão de jogadores de futebol flagrados nos exames antidoping caso haja um compromisso do atleta e do clube a que pertence em se tratar. Até hoje, o jogador poderia ser condenado a até dois anos de suspensão, sem que tratamentos pudessem atenuar a sentença. Agora, cartolas, advogados e atletas condenados comemoram a decisão “inclusiva” e “humana”, chancelada pela FIFA e pronta para virar nova jurisprudência internacional.
drogas e grana
No futebol e em todos os esportes de competição, drogas rolam soltas. As drogas legais, usadas para remediar os excessos sobre um corpo do qual se exige alto desempenho, as drogas quase (i)legais usadas para bombar performances e, também, as drogas ilícitas. As organizações desportivas com seus tribunais classificam, perseguem e estipulam procedimentos para verificar o uso de drogas proibidas. Treinadores, atletas, clubes e laboratórios correm atrás de novas e poderosas drogas ainda não identificadas ou vedadas. Recordes são conquistados, prêmios e patrocínios inflam. Até que alguém é pego e punido exemplarmente. Então, novas drogas são desenvolvidas. E os negócios batem novos recordes.
moral dos dopados
Chegou ao esporte a prática de considerar doente quem usa uma substância ilegal. Se a droga for apenas para aumentar a potência, as penas são duras. Mas se forem drogas psicoativas ilegais, como a cocaína, a tendência parece ser a de tratar esse atleta como um doente que pode se recuperar. Exatamente como parece caminhar a nova versão do proibicionismo (dura com o traficante, humanitarista e caridosa com o “usuário”). Tudo deve começar com um ato de contrição, seguido pela cura. E aí, o atleta, reforçando com a sua “reabilitação” a moral da abstinência e da saúde, pode voltar a render grana para seus clubes e para si mesmo... e também para os patrocinadores de drogas legais, os traficantes de drogas ilegais e os laboratórios farmacêuticos com seu leque de drogas legais e quase ilegais. 

flecheira.libertária.314

vandalismo organizado?
Depois da formulação de um anarquismo organizado, agora aparece, em meio às manifestações de rua, os que pleiteiam um vandalismo organizado. Em entrevista por celular a um jornal de grande circulação de São Paulo, certo grupo reivindicou parte das ações contra o monumento aos Bandeirantes, em São Paulo. O entrevistado, com um capuz negro na cabeça, se dizia próximo do MPL e distante do black bloc, por estes serem contra a organização e não possuírem um líder. A salutar ação contra o monumento aos assassinos de indígenas não é propriedade de um grupo político, não foi feito apenas por eles. Preocupa a busca por organização e justificativa racionalizável à simples expressão do que é intolerável. A revolta quando busca legitimidade não é mais revolta e pode preparar a entrada do terror de Estado.
não é balada...
Uma revista que se define alternativa veicula por internet vídeos e textos acerca das revoltas de rua na Grécia. A forma de descrição “vende” o acontecimento como uma grande festa que reúne um amplo escopo de esquerda, e na qual os “anarquistas são a principal estrela”. As lutas na Grécia expressam efeitos da revolta entre os que produzem uma cultura libertária. Estas lutas envolvem enfrentamentos, perseguições, anos de luta, publicações, centros de cultura, estudantes e professores universitários e o intolerável assassinato de um jovem pela polícia. São um registro da atual agonística libertária. No interior destes embates reativou-se a pertinência do terrorismo anarquista contra qualquer Estado. Não é balada, morô?! Nem matéria a ser malhada por acadêmicos oportunistas.a sanha autoritária.
Um delegado aplicou a Lei de Segurança Nacional, de 1983, nº 7.170, contra os manifestantes de rua, especificamente os black bloc. O código, caído no esquecimento constitucional, mas ainda em vigor, atingiu dois jovens presentes na manifestação de 7 de outubro. Ficou exposta utilidade política do direito: a defesa da propriedade é mais importante que qualquer pessoa. A menina presa já foi libertada e se retrai clamando inocência no feicibuque, ao contrário do que todos dizem, ela não é nem anarquista, nem black bloc, estava filmando os protestos com um amigo. Não está em jogo a defesa diante de uma injustiça, não se deve clamar por inocência, mas é urgente expor o jogo desta democracia incapaz de lidar com eventos não esperados. Vivemos sob uma sanha autoritária.
uma pergunta
Nas manifestações do dia 7 de outubro da praça da república, quantos eram black bloc e quantos eram policiais infiltrados? É vital a moçada corajosa se ligar para não virar laranja ou ir junto com os laranja s, ou mesmo virar boi de piranha na mão da polícia.
nova-velha ordem penal
Declaração de líder do PCC capturada por gravação de investigação deflagrada pela PF essa semana: “para matar alguém hoje é a maior burocracia”. Eis o terror sistematizado. Eis a eficiência da principal parceria público-privada para administração das prisões no Brasil.
policiamento compartilhado
Moradores da avenida Higienópolis, na capital paulista, testam um aplicativo de smartphones desenvolvido para combater o crime. Porteiros, taxistas, funcionários de escolas e o dono de uma banca de jornal receberão gratuitamente celulares para colaborar com a segurança. Ao menor sinal suspeito, pode-se apertar o “botão de pânico” do aplicativo que alerta todos os cadastrados na rede, inclusive a polícia, sobre casos de roubo, sequestro, tráfico e até mesmo bullying. O aplicativo também pode ser utilizado para denunciar “problemas públicos” como alagamento, incêndio, explosão e até mesmo pedintes nas ruas. Com o novo aplicativo alimenta-se os fluxos de informação que compartilham o monitoramento da segurança. Agora, com um rápido toque no celular, informa-se sobre o que pode ser fonte de ameaças. Amplia-se o papel de polícia exercitado por cada um.
viva o fogo da liberdade!
Há algum tempo jovens rabiscam nos muros da cidade de São Paulo: Mais amor, por favor! Frase que é sombra de uma geração emo, e que atualmente é tomada como lema de novos indignados. Em cenários de tragédias recentes replica-se a frase insistentemente. Reproduzem-na em seus tuíter, feicebuqui e similares. São sombras emotivas e estúpidas. Não falta amor em São Paulo, não falta amor no Brasil, não falta amor no e pelo planeta. Em nome do amor massacrou-se e ainda se massacra. Genocídios, etnocídios, ditaduras, holocaustos, não foram senão em nome do amor. Amor à pátria, amor à propriedade, amor à subserviência, amor à segurança. O amor como juízo, nada tem a ver com o tesão e a liberdade dos amantes e dos amigos. O amor asfixia, sufoca, mata. Que se exploda o amor servil e viva o fogo da liberdade! .

