quinta-feira, 28 de março de 2013

A VIDA NA BERLINDA


Por Suely Rolnik

Como a mídia aterroriza com o jogo entre subjetividade-lixo e subjetividade-luxo


A vida está na berlinda. Mais precisamente, o que está na berlinda é a potência da vida enquanto força de invenção, aquilo que é suscitado quando se produz um certo tipo de paradoxo entre dois planos da subjetividade: de um lado, visível, o mapa das formas de vida vigentes; de outro lado, invisível, o diagrama flexível das sensações que percorrem o corpo por sua imersão na infinidade variável de fluxos de que são feitos os meios em que vivemos.
O paradoxo acontece quando a mudança no diagrama intensivo atinge um certo limiar, a partir do qual inviabiliza-se sua figuração através das formas atuais. Tais formas tornam-se então um obstáculo para integrar as conexões que provocaram a emergência de um novo estado sensível e, com isso, deixam de ser condutoras de processo, esvaziam-se de vitalidade, perdem sentido. O paradoxo entre esses dois planos da vida subjetiva pressiona os contornos das formas vigentes e força a subjetividade a redesenhá-los: é neste contexto que mobiliza-se a força de invenção.
Uma tensão se instala entre o movimento de tomada de consistência de uma nova pele e a permanência da pele existente, necessária até que o processo de criação se complete. O paradoxo entre esses dois vetores, a força de invenção que ele mobiliza e a tensão que disto decorre são portanto próprios da vida em sua potência de variação: eles são constitutivos do processo vital de individuação, que vai organizando e estabilizando novos contornos, enquanto desestabiliza e desfaz outros.
No "capitalismo mundial integrado", como o chama Félix Guattari, esse processo intensifica-se brutalmente. Para começar, na existência globalizada que ele instaura, os fluxos a que está exposta a subjetividade em qualquer ponto do planeta multiplicam-se cada vez mais e variam numa velocidade cada vez mais espantosa. Isso acelera o processo de engendramento de novas formas e encurta o prazo de validade das formas em uso, as quais tornam-se obsoletas antes mesmo que se tenha tido tempo de absorvê-las.
A conseqüência é que se vive constantemente em estado de tensão, à beira da exasperação, o que atiça e fomenta a força de invenção. Para completar, esse processo intensifica-se mais ainda pelo fato de que o capital não apenas se nutre dessa tensão agravada e dessa força de invenção turbinada, mas ambas constituem sua principal fonte de valor, seu mais rentável investimento. Vejamos como.
A força de invenção turbinada, o capital a captura a serviço da criação de esferas de mercado: territórios-padrão cuja formação é dissociada do processo, substrato vital que havia convocado aquela força e passa a ter como princípio organizador a produção de mais-valia, que sobrecodifica o processo. Essa é base do aparelho de homogeneização que tem o nome de "consenso", necessário para fazer funcionar o mercado. Todos os elementos que constituem esses territórios são postos à venda, um kit de mercadorias de toda espécie de que depende seu funcionamento: objetos, mas também, subjetividades -modos de habitar, vestir, relacionar-se, pensar, imaginar...-, em suma, mapas de formas de existência que se produzem como verdadeiras "identidades prêt-à-porter"[1], facilmente assimiláveis, em relação às quais somos simultaneamente produtores-espectadores-consumidores.
O kit vem acompanhado de uma poderosa operação de marketing que faz acreditar que se identificar com essas estúpidas imagens e consumi-las é imprescindível para que se consiga reconfigurar um território e, mais do que isso, que este é o canal para pertencer ao disputadíssimo território de uma subjetividade-elite. Isto não é pouca coisa, pois fora desse território corre-se o risco de morte social - por exclusão, humilhação, miséria, quando não por morte concreta-, como uma célula morta do corpo coletivo.
Fabricar esses dois tipos de território é a tarefa básica da mídia, ou melhor, fabricar "o" território, pois só há um, e demarcá-lo insistentemente do resto, o esgoto do mundo, onde sobrevive no limite tudo o que está fora dele. Imagens dessa demarcação saturam o visível, dia e noite, num verdadeiro assédio cerebral: do lado de dentro, o glamour das identidades prêt-à-porter de uma subjetividade-luxo; do lado de fora, a abjeção das subjetividades-lixo em seus cenários de horror feitos de guerra, favela, tráfico, seqüestro, fila de hospital, crianças desnutridas, gente sem teto, sem terra, sem camisa, sem papel -boat people vagando no limbo sem lugar onde ancorar. A única permeabilidade entre os dois campos é, do lado de dentro, o perigo de cair para fora, na cloaca, às vezes irreversivelmente, que assombra a subjetividade e a deixa permanentemente agitada e ansiosa numa busca desesperada por reconhecimento; do lado de fora, a chance quase impossível de passar para dentro, se ganhar a taça do glamour, como os sortudos que conseguem emprego na "Casa dos Artistas" ou entre os "Big Brothers"[2], realidade tornada show, um espetáculo de competição, cujo vencedor não por acaso é o mais abrutalhado de todos.
É tão rara e tão cobiçada a possibilidade de passar para dentro, que a imagem dessa passagem consegue manter ligados, no grand finale da disputa, 76 de cada 100 televisores existentes na cidade de São Paulo. Ela captura toda a atenção, a imaginação, o sonho e o desejo desses milhares de espectadores e os mantêm como que hipnotizados pela telinha sob o jugo do cenário patético que ela coloca no ar.
O êxito de audiência nesse momento preciso da passagem de uma subjetividade-lixo para uma subjetividade-luxo indica o próximo passo no aperfeiçoamento da estratégia: numa operação milionária que associa televisão e indústria fonográfica cria-se um novo programa, muito oportunamente batizado de "Fama", cujo foco será a própria passagem[3]. Os personagens que habitarão a casa/cela/cena cuja crônica cotidiana ficará exposta ao espectador são moradores da cloaca das subjetividades-lixo portadores de uma força qualquer que possa ser utilizada como matéria-prima para a fabricação de um cantor de sucesso.
O que será desvelado é o cotidiano desse laboratório de metamorfose para a produção de um "clone de subjetividade-luxo"[4] - timbre de voz, forma de falar, postura corporal etc., minuciosamente remodelados por esse misto tecnológico de Big Brother e Pigmaleão eletrônico. Uma subjetividade totalmente entregue à sua reconfiguração segundo uma identidade prêt-à-porter e uma intimidade reduzida aos bastidores dessa entrega constituem o modo de ser que se oferece como exemplar para o espectador. Processo de identificação que reforça sua adesão cega à máquina capitalística de sobrecodificação do processo vital. Como diz cinicamente uma das eminências pardas da bem sucedida TV Globo, "descamisado é uma fórmula que funciona, dá retorno". [5]
O índice de audiência de um programa é garantia de "retorno" não só por vender os produtos a ele associados e assim também aumentar o preço do minuto publicitário -essa é apenas sua faceta mais visível e até a mais inocente. Bem mais importante do que isso é que o alto índice de atenção e, portanto, de potencial de identificação que um índice de audiência implica, alimenta o funcionamento dessa máquina infernal de captura e sobrecodificação da subjetividade que se tornou uma das principais engrenagens, senão a principal, do capitalismo contemporâneo.
Afirmei acima que o capital intensifica e se nutre não só da força de invenção turbinada, mas igualmente do estado de tensão que decorre da desterritorialização em excesso de velocidade. Como se dá isso? A tensão cria um ambiente propício para o assédio da mídia com seus territórios-padrão-mercadoria que vendem apaziguamento instantâneo pela rápida reconfiguração prometida. Operação que injeta nessa subjetividade fragilizada doses e mais doses de ilusão de que a tensão pode apaziguar-se. Isso a mantém alienada do processo vital de individuação que pede passagem, impedida de fazer o aprendizado do desassossego, decorrência inelutável da pressão desse processo também inelutável, seja ele acelerado ou não.
Em outras palavras, as identidades prêt-à-porter são uma espécie de droga pesada que desconecta a subjetividade do processo vital e anestesia a tensão, criando uma dependência brutal -verdadeira toxicomania muito difícil de ser combatida. Essa subjetividade desterritorializada, desconectada de seu substrato vital, é com freqüência tomada pela fissura da abstinência que a lança angustiada numa corrida insana atrás de suas pequenas doses de ilusão de pertencimento. Na vertigem da velocidade cada vez maior desse processo, sobra cada vez menos chances de reencontrar as intensidades do vivo, de escapar dessa dissociação. Não dá para parar de entregar-se ao assédio "non-stop" dos estímulos, sob pena de deixar de existir e cair na vala das subjetividades-lixo. O medo passa a comandar a cena.
Nesse regime, no entanto, o aumento de tensão e a intensificação da força de invenção não favorecem a construção de territórios singulares em consonância com o que pede o processo vital, como se poderia supor. E isso não porque a potência de criação seja demonizada como acontecia até os anos 1970; pelo contrário, a partir dos anos 1980 do neoliberalismo triunfante, essa força passa a ser seduzida, celebrada, sustentada e,como vimos, até turbinada pelo capital, mas para fazer dela um uso perverso, ou seja, cafetiná-la a serviço de seus interesses. Força de invenção capturada e vida como processo, sobrecodificada, são o combustível de luxo do capitalismo mundial contemporâneo, seu protoplasma.
Se esse regime alimenta-se de força de criação, é evidente que a arte não escapa dele e, mais do que isso, ela é certamente um de seus principais mananciais. Como fica então a arte nesse cenário? A captura da criação pelo capital se instalou igualmente na arte, como no conjunto da vida social, de forma mais assustadora ainda. A arte vem sendo cada vez mais instrumentalizada pelo mercado, o que contribui para reiterar a fetichização de seus produtos[6]
O modo mais óbvio de instrumentalização são as megaexposições, onde práticas estéticas se desconectam integralmente do processo vital e tornam-se produtos comercializáveis, bens de consumo da indústria do "fast food" cultural, avaliados exclusivamente pelas catracas e o espaço que ocupam na mídia. Mas não é somente como produção de obras/mercadorias que a arte é instrumentalizada pelo capital -talvez esse seja inclusive seu uso menos rentável e até o mais inofensivo. Outros usos que vem sendo amplamente praticados são mais perversos e certamente mais rentáveis. A subjetividade-elite ganha um plus de valor como identidade prêt-à-porter quando se trata de imagens daqueles que fazem a cena cultural, que inclui evidentemente o seleto grupo de VIPS que freqüentam seus salões mundanos. Esse é um território-padrão de altíssima desejabilidade, com grande poder de sedução e portanto de suscitar identificação, até por parte dos próprios artistas, que tendem a se entregar à captura de sua força de invenção. Muitos artistas inclusive, já criam para ocupar essa cena, oferecendo-se voluptuosamente ao sacrifício, numa espécie de auto-colonização. Mas não é só por essa via que a glamurização da cultura rende: a arte tem sido mais e mais investida como instrumento de estratégias de marketing empresarial ou turístico, vinculado muitas vezes à lavagem enobrecedora de capital ilegalmente acumulado. Basta associar um produto artístico suficientemente glamurizado a um logotipo de empresa, de empresário ou até de cidade, para que o logo se impregne automaticamente de sua aura. Isso gera uma mais-valia de glamour e de imagem politicamente correta que tornam empresa, empresário e cidade mais atraentes não só para o consumo de seus produtos (que no caso da cidade é o turismo e seus desdobramentos comerciais), mas também para o investimento dos capitais que sobrevoam a cena multinacional à cata das melhores oportunidades onde aterrissar e ali ficar enquanto render. Nesse contexto, não tem importância que obras sejam invendáveis, pois essas outras formas de investimento na arte são nitidamente mais sutis e compensadores. Por isso é ingênuo continuar propondo, como no século 20, estratégias que impeçam a reificação do objeto de arte enquanto mercadoria. É que o capital não só já incorporou essa proposta, abrindo espaços para a criação de objetos invendáveis (como instalações, performances etc.), mas foi mais longe na inteligência de estratégias para reduzir as práticas estéticas a seu valor de troca, para delas extrair mais-valia e esvaziá-las de seu valor de uso, ou seja, de seu valor vital. Nessa nova ordem, o artístico não só tornou-se o vendável, mas também e principalmente aquilo que ajuda a vender ou a se vender.
