sábado, 30 de abril de 2011

para ernesto sabato

o escritor argentino ernesto sabato é um dos que alumiam meus mais sérios pensamentos (se é que se pode ter pensamentos sérios!). aos seus livros  está reservado o lugar mais precioso em minha biblioteca e em minhas leituras (é no lugar mais precioso que aqueço os autores que me alimentam a vida e ele é um deles). já tem algum tempo, eu passava por um período de descrença absoluta nas coisas do mundo e, num dia de garoa fina e de frio intenso, deparei-me com seu "A Resistência" (sobre o qual já postei alguma coisa aqui), no qual sabato (em cinco cartas ao leitor, mais o epílogo) faz "um balanço sombrio de nossa época". esse livro me reativou potências adormecidas pelo peso demasiado do amortecimento.
hoje sabato se despede do mundo e nos deixa tudo o que ele foi. e é do epílogo de "a resistência" que retiro suas próprias palavras para homenageá-lo.
"Como a luz da aurora que se pressente na escuridão, a morte já está perto de mim. É uma presença invisível.
Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento da morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.
Sua chegada não será uma grande tragédia como teria sido antes, pois a morte não me arrebatará a vida: já faz tempo que estou esperando por ela.
Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la.
Quando as pessoas me param na rua pra me dar um beijo, para me abraçar, ou quando compareço a algum evento, como a Feira do Livro, onde uma multidão espera por mim durante horas e me cobre de afeto, uma invencível sensação de despedida nubla minha alma.
Cada vez dou menos importância aos exercícios racionais, como se não tivessem muito a me dar. Como bem disse Kierkegaard, 'a fé começa justamente onde termina a razão'. Há momentos em que navego mar adentro sem perguntas, sem reparar na chuva nem no frio. E outros em que me agarro a velhas sabedorias esotéricas, encontrando calor em suas antigas páginas como nas pessoas que me rodeiam e cuidam de mim. Sinto vergonha ao pensar nos velhos que estão sozinhos, abandonados ruminando seu triste inventário de perdas.
Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o fim, de não me entregar jamais.
Mas agora que a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime.
Esqueci grande trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos  de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditam em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer" (em: Epílogo, As Resistência, 2008, p. 104-5).
E agora a morte lhe chegou. É tempo de fazê-lo viver.

divulgação: patch adams

entrevista com patch adams, no roda viva.
parte 1

capturado em: http://www.youtube.com/watch?v=8Q7aqa-G0l8&feature=related
a entrevista está dividida em dez partes, veja a continuidade no youtube.

divulgação: As abelhas sumiram!

Primeiro, as abelhas começaram a desaparecer nos Estados Unidos, depois no Canadá e, então, no Brasil. “Nós, em Santa Catarina, tivemos um problema muito sério na primavera passada. Álias, esse problema tem se agravado muito e sempre nesta mesma épóca do ano”, explica o professor Afonso Inácio Orth, um dos principais especialistas em abelhas do país e que tem acompanhado os estudos que buscam respostas para o desaparecimento dos insetos desde que este problema foi detectado. IHU Online
Primeiro, as abelhas começaram a desaparecer nos Estados Unidos, depois no Canadá e, então, no Brasil. “Nós, em Santa Catarina, tivemos um problema muito sério na primavera passada. Álias, esse problema tem se agravado muito e sempre nesta mesma épóca do ano”, explica o professor Afonso Inácio Orth, um dos principais especialistas em abelhas do país e que tem acompanhado os estudos que buscam respostas para o desaparecimento dos insetos desde que este problema foi detectado.
“O primeiro grande risco é a fragilização da produção mundial de alimentos, principalmente pelo fato de nós dependermos quase que exclusivamente das abelhas. Além disso, um risco secundário, mas não menos importante, é o de afetarmos toda a ecologia local, porque essas abelhas também acabam polinizando as plantas nativas e, a partir do momento em que você elimina os polinizadores, essas plantas nativas deixarão de se reproduzir e, com isto, nós poderemos estar alterando profundamente os ecossistemas”, apontou na entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.
Afonso Inácio Orth é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Entomologia pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Biologia pela University of Miami (EUA). Atualmente, é professor no Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que fatores estão causando o desaparecimento das abelhas das colmeias? Desde quando esse fenômeno está ocorrendo?
Afonso Inácio Orth – Esse fenômeno do desaparecimento das abelhas e o colapso das colmeias nos países do hemisfério Norte, Estados Unidos e Europa, começou em 2007 e várias causas foram atribuídas a ele, embora não se tenha encontrado nenhuma resposta definitiva. No Brasil houve em vários momentos diferentes supostos desaparecimentos de abelhas, mas não necessariamente na mesma dimensão verificada no hemisfério Norte. Nós, em Santa Catarina, tivemos um problema muito sério na primavera passada. Álias, esse problema tem se agravado muito e sempre nesta mesma época do ano.
IHU On-Line – O desaparecimento das abelhas já pode ser considerado um fenômeno mundial?
Afonso Inácio Orth – O Congresso Nacional dos Estados Unidos liberou verbas específicas para pesquisas sobre este tema, já que esse é um problema sério para o país. No entanto, até hoje não se chegou a nenhuma conclusão que explique esse desaparecimento. No início se achava que era algum vírus ou contaminação por agrotóxicos. Mais recentemente existiu uma suspeita muito forte em cima de algumas moléculas de agrotóxicos novos. No entanto, mesmo com todas as pesquisas, até agora não se chegou a nenhum veredicto.
Como não existe nenhuma prova definitiva do que está acontecendo, fica muito difícil você dizer que todos os problemas na apicultura foram causa única. Aqui em Santa Catarina, nós temos um cuidado muito grande em não caracterizar como o mesmo problema dos Estados Unidos, mesmo porque nós temos abelhas totalmente distintas daquelas que são criadas lá. As nossas abelhas são africanas e, na teoria, são muito mais resistentes a problemas patológicos em relação às abelhas estadunidenses. A desvantagem é que a espécie que criamos abandona mais facilmente a colmeia e produz menos mel.
IHU On-Line – Que danos o sumiço das abelhas causa à fruticultura e agricultura?
Afonso Inácio Orth – Em primeiro lugar, existe o dano direto aos apicultores e a perda da produção apícula, que é principalmente caracterizada pela produção de mel, própolis, cera e pólen. Além disso, temos uma perda bastante significativa na agricultura. Neste caso, a abelha é considerada pelo menos dez vezes superior como produtora de alimentos. Por exemplo, não se produz maçã sem a ajuda das abelhas no país. Nós da parte Sul do país temos uma vocação muito forte para a produção de frutas de clima temperado, e praticamente todas elas são altamente dependentes da polinização mediada pelas abelhas. Além disso, a polinização interfere diretamente em outras culturas, como a do girassol e a da soja.
IHU On-Line – Sem abelhas para fertilizar as plantações, a produção de alimentos pode ser alterada?
Afonso Inácio Orth – Algumas espécies de cereais são polinizadas basicamente pelo vento, tais como o milho, o trigo, o arroz. Grande parte das espécies que produzem proteínas, por exemplo, as frutas, é polinizada por abelhas. Portanto, pode-se afetar tanto a alimentação animal quanto a da própria espécie humana.
IHU On-Line – Que riscos o sumiço das abelhas pode gerar para a humanidade?
Afonso Inácio Orth – O primeiro grande risco é a fragilização da produção mundial de alimentos, principalmente pelo fato de nós dependermos quase que exclusivamente das abelhas. Além disto, um risco secundário, mas não menos importante, é de afetarmos toda a ecologia local, porque essas abelhas também acabam polinizando as plantas nativas e, a partir do momento que você elimina os polinizadores, essas plantas nativas deixarão de se reproduzir e, com isto, nós poderemos estar alterando profundamente os ecossistemas.
IHU On-Line – O ambientalista James Lovelock, em Hipótese de Gaia, diz que as abelhas podem estar pressentindo as mudanças climáticas ou um nível de poluição que os equipamentos humanos não são capazes de detectar. O sumiço desses animais pode ser um aviso de que a saúde do nosso planeta corre perigo?
Afonso Inácio Orth – Não só em relação à poluição e às mudanças climáticas os animais são mais sensíveis, mas até adventos bastante traumáticos como, por exemplo, existem estudos que associam a movimentação de insetos e abelhas e de pássaros prevendo ocorrência de abalos sísmicos na crosta terrestre. Embora tenhamos poucos estudos que possam claramente relacionar estes dois temas, acredito que a abelha é um excelente fator biológico para detectar alterações nos ecossistemas causados pela poluição do homem. E é claro que esta influência do homem pode afetar indiretamente as mudanças climáticas como, por exemplo, o aumento da temperatura. Por isso, concordo, sim, com as colocações de Lovelock.
IHU On-Line – Que função as abelhas desempenham na cadeia produtiva e a responsabilidade delas no meio ambiente? Nesse sentido, qual a importância de preservá-las?
Afonso Inácio Orth – Uma das fases cruciais na existência de uma planta é o seu estágio reprodutivo, e hoje sabemos que 90% das plantas dependem da polinização realizada por animais, como abelhas e outros insetos. Se não tivermos esses animais, nós romperemos o ciclo de reprodução continuada das plantas. Isso poderá afetar profundamente a sobrevida destas espécies no mundo todo, no ecossistema.
Hoje boa parte do produto que exploramos depende das abelhas para produzir adequadamente. Por isso, precisamos preservar o equilíbrio ambiental. Sem as abelhas nós não conseguiremos preservar as espécies de vegetais e animais que vivem nos diferentes ecossistemas.
IHU On-Line – A exemplo do Canadá, Estados Unidos e Europa, os apicultores do estado de Santa Catarina apontam para o sumiço de abelhas. Já se sabe quais são as causas?
Afonso Inácio Orth – A Federação das Associações de Agricultores e Apicultores de Santa Catarina começou a receber muitas reclamações de sumiços de abelhas na primavera do ano passado. Depois de ocorrido o fato nós começamos a pensar um pouco sobre a dimensão deste problema. A primeira ação desta federação foi criar uma comissão técnico-científica da qual eu faço parte. Primeiramente, fizemos um levantamento da realidade desta mortandade e chegamos a dados bastante preocupantes. Tivemos agricultores que relataram perda de 80% de sua produção; outros que não relataram quase nenhuma perda. E essa perda estava presente em pequenos, médios e grandes agricultores e apicultores que praticavam a cultura orgânica. Então, não houve apenas problemas na apicultura tradicional.
Em relação ao motivo dessas perdas nós não temos ainda dados concretos para discutirmos isso, até porque começamos este levantamento após o fato ter ocorrido, sendo relatado, somente então, para a federação. Houve alguns casos em que foram feitos estudos que revelaram intoxicação por agrotóxicos. É possível que as alterações climáticas tenham relação com o desaparecimento. Tivemos, na primavera do ano passado, problemas de temperatura e precipitação, o que pode ter afetado a alimentação das abelhas. Mas isso é uma hipótese, não podemos afirmar categoricamente. Nos formulários que os apicultores nos enviaram, eles sugeriram problemas de doenças ou parasitas, principalmente ácaros.Não podemos, todavia, tomar nenhuma posição sem dados concretos sobre o fato.
Na verdade, de uma forma concreta, sabemos que o problema ocorreu, que foi bastante sério. Inclusive, nós tememos que faltem colmeias para a próxima polinização. Mas ainda não conseguimos detectar claramente o que está acontecendo. Só nesta semana recebemos algumas chamadas: uma do oeste, outra da região serrana e uma terceira chamada do sul do Estado. Aparentemente, o problema – a perda das colmeias – continua este ano, nos deixando preocupado. Mas nós não temos um diagnóstico do que ocorreu ano passado e o que está acontecendo agora.
IHU On-Line – A abelha convive num sistema de extraordinária organização. Pode nos explicar como se dá essa organização e hierarquia nas colmeias?
Afonso Inácio Orth – Uma colmeia de abelhas é constituída basicamente por uma fêmea reprodutiva, a rainha, machos reprodutivos, que são os zangões, e a mesma quantidade de fêmeas não reprodutivas que são as operárias. Na verdade, as operárias executam diferentes tarefas no decorrer da vida adulta delas, iniciam trabalhando mais dentro de casa. Como as próprias crianças nos lares dos seres humanos, as abelhas trabalham com a limpeza, a nutrição das larvas, com a colmeia, depois trabalham na defesa da colmeia e a última atividade que elas executam é a atividade forageira, quando elas voam para os campos a fim de coletar/conduzir pólen, néctar e água.
Existe uma cadência lógica bastante grande no exercício das atividades. Por outro lado, caso não tivermos um mínimo de abelhas novas para alimentar as larvas, nós não temos como perpetuar a colmeia por meio de produção de novas abelhas, porque vai faltar alguém que alimente essas larvas. Na verdade, existe todo um sistema complexo, embora a colmeia possa sempre se adaptar. Porém, se não têm abelhas campeiras, normalmente elas começam a se deslocar para o campo mais precocemente. A mesma coisa pode acontecer permanecendo mais tempo dentro do ninho. São situações extremamente anormais.
IHU On-Line – Poucas são as pessoas que pesquisam sobre este assunto no Brasil. Por que isso acontece?
Afonso Inácio Orth – Talvez a biologia organismal ou a própria ecologia do organismo tem recebido pouca atenção não só no caso específico das abelhas, mas de animais e plantas de uma maneira geral. Essa é uma realidade no Brasil e no mundo afora. Hoje se investe muito recurso em cima de sofisticados estudos tecnológicos, mas algumas questões simples nós deixamos de fazer, e isso acaba não gerando informações importantes das quais precisamos para preservação do meio ambiente e para a produção agrícola.
Felizmente, em países onde o problema se agravou rapidamente, que é o caso dos Estados Unidos, começaram a ser liberados recursos para a realização de pesquisas em larga escala, justamente para tentar fazer frente ao problema da falta de abelhas. No último ano, por exemplo, eles importaram mais de um milhão de colmeias de outros países, principalmente da América Latina e da Nova Zelândia, para suprir a deficiente das colmeias. Espero que aqui no Brasil tenhamos a liberação de dinheiro para projetos desta envergadura e estudos de espécies.
IHU On-Line – O Brasil tem algum plano de proteção a esses animais?
Afonso Inácio Orth – Acredito que é preciso analisar a ampla acessibilidade que nós temos para a utilização de agrotóxicos. Hoje, nós somos um dos maiores consumidores de agrotóxico. A utilização excessiva de agrotóxicos não é compatível com um programa de proteção de abelhas. Atualmente, apesar de não sermos a maior economia mundial, nem o maior produtor agrícola, nós somos o maior consumidor de agrotóxicos. Há algo de muito errado nisso.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

