domingo, 30 de março de 2014

“Devemos nos questionar sobre o que há por trás do que comemos”

Esther Vivas (foto), jornalista e pesquisadora de movimentos sociais, políticas agrícolas e de alimentação, denuncia que “a busca do lucro a todo custo, por algumas poucas multinacionais, é a explicação para que o sistema produza mais alimentos do que nunca e, apesar disso, gere fome”. Ela afirma que “a crise econômica e ecológica estão intimamente relacionadas” e considera que o capitalismo “se veste de verde” para nos fazer acreditar que a tecnologia resolverá o aquecimento global. Em sua opinião, mudar de modelo não é uma utopia, mas depende de um esforço coletivo: “Sozinho não é possível, com amigos, sim”.
 
Fonte: http://goo.gl/aRjYOJ 
A entrevista é de Cristina Fernández, publicada por Ecoavant, 20-03-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Quem decide o que comemos?
Algumas poucas multinacionais, que controlam cada área da cadeia agroalimentar: desde as sementes, passando pela transformação dos alimentos, até sua distribuição e comercialização. A partir da chamada revolução verde, ao longo dos anos 1950 e 1960, vimos como ocorreram algumas políticas chamadas de ‘modernização da agricultura’, que serviram para deixá-las nas mãos destas empresas e fazer com que o campesinato dependesse delas, com o argumento de que assim seriam produzidos mais alimentos. Deste modo, retiraram do agricultor a capacidade para poder decidir o que cultivava e controlar sua produção, concedendo isso às empresas.
As sementes se tornaram um negócio nas mãos de companhias como a MonsantoDuPontSyngenta ou Pioneer. No caso dos supermercados, isso é ainda mais evidente. No Estado espanhol, sete empresas controlam 75% da distribuição. Eles determinam o que compramos, o que comemos e que preço pagamos pelo que consumimos. Possuem esta influência tão grande sobre nós, consumidores, mas também sobre os camponeses, que para se conectarem conosco precisam cada vez mais passar pelos canais da grande distribuição, com todos os condicionantes que lhes são impostos.
Quais são as sete empresas que controlam 75% da distribuição?
CarrefourMercadonaEroskiAlcampoEl Corte Inglés e as duas principais centrais de compra, que reúnem outras cadeias: Euromadi e IFA.
Diante disso, emerge o conceito de soberania alimentar. O que isso exige?
Implica em uma concepção totalmente antagônica ao dominante. Reivindica o direito dos povos, das pessoas e das comunidades decidirem sobre aquilo que se produz e sobre o que comemos. A demanda surge precisamente para enfrentar o controle de algumas poucas multinacionais que antepõem seus interesses particulares às necessidades da população. A busca do lucro a todo custo por essas é o que explica que hoje o sistema produza mais alimentos do que nunca na história e, apesar disso, gere fome; que acabemos nos alimentando com produtos que venha de outra ponta do mundo; que se perca a biodiversidade agrícola e que desapareça o campesinato...
Qual é a alimentação do futuro, impulsionada pelas grandes multinacionais que controlam o setor?
Buscam uma alimentação mais uniforme. Ou seja, que comamos a mesma coisa em todo o mundo. A própria FAOreconhece que cada vez são produzidas menos variedades de frutas e verduras. Concretamente, durante os últimos 100 anos, 75% destes alimentos desapareceram. Percebemos claramente isso no momento de comprar no supermercado, onde existe uma grande diversidade de alimentos para escolher, mas com as mesmas marcas, tanto em um estabelecimento como em outro. Esta uniformidade também tem um impacto sobre nossa saúde, porque se nossa alimentação depende de algumas poucas variedades agrícolas e pecuárias, o que acontecerá se as mesmas forem afetadas por uma praga ou uma doença? Na Espanha, por exemplo, 98% das vacas leiteiras são de uma mesma raça, a frisona, que é a que se demonstrou mais produtiva. É a lógica do modelo: promover as variedades que se adaptam melhor, os alimentos que podem resistir uma viagem de milhares de quilômetros e chegar a nossa casa em perfeito estado...
E os transgênicos...
Há uma aposta clara da indústria pelos mesmos, e por um modelo agrícola adicto aos fitossanitários e aos pesticidas químicos, que possuem um impacto muito negativo sobre o meio ambiente, além de apresentarem claras interrogações sobre seu efeito em nossa saúde. Há relatórios como o do doutor Gilles-Éric Séralini que demonstraram em ratos de laboratório o impacto dos transgênicos na geração de tumores cancerígenos. Portanto, acredito que há elementos suficientes sobre a mesa para que prime o princípio de precaução, que de fato é o que se aplica na maior parte dos países da União Europeia, onde os transgênicos estão proibidos. Não, aqui, no Estado espanhol, pois é o único país da União Europeia que cultiva o milho transgênico em grande escala, o MON810 daMonsanto, principalmente na Catalunha e Aragão. O problema é que consumimos transgênicos de maneira indireta, por meio da carne e derivados, porque penso que tudo o que alimenta os animais é transgênico.
Que alternativas há ao modelo dominante?
Vivemos em uma sociedade onde tendemos a menosprezar o que consumimos, que não valoriza a alimentação e que promove o bom, bonito, barato e rápido. Portanto, em primeiro lugar, teríamos que nos questionar sobre o que há por trás do que comemos, revalorizar a alimentação e aqueles que produzem os alimentos, aos camponeses que, em geral, foram estigmatizados como ignorantes para justificar que se deixem as decisões nas mãos de algumas empresas que acabam fazendo negócio com nosso direito de nos alimentar.