Assim descrita, a situação parece apocalíptica. No entanto, a perversão não é tão tiranicamente poderosa. Se o capitalismo contemporâneo atiçou a força de invenção ao fazê-la trabalhar a serviço da acumulação de mais-valia, em seu avesso a mobilização dessa força no conjunto da vida social criou as condições para um poder de afirmação da vida como potência de variação sem medida de comparação com outros períodos da história -uma ambigüidade constitutiva do capitalismo contemporâneo, seu ponto vulnerável.
Pela brecha dessa vulnerabilidade vem se avolumando a construção de outras cenas, regida por outros princípios, num movimento que escova a contrapelo (que arrepia -meu) essa situação perversa: um "povo que falta", como o nomeia Gilles Deleuze, ganha contorno; agitam-se as forças heterogêneas, acentradas e centrífugas da "multidão", como o nomeia Toni Negri.
Redes, às vezes minúsculas, às vezes maiores, efêmeras ou duradouras, que se formam entre aqueles que, pressionados pelo intolerável, decidem simplesmente desertar esse regime. Numa espécie de devir-animal, começa-se a cultivar a habilidade para farejar os signos que pedem passagem, primeira circunscrição de um diagrama intensivo. Coloca-se a força de invenção a serviço da criação de territórios orientados por esse diagrama, para inseri-los na cartografia atual da existência. Um vasto rizoma de geometria variável traçado por esse modo etológico de construção de território amplia-se a cada dia.
Que funcionamento nesse modo de subjetivação dominante é desmontado quando a força de invenção consegue recolocar-se a serviço da vida, escapando de sua cafetinagem? Basicamente, o funcionamento regido pelo medo da morte social e pela fé no poder de reinserção de que seriam portadoras as identidades prêt-à-porter; medo e fé alimentados pela poderosíssima máquina midiática global que faz de todos os habitantes do planeta produtores e consumidores em potencial do narcotráfico de identidade.
Para desviar esse modo de subjetivação, é preciso dissolver o medo, modular ritmos, abrir intervalos de desaceleração; não como uma finalidade em si mesma, simples oposição à aceleração, mas sim como condição para escutar o rumor sutil das intensidades. Aprender a sustentar-se na metaestabilidade, no vórtice da tensão do paradoxo entre estar atravessado pela tomada de consistência de novos territórios e ter que se situar ainda através dos territórios em perda de consistência.
Instalar-se no olho do furacão dos fluxos que atravessam a subjetividade, mantendo sempre como norte a proteção da vida em seu processo infinito de diferenciação, processo difícil, mas muito generoso. Descobrir que a tensão é parte do movimento da vida e que apenas momentaneamente ela se apazigua, mas que isso só acontece de fato quando se faz um território singular que absorve as intensidades e se oferece como forma para seus signos, ainda que fugazmente. Muito diferente dos territórios-padrão do capitalismo, que, por mais atraentes, são vazios de vida, o que faz com que a tensão nunca se apazigue, pois persiste a sensação de não participar da construção da existência, de não pertencer a nada e de que a vida não tem sentido.
Diante deste quadro, constatamos que já foi o tempo em que aquilo que é próprio da arte, a força de invenção, era confinado numa esfera especializada, problema que desde as vanguardas do começo do século 20 os artistas buscaram enfrentar. Restabelecer a ligação entre arte e vida constituiu uma das principais metas da utopia da arte moderna, processo onde se inscreveram inúmeras de suas estratégias e ao qual a arte contemporânea deu continuidade, radicalizando seu alcance, ampliando suportes e dispositivos.
É verdade que tampouco podemos dizer que a dissociação entre arte e vida deixou de existir. Pelo contrário, a cisão não só continua na ordem do dia, mas tornou-se mais complexa, assim como mais refinada e poderosa tornou-se sua perversão. Ela se deslocou da fronteira entre a esfera da arte e as demais esferas da existência humana, espalhou-se por toda parte e conhecê-la passou a depender de um olhar transdisciplinar. A questão coloca-se hoje em outros termos: a dissociação entre arte e vida a ser combatida não se situa mais no visível, na fronteira entre esferas especializadas no mapa de um tipo de existência humana departamentalizada, ficando de um lado a esfera da arte onde se exerce a criação e, de outro, a esfera da vida. O capitalismo foi mais veloz na eliminação dessa fronteira; como vimos ele não só ativou a potência de criação por toda parte, mas colocou-a no cerne de sua produção e fez dela sua principal fonte de valor.
A dissociação agora se situa entre o visível e o invisível: de um lado, o exercício da vida enquanto potência de invenção e, de outro, o processo vital que convoca esses exercícios, diagrama intensivo invisível que pede passagem para o visível. Tal cisão constitui uma engrenagem essencial da máquina que submete o exercício da força de invenção ao princípio da acumulação de capital.
Esse tipo de dissociação entre arte e vida implica uma operação de grande complexidade e que pode incidir sobre diferentes etapas do processo de criação. Numa ponta, a operação se dá no momento mesmo em que a força de invenção é mobilizada, incidindo sobre o próprio exercício dessa força. Este é clivado do processo vital que o havia convocado, para ser diretamente orientado pelas demandas de consumo rastreadas pelas tecnologias de pesquisa de mercado que se sofisticam a cada dia.
Na outra ponta do processo, a operação se dá no momento em que a força de invenção já engendrou seus produtos, isto é, formas de realidade objetiva e/ou subjetiva. Nesse caso, o exercício da criação mantém-se orientado pelas demandas do processo vital e, como vimos, ele é até estimulado nessa direção, mas então a operação de dissociação irá incidir sobre seus produtos. Estes é que serão clivados de sua origem vital, transformados em matrizes de clones de modos de existência, a serem fabricados e veiculados pelo mercado capitalista mundial.
O problema que se coloca para a arte hoje está portanto na política de semiotização dominante: a captura da força de invenção para a produção de capital. Não se trata de recusar a capilarização do exercício da criação, sua reinserção na vida social; pelo contrário trata-se de aceitá-la, afirmá-la e mesmo intensificá-la, levando às últimas conseqüências esse processo deslanchado pelo capital que dissolve as fronteiras que separavam a cultura numa esfera específica, gueto em que havia sido confinada a força de invenção. Mas afirmar a disseminação dessa potência, desertando sua subserviência ao comando tirânico pelo aparelho de homogeneização, desfazendo tanto a dissociação que orienta seu exercício quanto a reificação de suas criações em cada uma das atividades humanas, inclusive e talvez antes de mais nada no exercício da própria arte. Criar alianças entre práticas que desertam ativamente a máquina de sobrecodificação e inventam outras cenas, colocando em rede sua sinergia e ativando sua potência de singularização; inserir-se no movimento de reativação da força de invenção a contrapelo de seu esvaziamento vital, da neutralização de seu poder crítico - nessa direção inscrevem-se algumas das práticas estéticas mais radicais da atualidade. Para tais propostas, prática estética é processo no tempo, ou processo que é tempo, e não apenas seu produto, o objeto no espaço, mesmo que virtual, condição à qual a arte tem sido reduzida. Inventam-se "dispositivos espaço-temporais de um outro estar-junto"[7], através de estratégias de inserção sutil e precisa num feixe de fluxos que compõe uma seqüência do processo de existencialização, para desobstruí-lo dos coágulos de espaço que o emperram, favorecer a individuação no tempo, o devir. Práticas estéticas a serviço da reconexão com a experiência do intensivo, condutoras de processo, produtoras de acontecimento, ou melhor acontecimento elas mesmas. Arte como servidora das forças que pedem para ganhar forma no mundo, processo de criação em conexão on-line com o movimento vital.
Talvez seja mais preciso chamar de "ato estético" esse tipo de prática, para enfatizar seu caráter performático: performance de uma potência criando um cenário singular para os signos que se apresentam na experiência das intensidades; ritual que propicia identificação com o exercício de conexão com o processo vital e de criação de cenários para seus signos, no lugar da identificação com seus produtos, reificados, empalhados, mortos; qualidade de presença que promove um desvio efetivo no modo de subjetivação dominante.
Sem esse caráter performático, o dispositivo corre o risco de ser imediatamente engolfado no poderosíssimo circuito dos objetos/imagens, que o capturam e o esvaziam de sua consistência vital, para fazer dele mais um clone de subjetividade a ser oferecido no mercado, mais uma identidade prêt-à-porter que renderá dividendos comerciais e simbólicos.
Falsos problemas têm sido colocados pela arte contemporânea em sua busca de situar-se na complexidade da situação presente. De um modo geral, eles dizem respeito a um só e mesmo equívoco: manter o foco na assim chamada esfera do "cultural", tanto na circunscrição do problema quanto nas estratégias para enfrentá-lo. Enxerga-se apenas no campo da cultura a presença do aparelho de captura da força de criação instalado pelo capital, deixando-se inclusive de perceber o papel que a arte desempenha no funcionamento desse aparelho no conjunto da vida coletiva.
Da mesma maneira, limita-se aos espaços da cultura, a invenção de estratégias estético-políticas que problematizem essa situação. Com isso passa-se ao largo da disseminação dessa política de semiotização operada pelo capital, quando é exatamente no amplo espectro dessas práticas sobrecodificadas que atravessam a cena social como um todo que a arte deve encontrar suas vias de inserção crítica. O perigo é inventar uma política de resistência/criação nas práticas estéticas sem poder algum de deslocamento efetivo e, com isso, facilmente instrumentalizáveis pelo capital.
As estratégias que melhor têm driblado esses falsos problemas são as que buscam cultivar o exercício sutil de uma etologia de construção de territórios, diferente da construção perversa desse mundo de clones de subjetividade sob o império do capital. No lugar de uma subjetividade-capitalística, seja ela de luxo ou de lixo, uma subjetividade-estética começa silenciosamente a roubar a cena.
Conferência realizada nos colóquios "Theaters of Life", Performance Studies International (PSi), Department of Performance Studies, Universidade de Nova York e Hemispheric Institute for Performance Studies (Nova York, 12/04/02); "Theater der Welt 2002" e Bundeszentrale für politische Bildung (Colónia, 27/06/02); "Global Dance 2002 Aesthetics of Diversity", World Dance Alliance Festival (Düsseldorf, 26/08/02).



