segunda-feira, 14 de novembro de 2011

hecceidade - deleuze


“(...) Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como uma substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais...”  “(...) Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade. Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento  de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e de ser afetado (...)”. DELEUZE, G. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4, São Paulo: 34, 1997, p. 47. 

Ocupação patética, reação tenebrosa


Matheus Pichonelli amplia o debate sobre a crise da USP. Ele vê oportunismo na ocupação da reitoria — mas frisa que a reação da mídia e parte da opinião pública revela as piores faces do conformismo e ressentimento. EmCarta Capital
Ao que tudo indica, a ocupação da reitoria da USP foi de fato patrocinada por um grupo de aloprados, que atropelou o rito das assembleias realizadas até então e, num ato de desespero (calculado?), fez rolar morro abaixo uma pedra que, aos trancos, deveria ser endereçada para pontos mais altos da discussão.
Uma vez que essa pedra rolou, como se viu, tudo desandou. Absolutamente tudo, o que se nota pela declaração do ministro-candidato-a-prefeito (algo como: bater em viciado pode, em estudante, não) e do governador (vamos dar aula de democracia para esses safadinhos), passando pela atitude da própria polícia (tão aplaudida como o caveirão do Bope que arrebenta favelas), de cinegrafistas (ávidos por flagrar os “marginais” de camiseta GAP) e de muitos, mas muitos mesmo, cidadãos que só esperavam o ataque aéreo dos japoneses em Pearl Harbor para, em nome da legalidade, arremessar suas bombas atômicas sobre Hiroshima.

Os juízes que nos julgam


Se estes são os que zelam pela Justiça, ser acusado de criminoso por eles deve ser encarado como elogio
Ricardo Tucunduva, desembargador que proibiu a realização da Marcha da Maconha em São Paulo no ano de 2008, “retirou um filho envolvido em um acidente de trânsito do local da ocorrência alegando que ele estaria ferido e proibiu que nele fosse feito o teste do bafômetro”, já relatou Leonardo Sakamoto neste ano, complementando, com base em reportagem do Diário de São Paulo: “Segundo testemunhas citadas pela reportagem, o herdeiro estaria em alta velocidade e atravessara o sinal vermelho. Por isso, o desembargador teria tentado abafar o caso”.
Em 2011, novamente a legítima mobilização que demandava mudança nas políticas de drogas brasileiras foi acusada de apologia ao crime e proibida, desta vez por Teodomiro Mendez, desembargador do TJ-SP. Em seu currículo, uma condenação a quatro de anos de prisão, não cumprida por ter prescrito quando efetivada.
Esta condenação voltou à tona nesta semana, pois o desembargador Mendez foi novamente condenado, desta vez por danos morais e materiais causados ao microempresário Walter Francisco da Silva. Ambas condenações referem-se a acontecimentos do ano de 1993, e mostram bastante não só sobre a personalidade de tal inquisidor – que a despeito de todas as evidências considerou a mobilização da seguinte forma: “não trata de um debate de ideias, apenas, mas de uma manifestação de uso público coletivo de maconha, presentes indícios de práticas delitivas no ato questionado, especialmente porque, por fim, favorecem a fomentação do tráfico ilícito de drogas” – como sobre a conformação de nosso poder judiciário paulista.
Os fatos aconteceram em 1993, na cidade de Campos do Jordão, onde Teodomiro Mendez tinha uma casa de campo, que teria sido roubada. Comunicado do fato, ele viaja de São Paulo para as montanhas a fim de interceder por uma confissão dos acusados de tal roubo. Reportagem do UOL narra o ocorrido:
“Segundo a sentença, Walter Francisco da Silva foi levado para a delegacia da cidade, agredido e torturado pelo desembargador e por um investigador de polícia.De acordo com a denúncia, Mendez teria saído de São Paulo, onde ocupava à época o cargo de juiz e chegado à delegacia com o investigador Renato dos Santos Filho. Com autorização do delegado os dois entraram na cela do empreiteiro com o objetivo de conseguir uma confissão.
Com a recusa do empreiteiro em confessar, Santos teria iniciado uma sessão de espancamento. Com um corte na cabeça e cuspindo sangue, Walter Silva pediu que o desembargador interviesse em seu favor. Mendez teria respondido então: “Ele (Santos) vai parar, quem vai bater agora sou eu”.
A camisa rasgada do empreiteiro deixou à mostra a cicatriz de uma cirurgia renal feita poucos dias antes. O desembargador, ainda segundo a sentença de condenação, percebeu a marca e começou a bater no local da cirurgia. Conforme a vítima, Mendez o agrediu com um soco na nuca, uma cabeçada na testa, chutes e mais socos no abdômen e no rosto.
Depois o desembargador e o policial foram para a cela de Benedito Ribeiro da Silva Filho, funcionário do microempresário que também fora preso. O servente também teria sido agredido com socos e chutes para que confessasse o crime. Benedito negou, mas o desembargador encostou o cano de um revólver na sua orelha e, com isso, obteve a confissão. Depois, em juízo, Benedito voltou a negar o crime.
Teodomiro Mendez e o investigador Renato dos Santos Filho foram condenados criminalmente a quatro meses e 20 dias de prisão, por espancamento. Os dois não cumpriram a pena, pois a punição já estava prescrita quando saiu a sentença”.
“Querem controlar mas são todos uns descontrolados”, lembrou o Coletivo DAR citando a já censurada Planet Hemp. Se estes são os que zelam pela Justiça, ser acusado de criminoso por eles deve ser encarado como elogio. Para além do desprezo por suas atuações, ficam as palavras do poeta Castro Alves citadas pelo ministro Celso de Mello durante a sessão do STF que garantiu o direito de livre expressão e o fim das proibições à Marcha da Maconha: “A praça é do povo assim como o céu é do condor”. Queiram os Teodomiros e sua truculência ou não.
Vencemos, mas não esquecemos que também no judiciário estamos precisando urgentemente de mudanças.