Após tomar consciência, devemos nos perguntar, ser críticos e tentar ver para além do discurso hegemônico que nos diz que esta agricultura é a melhor, que os transgênicos são a solução para a fome no mundo. E se consideramos que carecemos nos alimentar de outra maneira, é preciso passar à ação, e isto implica em apostar em um consumo de alimentos de proximidade, de temporada, ecológicos, fazer parte de iniciativas coletivas que promovam estas práticas, como grupos e cooperativas de consumo, e em comprar diretamente dos agricultores.
O consumidor está preparado para a mudança? E já se iniciou?
Os horários de trabalho, muitas vezes, são incompatíveis com a vida pessoal e familiar e tornam difícil a dedicação de tempo para cozinhar, alimentar-se bem. No entanto, em definitivo, também é uma questão de prioridades. Muitas vezes, critica-se a agricultura ecológica por ser cara, quando na realidade tudo depende do lugar em que você compra os alimentos, porque no grupo ou cooperativa de consumo não são tão caros. E, por outro lado, não levamos em conta este argumento quando precisamos renovar o vestuário ou comprar um novo gadget tecnológico. Acredito que, pouco a pouco, as coisas estão começando a mudar, embora seja necessário passar deste interesse individual por uma refeição sadia para outro mais coletivo e político.
Que papel a crise ecológica e climática desempenha nos movimentos sociais atuais?
O movimento social mais importante dos últimos anos, e que significou um ponto de inflexão no contexto político e social atual da crise, foi o do 15-M, que emergiu no dia 15 de maio de 2011 com a ocupação de várias praças por toda a Espanha e que nos devolveu a confiança em nós, em que a ação coletiva pode mudar as coisas. E que integrou alguns elementos de crítica ao insustentável modelo de produção atual.
Entretanto, é certo que, hoje, a agenda ecológica e ambiental praticamente não tem presença em boa parte dos movimentos sociais mais importantes de nosso entorno. Isto se deve à ofensiva de cortes em nossos direitos mais elementares. A crise econômica e social é tão profunda que se acaba priorizando a cobertura de uma série de necessidades básicas como não perder o trabalho, não perder a moradia, para que não cortem a saúde e a educação. Os temas mais gerais, como os ambientais, não são percebidos como imediatos e parece que ficam muito, mas muito distantes, quando, na realidade, a crise climática é o elemento diferencial desta crise múltipla do sistema capitalista em relação a outras anteriores. Porque, justamente, é a que coloca em manifesto que: ou mudamos o modelo de produção, distribuição e consumo, ou as perspectivas de futuro são muito negativas. A mudança climática coloca claramente em xeque a continuidade da vida, tal e como a conhecemos hoje, no planeta.
economia verde ajuda a abrandar a mobilização?
Diante da crise ecológica e climática há uma ofensiva por parte do capital e das grandes multinacionais para abordar o problema do ponto de vista tecnológico. São oferecidas soluções técnicas para um problema que, definitivamente, é político. O capital acaba mercantilizando as emissões de gases de efeito estufa por meio dos mercados de carbono, diz-nos que é preciso produzir petróleo verde e, portanto, apostar nos agro ou biocombustíveis... O capitalismo se veste de verde e deseja nos fazer acreditar que a tecnologia nos permitirá evitar este precipício em que nos vinculamos, quando na realidade é totalmente ao contrário.
O que podemos fazer para não cair nele?
Em primeiro lugar, seria importante que os movimentos sociais incorporassem à sua agenda os temas que tem a ver com a crise ecológica e alimentar. E, além disso, são necessárias mudanças políticas. Em geral, o discurso das instituições faz com que a responsabilidade recaia sobre o consumo, a reciclagem, no indivíduo. Assim é que percebemos nos meios de comunicação, campanha após campanha, quando o problema é o de modelo. Não tem sentido que para sair da crise o que se faz é subsidiar a indústria do automóvel, sendo que isso gerará mais impacto ambiental. Seria preciso apostar no transporte público. Contudo, percebemos a forma como em um contexto de crise econômica se aposta na indústria automobilística, enquanto se encarece de uma maneira cada vez mais aberrante o preço do transporte coletivo. Tudo isto nos mostra como a crise econômica e ecológica estão intimamente relacionadas e que aqueles que estão nas instituições basicamente buscam fazer negócio beneficiando o setor privado.
Muitos taxam seus ideais de utópicos...
Muitas vezes, todos aqueles que querem mudar as coisas são chamados de utópicos, mas, talvez, seja mais utópico pensar que aqueles que nos conduziram a esta crise nos tirarão da mesma, que o banco que nos levou a esta situação de bancarrota coletiva renunciará a seus privilégios para nos tirar dela. Os que fazem negócio com esse empobrecimento generalizado não renunciarão a uma série de políticas econômicas e sociais que lhes estão proporcionando grandes benefícios.
É otimista em relação ao futuro?
Sim, e acredito que é necessário ser. E ser otimista não quer dizer ser ingênuo. É preciso analisar a crise: quem sai ganhando, quem sai perdendo e, a partir disso, ver o que podemos fazer. É necessário que nos organizemos, pensar em alternativas a partir da base e também propor alternativas políticas para desafiar aqueles que há muitos anos utilizam a política como uma profissão em função de seus interesses. É necessário ser otimista porque a resignação, a apatia e o medo são justamente o que busca o sistema... É imprescindível a confiança em nós, não resignarmos, perder o medo e, sobretudo, atuar coletivamente. Cada um de nós, por conta própria, não pode mudar nada, mas, como se dizia no programa de televisão La Bola de Cristal, “se sozinho não é possível, com amigos, sim”. É justamente um dos argumentos que deveríamos ter presente nesta crise.