[1] Cf. Rolnik, Suely, "Toxicomanes dldentité", in "Documenta X, 100 Tage - 100 Gaste" (Kassel, 1997), www.documenta.de ou http://www.universes-in-universe.de/doc/e_ver.htm, e "Viciados em Identidade: Subjetividade em Tempo de Globalização", in "Cultura e Subjetividade" (Saberes Nómades, org. Daniel Lins, ed. Papirus, 1997).

[2] "Reality Shows" da televisão brasileira que têm índices de audiência elevadíssimos e ocupam espaços significativos nas páginas na imprensa.

[3] "Fama" é um "reality show" em novo formato, em que os participantes, todos com alguma espécie de carreira artística incipiente, são submetidos a um treinamento intensivo para se tornarem estrelas da mídia. É o cotidiano desse treinamento que os telespectadores acompanham. O vencedor, ou seja, aquele que resta após todos os demais terem sido eliminados da casa, e portanto de cena, tem sua carreira garantida, já previamente articulada
[4] Cf. Rolnik, Suely, "Despachos at the Museum: Who Knows What May Happen..."e "Despachos no Museu: Sabe-se Lá o Que Vai Acontecer..." in "The Quiet in the Land. Evereday Life, Contemporary Art" and "Projeto Axé; A Quietude da Terra. Vida Cotidiana, Arte Contemporânea e Projeto Axé", org. France Morin, Museu de Arte Moderna da Bahia (Salvador, 2000) e in "Stretcher" -http://www.stretcher.org/essays/suely/despachos.html (San Francisco, 2001).

[5] Declaração de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o "Boni", citada pela "Revista da Folha", de 7 de abril de 2002.
[6] No caso específico do Brasil essa tendência é favorecida pelo Estado, que declinou em grande parte sua responsabilidade em relação à cultura para entregá-la ao setor privado. Como se não bastasse, o Estado criou condições para reduzir praticamente a zero o custo do investimento em arte, através de uma lei que permite deduzi-lo dos impostos e pagá-lo portanto com dinheiro público. Resultado: a cultura continua sendo indiretamente bancada pelo Estado, mas instrumentalizada pelo capital privado, integralmente à mercê de seus interesses.
[7] Jacques Rancière, entrevista inédita a Hans-UIrich Obrist.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil


Entrevista especial com Tales Ab'Sáber

Em dez anos de gestão petista, “se produziu um novo e raro pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil, em uma espécie de social democracia mínima, que levou à verdadeira hegemonia política lulista ao final de seu segundo mandato, em 2010”, diz professor da Unifesp.

