quinta-feira, 28 de maio de 2015

hypomnemata 175

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 175, abril de 2015.

Direto na direita...

bandeira de sangue
O Brasil é uma criação neste território invadido e delimitado pelos portugueses, como muitos outros espaços o foram por espanhóis, franceses, holandeses, ingleses, etc., desde 1500. O Brasil não é um indivíduo.
Nestas terras, desde o começo, fez-se uma opção pelo extermínio contumaz de indígenas guerreiros, passando pelas abomináveis violências oriundas do negócio de sequestros de homens e mulheres que viviam na África para aqui servirem como escravos.
Não só o Brasil foi resultado desses negócios. Não precisamos atravessar Oceanos: nas Américas e Caribe, massacres, genocídios e escravidão impregnam todas as bandeiras. O "diferencial" brasileiro foi a manutenção da escravidão até o “último minuto", com toda tortura e repressão alimentadíssimas pelo medo de uma revolta dos escravos à la Haiti (apesar da “ideologia” açucarada de relações entre casa grande e senzala...)...O terror policial era arma desejada e patrocinada pelos proprietários das “peças” negras.
No final do século XIX, após a proclamação da República e durante todo o século seguinte, a violência continuou. Arthur Bernardes ergueu, em 1922, o campo de concentração da Clevelândia do Norte, destinado, sobretudo, a isolar até a morte militantes anarquistas como o negro Domingos Passos.
Seguiu-se a isso, dos anos 1930 até o meio da década seguinte, a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e, após um breve intervalo, o golpe civil-militar de 1964, responsável pelo “desaparecimento” e assassinato de inúmeras existências identificadas como subversivas.
A chegada da democracia negociada não transformou essa História.
O sangue seguiu escorrendo por Carandirus, Febens, Casas, Candelárias, Carajás, Pinheirinhos, Cracolândias, Complexos, Favelas, Vielas, Caatingas e Gerais. Por essas e outras, o alerta dos anarquistas segue ainda mais urgente e vital.

simbologias
A bandeira do Brasil, erguida ou disposta como invólucro daqueles que em março de 2015 foram às ruas se manifestar pelo impeachment da presidente ou pela volta dos militares, franqueia não somente a conivência, mas o desejo de perpetuação deste banho de sangue.
E tudo se passou no teatro democrático, no qual os vândalos são sempre os outros.
Criada em 1889, classificada pelo Estado (ao lado das armas nacionais, do hino nacional e do selo nacional) como “símbolo oficial da República Federativa do Brasil”, o pedaço de pano com a inscrição “ordem e progresso” foi objeto de valorização durante as ditaduras, em especial, após o AI-5.
Durante o governo de Garrastazu Médici, a partir de 1969, qualquer ato que ferisse o “respeito à Bandeira nacional” passou a ser considerado contravenção passível de punição, o que foi flexibilizado durante as comemorações da vitória na Copa do Mundo, no ano seguinte e nos subsequentes ufanismos.
Não foi por acaso ou como mera expressão de “minoria numérica”, segundo antigas lideranças sempre de plantão ou de sua ala renovada, que o apelo ao golpe civil-militar entrou na pauta de imposições dos grupos que saíram às ruas de boa parte das cidades do país vestindo verde-e-amarelo.
Também não foi fortuito que entre os que subiram e tiveram direito à palavra no alto dos carros de som da Avenida Paulista, em São Paulo, estivesse o torturador Carlinhos Metralha, conhecido também como Capa Preta, integrante da corja canalha e macabra do Delegado Fleury à frente do DOPS de São Paulo.
E também não foi acidental o desfile de fascistas como certos grupos neonazistas e skinheads no alegado evento cívico.
O que se viu em março de 2015 não foi uma manifestação, como expuseram variadas mídias, mas sim uma marcha.
Transvestida com roupagem jovial, esportiva e com maquiagem vespertina, reclamava-se o velho ramerrame covarde por mais Estado e mais polícia, em um desfile de mortos-vivos mais próximo a um filme de José Mojica Marins ou ao célebre clipe de Michael Jackson, “Thriller” (sem a dança, é claro!).
Diante do que sempre está putrefato, nas décadas de 1970 e 1980, o jornal anarquista O Inimigo do Rei, para além de resistir à ditadura civil-militar, de posicionar-se a favor da liberação de todos os presos enquanto parte da esquerda negociava a anistia, e de experimentar a liberação das drogas e do sexo com muito humor, afirmava com insistência que a velhice não era uma questão etária, mas sim uma questão de abrir mão da vida.

