terça-feira, 30 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Psiquiatras e Políticas Públicas de Saúde Mental

Olá, gentes! Ontem estivemos no Salão de Atos da Universidade de Ijuí, ouvindo e disparando conversas sobre "O Sistema de Saúde e o desafio da Clínica Ampliada", a partir da fala do Gustavo Tenório Cunha, consultor da Política Nacional de Humanização.
Todos nós que recusamos a herança das velhas concepções e práticas da dita "saúde mental" promovida a partir da perspectiva enlouquecedora e curativa, pautada pelo centralismo do saber médico e pelo enclausuramento daqueles que não viviam dentro do riscado reconhecido como possível... todos nós sabemos o quão importante é podermos produzir espaços de conversa, de potência, de vitalidade, de vida para os trabalhadores em políticas públicas e para os usuários.
Trago das discussões partilhadas nas rodas de conversa da Redução de Danos, uma idéia que me comove e mostra por onde nossas sandálias estejam nos levando... e isso se refere a dois pontos desse campo político: primeiro, o fato da redução de danos ter brotado da mobilização e articulação dos usuários, dos trabalhadores em saúde e das comunidades. Tomo esse ponto porque ele nos mostra algo que não se constitui somente numa metodologia de trabalho, mas principalmente num modo de viver as coisas da existência e de nos relacionarmos com nosso trabalho e com as pessoas com que trabalhamos! O outro ponto, refere-se ao desenho que Eduardo Passos e Tadeu de Paula Souza deram à noção de contágio - aproveitando o elemento prático que fez do cuidado com o contágio o mote para a arrancada inicial da RD -, transformando-a em potência vitalizadora, quando se empoetam para dizerem que: "o engajamento dos projetos de RD ia se fazendo como uma militância clínico-política. A política pública ganhava seu sentido forte. Dessa forma, a RD foi acionando, à margem do Estado, uma dinâmica de 'contágio'  e propagação de propostas de cuidado de si, fundando um espaço underground das políticas de drogas. O termo underground indica o lugar marginal das políticas da RD. Tal lugar, espaço tanto físico quanto político, sediou importantes articulações clínico-políticas, alterando a paisagem dos terrítório geográficos e territórios existenciais marginalizados. No underground a RD constituiu um contexto local de produção de redes de cuidado" (Em: Ética e Subjetividade - novos impasses no contemporâneo, Ed. Sulina, 2009, p. 101). Isso talvez seja precioso somente para quem não viva no elitismo das idéias e das práticas profissionais.
Portanto, gostaria de sugerir que façamos da possibilidade de contágio de nossas idéias, de nossas práticas, de nossas teias formando redes de solidariedade e produção de vida, um contraponto a essas coisas que a colega Daniela Menezes noticiou-me por email, no dia de hoje, quando me preparava para escrever algumas coisas sobre o encontro de ontem.
Estou postando escritos que estão circulando por email, para que possamos disparar, rizomaticamente, nossos torpedos para discussão! Aí segue o material:
Companheiros, diante das mensagens recebidas por esta lista, resolvi navegar pelo site da Associação Brasileira de Psiquiatria, o que sugiro que vocês também o façam, quando possível: www.abpbrasil.org.br
Acho importante tomarmos conhecimento do conteúdo das materiais veiculadas por esta instituição, como a que colei no corpo do e-mail, cujo título é: “Vocês precisam se rebelar contra isso”.
No site, há um ícone de contato por meio do qual podemos enviar nossas manifestações também à entidade, o que considero bem importante no atual momento.
Abraços a todos e a todas!!! Karla Gomes Nunes - CRP 07/16.420
“Vocês precisam se rebelar contra isso” - 29/10/2010
Em uma conferência inflamada, o vice-presidente do CFM foi aplaudido de pé ao defender a resistência dos psiquiatras à orientação das políticas públicas de saúde mental.
Emmanuel Fortes, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e recém-eleito para o conselho fiscal da ABP, protagonizou um dos momentos marcantes deste XXVIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Ele foi aplaudido de pé por um auditório lotado ao convocar uma forte reação dos médicos contra os ataques sistemáticos de que eles têm sido vítimas ultimamente. “Vocês precisam se rebelar contra isso”, afirmou.
Relator de um dos temas da mesa redonda “O CFM cada vez mais perto dos médicos”, Fortes fez um resgate histórico da legislação relativa à saúde mental e demonstrou como atualmente existe a intenção de se “tratar a intervenção médica como ato autoritário”. Lembrou que projetos de lei foram encaminhados com a justificativa de coibir “o poder de seqüestro do dispositivo psiquiátrico”. Este raciocínio, na opinião do vice-presidente do CFM, deixa claro o que determinados grupos pensam sobre os psiquiatras.
Fortes recordou também alguns dos dispositivos que regulam os CAPS, como “só poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura hospitalar” e que uma das suas funções será oferecer “acolhimento noturno”, que, na interpretação do vice-presidente do CFM, é um eufemismo esperto para a internação. “Dessa maneira eles excluem os médicos”.
Todo esse movimento seria inofensivo se não tivesse sido adotado pela administração pública como política de saúde. Antonio Geraldo da Silva, presidente da ABP, coordenou a mesa redonda e resumiu o que deve ser o objetivo da rebelião pregada por Fortes. “Temos que convencer o Ministério da Saúde a voltar a atuar com base na ciência e não na ideologia”.
A mesa redonda também serviu para demonstrar, mais uma vez, a crescente integração entre o CFM e a ABP, fato que na opinião de Antonio Geraldo vai facilitar a valorização dos psiquiatras. O presidente da ABP afirmou que a Câmara Técnica de Psiquiatria do CFM, da qual faz parte, está analisando toda a legislação relativa à saúde mental para, posteriormente, propor uma resolução que garanta que “o paciente tem direito ao melhor tratamento”. Indicado, invariavelmente, por um médico.
Código de Ética
Na mesma mesa redonda, o presidente do CRM de Goiás e secretário regional do Centro-Oeste da ABP, Salomão Rodrigues, tratou do tema “O psiquiatra e o novo Código de Ética”. Segundo ele, apenas 8% dos médicos leram o Código de Ética da profissão. E 2/3 das denúncias recebidas pelo CRM estão relacionadas a atos praticados por desconhecimento dessas normas de conduta. “Leiam o código”, aconselhou.

PESSOAS
Segue uma "carta" em resposta ao artigo do presidente da ABP(q está no fim deste texto). Espero que vcs a reencaminhe a quem tiver interesse. Aguardo a contra-resposta desse senhor. Aceito comentários dos amigos. Precisamos nos articular pra tecer estratégias ante situações como esta. abs. Sérgio Pinho