divulgação: Cinema contra a homofobia?

O Ministério da Saúde francês decidiu financiar curtas-metragens para lutar contra a homofobia e o suicídio entre os jovens. Mas como criar imagens capazes de um tal feito?
Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.
“Jovem e homossexual sob o olhar dos outros”. O título deste projeto não poderia ser mais claro. Este conjunto de cinco curtas-metragens nasceu da iniciativa do Ministério da Saúde francês em 2008, que propôs aos jovens enviar roteiros com o tema acima. Os mais de 3000 projetos foram lidos, e cinco foram selecionados por psicólogos, membros de associações gays e personalidades do cinema, além do cineasta francês André Téchiné, abertamente homossexual, coordenador do projeto. O resultado foi exibido na televisão a cabo e em alguns cinemas de arte, restringindo os filmes a um público com poder aquisitivo e formação cultural mais elevados.
Não caberia aqui denunciar o didatismo de um projeto que não pretende ser mais do que isso: um objeto pedagógico de “luta contra a homofobia”, segundo o site oficial. O mais interessante é ver as consequências da pedagogia no cinema, pensar na noção de um cinema útil e intervencionista – cinema este que, embora ferramenta de ensino, beneficia dos mesmos canais e dos mesmos meios de produção de qualquer outro filme financiado com fundos públicos. Os filmes são todos, diga-se de passagem, bastante profissionais e competentes tecnicamente.
Inicialmente, deve-se dizer que os jovens gays são sempre os protagonistas dos curtas-metragens, algo que não era necessariamente imposto, já que o tema implicava o embate entre a visão dos gays e a visão “dos outros”. Estes jovens, todos belos, são majoritariamente homens, majoritariamente de classe média-alta, brancos, com famílias estruturadas e tradicionais (mãe a pai no café presentes na mesa do café da manhã, irmãos etc.). Reservam-se exceções para o papel não ser taxado de elitista ou burguês: existe um negro, uma habitante de classe baixa, e uma garota. Todos expõem suas dificuldades e seus conflitos nas telas. A primeira constatação é de que, para se constituir como o oposto do ataque preconceituoso, o respeito pelo homossexual passa uma forma de exposição das fraquezas, por retratos intimistas, por uma espécie de cinema na primeira pessoa do singular.
Esta forma de “delicadeza”, termo aliás bastante utilizado nas traduções brasileiras de filmes com temática gay, implica a visão da homossexualidade essencialmente como amor gay. Todos os jovens das cinco histórias, portanto adolescentes entre 13 e 18 anos em média, descobrem a preferência pelo mesmo sexo através de uma primeira história de amor, e não de um desejo sexual até então desconhecido. Não há masturbações, corpos descobertos, não há pulsão. Talvez para combater a visão majoritária de que homossexuais são hipersexuados, escolhe-se a abordagem menos realista para as histórias de amor heterossexuais, mas que parece se tornar subversiva neste caso: as paixões à primeira vista, os primeiros flertes, o primeiro beijo.
A questão “olhar dos outros” é das mais brandas. Alguns insultos são proferidos, mas geralmente pronunciados entre amigos e sem consequências graves. Nada de agressão, violência, nem grande angústia do jovem gay. Os protagonistas são muito mais frustrados pelo amor não concretizado do que pela dificuldade de inserção social. No único episódio em que os pais recorrem à violência física, a cena é rápida e logo em seguida o filho agredido sai de casa, passeia alegremente na rua, sorri para o céu azul e afirma ter orgulho de quem é. Nenhuma relação se estabelece entre as duas cenas: a vergonha alheia e o orgulho próprio parecem conviver sem intervir um no outro.
Por fim, não é surpreendente que todos os curtas sejam incrivelmente otimistas, o que implica uma forma de deus ex machina das mais ingênuas: os colegas de escola homofóbicos aceitam a orientação do colega (vide imagem acima) porque o professor insiste que a homossexualidade é normal, a garota lésbica encontra uma namorada, mesmo o garoto em dificuldades encontra o super-herói (literalmente) que lhe salva, no único curta fantástico dos cinco. A noção de “lutar contra a homofobia” foi percebida como “oferecer à sociedade imagens positivas”, sem confrontá-la com seus próprios preconceitos (o que provavelmente faria o espectador mudar de canal) ou pensar nas reais implicações sociais e nas raízes da homofobia.
Face à dificuldade de se agir de maneira eficaz na moral de uma sociedade católica e conservadora, o filme pretende oferecer o mundo como ele poderia ser, sem questionar o mundo como ele é. Os “jovens e homossexuais sob o olhar dos outros” ficam tristes com o preconceito, mas depois se apaixonam, suas histórias de amor dão certo e tudo termina bem para os jovens, para as comunidades intolerantes das histórias, para os eventuais espectadores homofóbicos dos curtas e também para o Ministério da Saúde, que cumpre seu papel ao fazer um esforço pela “luta contra o preconceito”.
Jeune et homo sous le regard des autres (2010)
Curtas-metragens franceses dirigidos por Pascal-Alex Vincent (“En Colo”), Rodolphe Marconi (“Basket et Maths”), Xavier Gens et Marius Vale (“Fusion Man”), Celine Sciamma (“Pauline”) e Sébastien Gabriel (“Omar”).