Confira a entrevista. 

“O Fla-flu político-ideológico para a manutenção do governoLula, e para a afirmação de seu sucesso, desmobilizou um tanto das exigências sociais críticas da própria esquerda, que passou a nivelar expectativas e desejos por baixo, se aproximando fortemente da ordem conservadora, o que, para um país com déficits, como é o Brasil, não é bom. Além disso, a política, o manejo cotidiano da vida pública, regrediu abertamente a um estado generalizado de complacência com a corrupção e a incompetência; ou a esquerda se instalou finalmente na fratura exposta da política fisiológica brasileira”. A descrição é do professor da Unifesp, Tales Ab’Sáber (foto abaixo), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “dialeticamente, e curiosamente, a gigantesca crise doPartido dos Trabalhadores coincidiu com o tempo do governo de Lula – e, dada a contradição radical com sua própria história, creio que não poderia ser diferente –, o que precipitou sua efetiva renovação, e acabou fazendo com que o partido saísse um passo na frente na necessária renovação geral da vida política brasileira”. E conclui: “pela primeira vez o Brasil sentiu a força ideológica da soma de democracia, mercadoria e emprego, de modo que esta experiência, a do capitalismo integrado, vinda muito tardiamente e do todo, repercutiu sobre todo o povo brasileiro. Em termos políticos clássicos, o líder popular apoiado pelo que restou da esquerda, com vínculos sindicalistas fortes, comandou um imenso processo de aceitação da hegemonia – como dizia Gramsci – do modo de ser do capitalismo contemporâneo por estas bandas, cacifando a vida ruim dos pobres no Brasil com o acesso a celulares, tevês de plasma e carros populares, de modo que todos, trabalhadores e mercados, ficaram satisfeitos”. 

Tales Ab’Sáber, psicanalista e ensaísta, é professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Formado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP, é mestre em Artes pela mesma instituição. Também é psicólogo pelo Instituto de Psicologia da USP, onde defendeu doutorado sobre clínica psicanalítica contemporânea. É membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É autor de, entre outros, Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (São Paulo: Hedra, 2011) e A música do tempo infinito (São Paulo: Cosac Naify, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Passados 10 anos, como era o Brasil antes e como é agora, depois da passagem do PT pela Presidência da República? 
Tales Ab’Sáber – Não há dúvida de que houve um pequeno salto de civilização no Brasil nestes dez anos. Mas acredito que, de fato, pequeno. O fato de o governo petista ter insistido, através de práticas econômicas e sociais de inclusão social, mas também através de uma política fortemente simbólica a respeito desta inclusão – principalmente nos dois governos Lula – no compromisso do Estado e da nação com a inserção social das massas pobres brasileiras, e os bons resultados econômicos e simbólicos destas políticas, que também dizem respeito ao lugar do Brasil no mundo, talvez tenham estabelecido como definitiva a necessidade de que o crescimento econômico nacional esteja atrelado e comprometido a uma simultânea dinâmica social de transformação e inclusão. Se isso for verdade, a irreversível dinâmica nacional de associar crescimento e integração social, o Brasil ganhou um ponto muito importante no processo de sua modernização real atrasada. 

Crescimento com inclusão
Até muito recentemente não havia garantias políticas nem a perspectiva de que a máxima concentração de renda tradicional brasileira e o desprezo das elites brasileiras pela vida popular levassem a uma solidificação desta posição: a do crescimento com inclusão. As elites brasileiras conceberam por duzentos anos um país sem este tipo de veleidade civilizatória – e nos primeiros 66 anos do país ainda se deram ao grande luxo antimoderno de ser uma elite de senhores de escravo, em pleno século XIX – e, sendo assim, podiam manter a vida do país no regime da máxima concentração, como sempre foi, por que não? Esta conquista, que talvez seja a principal dos governos petistas, é fruto dos processos políticoscompetitivos da democracia de massas, que envolveram o próprio surgimento e desenvolvimento do PT, e da orientação popular, ou neopopulista de mercado, como escrevi sobre Lula, dos últimos tempos.

No entanto, tal inserção social ainda é muito incompleta e foi acompanhada de imensas mazelas, tanto políticas quanto culturais. De fato ela não está garantida, e pode ser revertida por um novo ciclo de acumulação capitalista no país. Ainda, por outro lado, a inserção dos pobres, exclusiva e preferencial via consumo, ilude com o acesso ao mercado e seu fascínio pelas coisas. O que seria, na prática, uma vida decente para os pobres no país, o que, se considerarmos as garantias básicas de direitos cidadãos, como educação, saúde, transporte e moradia decentes, absolutamente não é verdade. Também, o Fla-flu político-ideológico para a manutenção do governo Lula, e para a afirmação de seu sucesso, desmobilizou um tanto das exigências sociais críticas da própria esquerda, que passou a nivelar expectativas e desejos por baixo, se aproximando fortemente da ordem conservadora, o que, para um país com déficits, como é o Brasil, não é bom. Além disso, a política, o manejo cotidiano da vida pública, regrediu abertamente a um estado generalizado de complacência com a corrupção e a incompetência; ou a esquerda se instalou finalmente na fratura exposta da política fisiológica brasileira. Sem falarmos no rebaixamento cultural mais amplo e irrestrito, onde se insere inclusive, e principalmente, a classe média alta e os ricos nacionais, satisfeitos de modo caipira e bem desinteligente com um mundo imediato de consumo de quinquilharias do luxo mundial, e com a vida voltada para um hedonismo o mais barato concebível. Desse ponto de vista, a política geral das humanidades da esquerda no poder, de fato bem liberal, nos últimos dez anos, não pode ser considerada suficientemente boa.

IHU On-Line – Passados 10 anos, como era o PT antes e depois da passagem pela Presidência da República?
Tales Ab’Sáber – A história do PT depois da sua chegada ao poder federal é uma mistura de “uma montanha russa com uma casa dos horrores”. A transformação acelerada do PT em um novo tipo de partido tradicional brasileiro teve início com as decisões de real politique levadas a cabo para eleger Lula em 2003: alianças com partidos tradicionais, de centro e até de direita, para garantir uma coalizão governista e maior tempo de TV, e a aceitação de uma aberta política da imagem, da espetacularização dos atributos do líder Lula, para operar seu novo e alavancado carisma pop junto à vida popular, o que ocupou o lugar das antigas políticas de esclarecimento e exigências públicas críticas, que sempre distinguiram a atuação, iluminista e inteligente, do PT na política brasileira. 

PT ganhou a eleição exatamente no feitio, propagandístico e de espetáculo no lugar da política, que foi o de seus adversários de direita, Collor ou Fernando Henrique, em pleitos anteriores. E este modo de partir para os efeitos alienantes e acríticos da nova política da imagem, ancorada no potencial carismático do líder, já era, em meu entender, uma conversão política bem radical do Partido dos Trabalhadores aos novos tempos. No poder, o partido aceitou as decisões conservadoras sobre a política econômica, dando garantias de contratos ao grande capital, aceitou a gestão fisiológica, e mesmo corrupta, da máquina política de Brasília, expulsando inapelavelmente a esquerda do partido, e liberou Lula para ser o garoto propaganda, regressivo e fetichista, da imagem de seu próprio governo. 

Aumento da renda com foco no consumo
Tudo isso era compensado pelo projeto de acelerar o aumento da renda dos pobres, orientado para o consumo. Em 2005, em um episódio de imensa incompetência no manejo dos compromissos assumidos, veio a crise grosseira do mensalão, escancarando publicamente a nova ordem de práticas, de fato as mais velhas conhecidas no Brasil, do novo PT do poder. José Dirceu caiu, e com ele todo o núcleo central do partido que orbitava junto a Lula. O partido saiu marcado por uma contradição realmente insolúvel para a sua história: ele era o novo grande promotor de práticas corruptas, e de apropriação de riqueza pública na política brasileira. Rompeu-se a última barreira, acelerou-se a montanha russa, surgiu, para mim e para muitos, a casa dos horrores. Lula saiu a campo para defender em um corpo a corpo de imagem seu governo combalido e que corria riscos, e neste momento a conversão à política do espetáculo foi de grande importância; o PMDB passou a ser o regulador da real política petista no congressoLulaficou maior que seu partido – cujos nomes principais tinham que se haver com polícia e tribunais – e após os sucessos de sua política de transferência de renda e crédito para os pobres, no segundo mandato, ele determinou, de modo meio imperial, mas com tino político perfeito, a renovação forçada do partido, sustentando a neófita política Dilma Rousseff e, no ano seguinte, o novíssimo quadro petista Fernando Haddad, em São Paulo. Dialeticamente, e curiosamente, a gigantesca crise do Partido dos Trabalhadores coincidiu com o tempo do governo de Lula – e, dada a contradição radical com sua própria história, creio que não poderia ser diferente –, o que precipitou sua efetiva renovação, e acabou fazendo com que o partido saísse um passo na frente na necessária renovação geral da vida política brasileira. 