CARTA ao Senhor Antonio Geraldo da Silva
Presidente eleito da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
Senhor Silva
Salve !!!
Saúdo algo de educado que há em ti, mas, ao invés de cumprimentar-te, caberia estender-te as mãos, para auxiliar-te a sair desse poço ermo e insalubre – as trevas da ignorância. Por defender “interesses políticos e corporativistas”, como o senhor pretende denunciar, vestes a carapuça, com o propósito de reanimar o modelo psiquiátrico “hospitalocêntrico”, e afundas no lodo do preconceito, onde proliferam os vermes das concepções equivocadas, fundamentadas em dados forjados pelos ocultos financiadores dos estudos de encomenda. É triste a tua situação!
Hospital psiquiátrico jamais trouxe nada de positivo às pessoas. Às pessoas sim, porque aqueles aos quais o sr. denominou de “pacientes”, não são mais figuras passivas e apáticas que habitavam instituições asilares conhecidas como hospícios. São pessoas que sofreram (ou ainda sofrem) problemas psíquicos ou transtornos mentais; que chegam a serem definidas como “deficientes psicossociais(?)”; pessoas que se perderam no labirinto da loucura, mas, que merecem ser reconhecidas como seres humanos dignos, com “o direito de ter o melhor tratamento”, como dizes.
Isso que chamas de “tratamento”, restringe-se à contenção química, física ou elétrica e, não chega perto do cuidado que a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial preconiza. É o modelo de cuidado biopsicossocial, a possibilitar a atenção duma equipe multidisciplinar (inclusive com psiquiatras), para acolher o sujeito que a procura ou que a ela é conduzido, em surto ou não, com o objetivo de sanar determinada situação. Ali, ele encontra um Projeto Terapêutico Individual adequado à sua realidade. Isso sim é “humanizar o tratamento”, como o sr. menciona. “Humanizar”, nesse sentido, é trazer o cuidado próximo do homem.
Ora, se fiz referência a um CAPS ideal, do qual diversas unidades espalhadas pelo país, a cada dia, mais se aproximam, reconheço a carência de investimentos da maioria dos serviços de saúde mental, tanto nas estruturas em funcionamento, quanto na educação permanente das equipes técnicas. Entrementes, conheço muita gente que ousa afirmar que “o pior CAPS é melhor do que qualquer manicômio”. Gente que viveu as duas realidades, seja como paciente de um hospital ou usuário de um serviço substitutivo; gente que esteve trancafiada, foi violentada, desprezada, e passou a ser acolhida, assistida, considerada; pessoas que podem falar da política pública de saúde mental com propriedade, conhecimento de causa, autenticidade, como o sorriso genuíno que escapole de uma boca sem dentes.
Eu, sr. Silva, por não ter sofrido os piores horrores nessas pocilgas, como os eletrochoques ou as camisas-de-força, talvez não seja aquele que deveria responder-te à altura. Todavia, estes que passaram por tais martírios (que legitimas como “EletroConvulsoTerapia”), em sua maioria, sofrem os danos provocados por tamanha tortura. Onde estaria algo de “melhor tratamento” em tal prática ? Onde repousa tua razão, ao indicar ECT ? (...) Então, assumo o encargo de escrever-te, situando-me como alguém que também passou pela violência da contenção física ou química em um hospital e, veio encontrar-se no acolhimento em um CAPS II, onde percebi a lógica libertária antimanicomial, que permite minha participação. Porém, como sei que o sr. pode argumentar que não sirva de referência às tuas citações, respondo-te que já estive em situações, nas quais não seria possível sequer escrever uma carta como esta. Era preciso um CAPS III 24hs, para acolher-me nesses momentos. E não havia um. Até hoje, poucos foram implantados. Muitos usuários e familiares que alegam falta de assistência, não aderiram à ideologia antimanicomial, nem se implicaram no cuidado biopsicossocial, porque não conhecem as possibilidades ofertadas por um CAPS III 24hs, por Residências Terapêuticas ou Centros de Convivência. E, essa é uma lacuna na política de saúde atual, que agrada àqueles opositores do SUS, onde parece estar o senhor.
Portanto, apenas pessoas com algum discernimento crítico podem compreender o quanto é necessário à construção de vínculos nesses espaços, pra viabilizar qualquer reabilitação, ou mesmo inclusão social. Sejam com as famílias, sejam com os “ambientes terapêuticos” (como propõe a lei 10.216/2001), é preciso construir vínculos com a realidade das histórias humanas em interação. É isso que a filosofia de atenção e cuidado facilita, ao consolidar-se nas relações entre pessoas. É daí que precisamos de equipes multidisciplinares – de pessoas em parceria na prática psicossocial – pessoas que partilham.
Esses vínculos serviram de ponte para meu resgate pessoal, a ponto de dirigir-me a um médico psiquiatra como o sr. (presidente eleito da ABP) para dizer-te o quanto está equivocado, ao afirmar que “o melhor tratamento apenas o médico pode indicar” e “o diagnóstico médico define a internação”. Essa tua defesa do “Ato Médico” remete à minha história clínica. Há 27 anos, um psiquiatra psicoterapeuta presenteou-me com o diagnóstico da esquizofrenia; anos mais tarde, outro me disse que era psicótico; depois, mais um deles chamou-me de bipolar. Agora, após passar algum período como usuário de um CAPS, reconheço-me como pessoa, gente, cidadão. Alguém que merece certos cuidados, por conseguinte, aprende a se cuidar. Diagnósticos psiquiátricos, sr. Silva, na opinião de quem sofreu seus empregos, servem para situar estudos acadêmicos e, tais estudos, servem pra potencializar a práxis de cuidadores. No mais, diagnósticos são rótulos que podem ser descolados das embalagens e inutilizados como lixo. É o que pensa alguém como eu, que sofreu a desorganização da loucura e vem encontrando-se no mundo, pela Graça de ser cuidado em liberdade, com a atenção proporcionada pelos serviços substitutivos da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Esse sou eu. Por isso, em meu lugar, o desafio:
- Cite, ao menos, um caso de Reabilitação Psicossocial advindo de hospitais psiquiátricos ? ...
Bem, mesmo que o sr. possa enumerar alguns “pacientes” que foram “tratados” por ti, como “indivíduos aptos à convivência social”, ou algo semelhante (se há “cura para a loucura), entendo que falta-te qualificação para apresentar-te com credibilidade enquanto ser humano, pessoa de bem, que defende uma plataforma decente no âmbito dos médicos psiquiatras. Estes profissionais especializados no estudo permanente da medicina são capazes de reconhecer que, essa ciência vem evoluindo desde Hipócrates, em busca do melhor cuidado à saúde humana. Estamos à procura de arquitetar o melhor cuidado possível.
Enfim, seguindo minha jovem militância no Movimento Social da Luta Antimanicomial, resta-me sugerir-te, senhor Antônio Geraldo da Silva, que desnuda-te diante de um espelho e contemple os fios de luz da loucura em teus olhos. Assim, com a retina enlouquecida e o sentimento à flor da pele, conheça o quanto da humanidade há em ti. Ao saber-te homem, sorria e perceba quão bom é estudar, aprender, conhecer, pelo menos - a lembrar de Sócrates – conhecer a ti mesmo.
É !!! Siga teu caminho, doutor (se algum doutorado tens) e recorde aquele a quem viste no espelho, pois, a Coordenação de Saúde Mental do Governo segue o curso da política pública concebida por uma coletividade, independente com o modo pelo qual encaminhe tua gestão à frente duma associação de classe.
Sem mais delongas, até...
Sérgio Pinho dos Santos Vice-presidente da Associação Metamorfose Ambulante de usuários e familiares do sistema de saúde mental do estado da Bahia – AMEA – Ba.