terça-feira, 26 de abril de 2011

divulgação: Os adoradores de dinheiro e o deus mercado

As corporações deixam que 50.000 pessoas morram a cada ano porque não podem pagar uma assistência médica adequada. Já mataram milhares de iraquianos, afegãos, palestinos e paquistaneses e a isso contemplaram com alegria enquanto quadruplicava o preço das ações dos fabricantes de armamentos. Transformam o câncer numa epidemia nas minas de carvão da Virgínia Ocidental, onde as famílias respiram ar contaminado, bebem água envenenada e observam os Montes Apalaches irem pelos ares, convertendo-os em uma planície deserta enquanto as companhias carboníferas acumulam milhões e milhões de dólares. O artigo é de Chris Hedges.
Chris Hedges - Truthout
Discurso feito pelo jornalista Chris Hedges em Union Square, em 15 de abril passado, na cidade de Nova York, durante um protesto feito em frente a uma das agências do Bank of America.
Estamos aqui hoje em frente a um de nossos templos das finanças. Um templo no qual a cobiça e o lucro são os bens supremos, onde o valor de cada pessoa é determinado por sua capacidade de misturar riqueza e poder à custa de outras, onde as leis são manipuladas, se reescrevem e se violam, onde o ciclo infinito do consumo define o progresso humano, onde a fraude e os crimes são os instrumentos dos negócios.
As duas forças mais destrutivas da natureza humana – a cobiça e a inveja –impulsionam os homens de finanças, os banqueiros, os mandarins corporativos e os dirigentes de nossos dois principais partidos políticos, todos eles beneficiários deste sistema. Colocam-se no centro de sua criação. Desdenham ou ignoram os gritos dos que se encontram abaixo deles. Retiram nossos direitos e nossa dignidade e frustram nossa capacidade de resistência. Fazem-nos prisioneiros em nosso próprio país. Vêem os seres humanos e o mundo natural como simples mercadorias a serem exploradas até ao esgotamento e ao colapso. O sofrimento humano, as guerras, as mudanças climáticas, a pobreza, tudo serve ao custeio dos negócios. Nada é sagrado. O Senhor dos Lucros é o Senhor da Morte.
Os fariseus das altas finanças que podem nos ver esta manhã de suas salas e seus escritórios pelas esquinas debocham da virtude. A vida para eles só tem o significado do proveito próprio. O sofrimento dos pobres não os preocupa. As seis milhões de famílias expulsas de suas casas não os preocupam. As dezenas de milhões de aposentados, cujas economias para a aposentadoria foram anuladas pela fraude e pela desonestidade de Wall Street não os preocupam. Que não se consiga deter as emissões de carbono, isso não os preocupa. A justiça não os preocupa. A verdade não os preocupa. Uma criança faminta não os preocupa.
Fiódor Dostoyevski em “Crime e Castigo” concebeu o mal absoluto por trás dos anseios humanos não como alguma coisa vulgar, mas como algo extraordinário, como o desejo que permite a homens e mulheres se servirem de sistemas de autoglorificação e cobiça. No romance, Raskolnikov acredita – como os que vivem nos tempos atuais – que o gênero humano pode se dividir em dois grupos. O primeiro se compõe de gente comum, humilde e submissa. Gente comum que faz pouco mais do que se reproduzir segundo a sua própria imagem, envelhecer e morrer. E Raskolnikov despreza essas formas inferiores de vida humana.
O segundo grupo, acredita Raskolnikov, é extraordinário. São os Napoleões do mundo, os que desprezam o direito e os costumes, os que se desvencilham das convenções e tradições para criar um futuro mais refinado, mais glorioso. Raskolnikov argumenta que, mesmo vivendo todos no mesmo mundo, podemos nos libertar das conseqüências de viver com outros, conseqüências que nem sempre estarão a nosso favor. Os Raskolnikovs do mundo põem uma fé desenfreada e total no intelecto humano. Desdenham os atributos de compaixão, empatia, beleza, justiça e verdade. E essa visão demencial da existência humana leva Raskolnikov a assassinar uma agiota e a roubar o seu dinheiro.
Quando Dante entra na selva escura no Inferno (canto III) ouve os gritos daqueles que “pelo mundo transitaram sem merecer louvor ou execração”, os rejeitados pelo céu e pelo inferno, os que dedicaram suas vidas somente em busca da felicidade. São os “bons”, os que nunca causaram confusões, os que preencheram suas vidas de coisas vãs e vazias, inofensivas talvez, para divertirem-se, que nunca tiveram uma posição perante nada, nunca arriscaram nada e foram somente figurantes. Jamais analisaram suas vidas criticamente, nunca sentiram necessidades, nunca quiseram ver. Os sacerdotes desses templos corporativos, em nome do lucro, matam ainda com mais inclemência, fineza e astúcia do que Raskolnikov.
As corporações deixam que 50.000 pessoas morram a cada ano porque não podem pagar uma assistência médica adequada. Já mataram milhares de iraquianos, afegãos, palestinos e paquistaneses e a isso contemplaram com alegria enquanto quadruplicava o preço das ações dos fabricantes de armamentos. Transformam o câncer numa epidemia nas minas de carvão da Virgínia Ocidental, onde as famílias respiram ar contaminado, bebem água envenenada e observam os Montes Apalaches irem pelos ares, convertendo-os em uma planície deserta enquanto as companhias carboníferas acumulam milhões e milhões de dólares.
E após saquear o tesouro dos Estados Unidos, essas corporações requerem, em nome da moralidade, que se eliminem programas alimentares para crianças, a ajuda para a calefação, a assistência médica para nossos idosos e a boa educação pública. Reivindicam que toleremos uma classe inferior permanente que deixará em cada seis trabalhadores um sem trabalho, que condena dezenas de milhões de estadunidenses à pobreza e que lança os doentes mentais às grades de calefação. Os que não têm poder, aqueles que as corporações consideram gente comum, são atirados ao lado como lixo humano. É o que exige o “deus mercado”.
E os que perseguem o arco iris brilhante da sociedade de consumo, os que apóiam a ideologia pervertida da cultura consumista, se convertem, como já o sabia Dante, em covardes morais. Têm a cabeça feita por nossos sistemas corporativos de informação e se mantêm passivos enquanto nossos poderes legislativo, executivo e judicial de governo – instrumentos do Estado corporativo – nos retiram a capacidade de resistir. Democratas ou republicanos, liberais ou conservadores. Não há diferença. Barack Obama serve aos interesses corporativos com a mesma diligência de George W. Bush. E colocar nossa fé em algum partido ou instituição estabelecida como mecanismo de reforma é deixarmo-nos hipnotizar pelo mito das sombras nas paredes da caverna de Platão.
Devemos desafiar essa geringonça da cultura do consumo e recuperar a primazia da piedade e da justiça em nossas vidas. E isso requer coragem, não só a coragem física, mas também a coragem moral, o que é mais difícil... A coragem moral de ouvir nossa consciência. Se tivermos que salvar ao nosso país e ao nosso planeta, devemos ultrapassar a exaltação do próprio ego e incorporar a isso o ego do nosso próximo. O auto-sacrifício desafia a doença da ideologia corporativa. O auto-sacrifício destrói os ídolos da cobiça e da inveja. O auto-sacrifício exige que nos rebelemos contra o abuso, contra a ofensa e a injustiça que nos impõem os mandarins do poder corporativo. Há uma profunda verdade na advertência bíblica: “Aquele que ama a sua vida a perderá”
A vida não tem a ver só conosco. Jamais poderemos ter justiça enquanto o nosso próximo não tiver justiça. E jamais poderemos recuperar a nossa liberdade até que estejamos dispostos a sacrificar nosso conforto por uma rebelião aberta. O presidente (Obama) nos decepcionou. Nosso processo de democracia eleitoral nos decepcionou. Não restam estruturas ou instituições que não tenham sido contaminadas ou destruídas pelas corporações. E isto significa que tudo dependerá de nós mesmos. A desobediência civil, que significa dificuldades e sofrimentos, que será longa e difícil, que significa essencialmente auto-sacrifício, é o único recurso que resta.
Os banqueiros e os gestores de fundos de alto risco, as elites corporativas e governamentais, são a versão moderna dos hebreus desencaminhados que se prostraram diante do bezerro de ouro. A centelha da riqueza brilha diante de seus olhos e os impulsiona cada vez mais rápido para a destruição. E querem que nos prostremos também diante do seu altar. Enquanto nos inspirarmos na cobiça, ela nos manterá cúmplices e em silêncio. Na medida, porém, que desafiemos a religião do capitalismo sem escrúpulos, uma vez que exijamos que a sociedade atenda verdadeiramente as necessidades dos cidadãos e que o ecossistema sustente a vida, ao invés das necessidades do mercado, uma vez que aprendamos a dialogar com uma nova humildade e a viver com uma nova simplicidade, uma vez que amemos ao nosso próximo como a nós mesmos, romperemos as correntes que nos aprisionam e faremos com que a esperança seja percebida.
(*) - Christopher Lynn Hedges é jornalista, autor e correspondente de guerra dos Estados Unidos, especializado em políticas e sociedades dos EUA e Oriente Médio. Seu livro mais recente se intitula “A Morte da Classe Liberal” (2010)
Tradução do espanhol feita por Izaías Almada.

divulgação: Em "O Reino e a Glória", Agamben analisa liturgias do poder

Novos estudos de Giorgio Agamben remetem a uma "arqueologia da glória", dedicada à história dos aspectos cerimoniais do poder e do direito. Para filósofo italiano, esfera da glória e da lituirgia não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se para novos terrenos como a mídia. "A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar", escreve Agamben.
Redação
Com O reino e a glória, a investigação sobre a genealogia do poder iniciada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben há treze anos com a obra Homo sacer chega a uma encruzilhada decisiva. Em seus novos estudos, Agamben desvenda qual é a relação que liga tão intimamente o poder à glória e a todo o aparato cerimonial e litúrgico que o acompanha desde o início. Revela que, nos primeiros séculos da história da Igreja, a doutrina da Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo) é introduzida sob a forma de uma "economia" da vida divina, como um problema de gestão e de governo da "casa" celeste e do mundo, aparecendo inesperadamente na origem de muitas categorias fundamentais da política moderna, desde a teoria democrática da divisão dos poderes até a doutrina estratégica dos "efeitos colaterais", desde a "mão invisível" do liberalismo smithiano até as ideias de ordem e segurança.
As investigações de O reino e a glória remetem a uma ciência dedicada à história dos aspectos cerimoniais do poder e do direito, uma espécie de arqueologia política da liturgia e do protocolo, que poderia ser chamada provisoriamente de "arqueologia da glória". Tais estudos situam-se no rastro das pesquisas de Michael Foucault sobre a genealogia da governabilidade e alcançam os primeiros séculos da teologia cristã, em que a doutrina trinitária serve como forma mais clara de revelar o funcionamento e a articulação da máquina governamental. Por meio de uma fascinante análise das aclamações litúrgicas e dos símbolos cerimoniais do poder, do trono à coroa, da púrpura ao feixe de varas carregado pelos litores (que se tornou símbolo do fascismo), Agamben constrói uma genealogia inédita que mostra como elementos considerados resíduos do passado continuam constituindo a base do poder ocidental.
É nesse percurso intelectual que o filósofo italiano identifica um importante paralelo entre as aclamações (gestos coletivos de louvor ou desaprovação) e a chamada "opinião pública", e vai além com a constatação de que a esfera da glória não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se para novos terrenos, como a mídia.
"A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar (que o termo grego para glória - doxa - seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, desse ponto de vista, mais que mera coincidência)."
E, como reforça o autor, é a partir disso que o problema hoje tão debatido da função política da mídia assume novos significados e nova urgência.
Com tradução de Selvino J. Assmann, O reino e a glória integra a coleção Estado de Sítio, da Boitempo, coordenada por Paulo Arantes.
Trecho do livro
Contudo, mais do que registrar tais correspondências, interessa-nos compreender sua função. De que maneira a liturgia "faz" o poder? E se a máquina governamental é dupla (Reino e Governo), que função a glória desempenha nela? Para os sociólogos e os antropólogos sempre é possível recorrer à magia, à esfera que, confinando com a racionalidade e precedendo-a imediatamente, permite explicar, em última análise, como um resquício mágico aquilo que não conseguimos compreender a respeito da sociedade em que vivemos.
Não acreditamos em um poder mágico das aclamações e da liturgia e estamos convencidos de que nem mesmo os teólogos e os imperadores tenham alguma vez acreditado nisso. Se a glória é tão importante na teologia, é porque permite manter juntas, na máquina governamental, trindade imanente e trindade econômica, o ser de Deus e sua práxis, o Reino e o Governo. Ao definir o Reino e a essência, ela determina também o sentido da economia e do Governo. Permite, portanto, soldar a fratura entre teologia e economia da qual a doutrina trinitária nunca conseguiu dar cabo completamente e que só na figura deslumbrante da glória parece encontrar uma possível conciliação.
Sobre o autor
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris.
Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de exceção (2005), Profanações (2007) e O que resta de Auschwitz (2008), os três últimos pela Boitempo.

divulgação: “Ocupação”, pelo Coletivo Paralaxis

Fotógrafa e documentarista narra convívio com sem-teto paulistanos, do qual resultou produção inovadora sobre lutas por direito à moradia
Por Luciana Cavalcanti, colaboradora de Outras Palavras e integrante do Paralaxis
Conviver com moradores de um prédio que poderia ser desocupado pela polícia a mando da Prefeitura a qualquer momento. Essa era a realidade esperada quando começamos a conhecer aqueles espaços e pessoas do centro de São Paulo, especificamente, dos prédios Prestes Maia, da 9 de Julho e dos hotéis da avenida Ipiranga com São João. Antigos hotéis, abandonados e em risco. Com IPTU não pago há décadas, mas com seus proprietários que não cediam de maneira alguma à permissão de locação ou alguma utilidade habitacional. Simplesmente preferem deixar desmoronar, cair aos pedaços a ceder para os nomeados sem-teto – estes que, quando aportaram ali naqueles prédios ou moravam na rua ou tinham suas casas em risco. Chegaram para tentar “fazer a vida”. Queriam viver dignamente.
Não precisamos muitas vezes saber da estatística do déficit de moradia no Brasil. É visível quando numa tarde andamos pelas ruas. Há uma problemática urbana, principalmente, desde que os campos foram trocados pelas cidades: por falta de trabalho, a mudança era inevitável, salientando que notícias de modernização e “progresso” veiculadas atraíam e ainda muito atraem a população para uma busca de melhor qualidade de vida. E qualidade de vida para a maioria das pessoas é morar, comer, trabalhar e dormir dignamente – no mínimo.
Conhecemos pessoas maravilhosas. E tanto eu, como Fernando e Stefan, ficávamos lá por horas, aprendendo com a organização e disciplina daqueles moradores ansiosos por alguma decisão benéfica à situação deles. Queríamos voltar mais e mais vezes… E voltamos várias e várias e várias… Encontramos muitas vezes pelos corredores dos edifícios com os coordenadores da Anistia Internacional fazendo um trabalho de formiguinha, com perseverança e atitude.
Artistas plásticos, professores, catadores de lixo, eletricistas, aposentados, marceneiros, muitos e em demasiada oraganização impressionaram pela determinação e pela receptividade, principalmente os moradores da avenida Ipiranga com a São João…
Queríamos mostrar um pouco do que víamos e das condições das pessoas que muita gente infelizmente ainda rotula de “vagabundos”. Absurdos perpetuados no consciente coletivo de uma sociedade. Trabalhadores árduos demais. Numa manhã, vi dona Cida fazer um panelão de almoço para os moradores do hotel na Av. Ipiranga que mesmo cozinheira experiente teria dificuldade em aprontar. Uma equipe saía toda manhã para recolher verduras, frutas e legumes no Mercado Municipal do centro. Quatro horas da manhã já estavam de pé.
Uma outra equipe ficava responsável pela rede elétrica. Outra pelo abastecimento de água. Muita fé nos olhos! Muitas crianças amorosas que iam para suas escolas distantes daquele lugar, mas porque as mães e pais afirmavam ser o futuro daquelas crianças. “Estudar. Eles precisam estudar. Não tem essa de faltar à escola”, firmemente colocou uma mãe que passava rapidamente descendo as escadas levando seus dois filhos para a escola e já estava atrasada para pegar o ônibus. Todos iam para a escola todos os dias.
No primeiro dia de visita no hotel da avenida São João, conhecemos uma artista plástica que estava organizando uma exposição e um bazar. Vinha de longe. Tinha morado em vários lugares no país. Fez uma exposição bonita e bem original, utilizando-se dos restos encontrados da construção do prédio que ocupou. Infelizmente com a chuva e as goteiras que entravam pelo teto do primeiro andar do prédio, a exposição e o bazar tiveram que ser adiados.
Nosso coletivo pretende abordar ainda mais este tema da Moradia no Brasil… Por enquanto, aqui uma pequena mostra do que começamos a vivenciar acompanhando algumas pessoas com as quais aprendemos muito.
MAIS
> Outras produções do Coletivo Paralaxis podem ser encontradas em seu site
> Este multimídia foi selecionado para o Programa Fotograma Livre, do Festival de Fotografia de Porto Alegre, o FestPoa 2011.
> Vale visitar também o site da banda Rodamundo, da qual participa o talentoso músico Felipe Mancini, responsável pela trilha deste multimídia

divulgação: Entrevista Raquel Rolnik: Direito à moradia versus especulação imobiliária

Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Luedemann, Débora Prado, Otávio Nagoya, Paula Salati, Tatiana Merlino.
Atual relatora especial da ONU para direito à moradia adequada e professora da FAU-USP, a urbanista Raquel Rolnik é uma voz respeitadíssimano Brasil e internacionalmente. Participou da Secretariade Planejamento na gestão Luiza Erundinana Prefeitura de São Paulo (1989-1992) e ficouno Ministério das Cidades de 2003 a 2006, quandodeixou o governo por discordar das políticasurbanas e de moradia adotadas com a mudançaministerial. Nesta entrevista exclusiva para CarosAmigos, Raquel Rolnik conta episódios de sua passagempelo governo, expõe a sua visão sobre osproblemas urbanos, em especial o da moradia, erelata que tem recebido muitas denúncias de despejosviolentos motivados pelas empresas que especulamcom a terra nas cidades.
Débora Prado – A gente sempre começa perguntando como foi a sua formação e a sua trajetória profissional e política.
Eu acho legal, porque essa trajetória explica muito as minhas posições, hoje, e a leitura que eu faço das coisas. Eu estudei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) na Universidade de São Paulo (USP) no início dos anos 1970 e isso foi absolutamente determinante, para mim, porque eu pude viver, não só a FAU, que é uma escola muito especial do ponto de vista de uma abertura para as dimensões humanas, artísticas e técnicas, mas também porque os anos 1970 foram os anos de luta contra a ditadura. E eu tive a oportunidade, o privilégio, de poder participar do movimento estudantil, da reorganização dos movimentos de luta contra a ditadura nos anos 1970. E também tive a oportunidade, através da Profa. Ermínia Maricato, que foi minha professora naquele momento, tinha acabado de entrar como professora, com os movimentos sociais e populares em torno da luta pela moradia que também estava se rearticulando naquele momento. Então, naquele momento era um movimento pela regularização dos loteamentos clandestinos, uma uta por conseguir urbanizar e regularizar favelas e loteamentos no Brasil. Era o começo da sua voz, no sentido: “Nós estamos aqui e queremos ser objeto de políticas.” Então, eu tive esse duplo contato, essa dupla inserção. Como movimento pelas liberdades democráticas, naquele momento, pelos direitos humanos, pela liberdade de expressão, através do movimento estudantil na USP, e na relação com os movimentos sociais e populares, propriamente quando o tema da questão aparece para mim.
Tatiana Merlino – Então a faculdade colocou você em contato com os movimentos urbanos?
Já na FAU, também, tive o enorme privilégio de poder trabalhar em conjunto com o Nabil Bonduk, que era o meu colega de classe naquele momento. Nós, por um absoluto acaso, também, estávamos desenvolvendo um projeto de pesquisa na área de sociologia dentro da escola e o nosso orientador, na época, que era o Gabriel Bollaffi viajou e nos colocou em contato com o professor Lúcio Kowarick. Naquele momento, o professor Kowarick estava no âmbito, primeiro, do CEBRAP, depois do CEDEC, começando um processo, do ponto de vista intelectual, de compreender o processo de formação da periferia e a questão da espoliação urbana e da exclusão territorial. Nós fomos estagiários do Lúcio Kowarick, depois foi com ele que nós fizemos a nossa iniciação científica junto com o Gabriel Bollaffi. Então, o nosso primeiro trabalho deiniciação científica é um trabalho sobre a formação da periferia de São Paulo. Então, é um trabalho que, de alguma maneira, inaugurou um conjunto de trabalhos de pesquisadores na área da sociologia urbana, os estudos urbanos e urbanistas, que começaram a denunciar o processo de formação das cidades brasileiras, através de pesquisas de campo. Então, isso também foi muito determinante na minha trajetória.
E, finalmente, teve um terceiro pé dessa trajetória, também, que ainda estudante, eu fui estagiária da Coordenação Geral de Planejamento de São Paulo, a antiga COGEP, que depois virou Secretaria de Planejamento, quando o Secretário era o Coordenador da COGEP, depois virou Secretário, era o Candido Malta Campos Filho, urbanista. Então foi a primeira experiência no Poder Público, trabalhando no Planejamento Urbano, entrando em contato com as questões da cidade, do ponto de vista da gestão da política urbana.
Para ler a entrevista completa e outras matérias confira edição de abril da revista Caros Amigos, já nas bancas.

divulgação: Entrevista Noam Chomsky

“O Ocidente fará de tudo para impedir o surgimento de democracias no mundo árabe”
Por Tatiana Merlino
O ataque das potências ocidentais à Líbia de Muammar Kadafi está sendo justificado como uma intervenção humanitária. Afinal, os civis estavam em perigo. Porém, o real motivo da intervenção militar da coalizão formada por Estados Unidos, França, Canadá, Itália e Reino Unido não tem nada de boas intenções, acredita o estadunidense Noam Chomsky, um dos mais importantes intelectuais da atualidade. “Não é uma intervenção humanitária. Tudo naquela região tem a ver com petróleo”, afirma, em entrevista exclusiva a Caros Amigos, concedida por telefone.
Chomsky lembra que até poucos dias atrás o ditador era apoiado pelos Estados Unidos e Inglaterra. Kadafi “não é progressista, é um assassino. Mas não é esse o motivo pelo qual se opõem a ele. Há assassinos por toda parte e eles não têm problema com isso, contanto que sigam ordens. Como ele não é confiável, ficariam felizes em se livrar dele.”, analisa.
A postura do ocidente, porém, não é novidade, explica o professor de Linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Caso após caso, se há um ditador em apuros, o plano é apoiá-lo até o fim, até que fique impossível sustentá-lo e, em seguida, mudar o discurso e passar a dizer ‘sim, somos contra as ditaduras, adoramos a democracia, sempre lutamos pela liberdade’”. Segundo ele, é o que acontece também no Egito e na Tunísia.
O intelectual afirma que o levante no mundo árabe é o mais significativo de que se lembra, embora acredite que “por enquanto, não deveríamos chamá-lo de revolução”. Na opinião de Chomsky, um dos aspectos mais interessantes das revoltas é sua ligação com as recentes manifestações ocorridas nos Estados Unidos, no estado de Wisconsin, onde milhares de funcionários públicos saíram às ruas para protestar contra projeto de lei que, segundo eles, retira direitos trabalhistas. “Um dos acontecimentos mais impressionantes das últimas semanas foi quando, no final de fevereiro, Kamal Abbas, um dos principais líderes trabalhistas do Egito, mandou uma mensagem de apoio aos trabalhadores do estado de Wisconsin”.
Confira a entrevista a seguir.
Caros Amigos - Qual a sua opinião sobre a intervenção militar na Líbia? Por que os Estados Unidos a atacaram? O que está por trás disso?
Noam Chomsky - Bom, o que está por trás disso é sem dúvida simples. Se você analisar a reação ocidental, incluindo a reação dos Estados Unidos, as várias manifestações, irá perceber que seguem um padrão bastante previsível: se o país possui grandes reservas de petróleo e o ditador é leal ao Ocidente, então pode agir mais livremente. Assim, na Arábia Saudita e no Kuwait houve uma grande demonstração da força militar, tão intensa, que as manifestações mal puderam começar – não que realmente devessem ter começado. Não há problemas quanto a isso, pois os ditadores possuem a maior parte do petróleo e são leais, então essa reação é previsível. Em relação ao Bahrein, o que preocupa, principalmente, é a Arábia Saudita. Teme-se um levante xiita – que são maioria da população – que se estenda ao leste da Arábia Saudita e ao Bahrein, que também tem maioria xiita e possui a maior parte do petróleo. Portanto, nada pode acontecer lá. Quando houve uma tentativa de protesto na Arábia Saudita, a manifestação foi combatida vigorosamente e, os Estados Unidos disseram “tudo bem, sem problemas”.
Em se tratando da Líbia é um pouco diferente. Há abundância de petróleo e o Ocidente apoiou fortemente o ditador. Apoiou há até poucos dias, na verdade. Porém, como não é confiável, ficariam felizes em se livrar dele. Na verdade, o Ocidente tem apoiado abertamente os rebeldes. A intervenção, por exemplo, não é para deter o conflito, é para dar apoio aos rebeldes. E eles são bastante diretos em relação a isso. Para exemplificar, o Ocidente ordenou um cessar-fogo às forças do governo, porém não às forças rebeldes. Se as forças do governo violarem essa resolução, a notícia chegará às primeiras páginas dos jornais. No entanto, as forças rebeldes podem fazê-lo – e farão – e não haverá problema, pois essa intervenção está do lado dos rebeldes. Pode-se argumentar que isso é uma coisa boa ou ruim, mas devemos ver isso com clareza. É, também, digno de nota, o pouco apoio regional que a Líbia teve.
Em relação à implantação da zona de exclusão aérea, o Egito poderia ter feito, a Turquia poderia ter feito. Eles possuem forças militares de grande poder, porém não farão nenhum esforço. O Egito diz “não é da nossa conta” e a Turquia já deixou claro que não quer se envolver e nem mesmo quer que a Otan se envolva [No entanto, um dia depois da realização desta entrevista a Turquia aceitou comandar as operações da Otan na Líbia]. O Ocidente fez um apelo pela autorização da Liga Árabe, mas foi pouco eficiente. O secretáriogeral da Liga Árabe, Amr Moussa, já se afastou, portanto, basicamente, não há nenhum apoio regional. Claro que o sul da África e a União Africana estão presentes... Na verdade é muito difícil conseguir informações, pois ninguém relata o que acontece no terceiro mundo, porém parece que a União Africana tem intenções de organizar um acordo diplomático. Não sei se eles terão sucesso, mas independente do resultado, o Ocidente não quer prestar atenção nisso.
Fica em aberto a questão se deveriam ou não ter feito isso, contudo devemos analisar com os olhos bem abertos. Não é uma intervenção humanitária. Tudo naquela região tem a ver com petróleo. No caso do Egito, que não possui muito petróleo, mas é o país mais importante da região, os Estados Unidos seguiram o plano usual. Caso após caso, como Somoza, Duvalier, Suharto [ex-ditadores da Nicarágua, Haiti e Indonésia, respectivamente] e muitos outros. Se há um ditador em apuros, o plano é apoiá-lo até o fim, até que fique impossível sustentá-lo e, em seguida, mudar o discurso e passar a dizer “sim, somos contra as ditaduras, adoramos a democracia, sempre lutamos pela liberdade”. No final das contas, o ditador é enviado para longe e tenta- se restabelecer a situação original. Isso já aconteceu muitas e muitas vezes e é exatamente o mesmo caso no Egito.
É difícil prever como as coisas irão se desenrolar no Egito, depende da energia e dedicação dos manifestantes. Com os militares ainda no poder, há nomes diferentes, mas o regime é o mesmo. Houve, porém, uma melhora significante: agora a imprensa é livre, o que representa uma grande mudança. Na verdade, grande parte desses protestos foram protestos trabalhistas, o que vêm de anos. O movimento que organizou o protesto na Praça Tahir é formado por jovens experientes. Eles se autodenominam Movimento 6 de Abril, nome que remete ao dia 6 de abril de 2008, quando grandes ações trabalhistas – e de solidariedade – ocorreram no maior complexo industrial do Egito e foram reprimidas pela ditadura. Bom, não prestamos atenção a esse fato no ocidente, mas eles prestaram atenção lá. Como resultado do Movimento 6 de Abril, é provável que o movimento operário ganhe alguns direitos.
Até há relatos de trabalhadores assumindo o controle de fábricas, mas não posso comprovar isso. Algumas mudanças serão feitas no sistema político, mas até onde chegarão, depende da força da oposição. Os militares não desistirão do poder facilmente. O Ocidente não pode permitir a democracia na região por razões bastante simples que não são relatadas. Tudo que você precisa fazer é dar uma olhada nos estudos sobre a opinião pública árabe. Há estudos muito bons de renomados órgãos de pesquisa ocidentais, divulgados por instituições respeitadas, que não são relatados. No entanto, podemos ter certeza que os planejadores sabem dessas pesquisas. O que elas mostram é que se a opinião pública fosse influente na política, o Ocidente estaria totalmente fora de lá. No Egito, por exemplo, 90% das pessoas acreditam que a maior ameaça são os Estados Unidos. 10% acreditam ser o Irã e 80% acreditam que a região estaria melhor se o Irã tivesse armas nucleares. Por toda a região, a imagem é mais ou menos semelhante. Só isso já basta para entendermos que o Ocidente fará de tudo para impedir o surgimento de uma democracia.
* Com tradução de Mariana Abbate
Para ler a entrevista completa e outras matérias confira edição de abril da revista Caros Amigos, já nas bancas.