flecheira.libertária.313

confinados na nação I
No último dia 5, a Constituição Federal de 1988 completou 25 anos. Entre tantas mudanças, a Carta retirou os povos indígenas da condição de tutela e lhes atribuiu direitos como os habitantes originários do território brasileiro. Determinou-se a necessidade de identificação e demarcação de terras ocupadas por estes povos até 5 de outubro de 1993. Atualmente, cabe à FUNAI, autarquia federal, o mapeamento de áreas a serem demarcadas, a partir da realização de laudos antropológicos que objetivam definir os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas. Passados 20 anos do fim do prazo determinado, grande parte dos territórios já identificados como indígenas não foi homologado ou demarcado pelo executivo. A liberdade dos agora cidadãos de direito permanece confinada nos limites do princípio do governado do Estado. 
confinados na nação II
O artigo 60º da Constituição de 1988 prevê a possibilidade de modificações na Carta por meio de Propostas de Emendas Constitucionais (PEC). Entre centenas de propostas, tramita desde 2000 a PEC 215, que pretende transferir para o poder legislativo a demarcação de terras indígenas. Com a aprovaçãoda PEC 215, os parâmetros para a definição de tais territórios e sua aprovação passariam a ser regulamentados pelo Congresso Nacional. Encurralados, os povos indígenas lutam agora para que sua possibilidade de existência, diretamente ligada à experiência do espaço que habitam, não seja entregue às bancadas ruralistas que, em grande parte dos casos de demarcação, representam justamente os interesses daqueles que historicamente os massacram. A cada ano, mais e mais índios são assassinadosem situações de disputas territoriais por jagunços de fazendeiros, com a conivência dissimulada doEstado. 
mancha de sangue
Na última semana, uma série de protestos de povos indígenas ocorreu por todo o país. Milhares de pessoas – indígenas e não-indígenas – ocuparam a Avenida Paulista. De lá, seguiram para o Monumento às Bandeiras, obra célebre do modernista Victor Brecheret encomendada pelo Governo do Estado em comemoração ao IV Centenário de São Paulo. Tida como cartão-postal da cidade, a imensa escultura em homenagem aos bandeirantes que partiam da cidade para ocupar as terras do interior, dizimando inúmeros indígenas pelo assassinato ou escravidão, é apenas um dos monumentos erguidos em todo o país em homenagem aos massacres sobre os quais a Nação pôde se fundar. O imenso bloco de pedra foi pichado e tingido de vermelho, escancarando a violência colonizadora que se tentou pacificar. Atentando contra a sacralidade atribuída às obras de arte, o gesto corajoso serviu para mostrar que, mesmo diante de todas as tentativas de pacificação e dos massacres que já duram mais de 500 anos, os povos indígenas continuam vivos e com gana de lutar. Antes do direito, trata-se da vida. 
solapando estradas, entradas e bandeiras
E o Borba Gato que não se sinta incólume e intocável! Os índios, mais uma vez, com arcos e flechas certeiras afirmaram o fogo vivo da palavra manifestar: aquilo que ainda dá sinais de vida. E danem-se os adeptos da tutela e os de face renovada dos bandeirantes nas caras dos abutres coronéis ruralistas. E que se dane este monumento-patrimônio-tombado em nome da institucionalização regulamentar de direitos e etnocídios.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A resistência à felicidade substitutiva e o futuro da Igreja.