Nada disso impediu que uma parte significativa dos companheiros petistas, que escaparam à degola do mensalão, enriquecesse abertamente em um processo de franco aburguesamento com o período no poder. O caso de Antonio Palocci se recusando a declarar as empresas que lhe pagaram milhões por assessorias, nas vésperas de sua entrada para o governo Dilma, de modo que o político abriu mão do ministério, mas não do dinheiro e dos negócios, é bastante exemplar a este respeito. O da secretária de Lula indicando amigos para órgãos reguladores e demandando deles, muito à vontade, sucessivos favores em dinheiro, é outro. E neste processo, mais uma vez, os petistas apenas confirmaram o movimento mais geral e muito tradicional da política brasileira, o que quer dizer, em outras palavras, que outros partidos, incluindo aí o refinado PSDB, não fariam melhor.

IHU On-Line – Quais os mecanismos utilizados pelo PT para se manter tanto tempo no poder Executivo federal dentro de uma democracia direta? Qual a importância das alianças e da política de coalizão nesse sentido?
Tales Ab’Sáber – Creio que os mecanismos usados para o predomínio petista, que é a própria configuração do governo, foram as quatro posições assumidas pelo governo Lula:
1) aceitação da real politique fisiológica e arcaica brasileira,
2) manutenção dos contratos e dos preços do capitalismo financeirizado brasileiro de então, com autonomia e garantia de gestão pró-mercado do Banco Central brasileiro,
3) políticas de investimento e de aumento de renda, via transferência e via crédito, para os muitos pobres, visando a dinamização e o aumento do mercado interno e
4) aberta e calculada política da imagem de Lula, junto aos pobres e à indústria cultural global, ao ponto dele chegar a alcançar um novo nível de mistificação política, o do carisma pop. Com estas ações se produziu um novo e raro pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil, em uma espécie de social democracia mínima, que levou à verdadeira hegemonia política lulista ao final de seu segundo mandato, em 2010.
Sobre a política de coalizão: no Brasil ela coincide com a cessão, em regime de “porteira fechada”, de grandes “nacos” do poder público e do Estado, para a gestão privada, eu diria quase privatizada, do partido que faz parte da aliança governista e que recebeu a benesse nos jogos do poder, de modo que as ações destas verdadeiras partes autônomas do poder de Estado não estão sincronizadas ou afinadas com a política geral do governo majoritário. Nosso presidencialismo de coalizão produz uma política privatizada para os partidos, cuja gestão da coisa pública é, em geral, incompetente e fortemente corrupta. Esta estrutura institucional, da própria política, tem imensos custos para o país, e pode levar a grandes instabilidades e crises. Ela teria que ser redesenhada, mas todas as forças políticas se igualam e estão satisfeitas nela, desde que o PT passou a fazer parte e dar legitimidade para o clube da partilha do Estado. Lula estabeleceu este estado de coisas, não muito diferenciado do modo tucano de acolher o PFLem seu governo, e Dilma foi obrigada a fazer o teatrinho da faxina política, que apenas troca um gestor incompetente e corrupto de um dado partido, por outro igual, do mesmo partido.

IHU On-Line – O senhor afirma que “o mensalão é a instalação do PT na política de direita brasileira”. Desde quando o PT deixou de ser um partido de esquerda?
Tales Ab’Sáber – Desde quando o PT assumiu, de modo conservador, que sua tarefa histórica é a modernização do capitalismo brasileiro, buscando ser o fio da meada de um pacto social difícil, dada a imensa disparidade de poder entre as classes no país. Ao assumir esta posição, no governo, o PT liquidou o lugar histórico do PSDB – que era exatamente este, mas sem compromisso social forte – com o adendo de que o partido tucano seria o tampão para barrar, pelo centro, a chegada do PT, então sentido como anticapital, ao poder. E não por acaso o partido também se aburguesou, e se tornou corrompível no poder, o que tem muita lógica com o projeto assumido.

O sucesso amplo de tal posição política petista junto ao grande poder e ao grande dinheiro nacional também significou o rebaixamento geral das práticas, e mesmo das expectativas culturais exigentes, do velho PT ao ramerrão geral da baixaria, tradicionalmente própria das elites brasileiras. Este foi o outro pacto social: o do encontro da baixa cultura de elite com a regressão cultural petista satisfeita. Mas que pode significar isto, se os pobres estão satisfeitos no consumo, os ricos estão liberados e felizes, e os companheiros de Lula enriquecem com os bons negócios do Estado? A regressão cultural é, desse modo, hegemônica.

IHU On-Line – Quais os principais efeitos políticos regressivos que a “política do absurdo para salvar a própria pele”, como o senhor definiu a atuação do PT no mensalão, pode provocar? 
Tales Ab’Sáber – Para mim o que houve de mais lamentável no inteiramente lamentável episódio histórico do mensalão foi a incapacidade total do PT, e do governo Lula, de politizar de modo afirmativo e verdadeiramente progressista o fato de homens do partido terem sido apanhados em práticas ilegais, e que eram, até então, endêmicas no país. O fato do partido se ver envolvido em práticas corruptas, de circulação de dinheiro não contabilizado, com origem em fontes públicas, para a gestão da política nacional, e de ser exatamente este o estado generalizado das coisas políticas entre nós, era forte o suficiente, expressivo o suficiente, exemplar o suficiente, para produzir uma ação política propositiva e transformadora deste estado de coisas, para precipitar, a partir do protagonismo histórico do PT, e sua autocrítica exigente, uma reforma política que banisse definitivamente tal estado de degradação e submissão da vida política nacional aos jogos e diretos do dinheiro.
PT, por estar no centro do lugar em que todos estavam, e por sua grande história de negação ética destas mesmas coisas da política brasileira em que estava envolvido, podia, e eu diria, tinha mesmo a obrigação, de propor uma mudança na regra do jogo que corrompera o próprio partido, o que o instalou na política de direita brasileira. Mas isso não ocorreu. Que posição o partido e o governo tomaram? A que havia verdadeiramente de pior no espaço e nas tradições políticas brasileiras. Apanhados em graves ilícitos, com provas fartas a partir da denúncia de um político, de direita, participante ativo do esquema, o PT, sem nenhuma crítica ou autocrítica, produziu uma negação geral dos fatos, e demandou do Supremo a tradicional impunidade dos poderosos brasileiros... Não apenas o partido foi apanhado em ato de circulação de dinheiro ilegal – como um velho Maluf qualquer, digamos assim de modo metafórico – como ao negar explicitamente o inegável, e exigir a indevida impunidade, apostando na degradação institucional e política a favor do poder, o partido se comportou inteiramente, efetivamente, em toda a linha, como umMaluf qualquer... Não apenas as práticas, mas toda a ação simbólica foi de direita, e o resultado institucional e político do affaire, se estes políticos regressivos vencessem o jogo, seria a reafirmação da impunidade da justiça brasileira para os poderosos, um dos mais graves males de nossa democracia danificada...
O PT jogou inteiramente na regressão, contra sua história, e contra toda expectativa de vida política inteligente no partido, e contra o país, demandando a impunidade das elites, a mesma que degrada a vida da justiça e da política brasileira, tornando-as mafiosas, igualando-se a um Maluf qualquer, aquele que, condenado, continua dizendo nunca ter sido condenado. Por isso falei em “a aposta em uma política do absurdo para salvar a própria pele”, neste episódio lamentável em toda extensão e profundidade que podemos alcançar. Com estas ações públicas o PT se fez idêntico, em todos os passos, antes durante e depois, ao modo de ser da direita brasileira. E, por isso, há profunda coerência na foto, exigida pelo político de direita, de Lula cumprimentando Maluf no jardim de sua mansão, que revelou aos petistas escandalizados aquilo que cuidadosamente eles tentam ocultar de si mesmos. Uma atuação política pública desastrada em toda linha, horrível e lamentável, além de, não por acaso, incompetente e derrotada.