Eis o artigo que merece essa resposta...
'Políticas públicas de saúde mental são contrárias aos médicos', diz especialista
Novo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) é eleito afirmando que vai defender os psiquiatras e, por consequência, os pacientes da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde
O psiquiatra Antonio Geraldo da Silva passou os últimos meses em campanha para se tornar o novo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Seu principal argumento para conquistar o cargo era que, uma vez eleito, promoveria uma “defesa intransigente da psiquiatria, dos psiquiatras e dos pacientes”.
No último dia 26 ganhou as eleições com 2/3 dos votos.
A receptividade a esse discurso se explica pela conclusão dos psiquiatras de que o Ministério da Saúde patrocina uma política de saúde mental contrária aos médicos psiquiatras, à medicina e, por consequência, aos pacientes. “Os responsáveis pela área estão orientados por interesses ideológicos e corporativistas. Para atingir seus objetivos, precisam afastar os critérios técnicos e científicos das decisões, ou seja, se livrar dos médicos”, esclarece o presidente da ABP.
Segundo Antonio Geraldo, com a justificativa de “humanizar o tratamento”, grupos militantes na saúde mental com forte influência no Governo pretendem reclassificar a doença mental como um problema social. “Assim, a condução das políticas de saúde deixa de ser atribuição dos médicos e passa ao controle dos ‘movimentos sociais’. Este é o verdadeiro objetivo”, diz.
Nos últimos anos, de acordo com o presidente da ABP, a coordenação de Saúde mental do Ministério da Saúde vem, por meio de portarias, tentando subtrair da assistência os princípios da Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
“Esta lei garante, expressamente, ao paciente o direito a ‘ter acesso ao melhor tratamento, consentâneo às suas necessidades’. O melhor tratamento apenas o médico é capaz de indicar e ele pode ser, dependendo do caso, tanto um acompanhamento extra-hospitalar até a internação em um hospital geral com unidade de psiquiatria ou hospital especializado, alguns casos não responsivos a terapia pode ter a necessidade de eletroconvulsoterapia. É o diagnóstico médico que define a intervenção e não ideologias pré-históricas ou a necessidade de alimentar mercados de trabalho. Infelizmente, o conceito de ‘melhor tratamento’ se opõe aos atuais interesses da coordenação de saúde mental do Ministério da Saúde e por isso foi substituído por tratamento ‘humanitário’, como se o tratamento médico não fosse humanizado”, esclarece Antonio Geraldo.
Para promover essa mudança de orientação na assistência, o Ministério da Saúde vem implantando o que denomina “reforma psiquiátrica”, que basicamente prega a extinção dos hospitais especializados e a concentração dos atendimentos nos CAPS. Estratégia que se opõe à Lei 10.216, “É um erro, promovido por má fé e ignorância. Os CAPS são bons instrumentos, mas incapazes de atender a demanda dos pacientes e a complexidade de determinados transtornos. Essas unidades devem estar inseridas dentro de uma rede, que se sucede com promoção de saúde, prevenção de doença, atendimento primário, secundário e terciário. Obviamente que não concordamos (e sempre lutamos contra) com os serviços de má qualidade. Mas, nesses casos, as ferramentas devem receber investimento para melhorar o atendimento e não serem simplesmente fechada sem análise técnica, visando apenas a redução de custos e a condenação de determinados diagnósticos psiquiátricos”, diz Antonio Geraldo.
A postura antimedicina da dita “reforma” pode ser observada nas normas que regulamentam os CAPS, símbolo do movimento. Segundo as regras, essas unidades só poderão funcionar em área física específica e independente que qualquer estrutura hospitalar. “Por que essa determinação? A proximidade com um hospital pode trazer diversos benefícios. Não existe qualquer indicação técnica que sustente o contrário. É um raciocínio dogmático a serviço de interesses estranhos à saúde”, afirma o presidente da ABP.
Entre as funções do CAPS está a oferta de “acolhimento noturno”. “Essa expressão é um eufemismo para internação. Ao dizer que ‘acolhem’, não se obrigam a ter um médico para diagnosticar a necessidade de internação”, explica. "Quem ficaria tranquilo em deixar um filho, durante um surto psicótico, em um serviço sem médicos?", pergunta.
A prioridade para esse tema foi fundamental para Antonio Geraldo se tornar o novo presidente da ABP, e ele não pretende decepcionar os psiquiatras. “Vamos lutar para abolir a ideologia e o corporativismo das políticas públicas e exigir que a saúde volte a ser planejada com base na ciência, conduzida por médicos comprometidos com os conhecimentos técnicos e que tenha como finalidade atender as necessidades do paciente, o que hoje não é o caso. Aqueles que necessitam do serviço público para tratamento próprio ou de familiares sabem muito bem do que estou falando”, finaliza.
Autor: Assessoria de Imprensa
Fonte: ABP

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Drogas para além do bem e do mal

Tirar o mofo do proibicionismo e arejar o pensamento sobre drogas
Em meio a toda essa euforia bélica que apresenta a imposição da paz com armas e blindados, oferecemos artigo do Prof. Dr. Guilherme Corrêa do Centro de Educação da UFSM e coordenador do "Projeto ítaca: Redução de Danos como ferramenta para práticas intersetoriais em saúde" desenvolvido com financiamento do Ministério da Saúde. Tirar o mofo do proibicionismo e arejar o pensamento... "paz sem voz, não é paz, é medo!"
Grupo Ítaca
Em: http://projetoitaca.blogspot.com/2010/11/tirar-o-mofo-do-proibicionismo-e-arejar.html