Entrevista com Zygmunt Bauman

Por reconhecimento geral, o sociólogo Zygmunt Bauman é um dos mais renomados intérpretes da condição humana da época atual. Nascido de pais judeus em 1925 em Poznan, na Polônia (embora resida há muitos anos naInglaterra), Bauman cunhou a feliz imagem da "modernidade líquida" para indicar uma situação de incerteza difusa, em que parece desaparecer qualquer ponto estável de referência.
A reportagem é de Giulio Brotti, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 20-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Depois de muitos anos, não parece ter se cumprido a profecia positivista pela qual a dimensão religiosa iria declinar fatalmente, com o progresso da modernidade: na América Latina, por exemplo, o pentecostalismo e o protestantismo evangélico têm um grande sucesso. Mas, quanto ao hemisfério Norte do planeta e à Europa em particular, que traços estão assumindo a fé e a espiritualidade nesta primeira parte do século XXI? A quais mudanças elas poderiam ir ao encontro no futuro próximo?
O meu colega Ulrich Beck, há alguns anos, publicou um livro intitulado Der eigene Gott (em edição italiana, Il Dio personale. La nascita della religiosità secolare [O Deus pessoal. O nascimento da religiosidade secular], Ed. Laterza). O argumento desse livro é o retorno da espiritualidade, ou talvez fosse mais correto dizer: do desejo de espiritualidade na sociedade contemporânea. Falando de um desejo, de um anseio, entende-se que ele se orienta a uma certa representação da espiritualidade, concebida como algo que poderia conferir um sentido pleno às nossas vidas, preenchendo-as.
Evidentemente, constata-se que os prazeres materiais ("da carne", se diria tempos atrás) não bastam: é preciso um contato com algo que transcenda as nossas ocupações e preocupações cotidianas. No entanto, Beck defende – com razão, acredito eu – que esse retorno à cena da espiritualidade não corresponde necessariamente a uma adesão às instituições e aos códigos religiosos tradicionais. Ao contrário, a tendência que prevalece hoje não encontra como interlocutores naturais as Igrejas e, talvez, ao contrário do que você sugeria, nem mesmo as inúmeras seitas que confluem no vasto leito do pentecostalismo. Os gostos da nova espiritualidade não propendem pelos dogmas, pelas regras disciplinares compartilhadas: justamente para sublinhar essa novidade, Beck cunhou a fórmula do "Deus pessoal".
Também poderíamos falar de uma religião à la carte: sobretudo os jovens operam uma seleção entre diversas fontes, às vezes decididamente exóticas, em outros casos escavando no interior da tradição católica ou, em menor medida, da anglicana e protestante. Prevalece, contudo, a atitude de hibridizar elementos diferentes, segundo as necessidades particulares e a sensibilidades dos indivíduos: nessa base, é muito difícil que se constituam grupos organizados, comunidades de fé, propriamente ditas.
Trata-se, em essência, de uma religião "psicológica", destinada a tranquilizar e a consolar o sujeito humano?
É uma reação à instabilidade que caracteriza a vida na modernidade "líquida": em uma época de incessantes e repentinas mudanças, busca-se uma faixa de terra para se poder plantar os pés firmemente. Um dos aspectos mais inquietantes do nosso tempo é que não se conseguem prever as consequências a médio prazo das decisões pessoais: são numerosos demais os fatores que interferem nos nossos projetos. Pensemos no que aconteceu há poucos dias nos Estados Unidos, onde, por causa do déficit do orçamento, centenas de milhares de funcionários públicos foram deixados em casa sem salário. E essa situação também pode ter pesadas recaídas na economia mundial inteira, em perspectiva. Busca-se, portanto, um ponto de ancoragem existencial, e essa exigência desemboca, em certos casos, em um neofundamentalismo religioso, mas também pode se expressar de forma diferente: ainda nestes dias, tomamos conhecimento pela imprensa que, na França, o Front National de Marine Le Pen é virtualmente o primeiro partido, segundo as pesquisas que lhe credenciam o favor de 24% dos eleitores, na perspectiva das eleições europeias.
A busca frenética por certezas também pode assumir um aspecto político?
Certamente, e pode até se traduzir na situação sui generis da política italiana, em que os partidos estão desesperadamente em busca de alguém para atacar e para desacreditar, não conseguindo se definir de modo positivo, mediante um programa próprio. O problema de uma incerteza difusa, no entanto, certamente não se deixa reduzir a uma questão interna à Itália: a perda de confiança é global, não se refere apenas a determinados partidos ou líderes, mas sim ao sistema da democracia representativa. O mundo inteiro entrou em uma fase de interregno, para usar uma expressão de Antonio Gramsci: a humanidade tenciona buscar desesperadamente dentro ou fora de si pontos de apoio para se manter de pé, ou freios para parar o fluxo indistinto que, caso contrário, ameaçaria derrubá-la.
Em nível coletivo, essa necessidade também se encontra no movimento dos Indignados, na Espanha, no Occupy Wall Street, em Nova York, ou nas reuniões na Praça Tahrir, no Cairo. Avança-se às apalpadelas, no escuro, em busca de modos para poder agir eficazmente: as instituições que tradicionalmente se faziam intérpretes das necessidades e das preocupações dos indivíduos, traduzindo-os em propostas políticas, não parecem mais à altura do desafio. Quanto tempo durará essa passagem e aonde chegaremos? Eu não acredito nos milagres em sentido tradicional, mas acredito nos milagres da realidade, por assim dizer: na abertura de novas estradas onde o percurso parecia bloqueado, na capacidade inventiva dos seres humanos. Nós, porém, por definição, não somos capazes de prever desde agora como essa capacidade poderá se expressar no futuro.
Atualmente, não parece justamente ter se atrofiado a capacidade de pensar sobre o futuro? A expectativa dos tempos messiânicos no judaísmo, a das coisas últimas no cristianismo sempre foram um elemento essencial dessas tradições religiosas. Agora, porém, tendemos a avançar à vista, como se o nosso horizonte temporal se reduzisse ao próximo fim de semana. A espiritualidade pode abrir mão da dimensão do futuro? Ela poderá sobreviver em uma condição de presente dilatado?