IHU On-Line – Qual é o partido que pode ser considerado de esquerda hoje no Brasil?
Tales Ab’Sáber – Se há alguma esquerda, que sustente algum grau de crítica ao modo de ser do capitalismo contemporâneo, ela está fragmentada e se tornou de fato irrelevante, pelas próprias más avaliações do mundo e do tempo. Um mínimo grupo de sindicalistas que anima um partido nanico, com segundos na tevê, como ocorre no Brasil, não é de fato uma esquerda digna das grandes tradições críticas e da intensidade política da tradição.
Além disso, temo fortemente pelo mal entendimento das práticas de poder e de alienação muito avançadas na técnica do mundo de hoje, que creio que a esquerda de fato não sabe conceber, realística e criticamente. Por não saber pensar estas coisas – a indústria da diversão, o poder do fetichismo da mercadoria, a submissão sadomasoquista à indústria cultural – a esquerda, quando se aproxima do poder, faz um pacto apressado e mimético com elas.
A única esquerda à altura do tempo efetiva entre nós, mas irrelevante para a política real e partidária, me parece ser a esquerda de alta exigência teórica e crítica que se protegeu na universidade. A voz desta vida intelectual de esquerda deveria poder alcançar de algum modo a vida pública mais ampla. 

IHU On-Line – Como definir o que seria o pensamento de esquerda política em nossos dias?
Tales Ab’Sáber – Existe uma new left mundial que tem alguns parâmetros importantes para o pensamento de esquerda, como orientar o crescimento global e a crítica ao poder a favor das massas violentadas e alienadas em injustiça presentes em todo o mundo, ao mesmo tempo em que ela não cede da crítica racional e exigente às mazelas do capitalismo ali onde ele se tornou universal.
Esta esquerda mantém viva uma avaliação muito rigorosa das contradições e novas ordens de violência do momento atual de globalização do capital e dos mercados e de redução dos espaços de potencial democrático assim como das novas tecnologias de informação a espaços de mera circulação da mercadoria e de seu sistema do espetáculo, de imagem lixo, baixa informação e fofocas.
Em geral, trata-se de uma crítica independente e universitária, mas é uma reserva de racionalidade e exigência de valores humanos que pode ser ativada em algum momento de falência e de crise da acumulação do capital, o que ocorreu, por exemplo, em 2008. Obama, que chegou ao poder nos Estados Unidos por causa da crise real do capitalismo mundial, promovida pelos grandes terroristas de Wall Street, era alimentado e informado por parte desta esquerda acadêmica norte-americana. De todo modo, já é plenamente possível falarmos de uma verdadeira crise do pensamento político de direita em nossos dias.

IHU On-Line – Como se deu o processo da integração capitalista brasileira? O senhor continua achando que essa foi a grande obra de Lula na presidência, seu grande legado?
Tales Ab’Sáber – Certa vez Caio Prado Jr. disse que se tivesse que definir o Brasil em uma única palavra ele diria que é um país muito atrasado. A integração capitalista brasileira foi um processo extremamente atrasado e atravessado pelo déficit de cidadania e de relações econômicas e políticas entre as classes sociais que trabalhassem na direção da reparação social da escravidão original e da integração de todos na vida simbólica e material do presente. O Brasil atravessou o século XIX, o século do significante universal do progresso, com escravidão, o que significa integração social zero, e ainda no tardio 1964, por motivos internos que recebiam por aqui o influxo da guerra fria norte-americana, o país mergulhou em uma ditadura de extrema direita, autoritária e antipopular, que geriu de modo muito conservador o imenso crescimento econômico do século XX brasileiro. Mais uma aposta na não integração social. A democracia demorou a dar as caras e algum mínimo resultado por aqui.
Os dez anos de SarneyCollor Itamar foram praticamente perdidos para o efeito e a necessidade de integração das massas pobres na economia moderna e na plena cidadania. FHC, com o combate à inflação, criou as bases para o sucesso do governo petista, oito anos depois, mas com seu rígido controle monetário, corte total dos gastos públicos e grande elitismo, praticamente parou o país, efeito econômico deletério para os mais pobres. Sobraram para Lula as condições de reanimar a economia visando o mercado interno e um simulacro de um tipo de pleno emprego, sem o qual a ordem ideológica capitalista simplesmente não funciona, em nenhuma parte.
Pela primeira vez o Brasil sentiu a força ideológica da soma de democracia, mercadoria e emprego, de modo que esta experiência, a do capitalismo integrado, vinda muito tardiamente e do todo, repercutiu sobre todo o povo brasileiro. Em termos políticos clássicos, o líder popular apoiado pelo que restou da esquerda, com vínculos sindicalistas fortes, comandou um imenso processo de aceitação da hegemonia – como dizia Gramsci – do modo de ser do capitalismo contemporâneo por estas bandas, cacifando a vida ruim dos pobres no Brasil com o acesso a celulares, tevês de plasma e carros populares, de modo que todos, trabalhadores e mercados ficaram satisfeitos.
Para isso se rebaixaram as exigências críticas e éticas do PT, se aceitou a gerência global dos números do mercado financeiro local e pobres e ricos sintonizaram no projeto Lula, em um pacto não explicitado realizado em seu nome, aceitando o seu desenho e os seus limites. Evidentemente, ao contrário do que diz a propaganda geral, os ricos ganharam imensamente mais no processo. De resto, nos últimos tempos temos visto a grande dificuldade de Dilma Rousseff em governar o país de modo a produzir um verdadeiro maior desenvolvimento econômico, diminuindo os juros devidos pelo governo aos mercados, e a nova dificuldade política que esta primeira cisão histórica do governo petista com parte do capital vem produzindo.

IHU On-Line – Quais os rumos do PT depois que ele deixar o poder? Poderá ser novamente considerado um partido de esquerda quando voltar a ser oposição? 
Tales Ab’Sáber – O PT se originou e tem um vínculo, hoje nada profundo, mas eficazmente simbólico, com a história da democratização brasileira após a violenta ditadura de extrema direita brasileira de 1964. Em sua fundação, em 1981, convergiram para um amplo projeto, que então tentava equacionar a ideia de um socialismo democrático, várias forças e estratos sociais brasileiros de esquerda, de algum modo reencenando no interior do partido a tentativa de aproximação entre as classe sociais que existiu no Brasil e que foi violentamente cortada em 1964. Estas forças heterogêneas, que viam na sua própria aproximação em um partido a possibilidade de um verdadeiro movimento de democratização social no país, que envolviam sindicalistas, intelectuais de esquerda, religiosos ligados à teologia da libertação latino-americana, passaram fortemente a investir na figura estratégica do grande líder popular, Lula. As intensas discussões democráticas do partido convergiam para o trabalho da liderança nacional de Lula, o que acabou, nos últimos tempos históricos, constituindo o carisma quase mítico do presidente.

Deste modo, o PT sempre vai poder, em tom de fábula, ou mesmo de farsa, recontar os tempos heroicos da congregação nacional das esquerdas que ele de fato significou, nos anos 1980 e 1990. E dado o imenso atraso cidadão e material de grande parte do povo brasileiro em relação à realidade do tempo do mercado e da cidadania plena, o partido sempre terá uma margem de não integração social para representar na política. Isso tranquiliza o seu patronato político que, se não forem presos, ou caírem na lei da ficha limpa, terão ainda longa vida para o poder. 