domingo, 13 de novembro de 2011

Foucault no século 21


Vinte e cinco anos após sua morte, as ideias do filósofo francês continuam no cerne das pesquisas em ciências humanas: da psicologia ao direito; da filosofia à educação
por André Duarte
Poucos pensadores exerceram maior impacto sobre as ciências humanas que Michel Foucault. Vinte e cinco anos após sua morte, ocorrida no dia 25 de junho de 1984, o caráter generoso de suas ideias inovadoras se manifesta na renovação do campo de investigação da psicologia, da psiquiatria, da história, do direito, da arquitetura, da filosofia, da sociologia e da educação, entre outras disciplinas. Dos anos 1960 ao começo da década de 1980, Foucault formulou conceitos e abordagens teóricas que descortinaram novos objetos e demoliram velhas questões ao demonstrar que a história não é o palco pelo qual desfilam os mesmos problemas singulares de sempre. Como poucos dentre seus contemporâneos, Foucault soube apropriar-se do projeto nietzscheano de destruição e transvaloração dos valores vigentes, ensinando-nos a desconfiar da herança metafísica incrustada em conceitos supra-históricos como ‘o’ Homem, ‘a’ verdade, ‘a’ natureza, ‘o’ poder, ‘a’ razão, ‘o’ sexo, ‘o’ corpo, etc.

Entre o elogio e a crítica


As relações de Foucault com a psicanálise: etapas da recepção brasileira
por Ernani Chaves
A publicação do primeiro volume da História da sexualidade, intitulado “A vontade de saber”, em 1976, provocou um frisson entre os psicanalistas. Neste livro, ao contrário dos anteriores, Foucault dirigia à psicanálise uma severa crítica, ao inscrevê-la na história da confissão cristã e na engrenagem dos mecanismos do biopoder. Não que nos livros anteriores a psicanálise aparecesse isenta de críticas. Ao contrário. Entretanto, essas críticas eram sempre matizadas, nuançadas também por diversos elogios. O ponto alto desses elogios tinha sido, sem dúvida, o último capítulo de As palavras e as coisas (1966), quando Foucault considerava a psicanálise como uma contraciência que questionava, radicalmente, o projeto de um saber “científico” sobre o homem, que havia sido pacientemente gestado desde o final do século 18.

A época da norma


Qual seria a forma e quais seriam os perigos para o funcionamento do direito nas sociedades modernas?
por Márcio Alves da Fonseca
Os últimos escritos de Michel Foucault, notadamente os volumes finais de sua História da sexualidade, bem como os cursos ministrados no Collège de France entre os anos 1981-1984, revelam sua incursão na cultura e no pensamento antigos. Nesses escritos, o filósofo, que no mesmo período viria a definir a sua filosofia como uma “ontologia do presente”, volta-se para o problema da constituição do sujeito moral na antiguidade clássica. O estudo da moral sexual na antiguidade, assim como a pesquisa sobre a formação e os desdobramentos da “cultura de si” no pensamento greco-romano, sugerem que a direção para a qual o olhar do pensador se lança em seus últimos trabalhos é o passado.
Porém, uma consideração atenta do conjunto de seus escritos, capaz de colocar em evidência os principais deslocamentos que tais escritos realizaram relativamente à história das ciências e à filosofia política e moral de sua época, permite afirmar que a filosofia de Foucault – mesmo aquela presente em seus trabalhos finais – se configura como busca insistente de compreensão do nosso presente histórico. A esse respeito, as observações de caráter metodológico realizadas no início da aula de 5 de janeiro do curso de 1983 no Collège de France (Le gouvernement de soi et des autres) são esclarecedoras. Com o fim de distinguir seu trabalho dos métodos que entende ser próprios a uma história das mentalidades ou a uma história das representações, Foucault dirá que seu projeto geral foi realizar uma “história do pensamento”. Compreendida em um sentido amplo, essa história do pensamento se configuraria como uma história dos “lugares de experiência” que teriam sido importantes para a nossa cultura e que, de algum modo, constituíram o presente tal como o conhecemos.