divulgação: O vale tudo da indústria farmacêutica na busca do lucro

O lobby dos empresários do setor atua para manter nas prateleiras das farmácias medicamentos que podem até matar.
Por Lúcia Rodrigues
Subornos e ameaças fazem parte do roteiro da trama protagonizada pela indústria farmacêutica mundial e que atua no Brasil. A intrincada rede de interesses envolve atores coadjuvantes para a sustentação dos lucros do setor na estratosfera. Médicos e advogados agem de forma articulada com essa indústria e contribuem para a manutenção dos ganhos em uma escala exponencial.
A Interfarma, entidade que reúne as indústrias do setor que atuam no país, não informa os lucros de suas associadas, mas sabe-se que as farmacêuticas aparecem na quarta colocação em volume de produção atrás apenas de Estados Unidos, França e Itália. No mundo esse negócio movimenta bilhões de dólares. Em 2008, apenas o medicamento de combate ao colesterol, Liptor, da Pfizer, arrecadou sozinho US$ 13,6 bilhões em vendas.
A preocupação com a saúde da população fica em segundo plano, quando o assunto é a preservação dos lucros. Vale tudo para não perder dinheiro. Até mesmo colocar em risco a vida das pessoas com medicamentos comprovadamente lesivos ao organismo. O setor não hesita em manter nas prateleiras das farmácias remédios que podem matar.
A professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, revela que os medicamentos conhecidos como emagrecedores ou inibidores de apetite causam sérios danos à saúde e podem até levar à morte.
Ela explica que as drogas que promovem a diminuição do apetite com base em anfetaminas, além de fazer muito mal ao sistema cardiovascular, causam dependência psíquica. “A anfetamina é uma espécie de cocaína, é um estimulante do sistema nervoso central.” O medicamento atua sobre a fome. Só que esse efeito só dura duas semanas, depois é preciso aumentar a dose. “Vários médicos dobram a dose, mas depois de um tempo, é preciso parar”, alerta.
Para ler a reportagem completa e outras matérias confira edição de abril da revista Caros Amigos, já nas bancas.