Drogas para além do bem e do mal¹



Guilherme Corrêa²
A identidade de drogado é uma das barreiras mais fortes que se coloca entre os profissionais das áreas da saúde, da educação ou da justiça e pessoas que fazem uso de substâncias ilegais. É muito raro um desses profissionais ultrapassar tal barreira e ver, para além da ameaça representada pela figura plana e sem espessura do drogado, alguém se movendo. Alguém com sonhos, vontades, tristezas, experiências, preferências, limites próprios de suportabilidade, amor, desafetos... Assim, a maioria dos contatos com identificados como usuários de drogas se dão, quase que exclusivamente, com os atributos que identificam a figura do drogado. Pouco ou nada parece haver para além de uma ameaça.
Desse modo temos vivido e, por décadas, estamos sendo formados nos cursos universitários. Há uma perspectiva que une todas essas formações e, conseqüentemente, as atuações profissionais correspondentes. Essa perspectiva é a da guerra às drogas. Dentro dessa perspectiva é que têm coerência percepções de usuários como doentes, o que pede tratamento e pessoal especializado nos campos da saúde, psi, assistência social e educação; como bandidos, o que pede penalização, punição e, além do pessoal mencionado anteriormente, pessoal do campo da justiça: como advogados, juízes, policiais; finalmente, pode se perceber usuários de drogas como perdidos, aqueles que não têm mais jeito, – seja por um grau de debilitação extremo ou de periculosidade – esses nos convidam a pensar em eliminação por meio de internamentos perpétuos em asilos, manicômios e hospícios e, ainda, por meio de homicídios e chacinas. A figura do drogado, que anima todas essas ações, está indissociavelmente ligada à noção que temos de droga.
O que é droga? Do que falamos quando dizemos droga? Na atualidade, nesse final da primeira década do século XXI, quando dizemos droga nos referimos a ameaça à vida, a coisa que mata, ou então, como se diz muito por aí, principalmente nos meios especializados, a algo que altera a percepção, ou que altera as funções normais do organismo. Nesse ponto é bom lembrar que não há nada nesse mundo que não altere as tais funções normais. Qualquer apaixonado sabe disso, qualquer odioso sabe disso, qualquer ressentido sabe disso, qualquer pessoa que esteja contente sabe disso. Não é necessário sequer qualquer reforço químico para alterar as funções normais.
Como o nome desse evento é “Outras palavras... Diferentes Olhares... Sobre o Cuidado de Pessoas que Usam Drogas” como é que podemos problematizar, do ponto de vista de outras palavras, a palavra que é a palavra droga.
É uma palavra imensa. Qualquer coisa, pessoa ou situação que nos desagrade pode ser chamada de droga. Droga de vida! dizemos quando não gostamos do que estamos vivendo. Droga! dizemos ao pisar em um cocô de cachorro. Droga! dizemos sobre nós mesmos quando falhamos em alguma situação. Aqui, todavia, nos referimos a um conjunto de substâncias, e essa é outra palavra muito vaga, que classificamos como legais ou ilegais quanto ao uso, porte ou abuso. Mais especificamente nos referimos, com uma gravidade pesarosa e densa, a substâncias classificadas pelas instâncias técnicas estatais, como ilegais.
Falamos, então, de drogas ilícitas. Quais são as ilícitas? A noção de droga ilícita se constituiu a partir do LSD, da maconha e da cocaína. A partir dos anos 60 ela se consolidou. Já existia antes, mas foi nos anos 60 que ela tomou força, fôlego e se espalhou pelo mundo no seio de campanhas antidrogas promovidas por diversos organismos e acordos internacionais.
Por que essas drogas devem ser proibidas? Esta seria a pergunta. É claro que hoje nós temos centenas de substâncias proibidas, a proibição está evoluindo, e bem. Mas por que essas substâncias se tornaram os pilares de uma noção de droga tão estreitamente vinculada à proibição? Um dos pontos importantes a se destacar é que estão ligadas – o LSD e, principalmente, a maconha – à rebeldia da juventude. É insuportável para um moralista ver um jovem feliz. O que deixa um jovem feliz é transar, festejar, se alegrar, se juntar, conversar, inventar modos de vida e tudo isso desestabiliza, desorganiza e, por vezes, transtorna e derruba alguns blocos básicos que dão sustentação à ordem. Isso ameaça qualquer cabeça velha – e eu não estou falando de velho de idade. Temos jovens de 13 anos com 1.000 anos. Enquanto o pensamento não muda, qualquer movimento é um movimento de conservação.
A cocaína já está ligada a uma outra questão. Independente do uso ancestral por povos ameríndios, ela só adquiriu as feições de substância perigosa, cujo uso se justifica proibir, como a percebemos hoje, a partir do isolamento do princípio ativo das folhas de coca em importantes laboratórios e grupos científicos de pesquisa química. Purificada, ela primeiro serviu a uma elite. Não nos esqueçamos de Freud, seu deslumbramento e, em seguida, sua percepção da relação entre os benefícios e os prejuízos, quando estes últimos sobrepassaram, de maneira indesejável os primeiros; nem da elite esnobe que cheirava com canudinho de ouro ou com notas de 100 dólares. A cocaína, como a conhecemos hoje, foi, primeiro, droga de milionário comprada livremente nas farmácias. Quando ela virou problema para famílias de milionários ou passou a ser referida, insistentemente, a desordens sociais, tornou-se tema de políticas públicas, ou, o que no caso dá no mesmo, de proibição. Essas três drogas são, então, as mais importantes e são elas a base de referência quando se fala em droga. Hoje temos uma nova estrela nessa pequena constelação, que é o crack.
Voltemos à questão: por que essas drogas devem ser proibidas? O que nos faz ter certeza de que essas quatro substâncias, o crack junto, devem ser proibidas? Elas fazem mal! E é verdade, há muita gente aí sofrendo. Ser, por exemplo, a mãe ou pai de um usuário de crack violento não deve ser brincadeira. Ver um filho perder o nariz por cheirar tanta cocaína, não deve ser bom. Muita gente sofre, muita gente se diverte e muita gente está pensando a sua vida a partir das suas experiências com droga. Temos que cuidar para não transformar a droga naquilo em que transformamos o menino usuário de crack chapado, comprimido, reduzido à figura de bandido. Tudo isso tem profundidade, espaço, ocupa espaço, se move, tem cheiro e joga no mundo alguma coisa. O estudo dos materiais sobre drogas que circulam por aí, boa parte deles, a maioria, a esmagadora maioria, relaciona essas drogas à morte. Quando descrevem seus efeitos, tais descrições terminam, invariavelmente, na morte. Elas devem, portanto, ser proibidas porque matam! Esse é um argumento bastante forte. Todo mundo sabe que essas substâncias, em determinada medida, sob certas condições de uso, realmente matam. Eu não sei se alguém morreu de overdose de maconha. Mas é certo que em determinado limite, o uso de qualquer uma delas leva à morte. Dessa constatação não se pode escapar. Só que não se pode escapar, de outro lado, da constatação de que os números indicadores das mortes de pessoas por usos de drogas, que não é tão grande, – pois quando juntamos ao uso de drogas o narcotráfico, as pessoas morrem mesmo é de tiro – vemos que o número de mortes por hipertensão ou diabetes no Brasil é bem superior. O que mata diabético e hipertenso não seria, basicamente, sal e açúcar? Lembrando do exemplo dado na palestra anterior, nessa mesma mesa, do menino que deixou de gastar cinco reais com a pedra e comprou uma lata de leite condensado: se fosse diabético, teria dado tudo errado para ele! Talvez não estivesse mais circulando por aí.
Viver é um risco constante. Naturalizamos a palavra droga sem nos darmos conta de que o seu conteúdo tornou-se melequento, difuso, bocó, sem sentido... Se olhamos de frente o problema e nos permitimos pensar a palavra – desconectando-a da ração discursiva distribuída em generosas porções tanto ao mais laureado doutor quanto ao mais simples popular – nos damos conta de que ela se refere a algumas substâncias consideradas perigosas por determinadas instâncias morais. Perigosas a ponto de justificar sua proibição a partir do argumento de que matam. O que não mata?
E saímos por aí a perseguir essas quatro substâncias. Todos nós aqui, esse evento inclusive, e muita gente mais, entre as quais quero destacar os profissionais formados em cursos de nível superior, nos concentramos em torno dessa perseguição. E não posso deixar passar desapercebido, muito mais que isso, quero ser muito enfático, é que, nessa sociedade em que vivemos, ocupamos o lugar de estudiosos, somos os estudantes e o nosso compromisso como gente que estuda, é estudar! Estudar, muito mais do que acumular conteúdos prontos, muito antes disso, é movimentar o pensamento em torno de questões vivas, atuais, presentes. É muito triste, inacreditável mesmo, que esse estrato da sociedade – o das pessoas que fazem curso universitário e às vezes fazem mestrado e doutorado – seja responsável por fazer a noção proibicionista de drogas circular de modo tão eficiente e impensado. Noção proibicionista coextensiva ao imenso rol de iniqüidades que se abatem sobre os identificados como drogados ao serem objetivados como doentes, bandidos ou perdidos.