Não é fácil responder à pergunta que você me faz. Eu me limitaria a salientar que, nos nossos dias, a indústria do consumo propõe substitutos para a espiritualidade tradicional, fruíveis on the spot, no momento presente. Muitos produtores não se limitam a pôr no mercado bens materiais, mas os cercam com uma aura religiosa. As agências de viagens e as companhias aéreas, por exemplo, publicizam os destinos turísticos com a promessa de experiências imortais, de metas paradisíacas: os seus slogans muitas vezes são variações sobre o tema da imortalidade agora, a ser obtida imediatamente, e não depois que estivermos mortos. Visitando uma certa localidade, hospedando-se em um certo resort, assistindo a um show de rock, pode-se logo experimentar o que você pode imediatamente experimentar o que as pessoas religiosas esperam poder conseguir em outra vida. O modelo é o do café solúvel, que pode ser saboreado em poucos segundos, depois que o pó se dissolveu na água quente. As agências de marketing capitalizam o desejo de uma fuga da incerteza e da desconfiança difusas na modernidade líquida: as mercadorias atraem os possíveis compradores, prometendo-lhes uma redenção da insensatez normal da cotidianidade.
Como o senhor avalia a "novidade" do pontificado do Papa Bergoglio? Há oito meses, os seus gestos e palavras parecem ter induzido uma sensação de feliz desorientação em muitos observadores e comentaristas, crentes e não crentes. Pensemos, por exemplo, na insistência do papa sobre a necessidade de que a Igreja seja pobre, e na responsabilidade do Ocidente para com as populações do Sul do planeta.
Ah, eu estou encantado com o que Francisco [Bauman pronuncia o nome em italiano, sorrindo] está fazendo: acredito que o seu pontificado constitui uma oportunidade, não só para a Igreja Católica, mas para a humanidade inteira. O fato de o líder de uma grande confissão religiosa chamar a atenção do Norte do mundo sobre o destino dos mais miseráveis já é de enorme importância. Mas eu também fui ler o que ele afirmava em um texto seu de 1991,Corrupción y pecado (publicado na Itália pela Editrice Missionaria Italiana com o título Guarire dalla corruzione, Bolonha, 2013, 64 páginas). Nessas páginas, retornando à parábola evangélica do publicano pecador e do fariseu irrepreensível na implementação das obras da lei, ele sublinha como o relato depõe em favor do primeiro, do coletor de impostos.
Nesse livrinho, há algumas passagens muito bonitas sobre a maior gravidade da corrupção com relação ao pecado: "Poderíamos dizer – afirma Bergoglio, por exemplo – que o pecado é perdoado; a corrupção não pode ser perdoada. Simplesmente pelo fato de que, na raiz de qualquer atitude corrupta, há um cansaço da transcendência. Diante do Deus que não se cansa de perdoar, o corrupto se ergue como autossuficiente na expressão da sua salvação: cansa-se de pedir perdão".
A rejeição do legalismo e a capacidade de Jorge Mario Bergoglio de tocar os corações das pessoas lembram a atitude semelhante de João XXIII. O atual papa é intrépido, eu diria, no seu modo de proceder: eu penso nos gestos que ele fez em Lampedusa, nos discursos dedicados aos "fora da casta" do mundo globalizado. Para voltar ao tema do qual havíamos começado, poderíamos afirmar que Bergoglio sabe falar à espiritualidade típica do nosso tempo: os seguidores do "Deus pessoal", com efeito, não estão muito interessados nas prescrições morais emitidas pelos representantes das instituições religiosas, mas desejam reencontrar um sentido na fragmentariedade das suas existências individuais. Ainda estão à espera de um "evangelho", na acepção original do termo – de uma boa notícia.
Os gestos e as palavras do Papa Francisco não poderiam contribuir para "recolocar em ação" justamente a religiosidade individualista do nosso tempo? Não poderiam oferecer-lhe uma perspectiva, impedindo que ela permaneça em uma espécie de limbo, sem relações com a realidade concreta?
É uma hipótese sugestiva a que você prospecta. Pessoalmente, permaneço à espera – com muita esperança e ansiedade, eu diria – dos futuros desenvolvimentos deste pontificado. Também fiquei impressionado com a ênfase que Bergoglio põe na prática do diálogo: um diálogo efetivo, que não deve ser conduzido escolhendo como interlocutores aqueles que, mais ou menos, pensam como você, mas se torna interessante quando você se confronta com pontos de vista realmente diferentes do seu. Nesse caso, realmente pode acontecer que os dialogantes sejam induzidos a modificar as próprias ideias com relação às posições iniciais. Nós temos uma urgente necessidade desse tipo de debate, porque somos chamados a gerir problemas de porte imenso, para os quais não dispomos de soluções já prontas: pensemos nas questões relativas ao fosso entre os ricos e uma considerável parte da população mundial, que ainda vive na miséria; ou na necessidade de frear a exploração indiscriminada dos recursos do planeta, de encontrar uma alternativa para um modelo de desenvolvimento – a expressão já soa irônica – que é claramente insustentável.
Todos esses problemas não param nas fronteiras nacionais: não dizem respeito aos italianos, em vez dos poloneses ou dos chineses, mas a humanidade no seu conjunto. E, de novo, parecem exigir não soluções temporárias, mas sim uma mudança radical do nosso modo de viver. A segunda parte do século passado, no campo econômico, foi dominada por dois pressupostos aparentemente indiscutíveis, que influenciaram profundamente os comportamentos individuais e coletivos dos seres humanos. O primeira foi que o Produto Interno Bruto de um país era a panaceia para todos os problemas sociais: aumentando o PIB, estes seriam automaticamente resolvidos; se, ao invés, o seu crescimento se bloqueasse ou – Deus me livre! – diminuísse, os equilíbrios sociais entrariam em crise. Em suma, o lema era: para enfrentar um problema coletivo, incrementar o PIB (e, portanto, também o consumo, porque o PIB ainda é medido sobre a quantidade de dinheiro que passa de mão em mão).
Qual era o segundo assunto?
Que a busca da felicidade andava de mãos dadas com o aumento do consumo: os lugares naturais de satisfação pessoal eram as lojas, em vez das relações sociais ou das atividades com as quais cada um podia ser útil aos seus semelhantes, cooperando com eles. Essas duas convicções produziram, de fato, uma grande quantidade de miséria material e espiritual, além de atacar gravemente os recursos naturais do planeta inteiro: de um lado, temos vivido acima dos nossos meios; de outro, descobrimos dolorosamente que a felicidade não pode ser comprada. Portanto, a todos nós hoje se pede que mudemos radicalmente a ordem das nossas vidas. Para expressar essa mesma ideia, oPapa Bergoglio provavelmente usaria um antigo termo da tradição cristã: conversão.