sábado, 23 de abril de 2011

divulgação: O QUE É A FILOSOFIA? - introdução

para os colegas que estão empenhados na leitura de deleuze e que não tiveram acesso à cópia impressa do livro "O que é a filosofia?", postarei a sequência de textos, começando pela "Introdução". deixo o sumário nesta primeira postagem, para que possam visualizar o conjunto de textos. boas leituras!
Introdução - Assim Pois a Questão ............... 7
I. FILOSOFIA
O que é um Conceito? ............... 25
O Plano de Imanência ............... 49
Os Personagens Conceituais ............... 81
Geo-filosofia ............... 111
II. FILOSOFIA, CIÊNCIA LÓGICA E ARTE
Functivos e Conceitos ............... 151
Prospectos e Conceitos ............... 175
Percepto, Afecto e Conceito ............... 211
Conclusão - Do Caos ao Cérebro ............... 257
Introdução Assim Pois a Questão...
Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia? tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamriile. I )e lato, a bibliografia e muito magra. Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar. Antigamente nós a formulávamos, não deixávamos de formulá-la, mas de maneira muito indireta ou oblíqua, demasiadamente artificial, abstrata demais; expúnhamos a questão, mas dominando-a pela rama, sem deixar-nos engolir por ela. Não estávamos suficientemente sóbrios. Tínhamos muita vontade de fazer filosofia, não nos perguntávamos o que ela era, salvo por exercício de estilo; não tínhamos atingido este ponto de não-estilo em que se pode dizer enfim: mas o que é isso que fiz toda a minha vida? Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras: Ticiano, Turner, Monet(1). Velho, Turner adquiriu ou conquistou o direito de conduzir a pintura por um caminho deserto e sem retorno que não se distingue mais de uma última questão.
Talvez a Vie de Rance marque ao mesmo tempo a velhice de Chateaubriand e o início da literatura moderna(2). O cinema também nos oferece por vezes seus dons da terceira idade, onde Ivens, por exemplo, mistura seu riso com o da bruxa no vento solto. O mesmo ocorre na filosofia, a Crítica do juízo de Kant é uma obra de velhice, uma obra desatada atrás da qual não cessarão de correr seus descendentes: toil.is .is faculdades do espírito ultrapassam seus limites, estes mesmos limites que Kant tinha fixado tão cuidadosamente em seus livros de maturidade. Nós não podemos aspirar a um tal estatuto. Simplesmente chegou a hora, para nós, de perguntar o que é a filosofia. Nunca havíamos deixado de fazê-lo, e já tínhamos a resposta que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão, seria necessário também que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Seria preciso formulá-la "entre amigos", como uma confidencia ou uma confiança, ou então face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo. É a hora em que se diz: "era isso, mas eu não sei se eu disse bem, nem se fui assaz convincente". E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente, já que de qualquer maneira é nossa questão agora.
Os conceitos, como veremos, têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição. Amigo é um desses personagens, do qual se diz mesmo que ele testemunha a favor de uma origem grega da filosofia: as outras civilizações tinham Sábios, mas os gregos apresentam esses "amigos" que não são simplesmente sábios mais modestos. Seriam os gregos que teriam sancionado a morte do Sábio, e o teriam substituído pelos filósofos, os amigos da sabedoria, aqueles que procuram a sabedoria, mas não a possuem formalmente(3). Mas não haveria somente diferença de grau, como numa escala, entre o filósofo e o sábio: o velho sábio vindo do Oriente pensa talvez por Figura, enquanto o filósofo inventa e pensa o Conceito. A sabedoria mudou muito, lauto mais difícil tornou-se saber o que significa "amigo", mesmo e sobretudo entre os gregos. Amigo designaria uma certa intimidade competente, uma espécie de gosto material e uma potencialidade, como aquela do marceneiro com a madeira: o bom marceneiro é, em potência, madeira, ele é o amigo da madeira? A questão é importante, uma vez que o amigo tal como ele aparece na filosofia não designa mais um personagem extrínseco, um exemplo ou uma circunstância empírica, mas uma presença intrínseca ao pensamento, uma condição de possibilidade do próprio pensamento, uma categoria viva, um vivido transcendental. Com a filosofia, os gregos submetem a uma violência o amigo, que não está mais em relação com um outro, mas com uma Entidade, uma Objetividade, uma Essência. Amigo de Platão, mas mais ainda da sabedoria, do verdadeiro ou do conceito, Filaleto e Teófilo... O filósofo é bom em conceitos, e em falta de conceitos, ele sabe quais são inviáveis, arbitrários ou inconsistentes, não resistem um instante, e quais, ao contrário, são bem feitos e testemunham uma criação, mesmo se inquietante ou perigosa.
Que quer dizer amigo, quando ele se torna personagem conceitual ou condição para o exercício do pensamento? Ou então amante, não seria antes amante? E o amigo não vai reintroduzir, até no pensamento, uma relação vital com o Outro que se tinha acreditado excluir do pensamento puro? Ou então, ainda, não se trata de alguém diferente do amigo ou do amante? Pois se o filósofo é o amigo ou o amante da sabedoria, não é porque ele aspira a ela, nela se empenhando em potência, mais do que a possuindo em ato? O amigo seria, pois, também o pretendente, e aquele de que ele se diria o amigo seria a Coisa que é alvo da pretensão, mas não o terceiro, que se tornaria ao contrário um rival? A amizade comportaria tanto desconfiança competitiva com relação ao rival, quanto tensão amorosa em direção ao objeto do desejo. Quando a amizade se voltasse para a consciência, os dois amigos seriam como o pretendente e o rival (mas o que os distinguiria?). É sob este primeiro traço que a filosofia parece uma coisa grega e coincide com a contribuição das cidades: ter formado sociedades de amigos ou de iguais, mas também ter promovido, entre elas e em cada uma, relações de rivalidade, opondo pretendentes em todos os domínios, no amor, nos jogos, nos tribunais, nas magistraturas, na política, e até no pensamento, que não encontraria sua condição somente no amigo, mas no pretendente e no rival (a dialética que Platão define pela amphisbetesis). A rivalidade dos homens livres, um atletismo generalizado: o agôn(4). É próprio da amizade conciliar a integridade da essência e a rivalidade dos pretendentes. Não é uma tarefa grande demais?
O amigo, o amante, o pretendente, o rival são determinações transcendentais, que não perdem por isso sua existência intensa e animada, num mesmo personagem ou em diversos. E quando hoje Maurice Blanchot, que faz parte dos raros pensadores que pensam o sentido da palavra "amigo" em filosofia, retoma esta questão interior das condições do pensamento como tal, não são novos personagens conceituais que ele introduz no seio do mais puro Pensado, personagens pouco gregos desta vez, vindos de outra parte, como  tivessem passado por uma catástrofe que os arrasta na direção de novas relações vivas promovidas ao estado de caracteres a priori: um desvio, um certo desamparo, uma certa destreza entre amigos que converte a própria amizade ao pensamento do conceito como desconfiança e paciência infinitas(5)"? A lista dos personagens conceituais não está jamais In h.ul.i, c por isso desempenha um papel importante na evolução ou nas mutações da filosofia; sua diversidade deve ser compreendida, sem ser reduzida à unidade já complexa do filósofo grego.
O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo? Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. Não se pode objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes, já que a arte faz existir entidades espirituais, e já que os conceitos filosóficos são também sensibilia. Para falar a verdade, as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito. Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes.
Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: "os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso", mas é necessário substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, desde que ele mesmo não os criou (Platão sabia isso bem, apesar de ter ensinado o contrário...)(6). Platão dizia que é necessário contemplar as Idéias, mas tinha sido necessário, antes, que ele criasse o conceito de Idéia. Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos?
Vemos ao menos o que a filosofia não é: ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação, mesmo se ela pôde acreditar ser ora uma, ora outra coisa, em razão da capacidade que toda disciplina tem de engendrar suas próprias ilusões, e de se esconder atrás de uma névoa que ela emite especialmente. Ela não é contemplação, pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música; dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto, já que sua reflexão pertence a sua criação respectiva. E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o "consenso" e não o conceito.
A idéia de uma conversação democrática ocidental entre amigos não produziu nunca o menor conceito; ela vem talvez dos gregos, mas estes dela desconfiavam de tal maneira, e a faziam sofrer um tratamento tão rude, que o conceito era antes como o pássaro-solilóquio-irônico que sobrevoava o campo de batalha das opiniões rivais aniquiladas (os convidados bêbados do banquete). A filosofia não contempla, não reflete, não comunica, se bem que ela tenha de criar conceitos para estas ações ou paixões. A contemplação, a reflexão, a comunicação não são disciplinas, mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas. Os Universais de contemplação, e em seguida de reflexão, são como duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho de dominar as outras disciplinas (idealismo objetivo e idealismo subjetivo), e a filosofia não se engrandece mais apresentando-se como uma nova Atenas e se desviando sobre Universais da comunicação que forneceriam as regras de um domínio imaginário dos mercados e da mídia (idealismo inter-subjetivo). Toda criação é singular, e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados. Conhecer-se a si mesmo — aprender a pensar — fazer como se nada fosse evidente — espantar-se, "estranhar que o ente seja"..., estas determinações da filosofia e muitas outras formam atitudes interessantes, se bem que fatigantes a longo prazo, mas não constituem uma ocupação bem definida, uma atividade precisa, mesmo de um ponto de vista pedagógico. Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, a definição da filosofia: conhecimento por puros conceitos. Mas não há lugar para opor o conhecimento por conceitos, e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição. Pois, segundo o veredito nietzscheano, você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam. O construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma. Criar conceitos, ao menos, é fazer algo. A questão do uso ou da utilidade da filosofia, ou mesmo de sua nocividade (a quem ela prejudica?), é assim modificada.
Muitos problemas urgem sob os olhos alucinados de um velho que veria confrontarem-se todas as espécies de conceitos filosóficos e de personagens conceituais. E de início os conceitos são e permanecem assinados: substância de Aristóteles, cogito de Descartes, mônada de Leibniz, condição de Kant, potência de Schelling, duração de Bergson... Mas também alguns exigem uma palavra extraordinária, às vezes bárbara ou chocante, que deve designá-los, ao passo que outros se contentam com uma palavra corrente muito comum, que se enche de harmônicos tão longínquos que podem passar despercebidos a um ouvido não filosófico. Alguns solicitam arcaísmos, outros neologismos, atravessados por exercícios etimológicos quase loucos: a etimologia como atletismo propriamente filosófico. Deve haver em cada caso uma estranha necessidade destas palavras e de sua escolha, como elemento do estilo. O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua uma língua da filosofia, não somente um vocabulário, mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza. Ora, apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas, das quais cada momento, cada lugar, se conservam, mas no tempo, e passam, mas fora do tempo. Se os conceitos não param de mudar, podemos perguntar: qual unidade resta para as filosofias? É a mesma coisa para as ciências, para as artes, que não procedem por conceitos? E quanto à história dessas três disciplinas? Se a filosofia é essa criação contínua de conceitos, perguntar-se-á evidentemente o que é um conceito como Idéia filosófica, mas também em que consistem as outras Idéias criadoras que não são conceitos, que pertencem às ciências e às artes, que têm sua própria história e seu próprio devir, e suas próprias relações variáveis entre elas e com a filosofia. A exclusividade da criação de conceitos assegura à filosofia uma função, mas não lhe dá nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e de criar, outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos, como o pensamento científico. E retornaremos sempre à questão de saber para que serve esta atividade de criar conceitos, em sua diferença em relação às atividades científica ou artística: por que é necessário criar conceitos, e sempre novos conceitos, por qual necessidade, para qual uso? Para fazer o quê? A resposta segundo a qual a grandeza da filosofia estaria justamente em não servir para nada é um coquetismo que não tem graça nem mesmo para os jovens. Em todo caso, não tivemos jamais um problema concernente à morte da metafísica ou à superação da filosofia: são disparates inúteis e penosos. Fala-se hoje da falência dos sistemas, quando é apenas o conceito de sistema que mudou. Se há lugar e tempo para a criação dos conceitos, a essa operação de criação sempre se chamará filosofia, ou não se distinguira da filosofia, mesmo se lhe for dado um outro nome. Sabemos, todavia, que o amigo ou o amante como pretendente não existe sem rivais. Se a filosofia tem uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos impérios ou dos Estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de "amigos", a comunidade dos homens livres enquanto rivais (cidadãos). É a situação constante que descreve Platão: se cada cidadão aspira a alguma coisa, ele encontra necessariamente rivais, de modo que é necessário poder julgar acerca do bem-fundado das pretensões. O marceneiro aspira à madeira, mas se choca com o guarda-florestal, com o lenhador, com o carpinteiro, que dizem: sou eu, sou eu o amigo da madeira. Se se trata de cuidar dos homens, há muitos pretendentes que se apresentam como o amigo do homem: o camponês que o alimenta, o tecelão que o veste, o médico que dele cuida, o guerreiro que o protege(7). E se, em todos estes casos, a seleção se faz apesar de tudo em um círculo algo restrito, o mesmo não acontece na política, onde quem quer que seja pode aspirar ao que quer que seja, na democracia ateniense tal como a vê Platão. De onde a necessidade para Platão de uma reordenação, na qual se criem as instâncias que permitam julgar acerca do bem-fundado das pretensões: são as Idéias como conceitos filosóficos. Mas mesmo aí não se vai reencontrar todas as espécies de pretendentes para dizer: o verdadeiro filósofo sou eu, sou eu o amigo da Sabedoria ou do Bem-Fundado? A rivalidade culmina naquela entre o filósofo c o sofista, que disputam os despojos do velho sábio; mas como distinguir o falso amigo do verdadeiro, e o conceito do simulacro? O simulador e o amigo: é todo um teatro platônico que faz proliferar os personagens conceituais, dotando-os das potências do cômico e do trágico.
Mais recentemente, a filosofia cruzou com muitos novos rivais. Eram a princípio as ciências do homem, e notadamente a sociologia, que desejavam substituí-la. Mas como a filosofia tinha cada vez mais desprezado sua vocação de criar conceitos, para se refugiar nos Universais, não se sabia mais muito bem qual era a questão. Tratava-se de renunciar a toda criação do conceito em proveito de uma ciência estrita do homem, ou, ao contrário, de transformar a natureza dos conceitos, transformando-os ora em representações, ora em concepções do mundo criadas pelos povos, suas forças vitais, históricas e espirituais?
Depois foi a voga da epistemologia, da lingüística, ou mesmo da psicanálise — e da análise lógica. De provação em provação, a filosofia enfrentaria seus rivais cada vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos, que Platão ele mesmo não teria imaginado em seus momentos mais cômicos. Enfim, o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os conceituadoresl Somos nós os amigos do conceito, nós os colocamos em computadores. Informação e criatividade, conceito e empresa: uma abundante bibliografia já... O marketing reteve a idéia de uma certa relação entre o conceito e o acontecimento; mas eis que o conceito se tornou o conjunto das apresentações de um produto (histórico, científico, artístico, sexual, pragmático...), e o acontecimento, a exposição que põe em cena apresentações diversas e a "troca de idéias" à qual supostamente dá lugar. Os únicos acontecimentos são as exposições, e os únicos conceitos, produtos que se pode vender. O movimento geral que substituiu a Crítica pela promoção comercial não deixou de afetar a filosofia. O simulacro, a simulação de um pacote de macarrão tornou-se o verdadeiro conceito, e o apresentador-expositor do produto, mercadoria ou obra de arte, tornou-se o filósofo, o personagem conceitual ou o artista. Como a filosofia, essa velha senhora, poderia alinhar-se com os jovens executivos numa corrida aos universais da comunicação para determinar uma forma mercantil do conceito, MERZ? Certamente, é doloroso descobrir que "Conceito" designa uma sociedade de serviços e de engenharia informática. Porém, quanto mais a filosofia tropeça em rivais imprudentes e simplórios, mais ela os encontra em seu próprio seio, pois ela se sente preparada para realizar a tarefa, criar conceitos, que são antes metro ritos que mercadorias. Ela tem ataques de riso que a levam às lágrimas. Assim, pois, a questão da filosofia é o ponto sin guiar onde o conceito e a criação se remetem um ao outro. Os filósofos não se ocuparam o bastante com a natureza do conceito como realidade filosófica. Eles preferiram considerá-lo como um conhecimento ou uma representação dados, que se explicam por faculdades capazes de formá-lo (abstração ou generalização) ou de utilizá-los (juízo). Mas o conceito não é dado, é criado, está por criar; não é forma do, ele próprio se põe em si mesmo, autoposição. As duas coisas se implicam, já que o que é verdadeiramente criado, do ser vivo à obra de arte, desfruta por isso mesmo de uma autoposição de si, ou de um caráter autopoiético pelo qual ele é reconhecido. Tanto mais o conceito é criado, tanto mais ele se põe. O que depende de uma atividade criadora livre é também o que se põe em si mesmo, independentemente e necessariamente: o mais subjetivo será o mais objetivo. Foram os póskantianos que mais deram atenção, neste sentido, ao conceito como realidade filosófica, notadamente Schelling e Hegel. Hegel definiu poderosamente o conceito pelas Figuras de sua criação e os Momentos de sua autoposição: as figuras tornaram-se pertenças do conceito, porque constituem o lado sob o qual o conceito é criado por e na consciência, por meio da sucessão de espíritos, enquanto os momentos erigem o outro lado, pelo qual o conceito se põe a si mesmo e reúne os espíritos no absoluto do Si. Hegel mostrava, assim, que o conceito nada tem a ver com uma idéia geral ou abstrata, nem tampouco com uma Sabedoria in-criada, que não dependeria da própria filosofia. Mas era ao preço de uma extensão indeterminada da filosofia, que não deixava subsistir o movimento independente das ciências e das artes, porque reconstituía universais com seus próprios momentos, e só tratava os personagens de sua própria criação como figurantes fantasmas. Os pós-kantianos giravam em torno de uma enciclopédia universal do conceito, que remeteria sua criação a uma pura subjetividade, em lugar de propor uma tarefa mais modesta, uma pedagogia do conceito, que deveria analisar as condições de criação como fatores de momentos que permanecem singulares(8). Se as três idades do conceito são a enciclopédia, a pedagogia e a formação profissional comercial, só a segunda pode nos impedir de cair, dos picos do primeiro, no desastre absoluto do terceiro, desastre absoluto para o pensamento, quaisquer que sejam,,bem entendido, os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal.
(1) Cf. Uoeuvre ultime, de Cézanne à Dubuffet, Fondation Maeght, prefácio de Jean-Louis Prat.
(2) Barbéris, Chateaubriand, Ed. Larousse: "Rance, livro sobre a velhice como valor impossível, é um livro escrito contra a velhice no poder: é um livro de ruínas universais em que só se afirma o poder da escrita".
(3) Kojève, "Tyrannie et sagesse", p. 235 (in Léo Strauss, De Ia tyrannie, Gallimard).
(4) Por exemplo, Xenofonte, República dos lacedemônios, IV, 5. De-tienne e Vernant analisaram particularmente estes aspectos da cidade.
(5) Sobre a relação da amizade com a possibilidade de pensar, no mundo moderno, cf. Blanchot, Uamitié e entretien infini (o diálogo dos dois cansados), Gallimard. E Mascolo, Autour d'un effort de mémoire, Ed. Nadeau.
(6) Nietzsche, Posthumes 1884-1885, Oeuvres philosophiques, XI, Gallimard, pp. 215-216 (sobre "a arte da desconfiança").
(7) Platão, Político, 268a, 279a. c. < iletivas.
(8) Sob uma forma voluntariamente escolar, Frédéric Cossutta propôs uma pedagogia do conceito muito interessante: Eléments pour Ia lecture des textes philosophiques, Ed. Bordas.
capturado em: cooperação.sem.mando