Todavia, o importante é a adequação política ao jogo do poder brasileiro, como ele é, que deu imensos resultados para Lula, e que permite, à direita e ao capital no Brasil, receber do PT influxos sociais pró-capitalistas que eles próprios são incapazes de realizar.

terça-feira, 26 de março de 2013

flecheira.libertária.287


aviões do crédito
Bancos, grandes e microempresas colhem os lucros das comunidades pacificadas no Complexo do Alemão, no Rio. Especialistas do setor de baixa renda dizem que os locais passam por uma “revolução” no consumo. Um banco estatal mostra como uma “máfia” aprende com a outra a receita para expandir os negócios. Além das duas agências abertas na favela, o banco recruta jovens das próprias comunidades para oferecer suas linhas de crédito para os moradores. Estes jovens formam um pequeno exército: 170 emissários que circulam por ruas e becos. “Libertos” do tráfico, agora fazem avião para novas linhas de crédito. 
pacificação do mercado
Esta “revolução”, iniciada com exército e tanques em 2010, possui empreendedores que projetam investimentos mais arriscados: ocupar as áreas não pacificadas. Para este ano, está prevista a inauguração do primeiro shopping no Alemão e, na sequência, em uma comunidade sem UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). A ideia é do empresário que fundou o grupo de empresas Favela Holding, em sociedade com uma ex-liderança da ONG CUFA. Ele avalia que já é possível investir nas favelas não pacificadas. O negócio mudou: o mercado seguro e pacificado camufla a circulação de armas.
merchã e empreendedorismo
A explosão do consumo nas favelas tem trazido muita grana para as emissoras de televisão. Na novela que exalta o exército e denuncia o tráfico de seres humanos, o que não falta é merchandising. A novela mostrou uma das tendas que uma empresa sustentável possui na favela do Alemão para ensinar as mulheres a se maquiar e dar informações sobre como se tornar uma consultora. O marketing não quer mais apenas vender produtos. Seu objetivo está na produção de subjetividades empreendedoras na tela e na favela.
eu faço se você fizer, ou troca-troca
Junto com a Hora do Planeta, campanha que estimulou a economia de energia elétrica, uma enorme ONG ambientalista convidou as pessoas para a campanha-desafio I Will If You Will (em português, eu faço se você fizer). Nessa campanha, o participante deve se entregar a um desafio condicionado ao comprometimento do cidadão em cumprir tarefa ambiental. Modelão: o cidadão posta um vídeo prometendo fazer algo ex-ci-tan-te. Em contrapartida, os outros cidadãos devem responder com uma conduta sustentável. Desse modo “Maria-vai-com-as-outras”, ou melhor, I will if you will, milhares de pessoas servem com criatividade e devoção ao capitalismo sustentável.

FOUCAULT COMO O IMAGINO


por Maurice Blanchot
   
O leitor que avançar desprevenidamente nas primeiras linhas deste curto texto de Maurice Blanchot poderá muito depressa aperceber-se do essencial. E o essencial é: que há um mistério (não diria tanto: uma prega, uma dobra, uma ruga, um estremecimento, uma convulsão) nesta escrita. Não se trata de coisas escondidas, e por uma razão demasiado simples: não há onde esconder. Isto é, aparentemente esta escrita não tem qualquer interioridade, não há nela um dentro dela (nenhuma caverna, nenhum nicho, nenhum fundo falso, nenhuma cripta, nenhum mapa da ilha) para ocultar seja o que for. Desenrola-se aos nossos olhos numa transparência irrepreensível - e alguns foram ao ponto de fazer ouvir através de um nome (Blanchot, blanche eau) a brancura sem cor de uma água inverossimilmente pura. O mistério vem do modo como se desenrola - demasiado claro, quase inocente, para ser verdade. Tão claro, tão dócil, tão neutro, tão distraído de si mesmo, que por vezes nos assusta. Não há drama nesta escrita. Ela é serena, de uma estranha serenidade, porque parece dizer que atravessou a morte. E é talvez isso mesmo que se inscreve no admirável título de uma das mais belas narrativas (mas: « Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais») deste século: La folie du jour. Por outras palavras, a clareza do dia é de tal modo clara que essa claridade se aproxima, excessiva, transbordante, imensa, da loucura. Porque esse texto começa num depois da morte (que é também, reparem, um depois da vida): «Não sou nem sábio nem ignorante. Conheci algumas alegrias. É muito pouco dizer: vivo, e esta vida dá-me um grande prazer. Então, a morte? Quando morrer (talvez daqui a nada) conhecerei um prazer imenso. Não falo do ante-gosto da morte, que é insulso e muitas vezes desagradável. Sofrer é embrutecedor. Mas tal é a verdade notável de que estou certo: sinto em viver um prazer sem limites e terei ao morrer uma satisfação sem limites.» Atravessar a morte é isto: suspender, no equilíbrio lúcido do dia, o prazer que fica, entre a morte e a vida, no exterior impensável da sua conjunção.