domingo, 13 de outubro de 2013

O poder da psiquiatria

O que está por trás do DSM-5 e sua tentativa de transformar a experiência do sofrimento em patologia a ser tratada

Vladimir Safatle
Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão ideológica, com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na clínica do sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a definição de causas dificilmente observáveis (como, por exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes com a figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que organiza distinções a partir de uma certa lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e condições que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento patológico. Desta forma, nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas, observável, imune aos juízos subjetivos do médico-observador e, acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em tons edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes, demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo, modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa performance no trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá, então, cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido, não haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. A comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado pela medicalização, pela institucionalização crescente das discussões através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicização crescente dos diagnósticos.
Doença e política
Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?  Por um lado, uma sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e nos afetos por meio da definição do campo das doenças e das patologias. No interior desses modos de intervenção, não é apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também padrões esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para definir o transtorno de personalidade histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das atenções; 2) comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8 ) considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que se vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona exatamente a falta de especificidade de um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente qualquer pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau, todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira,  de “psiquiatrização da vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da doença, ou seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de sofrimento. Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como conflitos relativamente naturais em processos globais de transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em certos comportamentos. O que não poderia ser diferente se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não descreve uma espécie natural (natural kind), como talvez seja o caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação interessa.
Vladimir Safatleé professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP

Gabriela Leite: contra preconceitos, a força da ironia

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Prostituta que ousou defender direitos de milhões de mulheres considerava-se feminista, rejeitava ortodoxias e zombou até o fim da própria doença
Entrevista publicada originalmente em agosto de 2012
Gabriela Leite, a mais destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras, morreu ontem de câncer, no Rio de Janeiro. Paulistana e de família tradicional, ela abandonou, com 22 anos, os cursos de Filosofia e Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) para imergir, por opção, na chamada Boca do Lixo, antiga região de São Paulo de grande concentração de garotas de programas, na década de 1970.
Hoje [em agosto de 2012], aos 61 anos, ela rejeita o termo “ex-prostituta” em suas apresentações. E com razão, pois Gabriela está muito ativa no movimento de defesa dos direitos das prostitutas, tendo fundando, inclusive, uma ONG em 1992, a Davida. Uma das principais conquistas até agora foi a inclusão, em 2002, da ocupação “trabalhador do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), permitindo que prostitutas possam se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como autônomas, e garantir uma aposentadoria futura.
Autora do livro “Filha, mãe, avó e puta – A história de uma mulher que decidiu ser prostituta”, da editora Objetiva e que já foi transformada em peça teatral, Gabriela, que luta contra um câncer, acaba de ser uma das contempladas do Prêmio “Trip Transformadores 2012”. Foi uma homenagem ao fato de ter lançado, anos antes, a grife Daspu – uma provocação à luxuosa Daslu e, ao mesmo tempo, uma cooperativa de produção de roupas constituída por ex-prostitutas que não seguiram no mercado do sexo por conta da idade
A seguir, você confere trechos da entrevista concedida à Agência Jovem de Notícias durante o 9º Congresso Brasileiro de Prevenção às DST e Aids, que aconteceu em agosto, em São Paulo (SP).
Quais são as perspectivas da regulamentação da profissão? O deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) apresentou um projeto (PL 4211/2012) recentemente. Em que pé está?
Nós estamos juntos com o Jean Willys no projeto. Ainda não é o projeto que queremos, mas para passar agora tem que ser esse. Mas é difícil à beça, porque o Congresso está muito conservador. O projeto é a favor da casa de prostituição, desde que não tenha exploração do trabalho. Há uma nuance, porque a polícia pode chegar e dizer que a casa está explorando, mas não existe nada que especifique essa situação para contestar e ver se de fato houve a exploração. A questão é você saber onde tem exploração e onde não tem.
E qual é a definição da prostituição?
Nós somos a favor da prostituição como trabalho. Somos a favor do turismo sexual, mas contrárias ao tráfico de seres humanos e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Outra coisa é a prostituta adulta fazer sexo com estrangeiros. Não há nenhum impedimento legal em relação a isso. Se ela pode ganhar dinheiro fazendo programa com brasileiro, porque não pode, fazendo programa com um italiano? O taxista ganha dinheiro com o estrangeiro, a rede hoteleira ganha dinheiro com o estrangeiro, todo mundo ganha dinheiro.
Como você vê o movimento das profissionais do sexo em nosso País em relação aos outros?
Somos um dos países com o movimento mais forte, porque temos representações em 32 cidades do Brasil e muitos países da Europa. Às vezes, há uma associação somente em uma cidade, geralmente na capital do País. Recentemente, em Calcutá, na Índia, ganhamos um troféu de movimento mais moderno do mundo.
E como vocês lidam com o preconceito da sociedade?
É sempre fazendo ironia, como aconteceu com a Daspu, que dá uma visibilidade imensa. Acabamos de sair na revista Gol Linhas Aéreas, distribuída em todos os aviões da companhia, com o título A puta que pariu um sonho. Olha que maravilha, todo mundo que viaja de avião está lendo essa manchete. E acho que isso é uma luta contra o preconceito e vale mais que uma passeata.
Você acha que um dia a sociedade vai respeitar a prostituta como profissional?
Essa é a minha luta maior e acho que a luta das minhas colegas. A gente tem que acreditar nisso. O estigma e o preconceito existem em vários pontos, na pessoa que vive com Aids, nos homossexuais, nas travestis… Eu agora estou com câncer e percebi que existe um estigma com isso também. As pessoas não vivem com o diferente e temos que lutar contra isso, sempre, fazendo ironia. Esses dias, no restaurante, encontrei uma pessoa que não via há anos e eu estava usando um turbante. Comia perto da fila, quando a vi e ela gritou de longe “tá diferente, africanizou?” e eu falei “não, cancerizei”. Ela ficou tão sem graça (risos)!
Às vezes, muitas feministas falam contra as prostitutas e as tratam como vítimas. Como é a relação do movimento das prostitutas com o movimento das feministas?
É péssima. Sempre foi assim e em todo o mundo. As feministas – as ortodoxas, pois eu me considero feminista –, acham que a gente é vitima dos homens, do machismo, e tudo isso é muito simplista. Mas já existe uma linha do feminismo mais jovem, que dialoga com a gente. Mas uma vez eu estava nos Estados Unidos para conhecer o movimento feminista Bra-Burning, que queimou os sutiãs (na década de 1960). Quando me apresentei, falei: “Meu nome é Gabriela Leite, sou prostituta, sou feminista do Rio de Janeiro, Brasil”. Aí a presidente do movimento falou: “Você não é feminista. Prostituta não é feminista”, e eu disse que sim, e ela disse que não era. Ficamos assim até alguém interromper a discussão.
Participaram Ingrid Evangelista, Luana Viegas, Rafael Stemberg, Ramonna Abreu, Reynaldo Gosmão e Vânia Correia