divulgação: carta aberta ao presidente do banrisul

Carta aberta a Tùlio Zamin presidente do Banco Banrisul
AS PROPOSTAS AMBIENTAIS NO BANCO BANRISUL
Dos signatários desta carta, alguns foram convidados ou consultados pelos eventos organizados pela equipe de meio ambiente do Banco Banrisul, por isso sentimos a legitimidade de dar um olhar crítico sobre as propostas ambientais desta instituição financeira Gaúcha.
O primeiro evento ocorreu no final do ano de 2010, na sede do banco, sendo a inauguração de seu primeiro bicicletário, pelos próprios funcionários do banco. O segundo evento foi no domingo, dia 28/03/11, no Jardim Zoobotânico de Porto Alegre, a Feira do desapego.
Entre o primeiro e o segundo evento ocorreram no Brasil enchentes e centenas de mortes, milhares de pessoas perderam todos seus bens, tanto no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, como em São Lourenço no Rio Grande do Sul. No último caso, o Banco Banrisul foi convidado a possibilitar acesso a empréstimos, a juros baixos, a fim de permitir que as vítimas possam reconstruir suas vidas nesta cidade.
O Doutor Carlos Nobre, brasileiro, especialista do clima e premio Nobel da Paz, na aula inaugural na UFRGS em abril 2010 já havia previsto estas manifestações da natureza e que serão cada vez mais frequentes e mais violentas, devido ao aquecimento global.
Aconteceu ainda o “acidente” criminoso do atropelamento de dezenas de ciclistas na Cidade Baixa em fevereiro 2011.
O primeiro evento, da inauguração do bicicletário, foi apresentado como uma vitória de uma grande e difícil batalha, mobilizando dezenas de funcionários do banco.
Considerando os eventos que ocorreram no Brasil, o que podemos esperar de um banco estadual como o Banrisul, que mostra a cada semestre um lucro importante. Que ele não inaugure somente um bicicletário, mas um bicicletário para cada agência, tanto para os funcionários, como também para os clientes, e, além disto, e principalmente, que patrocine a rede de 490 km de ciclo faixas e ciclovias previstas no plano diretor de Porto Alegre. Além de financiar a juro popular a aquisição de bicicletas, particularmente aquelas fabricadas no Brasil, para a população mais humilde.
A bicicleta é um modo de transporte não poluente, ecônomo, saudável e principalmente sustentável. Enquanto o plano não é executado, a realidade vivida pela população é a degradação do planeta em função do uso de combustíveis fosseis nos veículos particulares.
Também não podemos esperar uma mudança em curto prazo no comportamento prepotente dos motoristas de carros de Porto Alegre para pedalar pelas ruas, com segurança. Melhor esperar que a semana Farroupilha se transforme em uma festa do vegetarismo.
Quanto ao segundo evento, a Feira do desapego e da troca. Entendemos que o tempo em que vivemos não é do desapego, mas do apego, com 17 milhões de Brasileiros e Gaúchos que passam fome e não têm o básico para viver.
Achamos que o banco não deveria substituir ou ser um competidor desleal aos organismos de economia solidária que já trabalham há vários anos com a venda e troca de bens de segunda mão, mas pelo contrario, o banco deveria ser um parceiro patrocinador destes organismos.
Achamos que um banco estadual como o Banrisul deveria se concentrar sobre os projetos estruturantes, como financiar projetos de energias alternativas como eólica, solar, biometanisação dos lixos orgânicos dos centros urbanos do RS e dispor esses milhares de toneladas de adubo produzido na zona seca do RS a fim de recuperar o solo e assim impedir a desertificação criando zonas verdes. Contribuindo para que se evite sofrer outra consequência do aquecimento global. Deveria também financiar as empresas que queiram trocar seus pallets de madeira, sobre os quais são colocadas suas mercadorias, por pallets de plástico reciclado, que além de estimular a indústria da reciclagem, pode salvar centenas de milhares de árvores, considerando o desmatamento um fator importante do aquecimento global.
Nosso tempo não é mais de ouvir o discurso de que cada um faz seu pequeno gesto, mas de ter projetos estruturantes para que não sejamos condenados a contabilizar as próximas vitimas dos desastres naturais.
Este olhar crítico das práticas ambientais do Banco Banrisul não visa a perna, mas a bola, afim de ver ações necessárias, conforme a capacidade e o tamanho desta instituição financeira.
Marcelo Barbosa, advogado e membro integrante da Massa Crítica.
Luis Eduardo Nunes, membro da rede estadual de trocas solidárias do coletivo da economia solidaria sobre a troca de bens de segundas mãos.
Denis Beauchamp, responsável do projeto de estudo BRIC POP Reaproveitamento de bens de segundas mãos e inclusão social. Maio 2002 Por a prefeitura de Porto Alegre
INFO : Marcelo Barbosa 8415 0700
recebido em: catar2014@gmail.com