Delegados têm curso universitário, e assim advogados, psicólogos, professores, químicos, farmacêuticos, enfermeiros, assistentes sociais, médicos... E essa formação lhes confere um título, nos dá – eu me incluo nisso – uma posição de destaque e nos autoriza a entrar em contato e intervir na vida das pessoas: professores na vida dos alunos, enfermeiros na vida dos doentes, advogados e juízes na vida de faltosos com a lei, etc. Essa formação nos dá esse direito e, também, nos autoriza a intervir sobre as questões relativas ao uso de drogas, mas, raramente, nos oferece um mínimo de ferramentas para pensar essa intervenção. A noção de drogas que a esmagadora maioria dos acadêmicos dispõe no dia da formatura, é a mesma que tinham no dia em que passaram no vestibular. É a mesma que a Fátima Bernardes e os meios de comunicação de massa, a partir de seus interesses comerciais, propagam diariamente. É incrível que esses cursos, todo dinheiro e tempo envolvidos na formação acadêmica estejam servindo para conservar uma noção tão rasa. Droga é uma noção que não se sustenta a partir do ponto de vista de nenhum campo do pensamento. A noção de droga utilizada nas práticas proibicionistas só se sustenta a partir de uma perspectiva moralista. De um ponto de vista químico, por exemplo, que é o que eu tenho mais intimidade, não há como afirmar, sem conhecer as condições e os inúmeros fatores envolvidos no uso, que o THC, princípio ativo da maconha, é mais perigoso ou nocivo que sal, açúcar e mesmo farinha de trigo: hipertensos, diabéticos e celíacos que o digam.
Nós seguimos perseguindo essas quatro substâncias e é muito louco essa sanha persecutória envolver tanta força e energia no intento de abolir o uso de drogas. Não se vai conseguir isso, é bom que se diga, pois não há registro de sociedades que não usem substâncias com fim de alterar a percepção cotidiana do mundo. Há os mais dispostos a isso, os menos, os mais suscetíveis, os menos. E deu! Só que quando investimos todo esse aparato de instituições e de pessoas que ocupam o lugar de pensar e que não pensam, satisfazendo-se com repetir slogans, estamos criando um imenso e bem aparelhado processo de ignorância. Processo que se traveste de seriedade científica ao repetir, para além do que se pode suportar, os efeitos do uso das tais quatro substâncias até que levem a morte. Não há, nesse mundo, substância a respeito da qual não se possa fazer o mesmo e incluo aí água, ar e pão. O que dizer então de calmantes, agrotóxicos, antiinflamatórios, excesso ou falta de comida.
E, além do mais uma pessoa é tocada de maneira diferente por cada substância. No meu caso, se eu tomo uma xícara de café às cinco da tarde, não durmo bem à noite. No entanto, conheço pessoas que tomam dois cafés expressos, deitam e dormem. E nós estamos falando de café. Há quem coma um camarãozinho e, por um efeito de reação alérgica, morre. Então, cada corpo recebe uma substância de maneira muito diferente, espantosamente diferente. É claro que se eu der uma colher de chá de cicuta para cada um aqui, todos morrem. Sabemos pelo que já acumulamos de conhecimento alguma coisa das substâncias de modo a não cair nessa de vamos ver se meu organismo resiste. Há muita coisa no nosso cotidiano que não é droga e produz morte. Tenho uma amiga que trabalha numa escola no interior do Rio Grande do Sul e conta que as crianças estavam no intervalo e um avião agrícola passou e pulverizou as crianças todas, e ela junto. Mas não é só isso, as crianças estão lá e nós, aqui, estamos ingerindo, constantemente, agrotóxicos.
O mais importante nisso tudo que se fala sobre drogas é que a relação existente entre qualquer substância e a pessoa que a usa é única. A minha relação com o café é diferente da relação de qualquer outra pessoa. E ninguém mais interessante nesse jogo todo do que eu para pensar o uso que eu mesmo faço, já que o café não pode, né?
A guerra às drogas é a guerra mais covarde. Vocês já viram as drogas se defendendo da polícia e querendo lutar e fugir? Já viram uma droga atacando alguém? Como é que se estabelece uma guerra contra coisas?
Depois dessa grande investida policial, principalmente na década de 1990, temos, hoje, uma modulação da perspectiva proibicionista das drogas, agora sob o prisma da saúde. O usuário, antes considerado bandido, agora, além de bandido, porque isso pode ser atualizado o tempo todo, é considerado doente. Nas duas situações ele é passivo. Como bandido deve ser melhorado e é encaminhado, sem qualquer outra opção, a um lugar para se reeducar. Sabemos bem qual é. Os resultados dessa reeducação promovida nas prisões todos conhecem. Se não for por essa via, explicitamente punitiva, qualquer um que esteja envolvido com um uso classificado como abusivo de substâncias ilegais deve ser tratado. Ou seja, quando entra pela via do tratamento o usuário de drogas é doente. Não há negociação. Ele pode não se achar nem admitir que esteja, ou seja doente, mas, do ponto de vista dessa saúde dominante, ele é. E nessa barafunda criada pela aceitação passiva do discurso e das práticas proibicionistas, é comum pessoas que usam drogas ilegais, – mas que devido à posição que ocupam na sociedade não se acham e nem são considerados drogados – identificarem-se com a proibição e suas conseqüências, justificando a necessidade de aprisionamento e tratamento obrigatório aos bandidos. Esse discurso todo é insidioso porque é muito fácil. Qualquer um se sente inteligente ao manifestar sua opinião sobre drogas utilizando a meia dúzia de frases das justificativas proibicionistas.
Em relação à cocaína, por exemplo, há quem use por um mês e se acaba. Enquanto há pessoas que usam por vinte anos e nem por isso deixam de produzir coisas lindas no mundo. Penso em Billy Holiday. Não é questão de recomendar o uso! De jeito nenhum eu estou recomendando o uso. Mas é que proibir não é uma coisa que sirva! Pois a proibição impede de pensar. Não há como pensar o uso em um regime proibitivo e seu covarde aparato de propaganda votado a dividir o mundo em bons e maus. Os bons vão adorar fazer o papel de bons e, por mais trapaceiros que sejam, são bons, por mais moralistas e violentos que sejam, são bons, por mais tortura psicológica que façam, são bons. E vão fazer o bem. O problema de quem faz o bem, como disse Max Stirner, é que eles nunca vão perguntar se o bem está sendo bom para quem tomam como objeto desse mesmo bem. Eles fazem o bem. E pronto!
Toda essa fala aqui é para lembrar que, ocupando esse lugar que o curso superior nos dá, corremos um risco incrível de ser violentos. Ao mesmo tempo, soa como se estivéssemos livres para pensar. Só que o nosso livre pensamento de slogans não tem produzido nada além de proibição. Falar de usuário de crack como a RBS faz é muito diferente de estar à frente de um típico usuário de drogas livre do pensamento de manada que crassa. As surpresas são muitas. Como educador posso dizer com tranqüilidade que burrice é coisa rara. Ainda mais quando se trata de salvar a própria pele, mesmo que se esteja debilitado e confuso. Só que nós temos um mercado de drogas muito complicado e violento, um mercado de serviços públicos e privados, em relação às drogas também, a seu modo, complicado e violento. E alguém, no meio disso tudo, porque usa drogas ilegais, é identificado como bandido e sujeitado às forças desmesuradas que se abatem sobre o seu corpo. E nós, as autoridades profissionais certificadas e habilitadas em cursos universitários, ocupamos o lugar das válvulas que podem permitir ou impedir essas forças de atingi-lo com a violência que lhes é própria. A maioria das pessoas que usam crack teve experiências terríveis nas escolas, e para lá elas não voltam. A gurizada que anda na rua não está na rua porque são vagabundos. Seria muito difícil pensar que, talvez, as experiências vividas na escola e em casa sejam piores do que as encontradas na rua? Ninguém é tolo a ponto de escolher o pior pra si.
Então, isso de drogas como agentes ativos do mal e de buscar soluções é algo muito perigoso. Só pra dar um exemplo. Quando se resolveu acabar com o narcotráfico através do aumento da repressão aos traficantes pela aplicação de penas mais duras, o efeito imediato dessa medida foi a introdução do trabalho infantil no narcotráfico. Vocês estão vendo como às vezes uma solução geral dá um belo tiro no pé? E, em relação às drogas, isso é muito comum. Mais um exemplo. O refino da cocaína conta com solventes específicos para a purificação. Qual foi o raciocínio dos gerentes do bem comum? Dificultar a circulação desses solventes implicaria em reduzir drasticamente a produção de cocaína, não é verdade? A implementação de medidas com esse fim reduziu mesmo a quantidade de cocaína disponível no mercado. Surgiu então, em enormes quantidades, o crack que é a pasta base misturada com bicarbonato. Vocês estão vendo como a proibição é uma furada? Então, essas grandes sacadas gerenciais estão agravando o problema. E nós não estamos a fim de agravá-lo, estamos de sangue doce. Só que quando assumimos a proibição, e a noção de drogas necessária para que a proibição tenha coerência, somos violentos e produzimos ignorância. Querer ser bom, não é ser bom.
1. O presente ensaio é a transcrição revisada e adaptada pelo autor da palestra proferida no dia 20/11/2009 no Seminário Estadual “Outras palavras... diferentes olhares sobre o cuidado de pessoas que usam drogas” promovido pelo Conselho Regional de Psicologia/RS.
2. Licenciado em Química, Doutor em Ciências Sociais-Política, PUC/SP, professor do Centro de Educação da UFSM/RS e coordenador do “Projeto Ítaca: Redução de Danos como ferramenta para práticas intersetoriais em saúde” /Ministério da Saúde.