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Foucault, um pensador político

O anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso

Renato Janine Ribeiro
Michel Foucault foi um pensador de muitas faces. Nós, de filosofia, gostamos de puxá-lo para nosso lado, mas ele teve forte impacto no Direito, na História, na Literatura. Este dossiê tenta dar conta de sua variedade. Começarei enfatizando seu papel político. Foucault veio a representar, para muitos, o melhor do 1968 francês e mundial. Confrontemos esse intelectual público modelar dos anos 60 e 70 com o filósofo que teve igual peso nas décadas anteriores – Sartre.
Jean-Paul Sartre foi o paradigma do pensador político francês entre o fim da 2ª Guerra Mundial e as barricadas do desejo, como Olgaria Matos chamou os movimentos de 1968. O eixo de sua posição consistiu, quisesse ele ou não, numa relação de proximidade crítica com o Partido Comunista. Sartre sempre foi mais democrata que os comunistas. Mas o PC era o partido dos operários, o portador da esperança revolucionária e, numa época em que a França fez de tudo para impedir a liberdade em suas colônias, a única força organizada de peso a contestar o colonialismo. Não dava para ser contra o PC e defender a liberdade. Hoje, quando a direita triunfa e Raymond Aron é visto como um pensador da liberdade (contra o totalitarismo comunista), muitos esquecem que, naquela época, o liberalismo reprimia e massacrava os povos.
Sartre soube disso e por isso mesmo seu pensamento e sua ação políticos tiveram por referência o comunismo. Foi muito crítico em relação ao movimento, como se pode ler em sua peça As mãos sujas (1948), mas não podia deixar de tê-lo por aliado. Vai criticá-lo com toda a severidade em seu “O fantasma de Stalin”, escrito logo depois da repressão soviética à Hungria, em 1956, mas nem por isso renega seu “Os comunistas e a paz”, de 1953, que defendia o Partido contra a repressão burguesa. O intelectual progressista assim se faz um “companheiro de viagem”, como se dizia. O rompimento de Sartre com Merleau-Ponty, aliás, se deve a posições distintas de ambos em face do comunismo e dos soviéticos.
Resumindo, há em Sartre uma preocupação com o social macro. É a sociedade como um todo, o mundo mesmo como um todo, que deve defender-se do capitalismo e de suas chacinas. Contra a ordem do capital, uma organização do trabalho é necessária – o que o Partido Comunista realiza. Mas Foucault verá as coisas de outro modo. Há várias maneiras de explicar essa diferença. O mundo mudou. As esperanças depostas num comunismo revisto, democratizado, foram-se. Em 1968, Brejnev manda na União Soviética. Isso significa a estagnação. Seu arremate é a destruição da Primavera de Praga, naquele ano – e, com isso, o fim (por muitas décadas, e talvez para sempre) da aposta num socialismo com rosto humano. Não há mais como ser companheiro crítico dos comunistas. E 1968 também vê a decisão do PC Francês de não levar o movimento das ruas à revolução: ele contenta-se com aumentos salariais. Mas a ruptura com o modelo sartriano era anterior a essa data.
Naquela década, o rompimento chamou-se estruturalismo. Dizia-se, o que hoje se esqueceu, que Foucault era um dos grandes estruturalistas – isto é, que dava a primazia à estrutura inconsciente sobre a ação consciente, ao macro sobre o micro, aos condicionantes sobre o voluntarismo. Isso vale para As palavras e as coisas, que revolucionou a leitura da filosofia e do pensamento clássicos, mas que, sobretudo, negava a possibilidade de pensar a passagem de uma época à seguinte por suas contradições internas: da Renascença ao tempo clássico/barroco e deste ao moderno, não se poderia explicar a lógica da mudança histórica.
Era essa a derrota da sincronia para a diacronia, com um estudo mais acurado das solidariedades que mantêm determinado sistema, mas, também, uma descrença na possibilidade de ruptura a partir de contradições internas. Era, portanto, um golpe no marxismo, que é dialético justamente porque define o real pela contradição, que é o que efetua a passagem de uma etapa da História a outra.
Sartre, por sua vez, era um moralista, no melhor sentido do termo. Sua grande questão era a ética. Embora nunca tenha escrito seu prometido grande livro filosófico sobre ela, sua intervenção política e suas peças de teatro – que lhe permitiam viver sem precisar submeter-se ao establishment universitário – respiram questões éticas o tempo todo. Por isso lhe causava repulsa a idéia de que nossas ações estivessem subordinadas a um quadro inconsciente, a um condicionante estrutural.
Mas essa oposição Sartre/Foucault não perdura. Hoje ninguém pensa em Foucault como estruturalista; aliás, o termo fez água, sumiu. E os dois se indignaram com a atitude do PCF em 1968 – só que Sartre saiu dali para tentar criar um clone maoísta do PC, enquanto Foucault foi defender ações pulverizadas, em escala micro, que negavam já por princípio o modelo da grande ação que mudasse o mundo.
Ficou algo de patético no Sartre dos últimos anos, que tentava com grupúsculos reconstruir um PCF: a tragédia era que lhes faltava o único mérito do PC, o tamanho, e lhes sobravam os vícios, como a opção pela ditadura. Já a escolha foucaultiana (ou foucaldiana, como querem alguns) implicava desistir da mudança do mundo por uma ação certeira, mirando o foco do inimigo, que era o capital. Não se acreditava mais que esse tipo de ação fosse possível (os poderes eram múltiplos, “mil poderezinhos”) nem desejável (o foco no centro manteria o poder como tal, só mudando o seu detentor).
Mas houve uma alegria nessa política dos enfrentamentos locais. Queria-se, talvez, menos; os críticos de Foucault alegavam que ele não punha em xeque o capital, apenas seus sintomas; os foucaultianos respondiam que não, que o poder assim se percebia mais complexo do que uma leitura simplista (leia-se: marxista) mostrava. Era inegável um débito de Foucault, como de Deleuze e Clastres, seus contemporâneos, com o anarquismo. Foi possivelmente essa a primeira vez que o anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso.
Onde estava essa alegria de pensar, que aliás aproximou todos esses autores de Nietzsche? Estava na disposição a agir na esfera local, na prontidão a ler sinais do novo, na idéia de que o poder estava em toda a parte – e, por isso, numa presteza a agir. Vejamos Vigiar e punir, livro de 1975, publicado quase às pressas (dizia-se que ia sair um livro pirateando as idéias de Foucault e que ele se antecipou a isso). Pouco a ver com o impacto d’As palavras e as coisas, que foi de 1967. As palavras falavam em quadros que condicionavam nosso pensamento e tornavam difícil o advento do novo. Vigiar tratava da ação, mais que do pensamento, e – se mostrava o peso do mundo disciplinar, se lia a modernidade a partir dos jesuítas e de sua imposição de uma ordem, barrando um agir livre – inspirava a cada página uma revolta, que se daria no plano da ação, mesmo que essa não fosse muito raciocinada, mesmo que (ou porque) ela prescindisse da macroteoria, da dialética, do marxismo.
Um balanço? Foucault foi muito criticado porque, na passagem de 1978 para 79, se entusiasmou por Khomeini. Não viu a teocracia que despontava em seu discurso; acreditou que a mobilização de massas a partir de uma fala não-ocidental constituía um fato novo e auspicioso. O erro foi grande, mas de quase nenhum efeito prático. Lembro um pensador de base marxista, condenando Foucault por lhe faltar uma base filosófica forte (leia-se: o marxismo) que o impedisse de erro tão banal. Mas lembro também que, ao contrário do comunismo, que teve seus gulags, o erro de Foucault não levou ninguém para o matadouro. Seu papel na Revolução Islâmica foi quase nulo, o de um mero simpatizante escrevendo para o Nouvel Observateur artigos que deram errado.
Em que pese esse erro, resta algo forte da política de Foucault. Penso que a prova dos nove, na filosofia política, reside na capacidade de inspirar o agir. O marxismo hoje inspira pouco o novo. Mas Foucault chama a agir, ainda que pontualmente. É curioso: a frase que motivou o Sartre derradeiro, “Sempre temos razão em nos revoltarmos”, poderia valer para ele, desde que reduzíssemos o peso da palavra razão, que fôssemos um pouco céticos diante dela…