Pensar a educação depois de Foucault


A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle permite entender as atuais mudanças da instituição escolar
POR Maria Rita de Assis César
Depois das análises de Michel Foucault, a escola nunca mais foi a mesma. A partir da história genealógica, a educação na sua modalidade escolarizada passou a ser considerada maquinaria destinada a disciplinar corpos em ação. Em Vigiar e punir, Foucault descreveu vários processos de disciplinarização dos corpos em diferentes instituições, como colégios, fábricas, oficinas, conventos e quartéis, demonstrando que a principal característica de tais instituições é a disciplina corporal. Dentre todas as instituições disciplinares, a escola possui a maior abrangência, pois é nela que os indivíduos passam a maior parte da sua formação, até que estejam prontos para a vida adulta. Por sua vez, a disciplina no interior da instituição educacional não se restringe ao corpo, pois ali também ocorre a submissão dos conhecimentos à disciplina institucional, isto é, a escolarização dos saberes. Ela consistiu numa operação histórica de organização, classificação, depuração e censura dos conhecimentos, de modo que a operação moralizadora não atingiu só os corpos, mas também os próprios conhecimentos a serem ensinados. A escola disciplinar não distingue entre corpo e conhecimento, praticando a moralização de ambos na medida em que seu objetivo é a produção do sujeito sujeitado.

P de Professor - abecedário de deleuze


CP: Então, P é de Professor. Hoje, você tem 64 anos e, durante quase 40 anos, você foi professor, primeiro do ensino médio, depois, na universidade. Este ano é o primeiro sem aulas. Você sente falta das aulas? Você disse que dava aula com paixão. Você sente falta de dar aula hoje?
GD: Não, absolutamente. É verdade que foi a minha vida, que foi uma parte muito importante da minha vida. Eu gostava muito de dar aula, mas, quando me aposentei, foi uma alegria porque eu já não tinha tanta vontade de dar aula. A questão das aulas é muito simples. Acho que as aulas têm equivalentes em outras áreas. Uma aula é algo que é muito preparado. Parece muito com outras atividades. Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação. Para ter esse momento de... Se não temos... Eu vi que, quanto mais fazia isso... Sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de inspiração. Com o passar do tempo, percebi que precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada vez menor.
Então, estava na hora... Não me sinto privado porque gostei de dar aula, mas era algo de que eu precisava menos. Resta-me escrever, o que comporta outros problemas. Não me arrependo. Mas gostei profundamente de dar aulas.

VIDA (OU VITALIDADE) NÃO-ORGÂNICA Vie (ou vítalité) non-organique] - deleuze

"Há um laço profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não existe obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho por entre as vias. Tudo o que escrevi era vitalista, pelo menos eu espero, e constituía uma teoria dos signos e do acontecimento." (P,196)

RIZOMA [rizhome] - deleuze

"Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; es­crever a n-1. Tal sistema poderia ser chamado rizoma." (MP, 13).
 "Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a tra­ços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sem­pre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele consti­tui multiplicidades" (MP, 31).

LINHA DE FUGA (E MENOR-MAIOR [ligne de filhe (et mineur-majeur)] - deleuze

" A linha de fuga é uma desterritorial ização. Os franceses não sabem bem do que se trata. Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas acham que fugir é sair do mundo, mística ou arte, ou então que é algo covarde, porque se escapa aos compromissos e às responsabilidades. Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia." (D, 47)

DEVIR [devenir] - deleuze


"Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambian­tes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente es­túpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimi­lação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos." (D, 8)

DESTERRITORIALIZAÇÃO (E TERRITÓRIO) [deterritorialisation (et territoire)) - deleuze

"A função de desterritorialização: D é o movimento pelo qual 'se' deixa o território." (MP, 634)
"O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, e a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras; elas supõem, antes de tudo, uma expressividade que faz território. É de fato nesse sentido que o território, e as fun­ções que aí se exercem, são produtos da territorialização. A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou componentes de meios tornados qualitativos." (MP, 388)

AGENCIAMENTO [agencement] - deleuze


"Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de ex­pressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de cor­pos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atri­buindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical ori­entado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territo­riais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem." (Kplm, 112).

ACONTECIMENTO [événement] - deleuze

"Então não se perguntará qual o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O aconteci­mento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas." (LS, 34)

"Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quan­do se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado de coisas, sendo im­pessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particu­lar, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente senão o do instante móvel que o representa, sempre des­dobrado em passado-futuro, formando o que convém cha­mar de contra-efetuação. Em um dos casos, é minha vida que me parece frágil demais para mim, que escapa num ponto tornado presente numa relação determinável comi­go. No outro caso, sou eu que sou fraco demais para a vida, a vida é grande demais para mim, lançando por toda a par­te suas singularidades, sem relação comigo nem com um momento determinável como presente, salvo com o ins­tante impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-pas­sado." (LS,177-8)