divulgação: entrevista com Cecília Coimbra

As marcas indeléveis da tortura
Coisificação do ser humano, que vira apenas um outro perigoso, dá uma pálida noção do que significa a tortura, afirma Cecília Coimbra, ex-presa política. Produção de subjetividades criminosas e criminalização da pobreza esteiam essa prática inadmissível
Por: Márcia Junges
“Nós, que passamos pela tortura, podemos afirmar que ela é algo indizível. Ela desumaniza, vê o outro como objeto, como seu inimigo”. Contundentes, verdadeiras, essas palavras foram ditas por Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (www.torturanuncamais-rj.org.br), do Rio de Janeiro, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Presa política de agosto a novembro de 1970, ficou dois dias no DOPS e o restante do tempo no DOI-CODI. Foi torturada, e garante que as marcas são inapagáveis, pois permanecem na alma de quem passou por esse horror. Contudo, é preciso saber o que fazer com essas marcas: “Elas devem ser instrumentos de luta. Elas mostram como é você ser olhada pelo outro como se fosse um simples objeto perigoso”.
A exportação de know-how de tortura made in Brazil para outros para outros países latino-americanos e a violência de Estado que continua a aterrorizar a população também foram abordados na conversa com a IHU On-Line. Ela enfatiza que a sociedade brasileira deveria indignar-se quando acontece tortura e violência não apenas junto à classe média ou alta, mas também junto às classes mais pobres: “Em nome da história, temos que pensar o presente criticamente”. As conquistas do Grupo Tortura Nunca Mais são outro tema que suscita reflexões.
Militante do Partido Comunista, Cecília Coimbra era estudante do curso de História. A seguir, já professora, aproximou-se do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR8 e iniciou a graduação em Psicologia. É professora aposentada, porém mantendo vínculo com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense - UFF. Interessada no nexo que une a psicologia à ditadura, afirma que não se trata de acaso o fato desta ciência e da psicanálise terem se desenvolvido tanto em nosso país no período autoritário. Ex-integrante do Conselho Regional de Psicologia, foi presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. À frente do Tortura Nunca Mais, trava batalha incessante em nome da verdade e da memória de um período sombrio de nossa história.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a importância de se resgatar a memória histórica do período da ditadura brasileira?
Cecília Coimbra - No Brasil há uma tendência em se desqualificar a memória, de não ligar para fatos históricos e documentos, de um modo geral, que não são levados a sério ou em consideração pelos diferentes governos. Isso se dá, sobretudo, em relação ao período da ditadura civil militar que se abateu em nosso país, em especial a partir de 1968, com o AI-5, quando se instala o terrorismo de Estado e a tortura passa a ser instrumento oficial. As memórias desse período são fundamentais de serem trazidas e resgatadas para a sociedade, de serem afirmadas pelas diferentes pessoas que foram atores e testemunhas desse período. Essa é a luta do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, que existe há 26 anos, surgido logo após o período da ditadura civil militar, porque as questões referentes a esse período estavam sendo jogadas para baixo do tapete. Assim, o Grupo surge num momento em que havia um clamor na sociedade brasileira para que pudéssemos conhecer nossa história, algo que foi e continua sendo negado.
Aqui existe toda uma lógica de produção de esquecimento e silenciamento, bem diferente do que aconteceu e que vem ocorrendo nos países latino-americanos que passaram por situações políticas semelhantes. A questão da memória é fundamental principalmente para as novas gerações. Sou professora universitária e sei como as novas gerações ignoram esses fatos. É como se houvesse uma lacuna nesse período histórico da ditadura.
Há alguns dias recebi um e-mail de uma ex-aluna, psicóloga, que está trabalhando no Centro de Direitos Humanos de Petrópolis, onde estão fazendo um levantamento e uma campanha muito bonita para que a chamada Casa da Morte (aparelho clandestino da repressão que funcionou em Petrópolis numa casa alugada pelo Centro de Informações do Exército) seja transformada em museu da memória. Isso emocionou-me muito, pois as novas gerações já estão se apropriando da história. Por isso, repito que a questão da memória é fundamental, para que conheçamos mais sobre nosso passado.
IHU On-Line - Por que inúmeros outros países da América Latina já resolveram suas contas com o passado autoritário e nós ainda engatinhamos nesse processo? Por que há tanta dificuldade do Brasil lidar com seu passado ditatorial?
Cecília Coimbra - Realmente, o Brasil ainda está engatinhando nessa questão. Somos o último país na América Latina a efetivar um processo de reparação. Nos anos 1970 fomos campeões na exportação do know-how de tortura para as ditaduras latino-americanas. Exportamos manuais de tortura e torturadores. Temos informações de que no Chile, Argentina e Uruguai havia torturadores brasileiros participando de interrogatórios. O Brasil, que foi o campeão de exportação de tortura nos anos 1970, hoje é uma das nações mais atrasadas do continente. Isso porque o processo de reparação, como a própria ONU diz, é um processo no qual primeiramente se investigam e esclarecem as circunstâncias das mortes, desaparecimentos e das prisões arbitrárias cometidas naquele período. O Brasil é o último, nesse sentido. Isso porque começamos pelo final do processo de reparação. É como se fosse um “cala a boca”.
Vontade política
Desde 1995, com Fernando Henrique Cardoso, foi instalada uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e, muito timidamente, vai-se tentando esclarecer algumas questões relativas a esse assunto. Por que isso? Por muitos fatores. Temos uma história muito diferente dos demais países da América Latina, de colonização espanhola. Vemos a participação da população da Argentina de forma ativa na questão dos mortos e desaparecidos políticos. O Brasil caminha timidamente nessa direção. A sociedade brasileira não sabe, em absoluto, dos arbítrios e das perversidades que foram cometidos durante aquele período. Isso é desconhecido pela maioria da população. É uma série de forças que entram em jogo nessa questão.
Na Argentina, com o governo de Alfonsín , houve uma ruptura com o conservadorismo anterior. No Brasil não houve essa ruptura. O que houve, aqui, foi uma política de continuidade, tanto que a anistia vem em pleno período de ditadura. A anistia foi imposta. Nós perdemos no Congresso Nacional por cinco votos. Em 1978-79, exigíamos, junto dos movimentos sociais, uma anistia ampla, geral e irrestrita. Ela não veio assim. A anisitia que foi vencedora no Congresso nacional foi a anistia que vinha do governo militar, extremamente reduzida, fruto de alianças que continuam hoje. Os governos civis de 1985 para cá fizeram parcerias e alianças com as forças conservadoras e até reacionárias que respaldaram o período de terrorismo de estado. Por isso, até hoje não há vontade política efetiva dos governos para que essa história possa ser contada efetivamente. Boa parte de nossos arquivos foi queimada, mas ainda resta outra parte. Isso é dito pela imprensa. Alguns militares, como Sebastião Curió, um dos repressores da guerrilha do Araguaia, e o falecido general Bandeira, têm arquivos ditos pessoais. Quero dizer claramente que esses arquivos não são pessoais coisíssima alguma. Esses arquivos são roubados da nação. Isso é crime e o governo federal sabe disso em suas diferentes gestões.
IHU On-Line - Qual é a expectativa sobre esse tema a partir do governo Dilma?
Cecília Coimbra - Como ex-presa política que fui, e com todo respeito pela história da Dilma e de outros companheiros, digo que a tortura, a prisão e o testemunho de sofrimento de vários companheiros e da morte de outros são marcas que estão nos nossos corpos, invisibilizadas, muitas vezes. Aqueles que conseguiram sobreviver, como nós, sabem que essas marcas não se apagam nunca. Espero que essas marcas que estão no corpo e na mente da presidenta possam ter um eco mais forte do que as alianças políticas que estão sendo feitas.
As diferenças entre as ditaduras latino-americanas são várias. No Brasil sempre houve uma propaganda intensa com relação aos direitos humanos. Nos anos 1940 e 1950 tratava-se de um anticomunismo ferrenho. Hoje, vemos os meios de comunicação de massa fazerem uma espécie de continuidade a essa posição. Precisamos pensar em não naturalizar o que está acontecendo hoje com relação à violência urbana e rural. Rotula-se para que se criminalizem e desqualifiquem os diferentes movimentos sociais. Antes éramos chamados de terroristas, de inimigos da pátria, aqueles que colocavam em risco a segurança nacional. Hoje, o alvo é a pobreza, que cada vez mais, sobretudo em função desse período autoritário, é apontada como perigosa. O Brasil promove uma forte desqualificação e criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Isso ocorre também no restante da América Latina. É a chamada formação das “classes perigosas”, daqueles que põem em risco nossa segurança, algo que tem muito a ver com a doutrina de segurança nacional, instaurada em toda a América Latina naquele período.
Atualmente, vemos os mesmos dispositivos que foram aplicados pela ditadura sendo aplicados à pobreza. Temos que chamar a atenção para isso. Os pobres são criminalizados como se todos fossem traficantes e bandidos. Como se toda favela fosse reduto de assassinos. Essas políticas são planetárias, fascistas e mais do que conservadoras, discriminatórias. O pior é que a população aplaude. Produz-se algo muito parecido com o que se produziu naquele período em termos de propaganda oficial. Em nome da minha segurança, devo vigiar o outro e, se possível, prendê-lo e eliminá-lo, pois ele é um perigo para a minha segurança. Isso é doutrina de segurança nacional.
IHU On-Line - Quais são as semelhanças entre as ditaduras do Brasil e do restante da América? Nessa lógica, como a Operação Condor serviu de padronização aos atos desses totalitarismos?
Cecília Coimbra -
Operação Condor
A Operação Condor não se forma de uma hora para a outra. Em 1969, tinha um amigo preso no Uruguai, trazido cladestinamente ao Brasil e trocado por tupamaros que estavam presos, também clandestinos, em Porto Alegre. Essa ligação dos serviços de informação começa a ser feita bem antes de alguns golpes militares serem dados, como é o caso do Chile. Havia essa cooperação, efetivamente. Mais tarde, registra-se o sequestro de Universindo Dias e Lilian Celiberti . Vai se formando, aos poucos, uma colaboração entre os serviços de informação, sobretudo no Cone Sul, para a troca não apenas de prisioneiros, mas de informações. Isso veio dar na chamada Operação Condor. Após o golpe do Chile, esse tipo de “irmandade” se intensifica, torna-se mais técnica, científica. O Brasil participou disso. Diz-se que pouco participamos da Operação Condor. Em absoluto! Temos vários brasileiros desaparecidos “graças” à Operação Condor.
IHU On-Line - Sob quais aspectos a tortura é uma desumanização do humano por parte do algoz e da vítima?
Cecília Coimbra - Nós, que passamos pela tortura, podemos afirmar que ela é algo indizível. A luta contra a tortura está acima de qualquer pendência política, de qualquer partido político. A tortura desumaniza, vê o outro como objeto, como seu inimigo. A questão da doutrina de segurança nacional, que é a produção do inimigo interno, cria uma paranoia na sociedade, em que uma insegurança e um terror são implantados. Aquele que está ao seu lado pode ser seu inimigo. Isso hoje é produzidíssimo e muito aceito pela sociedade em geral. As novelas apontam isso reiteradamente através da figura do psicopata. Estamos vivendo num mundo em que não se pode confiar em ninguém, onde a paranoia grassa. Isso tem muito a ver com os dispositivos produzidos pela ditadura civil militar no Brasil, embora esse seja um fenômeno planetário hoje. Estou falando na produção da insegurança, do medo, do terror.
Lembro de uma frase da Marilena Chauí que me impactou sobremaneira. Ela disse que a tortura é como se fosse um teatro: você pensa que isso não está acontecendo com você, é um pesadelo. A violência é tamanha que não há como explicar. Por mais que se leia o que ela é, como eu havia feito antes da minha prisão, não se tem noção do que ela significa antes de vivenciar essa experiência. Só quando nos sentimos objeto na mão do outro é que podemos nos acercar da dimensão terrível da tortura. E digo que isso a pobreza vem sentindo na carne constantemente. E fingimos que não vemos.
Torturar é um treinamento. E isso ainda vem acontecendo nas Forças Armadas, nas Polícias Militares, nos Bopes “da vida”, no Rio de Janeiro. Lembro desse comportamento dos torturadores do DOI-CODI onde estive presa, na Polícia do Exército. Há todo um treinamento no qual você é levado para ver o outro não como um ser humano, mas como uma coisa perigosa que deve ser exterminada. Em psicologia, falamos em produção de subjetividade. Produzem-se sujeitos perigosos, descartáveis e não humanos. Toda pessoa que já tenha sido presa e torturada em sua vida sabe disso. Essas marcas não se apagam nunca. Devemos saber o que fazer com essas marcas. Não podemos encarnar o papel de vítimas, mas usar essas marcas como instrumentos de luta. Elas mostram como é você ser olhada pelo outro como se fosse um simples objeto, perigoso. Então, é uma desumanidade de quem aplica e de quem sofre.
IHU On-Line - A tortura é um produto da barbárie ou da hiper-racionalização do humano?
Cecília Coimbra - Não acredito na noção do instinto. Sou crítica a uma determinada leitura hegemônica da psicanálise. Trabalho com autores da filosofia da diferença, como Deleuze , Guattari e Foucault , que falam da produção de sujeitos, de como eles são criados, seus modos de pensar, sentir e agir no mundo de forma extremamente conservadora. É o que vemos cada vez mais na grande mídia hegemônica.
A pessoa que participa da tortura é treinada a tal ponto que, efetivamente, acredite que está agindo para o bem estar do país. Os treinamentos são para isso. As pessoas são coisas, as mulheres são todas prostitutas, vagabundas. É o mesmo conceito que se aplica às mulheres de homens que estão aprisionados. O pobre é considerado bandido e perigoso, e sua família é considerada desestruturada. Nós, presos políticos, éramos vistos assim. A primeira coisa que faziam com as mulheres quando presas era despi-las, a fim de produzir cada vez mais a sua fragilização. Durante algum tempo, enquanto estive presa, acreditei que meu filho havia sido entregue ao juizado de menores. Era o que me diziam. A tortura vai sendo produzida no sentido não só de deixá-lo nas mãos dos outros, mas de acreditar em fatos inventados. Frei Titto , frade dominicano, que se suicidou por não suportar a tortura, enlouqueceu. É muito difícil dizer por que alguém se desestruturou e outro superou a tortura. Até hoje há pessoas na esquerda que recriminam quem falou na tortura, quem revelou coisas durante as sessões. Esses companheiros foram rotulados como traidores, que colaboraram com a repressão. Dizer isso é de uma perversidade absurda. Isso é absolver os torturadores.
IHU On-Line - Que resquícios de violência ditatorial (incluindo a tortura) permanecem em instituições reconhecidas como a polícia e em instituições ilegais, como os grupos de extermínio?
Cecília Coimbra - Quando fazemos análise do que é o Brasil hoje, com suas “políticas de insegurança pública”, não podemos ignorar o período de ditadura civil militar. Enquanto essa história não for conhecida e essas memórias não forem narradas para toda sociedade em termos de sua publicização, continuaremos a naturalizar a violência que atualmente existe. É comum dizer que violência vem do tráfico, mas a origem é bem anterior e estrutural. Ela está presente na sociedade capitalista através dos agentes do Estado. É o Estado aquele que mais viola direitos humanos. São seus agentes os que mais violam as constituições. Essa herança nefasta do período da ditadura militar e do Estado Novo foi pouco falada e avaliada. Falar sobre esses períodos é poder pensar criticamente a respeito do que aconteceu. Esses passados estão muito presentes. Quais políticas são essas que são implementadas e as quais aplaudimos? O filósofo italiano Giorgio Agamben fala que vivemos um estado de exceção. Os campos de concentração estão aí. As polícias ditas comunitárias não têm nada de comunitárias.
Pensar o período da ditadura militar, quando muitos filhos da classe média, como foi meu caso e o da Dilma, foram atingidos, é importante. Mas não podemos ficar indignados apenas quando a tortura e o extermínio atingem determinados segmentos sociais. Quando atinge segmentos médios e altos, a sociedade fica indignada, grita, sai às ruas. Mas quando a violência atinge segmentos pauperizados e marginalizados, achamos isso natural. Em nome da história, temos que pensar o presente criticamente.
IHU On-Line - Poderia citar algumas das conquistas do Grupo em relação aos torturadores da ditadura?
Cecília Coimbra - O Grupo Tortura Nunca Mais surgiu pontualmente a partir da questão de torturadores ocupando cargos de confiança num governo popular e dito democrático, que era o governodor Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Quando se descobriu que havia torturadores ocupando postos de confiança naquele governo, espontaneamente alguns ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos começaram a se reunir. É quando surge o Tortura Nunca Mais. Conseguimos ser ouvidos pelo governo, coletamos depoimentos através de uma Comissão de Defesa de Direitos Humanos, Segurança Pública e Cidadania. Iniciamos o afastamento desses colaboradores com a tortura dos cargos públicos que ocupavam. Essa foi nossa primeira grande vitória, inclusive antes da criação oficial do Grupo, que se deu em novembro de 1985. O nome do Grupo foi inspirado na Comissão Sábado da Argentina, do governo Alfonsín, e que investigava os crimes cometidos na ditadura daquele país.
Fizemos inúmeras campanhas no sentido de impedir que homenagens fossem feitas a ex-torturadores. Conseguimos que ruas, creches e escolas aqui no Rio de Janeiro recebessem nomes dos opositores mortos e desaparecidos durante a ditadura. Isso é algo inédito a nível mundial e criou jurisprudência.
Máquina mortífera
Abrimos processo no Rio e São Paulo contra médicos legistas. Solicitamos aos Conselhos de Medicina desses estados que investigassem médicos que, segundo nossa denúnica, teriam dado laudos falsos sobre os opositores mortos sob tortura. À época militar era comum dar três versões oficiais para as mortes: tiroteio, atropelamento e suicídio. Conseguimos fotos de perícia que mostravam marcas de tortura e o teatrinho do “morto em tiroteio” ou atropelamento. Alguns desses médicos foram cassados.
A tortura é uma grande máquina que, azeitada por diferentes práticas profissionais, vai se consolidando. Não são só a Polícia, o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica os responsáveis por tais práticas. Até o Corpo de Bombeiros teve envolvimento na repressão. Psicólogos, psiquiatras, advogados faziam parte da máquina mortífera. Esse era o fim de linha, aqueles que legalizavam a tortura. Alguns médicos que solicitamos investigar foram cassados pelo próprio Conselho Federal de Medicina.
Escola de tortura
Não se trata apenas de uma questão de punição, mas da escola que essas pessoas fazem na sociedade. Esses profissionais formaram outros que hoje estão em atuação. Atualmente, quando um detento é torturado, alguns profissionais chegam a dizer que não se trata de tortura, mas de sarna. Isso é legitimar a tortura. Não é preciso colocar as mãos diretamente para estar envolvido na tortura. A responsabilidade vem desde a presidência da República, passando pelos diferentes agentes do Estado e esses profissionais, que com suas práticas estão respaldando essa máquina mortífera.