DIVULGAÇÃO: NARRATIVAS INVENTADAS

sábado, 27 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: A crise no Rio e o pastiche midiático

A crise no Rio e o pastiche midiático
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu--, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –ou sob tanta pressão-- quanto os jornalistas.
Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:
(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.
(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –em uma palavra, banido--, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?
(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes. Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.
Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:
(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?
Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?
Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.
A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.
A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.
(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?
Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.
Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia-- teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.
Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.
Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente. O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção. É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.
(c) O Exército deveria participar?
Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.
E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.
(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?
Claro. Mais uma vez.
(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?
Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.
Palavras Finais
Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente. As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo. A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social --um dos melhores gestores do país--, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.
O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar. Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –as bandas podres das polícias-- prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.
Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?
As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça. A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.
E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.
Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino "gato orçamentário", esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada. Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.
O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.
Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.

DIVULGAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA CLÍNICA AMPLIADA NA ATENÇÃO BÁSICA

Cadernos de Saúde Pública/ Print version ISSN 0102-311X/ Cad. Saúde Pública vol.23 no.7 Rio de Janeiro July 2007/ doi: 10.1590/S0102-311X2007000700030/ RESENHAS BOOK REVIEWS
Por: Martha Cristina Nunes Moreira
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. moreira@iff.fiocruz.br
A CONSTRUÇÃO DA CLÍNICA AMPLIADA NA ATENÇÃO BÁSICA. Cunha GT. São Paulo: Editora Hucitec; 2005. 212 pp./ ISBN: 85-27106-75-2
No marco das políticas de humanização da atenção à saúde (HumanizaSUS: Política Nacional Humanização; http://www.saúde.gov.br/humanizasus), o investimento nas tecnologias do cuidado humanizado contrasta ainda com uma cultura técnica carente de revisão acerca dos marcos do poder, da verticalização das relações e da promoção de um ambiente mais afeito à criatividade e ao afeto. É nesse marco histórico e político que o livro de Gustavo Cunha reúne seu pensamento em torno da tarefa de discutir a prática clínica na atenção básica, acentuando que esta clínica, qualificada como ampliada, enfrenta o desafio de encarar com seriedade os sujeitos: o cuidador/profissional e o que é cuidado.
Um dos esforços da Política Nacional de Humanização (PNH) está na possibilidade de retomar o papel central do sujeito enfermo dentro das práticas terapêuticas do sistema de saúde, e dos trabalhadores como protagonistas que têm como responsabilidade operar no sistema, mediando relações e construindo práticas que estimulem a participação. O termo humanização no interior da PNH engloba as seguintes perspectivas: (i) valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores; (ii) fomento da autonomia e do protagonismo destes sujeitos; (iii) aumento do grau de co-responsabilidade na produção de saúde e de sujeitos.
No interior desse cenário construímos a resenha do livro de Gustavo Tenório Cunha apontando para o fato de que a formulação de uma clínica ampliada opera com os dois nichos cruciais da PNH: o eixo do sujeito enfermo e o eixo do processo de trabalho do profissional que dedica-se ao cuidado da saúde humana. Logo na apresentação o autor sintetiza essa tarefa que reencontra os sujeitos, o que cuida e o que é cuidado. Na dimensão desse encontro entre usuário e trabalhador de saúde no contexto da atenção básica reside um dilema entre complexidade do trabalho e simplificação da tarefa. Ao nosso ver, se é ao contexto da atenção básica que o autor se reporta – muito embora o conceito de clínica ampliada remonte de uma forma mais geral ao território da saúde, tal como referido por Campos 1 – esse dilema não se resume a esse contexto. A área da saúde envolve um campo complexo de relações no qual se situam diversos atores, com projetos que podem paradoxalmente revelar-se contraditórios e complementares. Nesse paradoxo uma das possibilidades de trabalho reside no reconhecimento de que o conflito entre posições é também motor da história, logo nele reside a possibilidade da construção de pactos, negociações e diálogos.
As idéias do autor estão organizadas em seu livro em quatro capítulos, que seguem uma lógica que no Capítulo 1 permite a aproximação gradual com o campo da atenção básica, suas características, os limites que enfrentam essa atenção pela perspectiva da ação hospitalar, e a defesa de uma ampliação da clínica. O Capítulo 2 está basicamente centrado no esforço de resgatar um modelo possível para uma análise que inova a clínica não mais pensada a partir de um a priori individual, mas na perspectiva da dialética entre sujeitos/perspectiva singular/coletividade, com referências a Gastão Wagner de Souza Campos e ao Método da Roda, e ainda a Análise Institucional e a Esquizoanálise. Nesse capítulo o leitor é apresentado a exemplos ilustrativos do chamamento provocado pelos usuários do sistema de saúde a uma ampliação do olhar técnico, e a uma ampliação da escuta e das formas de trabalhar com as demandas. Os padrões hegemônicos de tratamento e de diagnóstico são criticados com exemplos que partem de uma experiência na Califórnia, Estados Unidos, e chegam ao Brasil. Nesse capítulo o autor nos presenteia com uma escrita repleta de exemplos, e pari passu a esta ele vai tecendo a teia das discussões e análises teóricas. Após essas considerações, críticas e avaliação de limites, no Capítulo 3 o autor prepara o campo para uma exposição mais detalhada sobre o conceito de clínica ampliada e sobre seus "filtros teóricos", sempre contribuindo com exemplos da ordem da vida. É interessante observar que ao buscar as aproximações entre as correntes teóricas que contribuem para a construção do conceito de clínica ampliada, o autor torna possível também diferenciar o Método da Roda – base estratégica de enfrentamento e ação na clínica e na gestão ampliada – dos métodos psicanalítico e esquizoanalítico. Nesse ponto, não interessam nem as ações que intervêm muito pouco, respeitando uma suposta "liberdade associativa", nem muito menos a idéia de que existe uma "produção de subjetividade" como único paradigma acerca dos sujeitos. O autor destaca que na Clínica Ampliada na Atenção Básica as intervenções no plano biológico se combinam aos impactos subjetivos, disparando produções e abrindo caminhos terapêuticos para o sujeito doente.
O autor evoca sua experiência no contexto da atenção básica, enquanto médico generalista, e mais do que simplesmente descrever esta experiência ele aprofunda o impacto de suas observações e as transforma em material crítico, material de análise, motor de trabalho. Suas ferramentas analíticas contam com autores de importância crucial no campo da saúde coletiva, e não se furta a acessar as perspectivas da sociologia, psicanálise, análise institucional e das chamadas práticas integrativas (homeopatia e medicina tradicional chinesa) como caminhos para a construção de uma clínica ampliada pelo lado da produção de subjetividade. Do lado da gestão em saúde – que também é um espaço onde são produzidos sujeitos, organizadas práticas – nos parece interessante assinalar a operação, pelo autor, com categorias analíticas que dizem respeito ao cotidiano do planejamento e da produção institucional e também estão presentes no processo de produção da clínica, quais sejam: poder, sujeito, saber, imaginário social e iatrogenias.
No Capítulo 4, dialogando com as ferramentas da gestão, dentre elas os chamados protocolos ou guidelines, o autor promove uma análise importante acerca de seus limites e do quanto eles podem promover uma alienação no trabalho, quando passam a ser usados indiscriminadamente como padrões, onde se perde a perspectiva originária de sua formulação. Os limites dos guidelines e protocolos para as situações complexas e a abordagem de doenças crônicas, é um dos pontos referidos pelo autor. As situações de emergência e urgência ou as doenças muito graves são locus onde esses protocolos apresentam um sentido muito maior. É assim que centralidade dos aspectos biológicos e a perspectiva de imutabilidade dos sujeitos invadiu a clínica tradicional, e fez da Programação em Saúde um espaço de relações onde predominam as agendas fixas de acordo com o perfil dos pacientes a serem tratados. Esses parecem que não evoluem em seus quadros, e reificam-se na perspectiva diagnóstica, e têm seus retornos sempre agendados fixamente, oferecendo-se um cardápio de recursos invariáveis às necessidades – possivelmente muito variáveis e permeadas de componentes de imprevisibilidade – de atenção. O autor defende a idéia de que o espaço da saúde é um território aberto à produção e à variação, portanto, faz-se necessário que as equipes promovam avaliações constantes no seu cardápio de recursos e respectivos impactos. O autor aponta ainda para os limites da Medicina Baseada em Evidências, que ao apoiar suas evidências em populações altamente selecionadas e não representativas, além de que suas ferramentas epidemiológicas não são sensíveis aos conflitos de interesses, e as variações no campo das relações entre profissional e paciente acabam por não conseguir responder à singularidade de cada situação apresentada na atenção básica. Segundo o autor, a utilização acrítica dessas ferramentas (Programação em Saúde, Guidelines e Medicina Baseada em Evidências) pode tornar-se um obstáculo a mais para a ampliação da clínica e para a construção de um diálogo que desconstrua a pretensão totalizante e generalizante da ação em saúde.
Finalizando, acreditamos que alguns recursos apontados pelo autor como essenciais para as equipes que agem com antiprotocolos, deveriam estar no cerne de uma construção ampliada de saúde, e que contribuiria para ações interdisciplinares, quais sejam: (i) as reuniões de equipe, que associem a fraternidade da troca à necessária objetividade dos projetos e discussões; (ii) o projeto terapêutico singular, que supera o individual do caso clínico para pensar na rede social e familiar que conforma o sujeito doente; (iii) uma anamnese ampliada; (iv) a visita domiciliar como um recurso importante de acesso à dinâmica familiar. Os pontos anteriores, olhados cuidadosamente, fazem-nos pensar que o trabalho em saúde, suas dificuldades e impasses não significam derrotas absolutas, mas nos ensinam a superar estes sentimentos e construir uma prática na qual a incompletude aponta para a necessidade de trabalhar com a alteridade e a horizontalidade das relações em direção a um projeto interdisciplinar e humano.
1. Campos GWS. Saúde paidéia. São Paulo: Editora Hucitec; 2003.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: A Guerra do Rio. A farsa e a geopolítica do crime