políticas - gilles deleuze e claire parnet


estou postando o texto-base para o Seminário de quinta-feira. POLÍTICAS é o quarto texto do livro DIÁLOGOS, de Gilles Deleuze e Claire Parnet (ed. escuta).
I
 Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa. A primeira espécie de linha que nos compõe é segmentária, de segmentaridade dura (ou, antes, já há muitas linhas dessa espécie); a famí­lia-a profissão; o trabalho-as férias; a família-e depois a escola-e depois o exército-e depois a fábrica-e depois a apo­sentadoria. E a cada vez, de um segmento a outro, nos dizem: agora você já não é um bebê; e na escola, aqui você não é mais como em família; e no exército, lá já não é como na escola...Em suma, todas as espécies de segmentos bem determinados, em todas as espécies de direções, que nos recortam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmenta­rizadas. Ao mesmo tempo, temos linhas de segmentaridade bem mais flexíveis, de certa maneira moleculares. Não que sejam mais íntimas ou pessoais, pois elas atravessam tan­to as sociedades, os grupos quanto os indivíduos. Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até mesmo processos irreversíveis. Mais, porém, do que linhas molares a segmentos são fluxos moleculares a limiares ou quanta. Um limiar é ultrapassado, e não coincide, necessariamente, com um segmento das linhas mais visíveis. Mui­tas coisas se passam sobre essa segunda espécie de linhas, devires, micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que nossa "história". Por isso são tão penosas as histórias de família, as referências, as rememorações, enquanto todas as nossas verdadeiras mudanças passam em outra parte, uma outra política, outro tempo, outra individuação. Uma profis­são é um segmento duro, mas o que é que se passe lá embaixo, que conexões, que atrações e repulsões que não co­incidem com os segmentos, que loucuras secretas e, no entanto, em relação com as potências públicas: por exemplo, ser professor, ou então juiz, advogado, contador, faxineira? Ao mesmo tempo ainda, há como que uma terceira espécie de linha, esta ainda mais estranha: como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção de uma destinação desconheci­da, não previsível, não preexistente. Essa linha é simples, abstrata, e, entretanto, é a mais complicada de todas, a mais tortuosa: é a linha de gravidade ou de celeridade, é a linha de fuga e de maior declive ("a linha que o centro de gravi­dade deve descrever é, certamente, bem simples, e, pelo que ele acreditava, reta na maioria dos casos...mas de outro pon­to de vista, tal linha tem algo de excessivamente misterioso, pois, segundo ele, ela não tem nada senão o caminho da alma do dançarino... "1 Essa linha parecesurgir depois, se desta­car das outras, se conseguir se destacar. Pois, talvez haja pes­soas que não têm essa linha, que têm apenas as duas outras, ou que têm apenas uma, que vivem apenas sobre uma. No entanto, de outra maneira, essa linha está aí desde sempre, embora seja o contrário de um destino: ela não tem que se destacar das outras; ela seria, antes, primeira, as outras derivariam dela. Em todo caso, as três linhas são imanentes, tomadas umas nas outras. Temos tantas linhas emaranhadas quanto a mão. Somos complicados de modo diferente da mão. O que chamamos por nomes diversos – esquizoanáli­se, micro-política, pragmática, diagramatismo, rizomática, cartografia – não tem outro objeto do que o estudo dessas li­nhas, em grupos ou indivíduos.

Rizoma na botância


O rizoma é um caule subterrâneo, e não uma raiz como pode parecer. A seguir uma descrição da botânica sobre caules subterrâneos. Vale a pena estudar as características do rizoma para a melhor comprensão da metáfora usada por Deleuze e Guattari. 
 "Os caules, freqüentemente, desenvolvem-se sob a superfície do solo e tornam-se mais ou menos espessos, recebendo a denominação de rizomas (do grego rhiza + oma - 'o que está enraizado'). O rizoma é uma metamorfose caulinar, devido à adasptação à vida subterrânea. Como o rizoma vive fora da região iluminada, não possui folhas verdadeiras, capazes de assimilar e transportar; ao contrário da raiz, entretanto, possui gemas, que dão origem a partes aéreas foliares e floríferas. Encontramos exemplos de rizomas no gengibre e no bambu.
Entre os caules subterrâneos, especial consideração é dada aos que acumulam substâncias de reserva, os tubérculos do latim tuberculum, diminutivo de tuber - tumor, inchaço). O tubérculo é uma porção caulinar engrossada, em maior ou menor grau, subterrânea, como o tubérculo da batata.
O tubérculo é rico em substâncias de reserva (o amido é mais freqüente) e, na sua superfície, podem ser observadas as gemas (na batata, comumente denominadas 'olhos'). 
Outros órgãos subterrâneos comuns em regiões áridas (como as caatingas), são de natureza incerta, não definindo natureza caulinar ou radicular. Entre esses, encontram-se os xiopódicos (do grego xilon - madeira, lenho; podion - pé, sustentáculo), que são tuberosidades ricas em água e substâncias de reserva. O caiapiá e a maniçoba são exemplos de plantas de caatinga que apresentam xilpódios. 
Dutante o período do ano desfavorável à vegetação, o rizoma defende a planta contra os rigores do ambiente, sejam baixas tempretaturas ou secas prolongadas".
fonte: DAMIÃO FILHO, Carlos Ferreira. Morfologia vegetal. Jaboticabal, FUNEP/UNESP, 1993. pp. 215-216. 
buscado em: cooperação.sem.mando

sábado, 12 de novembro de 2011

D de Desejo - abecedário de deleuze

CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em “Deleuze”, que também se escreve com D. Lê-se: "Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em 1925".
GD: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: “Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo psicanalítica”. E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo...
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...