o sequestro das palavras
Entre os que organizaram a mistura de marcha com rave, algumas características de micareta, torcida organizada da CBF, etc. e tal, um grupo em especial adotou a palavra “revolta”, termo caro à carne de alguns que se lançaram contra o Estado, contra a uniformidade das bandeiras, sejam elas de qualquer tipo.
"A anarquia não pode deixar de ser a negação do conjunto do sistema autoritário, e que em período de luta é a prática da desobediência, da insubmissão, da indisciplina, numa palavra, da revolta", afirmou Sébastien Faure ainda no século XIX.
O sequestro dessa palavra, usada por corajosos homens e mulheres que se lançaram ao fogo das lutas e contra a instituição de qualquer polícia, expõe a tolice de alguns e o oportunismo cabotino de outros.
Assim como grupos partidários à esquerda e à direita dão continuidade ao roubo da palavra libertário, iniciado pelos neoliberais estadunidenses, os cidadãos de bens de consumo se dizem revoltados com a situação do país.
Não há revolta pela ordem, não há revolta organizada, não há revolta pela nação, não há revolta com selfie ao lado da polícia.


qual esquerda, qual direita?
notas sobre igualitarismo e liberdade

Em junho de 2013 especialistas de todas as cores e posições correram para argumentar sobre a instauração de uma crise: crise de representação, crise econômica, crise política, crise das instituições, etc. e tal.
Atordoados, não sabiam bem o que se passava, não tinham a certeza se o tremor era efeito do movimento das placas tectônicas ou de suas acomodações.
Sentiu-se o tremor, e na ânsia de explicá-lo ou reivindicá-lo para sua predileta ideologia, muitos se pouparam da embriaguez da emergência, com cálices de sensatez.
Algo se passou ali, pois o frescor da revolta dançava pelas ruas com bailarinos embriagados, sensuais e iracundos.
Um efeito singular das revoltas e de toda insurgência: despertar temor e escancarar a encenação da prudência dos governantes e diretores de consciência para levá-los a explicitar sua retranca política e analítica.
Quando uma revolta estoura, ordem e contraordem (elites e dirigentes) unem-se em um generalizado pedido de calma, em um desesperado lamento por ordem.
Também entre os que se revoltam há os que logo aderem à prudência, passando de revoltados a revolucionários juramentados, agentes da contraordem na construção de uma idílica nova ordem. Ao verem sua cabeça a prêmio, sucumbem à razão, mesmo que mantenham a íntima convicção de que tudo se move.
Mas há os que tomados pelo espanto ou pelo horror afirmam, sob o risco da morte e com seu corpo em jogo, que o planeta segue girando.
São os iracundos, os indisciplinados, os incontroláveis, os destemperados, os insuportáveis, enfim, uma força ingovernável.
Afirmam a vida, não por convicção, mas porque há coisas vividas que se transformam irreversivelmente. Muda a vida, a forma como a encaramos, a existência de cada um.
Quase dois anos depois de junho de 2013 as ruas de várias cidades do Brasil foram tomadas novamente, desta vez pelas sobras de verde amarelo guardadas da recente Copa das Copas, como alerdou o governo federal.
Não há paralelo.
Junho de 2013 foi um acontecimento.
Março de 2015 foi uma marcha no interior de uma alegada crise.
Expôs os efeitos da restauração: a crise anunciada pelas elites intelectuais bem pagas por seus patrões empresariais e governamentais “reapareceu”, agora, como uma explicitação do lugar da direita em todos os governos. Mas ela quer mais!
Tudo o que se disse contra partidos, sindicatos, parlamentos e instituições de representação foi reparado, primeiro pelas eleições majoritárias no final de 2014, e depois pelas disputas ressentidas em torno de adversários, vencedores e perdedores.
Sabe-se de onde provêm os termos esquerda e direita: do lugar ocupado na assembleia do Estado francês entre jacobinos e girondinos.
Sabe-se, também, que cortar cabeças não é privilégio de um nem de outro, ainda que os procriadores de verdades, de um e de outro lado, acusem-se mutuamente de ordenadores de genocídios.
Cortar cabeças, praticar genocídios, condenar ao ostracismo, eliminar o outro, são todas elas práticas próprias da política em nome da nação, do povo, da raça, dos burgueses, da grande massa abúlica e famélica.
E isso não é o mesmo que dizer: tudo se equivale. É somente constatar a obediência dos que seguem na disputa à mesma racionalidade por medo, esperança ou omissão.