A Guerra do Rio. A farsa e a geopolítica do crime
"Deixamos de fazer as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos faz esquecer que ela tem outra finalidade e não a hegemonia no controle do mercado do crime no Rio de Janeiro?", pergunta José Cláudio Souza Alves, sociólogo, com doutorado na USP, professor da Universidade Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, autor do livro "Dos Barões ao Extermínio – Uma História da Violência na Baixada Fluminense" e membro do Iser Assessoria.
Eis o artigo.
Nós que sabemos que o “inimigo é outro”, na expressão padilhesca, não podemos acreditar na farsa que a mídia e a estrutura de poder dominante no Rio querem nos empurrar.
Achar que as várias operações criminosas que vem se abatendo sobre a Região Metropolitana nos últimos dias, fazem parte de uma guerra entre o bem, representado pelas forças publicas de segurança, e o mal, personificado pelos traficantes, é ignorar que nem mesmo a ficção do Tropa de Elite 2 consegue sustentar tal versão.
O processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos 5 anos.
De um lado Milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia.
Exemplifico. Em Vigário Geral a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão da facção rival de Parada de Lucas. Há 4 anos, o mesmo processo se deu. Unificadas, as duas favelas se pacificaram pela ausência de disputas. Posteriormente, o líder da facção hegemônica foi assassinado pela Milícia. Hoje, a Milícia aluga as duas favelas para a facção criminosa hegemônica.
Processos semelhantes a estes foram ocorrendo em várias favelas. Sabemos que as milícias não interromperam o tráfico de drogas, apenas o incluíram na listas dos seus negócios juntamente com gato net, transporte clandestino, distribuição de terras, venda de bujões de gás, venda de voto e venda de “segurança”.
Sabemos igualmente que as UPPs não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos. O tráfico passa a ser operado por outros grupos: milicianos, facção hegemônica ou mesmo a facção que agora tenta impedir sua derrocada, dependendo dos acordos.
Estes acordos passam por miríades de variáveis: grupos políticos hegemônicos na comunidade, acordos com associações de moradores, voto, montante de dinheiro destinado ao aparado que ocupa militarmente, etc.
Assim, ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Sadan Husein, e depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?
Ela é simplesmente uma guerra pela hegemonia no cenário geopolítico do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
As ações ocorrem no eixo ferroviário Central do Brasil e Leopoldina, expressão da compressão de uma das facções criminosas para fora da Zona Sul, que vem sendo saneada, ao menos na imagem, para as Olimpíadas.
Justificar massacres, como o de 2007, nas vésperas dos Jogos Pan Americanos, no complexo do Alemão, no qual ficou comprovada, pelo laudo da equipe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a existência de várias execuções sumárias é apenas uma cortina de fumaça que nos faz sustentar uma guerra ao terror em nome de um terror maior ainda, porque oculto e hegemônico.
Ônibus e carros queimados, com pouquíssimas vítimas, são expressões simbólicas do desagrado da facção que perde sua hegemonia buscando um novo acordo, que permita sua sobrevivência, afinal, eles não querem destruir a relação com o mercado que o sustenta.
A farsa da operação de guerra e seus inevitáveis mortos, muitos dos quais sem qualquer envolvimento com os blocos que disputam a hegemonia do crime no tabuleiro geopolítico do Grande Rio, serve apenas para nos fazer acreditar que ausência de conflitos é igual à paz e ausência de crime, sem perceber que a hegemonização do crime pela aliança de grupos criminosos, muitos diretamente envolvidos com o aparato policial, como a CPI das Milícias provou, perpetua nossa eterna desgraça: a de acreditar que o mal são os outros.
Deixamos de fazer assim as velhas e relevantes perguntas: qual é a atual política de segurança do Rio de Janeiro que convive com milicianos, facções criminosas hegemônicas e área pacificadas que permanecem operando o crime? Quem são os nomes por trás de toda esta cortina de fumaça, que faturam alto com bilhões gerados pelo tráfico, roubo, outras formas de crime, controles milicianos de áreas, venda de votos e pacificações para as Olimpíadas? Quem está por trás da produção midiática, suportando as tropas da execução sumária de pobres em favelas distantes da Zona Sul? Até quando seremos tratados como estadunidenses suportando a tropa do bem na farsa de uma guerra, na qual já estamos há tanto tempo, que nos esquecemos que sua única finalidade é a hegemonia do mercado do crime no Rio de Janeiro?
Mas não se preocupem, quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.
Sempre sobrará a massa arrebanhada pela lógica da guerra ao terror, reduzida a baixos níveis de escolaridade e de renda que, somadas à classe média em desespero, elegerão seus algozes e o aplaudirão no desfile de 7 de setembro, quando o caveirão e o Bope passarem.