A era do lixo. ''Ele está visceralmente associado ao atual modo de vida''. Entrevista especial com Maurício Waldman



A humanidade está movimentando cerca de 48 bilhões de toneladas de materiais por ano, mas, desse valor, “30 bilhões viram lixo”, informa Maurício Waldman à IHU On-Line. Na era do consumo descartável, as classes “abastadas” geram cerca de 1,5 a 2,0 kg/hab/dia de resíduos, enquanto entre os mais pobres o grau de resíduos despenca para 0,3 kg/hab/dia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o pesquisador esclarece que esses dados demonstram que as “estatísticas mascaram contrastes sociais ao diluírem o volume total de lixo gerado dividindo-o pelo conjunto da população”.
Para reverter a produção excessiva de lixoWaldman enfatiza a necessidade de “rever os processos produtivos, que se pautam pela descartabilidade premeditada dos produtos, que precocemente se tornam obsoletos”. E compara: “Em 1997, a vida útil de um computador era em média seis anos. Mas, hoje em dia a validade desses equipamentos foi abreviada para apenas dois”.
Autor do livro Lixo: cenários e desafios (Cortez, 2011), ele também comenta o Plano Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, que está em consulta pública no site do Ministério do Meio Ambiente após permanecer 19 anos no Congresso. Entre as críticas, Waldman faz referência às brechas para o avanço da incineração do lixo no país. “Alemanha, Bélgica, Suécia, Irlanda, Países Baixos e os Estados Unidos certamente possuem incineradores. Mas nesses países os índices de reciclagem são respectivamente 48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Devemos salientar que a última porcentagem refere-se aos EUA, considerado campeão mundial de desperdício. Entretanto, como se sabe patinamos em míseros 13%! Como então propor queimar lixo quando temos tanto o que avançar na recuperação dos materiais descartados?”, questiona.
Maurício Waldman é graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese Água e metrópole: limites e expectativas do tempo (2006). Cursou o pós-doutorado no Instituto de Geociências da Universidade de Campinas – Unicamp. Foi professor da Unicamp e atualmente é colaborador no site Geografia e Cartografia – Geocarto e do Centro de Estudos Africanos da USP – CEA-USP.
Confira a entrevista.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

flecheira.libertária.226


plano de um chão 
Cinco dentre sete habitantes do planeta não tem o piso de seguridade social adequado, não contam com a totalidade dos serviços e renda as quais, segundo a ONU, teriam direito. Esta é a premissa de relatório recente, Piso de Proteção Social para uma Globalização Justa e Inclusiva, elaborado por consultores da Organização Internacional do trabalho (OIT) e Organização Mundial de Saúde (OMS) em que se apresentam, além de recomendações práticas, exemplos “de sucesso”, como a brasileira Bolsa Família. As propostas envolvem ações dos Estados, instituições financeiras, organizações internacionais, stakeholders, e “atores relevantes da sociedade civil” para que, desse modo, a “infraestrutura humana” tenha a mesma importância e receba tanto ou mais investimentos quanto a chamada “infra-estrutura física”.  Um mesmo chão para todos? Ou um mesmo muro de arrimo para sustentar os bons negócios no planeta?
a maioria: 
A crise anunciada na Grécia levou à decisão da renúncia do primeiro-ministro. No entanto, o próprio governo decidiu que isso não será possível sem um novo acordo de coalizão que impeça a metafísica do "vácuo de poder". A maioria suplica por um governo constituído e estável que consiga driblar a quebradeira geral do Estado grego e a malandragem dos bancos europeus que ganharam milhões em especulações. A maioria quer emprego.
ao rés do chão 
Diante da renúncia anunciada do primeiro-ministro,  uma enquete revelou que parte da população grega quer um novo governo que resolva o desemprego, mantenha a ordem e salve o euro. Entretanto, as ruas atenienses, que ferveram em 2006, 2008 e, de novo, nesse ano, não foram 
ocupadas apenas por quem teme o fim dos restos de welfare state. Mas a maioria vai às ruas e faz procissão para o Santo Capital-Estado. 
nome ao nome 
Na USP, depois de invasões, conflitos e negociações, estudantes e reitoria chegaram a um comum acordo quanto a atuação da polícia no  campi. Sem cogitar a revogação do convênio entre a universidade e a polícia militar, a solução foi pensar no aperfeiçoamento da atividade policial por meio da participação dos estudantes. Os processos contra alunos e funcionários também não devem cessar, mas a participação destes também será incluída nas discussões de âmbito administrativo. O desejo de ser governado não é uma questão de governo. É próprio das pessoas que amam servir.
nome aos bois 
Revistas deram na primeira página; redações de jornais aplicaram certa censura; enfim, a pergunta politicamente incorreta foi formulada e não deveria ser respondida: por quê o ex-presidente Lula não usou o SUS? Muitos dedos, medos e credos à parte, o ex-presidente foi ao hospital privado porque durante sua gestão fez o melhor pela burguesia. Recebeu um presentinho como retribuição, como qualquer ex-presidente, vindo de cima ou de baixo. Reconhecer isso publicamente é o mesmo que implodir o Estado. 