A direita modorrenta, autodeclarada democrática, que tomou as ruas em março de 2015 é sala e antessala do fascismo borbulhando sangue e sedenta de mais sangue nos seus surrados cotidianos a serem assegurados.
Não se trata de disputa partidária, mas de certa forma de fazer e imaginar, certo cálculo diante da vida regrada de cada cidade com o cidadão metamorfoseado em policial de si e dos outros.
Dois lados e uma mesma coisa, a política no espelho: direita e esquerda.
Os anarquistas foram os primeiros a notarem isso, logo após a experiência parlamentar de Proudhon durante a Primavera dos Povos.
Libertários, como Max Stirner, na mesma década de 1840, indicavam essas variações políticas de abstrações, voltadas à construção de verdades que visam governar e suprimir a singularidade de cada um.
Os embates dos séculos XIX e XX acomodaram essa disputa estatal entre socialistas e liberais, os primeiros igualitaristas e os segundos favoráveis à liberdade individual. Os acontecimentos ao longo do século XX confirmaram as inaugurais análises dos libertários.
Entretanto, o conservadorismo hoje nas ruas e em redes sociais não é novo, tampouco deriva como causa ou distorção das jornadas de junho.
Ele está inscrito na história pregressa e recente de um Brasil acostumado às oligarquias, aos dirigentes sindicais amasiados com o Estado, aos intelectuais iluminados, às vanguardas artísticas patrocinadas, aos barões da mídia, aos casamentos de celebridades, aos pastores pentecostais, aos partidos e movimentos sociais messiânicos, aos empreendedores, enfim, às modulações de um pastorado expandido com suas posses, distinções e sobrenomes, e o outro tanto de desesperados pedintes.
Hoje, quando se anuncia uma “nova direita” nacionalista, amante de Miami, defensora da redução da maioridade penal e da pena de morte, escorada no dinheiro do agronegócio e saudosa da ditadura civil-militar, é preciso perguntar-se: qual direita?, qual esquerda?
O temor pelo crescimento desta direita foi o lastro do governo que se diz progressista e de esquerda. Mas a direita sempre esteve aí, inclusive ao lado do mesmo governo. No máximo, ela terá a conduta colonizada de sempre: mostrar-se institucionalizada e justa como já é a extrema direita europeia na companhia do Pegida e similares.
Assim como a esquerda, que partilha da mesma racionalidade de colonizados e se agita para imitar a nova esquerda europeia, ironicamente inspirada na velha esquerda latino-americana; assim como os guerrilheiros europeus se espelharam em táticas e estratégias dos guerrilheiros latino-americanos nos anos 1980. Tudo muito europeu: tudo muitotercer mundo. Tudo velho!
De fato, novo e velho não é uma questão etária.
Há certa forma de fazer e imaginar globalmente, desde fins dos anos 1970, como reação aos rebeldes de 68, que exige inovação, criatividade, jovialidade performática, um pouquinho de contestação (não muito!) e transgressão renovadora da ordem.
O que governa as condutas econômicas também governa a política institucional, e por isso tanta divulgação de velhas novidades.
Prato cheio para os diretores de consciência e para os jovens escolarizados e hiperconectados que se debatem em torno da última novidade de todos os tempos da última semana.
O século XX mostrou que o igualitarismo propalado pela esquerda socialista não passou o nível do despotismo, e a liberdade individual, defendida pela direita liberal, não passa de um culto obstinado à segurança.
Num tempo em que muitos desejam ordem e segurança, esquerda e direita disputam projetos e projeções, brincam de escravos de Jó em torno do centro e reconhecem firma de seus progressos.
Os rebeldes e insurgentes seguem livres, iguais e diferentes. Ousam saber o que defendem e não vacilam sobre quem atacar. Suas presenças desatam os pactos dos adversários complementares e os unificam institucionalmente em torno de uma frágil segurança armada e monitorada.
Os libertários não são uma novidade. São críticos contumazes da esquerda e inimigos declarados da direita, institucionalizada ou não.
Sempre estiveram aí, prontos para o embate, como minoria potente que perturba o sono dos contentes.
Olham para cima não para governar ou elaborar tratados filosóficos. Apreensivos, veem no espaço sideral, além das estrelas vivas, cujas luzes ainda não enxergamos, as galáxias, a escuridão do universo tingida de clareza pela rotação da Terra e a sua ocupação capitalista.