O direito na política moderna

por sergio adorno

O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa

São bastante conhecidas as objeções de Foucault ao tratamento que a teoria política moderna atribuiu às relações entre direito e poder. Foucault recusa-se a aceitar a hegemonia que o modelo jurídico-político, herdeiro das tradições “jusnaturalistas” e contratualistas, centrado na idéia de soberania e no primado da lei, conquistou no interior do pensamento político, quer clássico, quer contemporâneo. À ficção jurídica do contrato, cuja substância se encarna na figura do príncipe pacificador, Foucault opôs uma mecânica de poder que opera sob a forma de infradireito (Foucault [1975] 1977a; [1976] 1977b; 1994, v. II-IV; [1976] 1999). Em Vigiar e punir (1977), Foucault reconhece que o século 19 elegeu a delinqüência como uma das engrenagens do poder e identificou a prisão como seu observatório político. Esse momento corresponde à emergência de uma nova mecânica de poder, que não diz mais respeito exclusivamente à lei e à repressão, mas que dispõe de uma riqueza estratégica porque investe sobre o corpo humano, não para supliciá-lo, contudo para adestrá-lo; não para expulsá-lo do convívio social, senão para explorar-lhe o máximo de suas potencialidades, tornando-o politicamente produtivo e economicamente dócil. Disso resulta que a disciplina não é uma estratégia de sujeição política exclusivamente repressiva, todavia positiva: o poder é produtor da individualidade, o indivíduo é uma produção do poder. Trata-se de uma forma de poder que se opõe ao modelo da soberania.
Essas conhecidas formulações de Foucault não conduzem, entretanto, a uma teoria geral do direito sob a égide do poder disciplinar. François Ewald (1993) sustenta que o direito, em Foucault, é antes de tudo um princípio de racionalidade que cabe percorrer em sua plenitude. Enquanto tal, impõe-se reconstruir sua história (afinal, o direito tem uma história?), o que significa, primeiramente, suspender a idéia mesma de direito, isto é, de um conjunto de regras universais e abstratas que circunscrevem o poder e o Estado.
No mais rigoroso nominalismo, Foucault decreta: o direito não existe; o que existe são práticas jurídicas referidas a um princípio de racionalidade – o do juízo, em lugar da coerção. É esse princípio que ordena as práticas legislativas, as doutrinas, a jurisprudência, a aplicação e distribuição da justiça.
Trata-se de um princípio atravessado pela história. Na história ocidental moderna, o juízo revestiu-se de legalidade. O direito enuncia-se sob a forma da lei inscrita nos códigos. Sob essa perspectiva, uma crítica arqueológica e genealógica do direito requer liberá-lo desse revestimento. É justamente o que faz Foucault em Vigiar e punir, em especial nas páginas consagradas ao exame da reforma iluminista da legislação penal verificada na França no período pós-revolucionário.
Em estudo recente, Fonseca (2002) aprofunda o lugar do direito no pensamento de Foucault. O direito define-se por seus usos. Fonseca reconhece ao menos três. O primeiro faz justamente referência ao direito como lei, imerso na arquitetura jurídico-política da soberania. O segundo compreende a extraordinária démarche em torno do poder disciplinar, magistralmente descrita na terceira parte de Vigiar e punir, seguida de seus ensaios, cursos e do 1o volume de História da sexualidade. Por fim, o terceiro uso introduz uma inovação: o apelo a um novo direito que percorre as entrelinhas de sua reflexão sobre a crise contemporânea das disciplinas (Foucault, 1994, v. III), a emergência de novos ilegalismos ([1975], 1977), em especial em seus cursos no Collège de France de 1975-76, “Em defesa da sociedade” (1999), e de 1978-79, “O nascimento da biopolítica” (1989), em parte dedicado à análise do liberalismo e do neo-liberalismo alemão e americano.
Esse terceiro uso é anunciado nos seguintes termos: “E creio que nos encontramos aqui numa espécie de ponto de estrangulamento: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar. De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Não é na direção do antigo direito de soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania” (1999, p. 47).
Um direito finalmente liberto do princípio da legalidade? Estamos diante da emergência de um novo princípio de juízo? O curso “Em defesa da sociedade” é devotado ao estudo das relações entre guerra e poder. Ao contrário do que sustenta certa tradição do pensamento ocidental, a emergência do mundo moderno não é por excelência o reino da paz sobre a guerra, nem a política é, como sonhava Clau-sewitz, a guerra pacificada sob outros meios. Examinando detidamente textos de historiadores contemporâneos dos processos revolucionários na Inglaterra e na França, Foucault reconhece que “a ordem civil é funda-mentalmente uma ordem de batalha”. A política é a continuação da guerra por outros meios. De que guerra se trata? A guerra das raças.
Na tradição clássica que adentra a Idade Média, o discurso histórico tinha por função justificar e fortalecer o poder. Seus fundamentos repousavam sobre três eixos: antiguidade dos reinos e conseqüente ancianidade do direito; glorificação dos reis e príncipes e de seus antecedentes; memorização dos feitos heróicos. A glória é feita lei.
A nova história, inaugurada com a emergência do mundo moderno, produz acentuada ruptura: em lugar do discurso histórico das virtudes da soberania, emerge o discurso das raças por meio das guerras entre nações, o que fez diluir a tradicional identidade entre povo e monarca. Daí em diante, a soberania terá precípua função: não mais o que une, porém o que subjuga.  A história de uns não é mais a história de todos. A lei vai aparecer como dupla face: “Triunfo de uns, submissão de outros”.
Assim, “o papel da história será o de mostrar que as leis enganam, que os reis se mascaram, que o poder ilude e que os historiadores mentem” (1999, p. 84). A nova história será, nessa medida, uma anti-história tendo em vista que desenterra o que parecia escondido nas saliências da memória: os reis, os poderosos, as leis nasceram justamente do acaso e da injustiça das batalhas. Trata-se, portanto, de uma história que reivindica direitos ignorados, a decifração de uma verdade selada pela dissimetria das raças e de seu contínuo enfrentamento bélico.
O desfecho desse processo, em fins do século 18 e meados do 19, encorajado pelos saberes médicos e biológicos, converterá a guerra das raças em racismo, de que se nutrirão todos os profetismos revolucionários que se seguem. Esse é justamente o momento do nascimento da biopolítica, a partir do que a questão da vida é problematizada no campo do pensamento político. Seus fundamentos repousam em dois eixos: nos séculos 17 e 18, emergem e se consolidam as técnicas de poder disciplinar em torno do corpo individualizado; na segunda metade do século 18, uma nova tecnologia ganha materialidade. Ela não exclui as técnicas disciplinares, antes as recobre. Dirige-se à multiplicidade dos homens, não enquanto portadores de corpos individualizados, todavia como massa global, afetada por processos coletivos como o nascimento, a morte, a produção, a doença. Suas técnicas residem na medição estatística de fenômenos demográficos. Seu alvo é a população como problema político e de gerenciamento estatal. Seu escopo não é o nascimento em si, porém a natalidade; não a morte, contudo a morbidade e a mortalidade.
Uma inovação dessa ordem inverte o clássico direito de soberania, o de mandar matar ou deixar viver, que se expressava na grande ritualização pública da morte. Com a invenção da biopolítica, um novo direito emerge: o de fazer viver e – em seu limite extremo – deixar morrer. Sob essa perspectiva, o direito é uma possibilidade, um mecanismo de regulamentação. Seu paradoxo é que, na era contemporânea, tenha-se tornando excessivo, numa espécie de superpoder ou supradireito. A estatização cada vez maior do direito à vida introduz uma possibilidade perturbadora: não só a da incessante fabricação da vida e dos viventes como também a fabricação de algo monstruoso, a possibilidade de sua eliminação sem controle por meio da disseminação de vírus, das armas químicas, da guerra sem interditos morais contra “as outras raças”.
O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que se é membro de uma população ou de uma raça. “Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu poder soberano” (1999, p. 309). Nesse cenário, no qual repúblicas parlamentares se inclinam muito rapidamente a Estados totalitários, se assiste paradoxalmente ao retorno do velho direito soberano de matar para se deixar viver.
Sergio Adornoprofessor do Departamento de Sociologia (FFLCH-USP) e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV–CEPID/USP
Referências bibliográficas
Ewald, F. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja. 1993.
Fonseca, M. A. Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad. 2002.
Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. (1975) 1977.
Foucault, M. “A vontade de saber”. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal. (1976) 1977.
Foucault, M. Resume des cours, 1970-1982. Paris: Julliard. 1989.
Foucault, M. Dits et ecrits. v. II-IV. Paris: Gallimard. 1994.
Foucault, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. (1975-76) 1999.

A palavra insensata

por eliane robert moraes

Para além de uma expressão estética, a literatura aparece para Foucault como o terreno privilegiado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento

Pouco antes de sua morte, em 1984, Michel Foucault publicou um texto notável, no qual interroga as qualidades de certos espaços que nos cercam. Para além dos locais empíricos,e bem como das utopias – que são posicionamentos fora da realidade –, ele destaca o que chama de “heterotopias”: lugares que, mesmo sendo localizáveis, se configuram como um lugar à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Cada heterotopia teria uma função no tecido social, que variaria entre pólos extremos: ora abrigando o desvio – como acontece com as prisões ou com os bordéis –, ora projetando os ideais de uma sociedade, como é o caso das bibliotecas ou dos museus.
A imagem mais bem acabada da heterotopia, porém, seria dada pelo barco. Como observa Foucault, o barco é um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao mesmo tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século 16 até os dias de hoje, não apenas como um importante instrumento do progresso econômico das sociedades, mas também como “a sua maior reserva de imaginação”. Nas civilizações sem barcos, conclui o autor, “os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a polícia, os corsários”.1?
Sonhos, aventuras, personagens fantasiosos – é digno de nota que o autor de As palavras e as coisastenha descrito o mais expressivo desses “outros espaços” por meio de elementos tão próprios à literatura. Aliás, o texto de Foucault sugere várias afinidades entre a escrita ficcional e as heterotopias: o que dizer, por exemplo, da função de “reserva de imaginação” atribuída aos barcos, que os aproxima definitivamente da escrita literária?
Com efeito, essa aproximação está longe de ser pontual, visto que ela retorna em diversas passagens da obra foucaltiana. A começar por sua insistente afirmação da espacialidade da linguagem, desenvolvida na contracorrente das teorias que advogam sua relação primitiva com o tempo. Foucault disse e repetiu inúmeras vezes que a dimensão temporal descreve apenas uma função da sintaxe, mas não o seu ser: “o que permite a um signo ser signo não é o tempo, mas o espaço”. Ou, em resumo: “a linguagem é espaço”.2?
Para justificar afirmativas tão categóricas, o autor lança mão de uma série de aspectos estruturais da linguagem, no empenho de confirmá-la como um sistema de signos que obedece a exigências sincrônicas, simultâneas, arquitetônicas e, por conseguinte, espaciais. Esse seria, se quisermos, o núcleo mais duro de seu pensamento sobre o tema, configurando concepções que por vezes chegam a resvalar em certo dogmatismo. Vale lembrar, contudo, que tal vertente de inspiração francamente estruturalista não esgota a formidável rede de relações entre espaço e literatura que ele explora com particular vigor.
Prova disso se encontra em vários textos seus, em especial os dedicados à moderna ficção européia, quase todos escritos nos anos 60. Num artigo consagrado a Maurice Blanchot, por exemplo, o autor toma um ponto de partida já fortemente marcado pela noção de espacialidade para definir a literatura como “a linguagem se colocando o mais distante possível dela mesma”.3? Trata-se, portanto, de uma definição tópica, que supõe um deslocamento essencial no modo de ser da linguagem, em paralelo a um novo tipo de experiência discursiva que surge a partir do século 19.
Experiência fundamentalmente negativa, completa Foucault, já que ela atenta sem cessar ao efeito de desrealização que repousa no horizonte de todo enunciado. Alheia a esse efeito, a fala cotidiana toma palavras e coisas como equivalentes, na crença de que a simples evocação do nome pode restituir a presença do ser. Se essa crença também está na base de toda estética da representação, é precisamente a ela que a literatura moderna vai dar as costas, ao postular a irrealidade como sua própria razão de ser. Daí sua inquietude, sua instabilidade, mas também seu poder e sua liberdade. Daí, principalmente, a sua insensatez.
Foucault vai eleger a obra de Blanchot como expressão exemplar desse discurso insensato, atentando para a prática da ausência que se trama em seus escritos. Com efeito, para o autor de A parte do fogo, a linguagem sempre impõe um recuo inevitável diante da existência: “Eu me nomeio, e é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa, e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio”.4?
A gravidade dessas palavras traduz o princípio trágico que, segundo Foucault, está na origem do discurso literário da modernidade: trata-se de convocar o ausente na condição de ausente, de tornar real sua presença fora dele mesmo e do mundo – enfim, de presentificá-lo em sua pura realidade de linguagem. Por isso mesmo, essa experiência negativa que é a literatura torna-se inseparável da fundação de um lugar impessoal, inumano, irreal – voltado para “o puro exterior onde as palavras se desenrolam infinitamente”, como quer Foucault – e que coincide com o que Blanchot chamou de “espaço literário”.
Ora, com tais considerações em mente, não seria pertinente uma aproximação entre o espaço fundado pela literatura e a heterotopia, cada qual configurando um lugar à parte no interior de um sistema? Afinal, como entender a aventura sensível de escritores como Roussel, Klossowski, Bataille ou Blanchot senão como formas possíveis de habitar esse “outro lugar” – ou esse outro modo de discurso que o autor de História da loucura define como “experiência radical da linguagem”?
Uma tal experiência implica necessariamente deslocamentos, transposições de bordas, passagens aos limiares. Ou, a exemplo do que Foucault propôs sobre Beckett, essas escritas estão sempre procurando ultrapassar os limites de sua própria regularidade. Por certo, não é difícil reconhecer tais atributos nas obras dos autores acima citados, aos quais poderíamos acrescentar ainda os nomes de Sade, Nietzsche, Nerval, Hölderlin ou Artaud, que estão entre os mais visitados nas análises foucaultianas. Não é difícil reconhecer tampouco as profundas afinidades que as experiências literárias levadas a cabo por esses artistas têm com outro tema fundamental para Foucault: a loucura.
Ao levar a linguagem ao extremo, expondo os confins da razão, esses escritores deixam a descoberto a ausência de sentido que torna possível todo sentido, selando uma aliança definitiva entre a palavra e a loucura. Dessa forma, em vez de subordinar a fala do louco à linguagem racional, como propõe a psiquiatria, a ficção moderna lhe dá uma voz, conferindo à sua experiência insensata uma profundidade e um poder que até então lhe haviam sido terminantemente recusados.
Mais que revelar o louco, porém, essa voz mostra que o discurso literário autêntico exige o risco da proximidade com a loucura. Como afirma Foucault ao analisar um livro de Bataille, cabe à ficção – enquanto expressão de uma experiência de linguagem –, “dizer o que não pode ser dito”.5? Para tanto, ela se impõe a difícil tarefa de reinstaurar o diálogo entre a razão e a desrazão, na tentativa de encontrar entre ambas uma linguagem comum que possa expressar, no limiar do possível, a experiência trágica do homem moderno.
Para além de uma expressão estética, portanto, a literatura aparece para Foucault como o terreno privile-giado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento. Abertura para a loucura, por certo, que supõe a ousadia de flutuar sobre o sentido, de acolher significados provisórios, de reinventar palavras – em suma, de habitar um espaço sem se fixar num lugar. Os escritores que se abandonaram a essa aventura não estavam, decididamente, em terra firme.
Impossível não recordar aqui a heterotopia do barco, espaço flutuante lançado ao infinito do mar, que também propõe uma imagem perfeita para esse lugar outro, onde a imaginação literária se deixa flutuar. E talvez seja difícil não associá-la igualmente àquela “nau dos insensatos” que Foucault evoca diversas vezes em História da loucura: um barco carregado de loucos, navegando à deriva e excedendo os horizontes da compreensão.
Eliane Robert Moraescrítica literária, professora de Estética e Literatura na PUC-SP e autora, dentre outros, dos livros Sade – A felicidade libertina (Imago) e O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp)

Um resistente nos Estados Unidos

por joãocamillo penna

Em seu último momento, ele se interessa por um novo tipo de luta social, por formas de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram da experiência da cultura gay em San Francisco

A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso, no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.
Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que um é em larga medida contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre amistosa, sendo freqüentemente marcada por uma ambigüidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de gênero ou a dos Estudos subalternos).
Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável, portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com Deleuze, Derrida, Lyotard…), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estados Unidos, perpasse tanto uma quanto a outra.
Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.
Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (lingüística ou culturalista), marcada por uma crítica hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão, como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.
Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas freqüentes visitas aos Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).
O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecerá de forma nítida no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a invenção de, a construção de, o nascimento de…
Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e, finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”). Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.
É precisamente a noção foucaultiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na Academia Norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e sistemática disciplina por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o Oriente, durante o período pós-iluminista”. Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro simétrico inverso do Ocidente.
Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do delinqüente que suplementa a prisão e duplica o delito. Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social, produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século 19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).
Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, é sua identidade constituída pelo saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que pretenda se libertar dessa forma aprisionada. Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical (a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher, abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do último Foucault.
Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o homossexual torna-se um personagem, compreendido como um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição destas “sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como comportamento compulsório.
Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que falei no início.
João Camillo Pennaprofessor no Departamento de Ciência da Literatura, na UFRJ. Publicou, dentre outros, “Este corpo, esta dor, esta fome:  notas sobre o testemunho hispano-americano” in Seligmann-Silva, Márcio (Org.).História-Memória-Literatura. O testemunho na  era das catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, e organizou, com Virgínia Figueiredo, A imitação dos modernos, de Philippe Lacoue-Labarthe. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000