hypomnemata 138 - loucuras e transtornos


 Boletim eletrônico mensal
 do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 138, outubro de 2011
loucuras e transtornos
Em 1º outubro de 1970, próximo ao rio Paraná, em Rubinéia-São Paulo, o profeta e benzedor Aparecido Galdino orava com seu grupo de 12 homens e duas mulheres, esperando o Exército Nacional se juntar a eles contra a construção da barragem de Ilha Solteira que inundaria o município. O Exército veio, mas amarrou e espancou os “revoltosos”, desfilou com os detidos pela rua principal da cidadezinha para dar um exemplo, antes de levá-los para a prisão. A barragem e a hidrelétrica eram um dos projetos de ponta da ditadura civil-militar. Galdino foi enquadrado na lei de Segurança Nacional e encaminhado ao Manicômio Judiciário do Juqueri (SP), onde ficou até finalmente ser solto em 1979.
 “Pelo exposto, podemos verificar que o examinando apresenta distúrbios do conteúdo do pensamento - ideias delirantes de cunho místico, grandeza. [...] Podemos concluir que Galdino apresenta um quadro esquizofrênico-paranóide, necessitando de tratamento, devendo pois permanecer manicomiado, para sua própria segurança e da sociedade”. – laudo de 1972, sobre Aparecido Galdino.
 “Do exposto, somos de parecer que o examinado continua doente, todavia se beneficiou com o tratamento instituído. Porém, sua periculosidade se encontra a nível superior a de um doente mental, portanto, devendo permanecer frenocomiado - para segurança da coletividade”.- laudo de 1974, sobre Aparecido Galdino . 
Loucura: palavras exacerbadas,
ditas aquém ou além, mas nunca no ponto modelar;
gestos e ações para além ou aquém
  da formulação de uma razoável verdade.