DIVULGAÇÃO: Cuidados e segurança

Há uma semana ouvia Thiago Rodrigues e Guilherme Correa falando sobre a questão das Drogas, Educação e Política, e Thiago, que estuda sobre o narcotráfico e seus desdobramentos políticos, sociais e humanos, trazia muitos elementos importantes para pensarmos o assunto. No desdobramento dos dias, vemos o cenário carioca também se desdobrar!
Hoje, em meio ao verde da tarde leituras e escritas, recebo um email dum ex-colega do curso de mestrado, que traz o seguinte dito: "Quem tem que perdoar ou não os traficantes do Alemão é Deus; a turma do Bope tem apenas que antecipar o encontro deles", de Rodrigo Constantino.
Estupefata por ver que tanto estudo pode levar uma pessoa a pensar essas coisas, fui novamente dar uma olhada num texto de grande valia para o momento.
Aí vai:Cuidados e segurança

No Brasil, certos candidatos às eleições de 2010 lançam mão da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) como “sinônimo de ação que pode dar certo”.
Na América do Norte e na Europa fortalecem-se, desde 2008, as “Unidades Territoriais de Bairro (UTB)”, atualmente denominadas “Brigadas Especializadas de Terreno (BET)”, adaptações francesas da community policing, executadas em Chicago e Londres.
Autoridades governamentais, à direita e à esquerda, proclamam: “queremos uma sociedade respeitosa e não uma sociedade rígida, violenta, brutal e egoísta”!
Reconhecem que o cidadão deixa de ser uma ficção, quando o sujeito de direito caminha para se tornar o “indivíduo portador de direitos de uma igualdade formal, rumo à igualdade real”, ou seja, quando se dispõe a cuidar de si e dos outros.
Este cidadão “evoluiu” no interior das lutas de minorias, e reinscreveu o universal na pluralidade e na multiplicidade das demandas identitárias, relacionadas umas às outras. Ele reconhece suas vulnerabilidades específicas e a interdependência das necessidades.
A expansão do pluralismo político em cada indivíduo ampliou o leque de escolhas racionais em variadas organizações da sociedade civil, para além das arregimentações partidárias.
É uma realidade neoliberal em função da cooperação e do bem comum, não apenas como sistema de governo de Estado e dos indivíduos. Todos devem cuidar de si e dos demais, porque todos dependem de algo, e para obtê-lo, de modo seguro, devem pautar suas condutas por meio da tolerância e da confiança de uns nos outros pela difusão da transparência.
A educação de cada um como capital humano, apesar da crise que eclodiu no sistema financeiro em 2008, não teve sua racionalidade abalada.
Os chamados países emergentes, como o Brasil, almejam despontar como potências do século XXI. Orientam-se com base na política participativa, na economia sustentável com responsabilidade sócio-ambiental, na variedade de direitos e em segurança modulada por cada cidadão e pelas tecnologias de informação e comunicação.
A expansão do pluralismo político propiciou o pluralismo policial, projetando o sujeito cosmopolita real.
Em poucas palavras: o súdito passou a ser cidadão e este a sujeito portador de direitos; em suma, permanece amando a sua condição e aspirando a uma “evolução” dentro da ordem.
Ele, ou ela, não se rebela contra a sujeição e amplia suas condutas como assujeitado, um amante das melhorias, na sua condição inquestionável de vida. Sobrevive como força reativa, exercitando a apatia ativa e conformando-se como um policial de si e dos outros.
É um zelador, ou melhor, um gestor que aspira conjugar o empreendedorismo de si com o empreendedorismo social, almejando a felicidade.
Chama-se isso de política de pacificação ou polícia da paz!
A UPP funciona como uma modulação da prática ditatorial contra a subversão em nome da profilaxia do meio ambiente.
A UPP incide sobre territórios devastados pela empresa-tráfico que acossa e encarcera a população local ao seu regime de governo.
A UPP combate seu inimigo preferencial e produz, por meio de uma intervenção violenta, o assombro na população acossada.
Esta responde, surpreendentemente, de maneira favorável à ação repressiva como população libertada e disponível à revitalização cuidadosa do seu território.
Agora, uma criança pode ir a uma padaria sem se assustar mais com o policial, e descrer da proteção efêmera proporcionada pelas organizações do tráfico ou das milícias.
Em pouco tempo e de maneira gradual, uma prática de governo ditatorial realiza-se como um programa democrático.
Possibilita a cooperação como restauração do amor à comunidade, fortalece a ação das ONGs, favorece o investimento de empresas e bancos, e reafirma a crença na segurança por meio da polícia do Estado, que permanecerá no local integrada à comunidade emancipada à condição de polícia de si
Quando o sujeito portador de direitos se sentir fortalecido em sua família, apto ao trabalho regulamentado, dependente e solidário aos cuidados, mais uma vez, os lucros econômicos, políticos e policiais serão maiores.
A polícia repressiva transforma-se em fomentadora da polícia comunitária composta pela totalidade dos cidadãos e dos futuros cidadãos.
É essa prática totalitária pelo seu avesso que faz da UPP, não uma metáfora, e sim o programa mais efetivo e eficiente de segurança na atualidade.
A UPP habita desde os territórios devastados até o discurso político partidário, redesenhando as práticas punitivas, a moral do castigo e a sociabilidade autoritária.
Para viver é preciso aderir ao não pode! Eis o cuidado.
Atenção: há outro perigo na esquina; querem nos fazer crer que o manto do cuidado nos protege do potencial perigo que está em cada um de nós.
Nessa sociedade, para haver segurança, todos devem ser monitorados.
Somos todos virtuais terroristas!
Isto não é só neoliberalismo, é a maneira pela qual somos educados para nos governar e governar os outros.
Configura-se uma nova subjetividade do capital humano em que cada um deve se sentir seguro de si, por depender do outro!
Porque as pessoas não cuidam de si para serem livres?