domingo, 24 de março de 2013

Prostituição: as razões para regulamentar


Por Ramiro Furquim/Sul21

Uma garota de programa gaúcha defende projeto do deputado Jean Willys e polemiza com críticas de parte das feministas a sua profissão
Por Samir Oliveira e Natália Otto, no Sul21
Conhecida pela disposição em debater a profissão, a prostituta Monique Pradaacredita que a regulamentação das casas de prostituição está gerando discussões na sociedade e tirando as garotas de programa da invisibilidade. “A regulamentação nos tira debaixo do tapete. Há alguns anos, jamais imaginaria que isso seria possível”, afirma.
Nesta entrevista ao Sul21, Monique Prada fala sobre a profissão e defende uma maior organização entre as garotas de programa. Mas reconhece que há um longo caminho a ser percorrido e denuncia as perseguições que as prostitutas sofrem quando começam a tentar politizar a profissão. “É uma profissão onde, quanto menos tu falas, melhor”, critica.
Monique também rebate os posicionamentos de feministas contra a prostituição e entende que, para além da crítica, é preciso fornecer alternativas concretas a quem deseja deixar a profissão.
Sul21 – Os cachês cobrados são muito baixos?
Monique – Depende. Eu cobro o topo do mercado, de R$ 200 a R$ 300 por hora. É pouco, considerando que há um investimento enorme em maquiagem e academia. Mas essa não é a realidade da maioria, que costuma cobrar bem menos. Uma vez, eu e mais cinco ou seis garotas de programa combinamos de subir os cachês ao mesmo tempo. Houve uma revolta, nos acusaram de formação de cartel e nos ameaçaram com processos.
Sul21 – Foi uma tentativa de organização? Como é a relação entre colegas? Há uma noção de unidade ou é cada um por si?
Monique – É cada um por si. Não apenas pela concorrência, mas porque não temos tempo para nos reunirmos. Tínhamos um fórum, mas é complicado, começam a nos perseguir. Meu site já foi infectado por vírus. Se começarmos a ficar muito unidas, dá problema. É uma profissão onde, quanto menos tu falas, melhor. E também há uma distância entre as meninas da rua e as que estão na internet. Quem está na rua acha que a nossa rotina é mais leve. Isso dificulta a organização da categoria, que poderia trazer mais segurança e conhecimento entre nós.
Sul21 – Os clientes temem uma organização das prostitutas?
Monique – Existe um fórum de discussão na internet que visa à troca de informações sobre acompanhantes dentre usuários do serviço. É um canal que já tem 10 anos e surgiu com a importante função de defender o cliente de práticas abusivas por parte das agências – que enviavam meninas diferentes das fotos postadas, por exemplo – e para a troca de informação e recomendações sobre atendimento das garotas. Infelizmente, com o passar dos anos, o fórum perdeu essa função. O que se vê lá hoje em dia são meia dúzia de foristas sérios… E uma maioria de relatos falsos, postados por garotas e/ou seus agentes, visando “queimar” concorrentes e melhorar sua divulgação. Acompanhando este fórum, eu percebo que alguns homens tem receios em relação a nossa organização. Já fomos, por exemplo, acusadas de “formação de cartel”, por termos, umas poucas de nós, subido os cachês no mesmo mês. Isso gerou um tópico onde se perguntavam: “se elas podem se organizar, por que nós não podemos?”. E gerou também ameaças por MSN e reações interessantes por parte de alguns moderadores, que queriam a todo o custo que postassem “os nomes das vacas” que estariam participando deste “abuso”. Não vejo motivo real para o cliente comum de acompanhantes temer alguma organização – mas aqueles que desejam que sigamos suas regras tem, sim, receio disso.
Sul21 – Como as garotas de programa lidam com questões de segurança?
Monique – O trabalho de quem está em site é bem tranquilo, marcamos os programas por telefone e vamos até os motéis, que possuem segurança. Não conheço nenhum caso de morte por cliente. Normalmente, a morte é pelos namorados das meninas. Teve um semestre em que eu perdi minha melhor amiga e outras sete meninas foram mortas por seus companheiros em Porto Alegre. A única segurança que as gurias realmente têm são os motéis. Quem está na rua está desamparada. Tem o pessoal que vende droga, os namorados e o pessoal que assalta na volta. Então elas estão muito mais vulneráveis em relação aos clientes e aos namorados.
Sul21 – E como é em relação às casas de prostituição?
Monique – O problema das casas é que não há nenhuma garantia de que a menina vá receber, por isso o projeto do Jean Wyllys é importante. Não adianta fingir que as casas não existem. Mesmo em casas de luxo, só se recebe no final da semana.
Sul21 – Como tu vês a relação dos donos das casas com a prostituta? É uma relação de exploração?
Monique – Depende do caso. Uma casa que cobra R$ 200 pelo encontro e paga somente R$ 80 para a menina é exploradora. As casas precisam existir – sem elas, muita gente não ia conseguir trabalhar. Mas da maneira que elas existem hoje, não são boas para quem trabalha. O projeto de regulamentação fixa que 50% da renda do programa fica com a garota. Acho uma boa medida. Com a regulamentação, a menina poderá cobrar o que a casa lhe deve. Hoje, se a casa não quiser pagar nem um real no final da semana, a pessoa não recebe. A garota não tem a quem recorrer.
Sul21 – Com a regulamentação, seria possível, na prática, mudar essa realidade? O que garante que os donos das casas cumpram a lei?
Monique – Temos mecanismos para fazer com que respeitem a lei. Acredito que, com a regulamentação, muitas casas irão quebrar, pois terão que repassar os custos para o cachê.
Sul21 – Como tu vês os argumentos das feministas radicais, que afirmam que a regulamentação da prostituição naturaliza o conceito de exploração da mulher, como objeto, pelo homem?
Monique – Eu não admito a prostituição como ela ocorre hoje. Eu alugo meu tempo, não vendo meu corpo. Tem gente que insiste nessa ideia de vender o corpo. Nesse caso, a prostituição institucionaliza o patriarcado? Mas eu te pergunto: e se nós desaparecêssemos? Se todas as mulheres que fazem programa desaparecerem, o patriarcado desaparece junto? Não. É preciso mudar a forma como a prostituição é vista, porque ela não vai acabar. É preciso dar consciência às mulheres para mudar essa situação. O primeiro passo é mostrar às meninas que elas não são obrigadas a fazer tudo que os clientes pedem. Elas não sabem disso. É preciso dar a elas a consciência de que elas também têm direitos e autonomia sobre o próprio corpo. Essa mudança só pode vir de dentro da categoria.
Sul21 – As feministas, em geral, costumam enxergar a prostituta como uma vítima.
Monique – As pessoas falam como se a menina tivesse somente aquela possibilidade, como se fosse uma coitada. Mas não dizem como dar outras possibilidades a ela. Se só existe essa possibilidade, essas pessoas estão cometendo um crime ao querer tirar a menina da prostituição sem oferecer nenhuma outra alternativa. Fecha-se todas as casas e as meninas voltam para suas cidades natais, com o estigma de ter saído de lá para ser prostituta. É isso? Se elas são vítimas, que façam com que deixem de ser vítimas através de ações positivas.
Sul21 – Mas tu concordas com o conceito de vitimização?
Monique – Não. Todos somos vítimas de alguma coisa. A menina que sai do fim do mundo para trabalhar em Porto Alegre como babá é uma vítima. Às vezes, as meninas entram na prostituição sem a consciência do que isso significa. Apenas dizer que elas são vítimas sem dar outras alternativas não ajuda em nada.
Sul21 – Outro argumento contrário à prostituição critica o estabelecimento de uma relação mercantil em torno do sexo.
Monique – Por que não se pode cobrar por sexo, se todo mundo pode fazer sexo sem cobrar? É um argumento moralista. Quando colocam esse argumento para mim, algumas mulheres pensam que o homem é um bobinho, um coitado induzido a fazer sexo comigo porque eu coloco meu anúncio em algum site. O homem pode escolher se quer sair comigo ou não. Esse tipo de pensamento põe o homem e a mulher em posições babacas. O sexo é, quase sempre, um jogo de poder. Mesmo quando não envolve dinheiro, há alguma negociação em torno do sexo. Tem o pensamento de que dando mais para o marido, ele será mais feliz ou obediente. O sexo sempre é utilizado para manipular alguma coisa.
Sul21 – Como tu vês a necessidade de políticas públicas para a categoria?
Monique - Precisamos de políticas públicas, especialmente em relação à saúde e educação. Sabemos que precisamos estudar, mas não sabemos como. Sabemos que precisamos encontrar outros caminhos, mas não sabemos como. A regulamentação ajuda porque nos tira de baixo do tapete. Eu fico dando check-in no Foursquare aqui e ali para mostrar que estou entre vocês. É preciso tirar as prostitutas debaixo do tapete para que possa ser feito alguma coisa em relação a nós. Somente o debate em torno da regulamentação já está nos dando mais visibilidade. Há alguns anos, jamais imaginaria que isso seria possível.
Sul21 – Tu falas abertamente sobre a profissão, mas não parece haver muitas prostituas dispostas a este debate.
Monique – Temos medo, inclusive de trabalhar menos. Eu acredito que trabalho menos quando me exponho mais. Conseguimos debater alguma coisa pela internet, até pelo Twitter, mas é difícil. Algumas prostituas enxergam esse tipo de movimento como uma atitude contra o homem. Entendem que não podem ir contra o homem, senão não irão receber. É difícil convencê-las a debater.
Sul21 – A tua vida mudou desde que tu começaste a falar abertamente sobre a profissão?
Monique – Meu público alvo mudou e percebi uma reação concreta a mim no fórum. É proibido falar de mim lá, nem contra, nem a favor. Eu não existo. É uma reação muito clara. Se começamos a nos organizar, nos tornamos um problema para alguns clientes e para quem acha que a discussão da prostituição é prejudicial. Essa clareza de posição a meu respeito dá um pouco de medo nas outras meninas, que preferem não falar muito comigo. Toda vez que começo a conversar demais com uma menina, surgem comentários negativos sobre ela.
Sul21 – Com o debate em torno da regulamentação, tu te sentes mais disposta a falar?
Monique – As prostitutas estão na mídia, elas existem, isso já é algum ponto. E as redes sociais ajudam muito. Mas ainda é complicado. Me convidam para eventos, mas prefiro não aparecer. Imagina, então, as outras meninas. No ano passado, me convidaram para um evento. A ideia era ir para um debate, mas algumas pessoas entenderam errado. Acharam que eu estava lá para animar o evento. Não sou animadora de eventos. A partir daí, parei um pouco de me expor.
Sul21 – É possível criar uma entidade que organize as prostitutas em Porto Alegre?
Monique – Com muita dificuldade. Vejo o NEP (Núcleo de Estudos da Prostituição) como uma organização muito fechada. Precisamos de algo mais moderno. Não seria uma organização contra os homens, seria um caminho para debates sobre educação e saúde, por exemplo. Vínhamos tendo conversas, havia reuniões na minha casa, mas, de repente, um vírus infectou meu site e todo mundo ficou com muito medo. Para conseguir organizar essa entidade, precisaríamos de um apoio maior, de fora da categoria, de alguma força governamental, talvez da academia. Seria importante que alguém comprasse essa briga, mas não vejo muitas condições para que isso se concretize.
Sul21 – No teu Twitter, tu comentaste sobre o racismo que existe na profissão. Muitas mulheres não aceitam sair com homens negros?
Monique – Isso acontece. Tem clientes que não saem com meninas que comentaram no fórum que saíram com clientes negros. E algumas meninas dizem que não saem com negros por questão de gosto pessoal. Mas não é gosto pessoal, é racismo. Ninguém rejeita clientes gordos, por exemplo. E quando os clientes negros ligam para marcar um programa, eles costumam avisar que são negros, porque estão acostumados com o preconceito. Tive um cliente que conheci na vida pessoal. Ele só tinha namoradas loiras, falava mal das mulheres negras, era racista. Mas, quando ligava para a agência, só queria saber das “novidades negras”. Isso é racismo, tem a ver com questões de dominação, é um resquício da senzala.
Sul21 – Como tu vês a lei sueca, que criminaliza a prostituição e seus clientes?
Monique – É outra situação. Entendo que não há suecas se prostituindo. Lá, há uma relação direta entre prostituição e tráfico de mulheres, especialmente romenas e latinas. Lembrando que a prostituição não é exclusivamente feminina. Seria bom se pudesse ser encarada como algo feito por mulheres e por homens também.