 Frase encontrada em um prontuário do Manicômio Judiciário do Juqueri (SP), sobre o comportamento de um interno durante um “exame psíquico”: “Tem íntima atenção ao diálogo, mas repentinamente, tem o olhar lateralizado.”
Um olhar de fuga. Reflexo muscular de buscar uma fissura na parede por onde correr para nunca mais. A loucura autoriza o louco que a incorpora.
Olhar de um louco. Loucura como um nome para um impulso em direção à liberdade? Ou impulso para um simples outro lado do que insiste em ser verdade em uma sala onde transcorre um “exame psíquico”?
Ou ambos?
Os poetas Waly Salomão e Torquato Neto inventaram, em 1972, em plena barra pesada da ditadura civil-militar no Brasil, a revista Navilouca. Tempo da loucura solta! Loucura como reverso do internamento e da obsessão militar pela sua ordem para o progresso burguês.
A publicação foi um dos últimos projetos de Waly antes de ser encarcerado e torturado no Quarto Distrito de polícia do centro de São Paulo.
Contra todas as adversidades, Sailormoon, o marujeiro da lua, apelido de Waly, reuniu forças para finalmente lançar a revista em 1974. Torquato Neto já havia dado cabo da própria vida.
 Torquato Neto, poeta tropicalista, autor de canções como “Mamãe Coragem”, “Geleia Geral”, “Pra dizer Adeus”, ator de filmes em super-8 como Nosferato no Brasil, esteve inúmeras vezes internado em hospitais psiquiátricos. Houve um tempo em que ele acreditou na psiquiatria!
No rescaldo de suas temporadas internado em Teresina e no Rio de Janeiro, explicitou sua ojeriza à psiquiatria. Na coluna “Geleia Geral”, no jornal carioca Última Hora, escreveu para além de música, teatro e cinema, sobre Antonin Artaud e David Cooper.
Novembro de 1971: faz um ano que me dizia no hospício: isso aqui não pode ser um refúgio, e foi assim que eu saí por aí, foi por isso. Abaixo os meus refúgios, chega... Abaixo a psiquiatria dos salões e dos hospícios. A psiquiatria é repressiva...
Em outra edição do jornal soltou sua verve para contar certas histórias ubíquas como a que um médico pede a um poeta para que leia seus poemas.
Esse outro grande amigo meu levou os poemas para o médico julgar. O médico achou a linguagem ‘totalmente fragmentada’ e, para que ele voltasse a escrever como muito antigamente se fazia, mandou interná-lo e impregnou sua célula nervosa.
Depois de assistir ao ocaso de publicações como A flor do Mal, editada por sua mulher Ana, o desaparecimento de amigos próximos, o exílio de tantos outros, as dificuldades de realização das invenções diante da censura, Torquato Neto decidiu também encerrar sua coluna no jornal. Seguiu escrevendo, como resistência, para não dar de comer aos urubus.
Internado, novamente, no Hospital Engenho de Dentro, em 1971, escreveu: Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.
Torquato Neto deu as costas aos que Augusto de Campos chamou de lite-ratos e à sua venda obcecada por um lugar ao sol. Deu as costas ao lugar, ao sol e aospsicanalhas de plantão. Suicídio!
 Trinta e seis anos após sua morte, próximo ao Engenho de Dentro, foi inaugurado um CAPS em homenagem a Torquato Neto, um tributo espúrio ofertado por amancebados da ordem.
Diante das maleabilidades atuais da Psiquiatria que fazem a medicina mental funcionar para além dos asilos é preciso retomar as palavras do poeta, resistindo com a vida, essa matéria fina.
— Onde estão as obras? Onde estão as obras?
— As obras, malandro, são a própria vida (que você sempre esquece de viver).
A loucura como doença mental cede a vez à loucura governada pela saúde mental por meio de programas governamentais e colaboração intensiva dos cidadãos.
(Afinal, quem não quer ser normal, não é mesmo?)
Loucura não mais como fase, estágio, confinamento da desrazão, imediato deslocamento das regras, inscrição corporal de ideias-fixas e repressões.
A loucura agora é parte da gestão, dos negócios, e tende a desaparecer... gradativamente, perdida em arquivos da memória histórica das instituições asilares e das mortes escancaradas de insuportáveis. A loucura a ser apagada do indivíduo anônimo que se metamorfoseia em personagem histórico para escapar do anonimato monstruoso das sociedades hierarquizadas e que se transforma em número de prontuário impessoal nos manicômios. A loucura imputada a subversivos que justifica a estupidez violenta do poder de Estado!
Novos tempos: o do indivíduo transtornado, todos nós.
A loucura como doença mental cede a vez aos transtornos governados.
Todos nós passíveis de medicações, atendimentos nos CAPS e no limite internados em manicômios, que permanecem e são defendidos por agentes da ordem, dentre os quais se inscreve o poeta de carreira.
Não mais loucura como doença mental de alguns sob o saber da internação para atestar uma possível cura. Agora, estamos todos arquivados em saúde mental como transtornados, passíveis às novas regras de normalização.
 Transtorno = loucura de normais.
loucura... ruído de linguagens. corpo recoberto de palavras, significantes e significados. gestos a serem traduzidos, classificados, identificados, decifrados.
sociedade de controle... as palavras navegam em fluxos velozes, curtas, monossilábicas, rápidas, instantâneas... palavras e imagens na mesma sintaxe.
todos falam. todos com direito à voz. livros e blogs e comentários sobre suas vidas e as vidas alheias. explicações, justificativas, etc. é o que se pede, o que se exige.
gramáticas completas, variadas, múltiplas, pipocadas. definindo os vários comos e porquês e seres... diversosflexíveis gramáticas na mesma sintaxe.
o corpo solto, liberado de palavras, intraduzível é insuportável... loucura perigosa.
loucura solta... corpo que escapa às palavras, à gramática. indecifrávelinsuportável.
Os mecanismos de controle rivalizam com os mais duros confinamentos.
Entre a Primavera dos povos (1848) e a Comuna de Paris (1871), construiu-se uma verdade formalizada na antropologia criminal de Cesare Lombroso: o anarquista é o monstro que reúne em um só corpo crime e loucura. Propenso à destruição e redimensionamento do povo sedicioso e antropofágico, ele expressa em atos e ideias essa anormalidade: nega a revolução como estágio evolutivo, o Estado como realização sublime da razão que organiza a sociedade e afirma suas propostas como revolta,insurreição e terrorismo.
A anarquia é a realização de práticas de liberdade que corroem o regime da propriedade, seja ela privada, estatal, mista ou imaterial; pequena ou grande. O anarquista participa do jogo da razão para solapar a própria razão. Não romantiza a loucura, nem a trancafia; não saúda a irracionalidade: esquiva-se e combate os seus efeitos como jogos de poderes e práticas de governos das condutas.
Anarquistas são loucos, birutas, malucos, libertários! Perturbam a ordem de transtornados ávidos de uma nova profilaxia social.

domingo, 6 de novembro de 2011

Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto


4/11/2011 10:09,  Por Nina Crintzs - de Curitiba

"fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é mau gosto"
Há seis anos eu tive uma dor no olho. Só que a dor no olho era, na verdade, no nervo ótico, que faz parte do sistema nervoso. O meu nervo ótico estava inflamado, e era uma inflamação característica de um processo desmielinizante. Mais tarde eu descobri que a mielina é uma camada de gordura que envolve as células nervosas e que é responsável por passar os estímulos elétricos de uma célula para a outra. Eu descobri também que esta inflamação era causada pelo meu próprio sistema imunológico que, inexplicavelmente, passou a identificar a mielina como um corpo estranho e começou a atacá-la. Em poucas palavras: eu descobri, em detalhes, como se dá uma doença-auto imune no sistema nervoso central. Esta, específica, chama-se Esclerose Múltipla. É o que eu tenho. Há seis anos.
Os médicos sabem tudo sobre o coração e quase nada sobre o cérebro – na minha humilde opinião. Ninguém sabe dizer porque a Esclerose Múltipla se manifesta. Não é uma doença genética. Não tem a ver com estilo de vida, hábitos, vícios. Sabe-se, por mera observação estatística, que mulheres jovens e caucasianas estão mais propensas a desenvolver a doença. Eu tinha 26 anos. Right on target.
Mil médicos diferentes passaram pela minha vida desde então. Uma via crucis de perguntas sem respostas. O plano de saúde, caro, pago religiosamente desde sempre, não cobria os especialistas mais especialistas que os outros. Fui em todos – TODOS – os neurologistas famosos – sim, porque tem disso, médico famoso – e, um por um, eles viam meus exames, confirmavam o diagnóstico, discutiam os mesmos tratamentos e confirmavam que cura, não tem. Minha mãe é uma heroína – mãos dadas comigo o tempo todo, segurando para não chorar. Ela mesma mais destruída do que eu. E os médicos famosos viam os resultados das ressonâncias magnéticas feitas com prata contra seus quadros de luz – mas não olhavam para mim. Alguns dos exames são medievais: agulhas espetadas pelo corpo, eletrodos no córtex cerebral, “estímulos” elétricos para ver se a partes do corpo respondem. Partes do corpo. Pastas e mais pastas sobre mesas com tampos de vidro. Colunas, crânio, córneas. Nos meus olhos, mesmo, ninguém olhava.
O diagnóstico de uma doença grave e incurável é um abismo no qual você é empurrado sem aviso. E sem pára-quedas. E se você ta esperando um “mas” aqui, sinto lhe informar, não tem. Não no meu caso. Não teve revelação divina. Não teve fé súbita em alguma coisa maior. Não teve uma compreensão mais apurada das dores do mundo. O que dá, assim, de cara, é raiva. Porque a vida já caminha na beirada do insuportável sem essa foice tão perto do pescoço. Porque já é suficientemente difícil estar vivo sem esta sentença se morte lenta e degradante. Dá vontade de acreditar em Deus, sim, mas só se for para encher Ele de porrada.
O problema é que uma raiva desse tamanho cansa, e o tempo passa. A minha doença não me define, porque eu não deixo. Ela gostaria muitíssimo de fazê-lo, mas eu não deixo. Fiz um combinado comigo mesma: essa merda vai ter 30% da atenção que ela demanda. Não mais do que isso. E segue o baile. Mas segue diferente, confesso. Segue com menos energia e mais remédios. Segue com dias bons e dias ruins – e inescapáveis internações hospitalares.
A neurologista que me acompanha foi escolhida a dedo: ela tem exatamente a minha idade, olha nos meus olhos durante as minhas consultas, só ri das minhas piadas boas e já me respondeu “eu não sei” mais de uma vez. Eu acho genial um médico que diz “eu não sei, vou pesquisar”. Eu não troco a minha neurologista por figurão nenhum.
O meu tratamento custaria algo em torno de R$12.000,00 por mês. Isso mesmo: 12 mil reais. “Custaria” porque eu recebo os remédios pelo SUS. Sabe o SUS?! O Sistema Único de Saúde? Aquele lugar nefasto para onde as pessoas econômica e socialmente privilegiadas estão fazendo piada e mandando o ex-presidente Lula ir se tratar do recém descoberto câncer? Pois é, o Brasil é o único país do mundo que distribui gratuitamente o tratamento que eu faço para Esclerose Múltipla. Atenção: o ÚNICO. Se isso implica em uma carga tributária pesada, eu pago o imposto. Eu e as outras 30.000 pessoas que tem o mesmo problema que eu. É pouca gente? Não vale a pena? Todos os remédios para doenças incuráveis no Brasil são distribuídos pelo SUS. E não, corrupção não é exclusividade do Brasil.
O maior especialista em Esclerose Múltipla do Brasil atende no HC, que é do SUS, num ambulatório especial para a doença. De graça, ou melhor, pago pelos impostos que a gente reclama em pagar. Uma vez a cada seis meses, eu me consulto com ele. É no HC que eu pego minhas receitas – para o tratamento propriamente dito e para os remédios que uso para lidar com os efeitos colaterais desse tratamento, que também me são entregues pelo SUS. O que me custaria fácil uns outros R$2.000,00.
Eu acredito em poucas coisas nessa vida. Tenho certeza de que o mundo não é justo, mas é irônico. E também sei que só o humor salva. Mas a única pessoa que pode fazer piada com a minha desgraça sou eu – e faço com regularidade. Afinal, uma doença auto-imune é o cúmulo da auto-sabotagem.
Mas attention shoppers: fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é mau gosto. É, talvez, falha de caráter. E falar do que não se conhece é coisa de gente burra. Se você nunca pisou no SUS – se a TV Globo é a referência mais próxima que você tem da saúde pública nacional, talvez esse não seja exatamente o melhor assunto para o seu, digamos, “humor”.
Quem me conhece sabe que eu não voto – não voto nem justifico. Pago lá minha multa de três reais e tals depois de cada eleição porque me nego a ser obrigada a votar. O sistema público de saúde está longe de ser o ideal. E eu adoraria não saber tanto dele quanto sei. O mundo, meus amigos, é mesmo uma merda. Mas nós estamos todos juntos nele, não tem jeito. E é bom lembrar: a ironia é uma certeza. Não comemora a desgraça do amiguinho, não.
Nina Crintzs é profissional independente na área de cinema.