Entre Ecumenópolis e as Cidades para Todos

Cresce o risco de cidades-padrão, sem singularidades ou vida. Mas espalham-se, em contrapartida, mobilizações e estudos teóricos para resgatar ruas e outros espaços urbanos 
Por Mônica C. Ribeiro*, no Le Monde Diplomatique
Em 1967, o arquiteto grego Constantinos Apostolos Doxiadis criou o termo Ecumenópolis, referindo-se à ideia de que, no futuro, as áreas urbanas e as metrópoles seriam fundidas numa única e gigantesca cidade global, em razão da urbanização e do crescimento populacional, num processo de crescimento sem limites. A imagem foi bastante apropriada pela literatura e por filmes de ficção científica.
Em nossa dimensão, as grandes cidades parecem saltadas de uma mesma ficção. Os prédios e ruas que rasgam suas fisionomias cabem dentro de um mesmo molde – de onde se fabricam os skylines homogêneos que se espalham pelo globo. Os problemas gerados por essa homogeneidade, também. Com a migração para os centros urbanos, acentuada a partir da segunda metade do século XX, a escala tornou-se a rapidez para os carros, espaços “introvertidos”, capazes de garantir privacidade e segurança, e a supressão dos chamados espaços públicos.
A cidade moderna foi concebida como uma espécie de máquina, onde fluxos são pensados de maneira a garantir eficiência e rapidez, e casas são “máquinas de morar”, na concepção do arquiteto Le Corbusier. Em 1922, este apresentou a Ville Contemporaine,1primeiro estudo urbanístico estruturado e que trazia já em seu centro as questões da mobilidade. Essa cidade passa a ser o lugar menos aprazível para o flâneur de Baudelaire, tendo seus espaços públicos transformados em “não lugares”, em locais de passagem em função da mobilidade rápida.
Planos de urbanização foram concebidos para organizar as cidades em zonas específicas para cada uso. Em meio a esse desenho, figura o homem. Onde se encaixam suas particularidades, especificidades e singularidades nesse design urbano?
Segundo dados da ONU, mais de 50% da população mundial já vive nas cidades. Estima-se que até 2050 cerca de dois terços da população mundial habitarão áreas urbanas. Essas pessoas se veem obrigadas a moldar seu modo de vida e seus ritmos para se integrar ao contingente que vive na urbe.
Transformar a fisionomia de um lugar numa cidade global tem custos, em especial para as populações que são expulsas de suas moradias em nome do progresso e da especulação imobiliária; expulsas dos modos tradicionais de existir e das formas de interação nesses espaços.
Um dos lugares do planeta onde a urbanização hoje tem se desenvolvido mais rapidamente é a China. No filme The human scale,2 de Andreas M. Dalsgaard, vemos como a mudança faz que se percam muitas das características tradicionais na opção pelo molde-que-já-deu-defeito no Ocidente: construção de centros financeiros, moradias empilhadas nas franjas das cidades, quase nenhum espaço para a interação. As casas tradicionais da China são dispostas em espécies de vilas, chamadas hutongs, e se organizam em torno de pátios e becos. O que acontece quando um corredor, uma esquina ou um beco socialmente compartilhados desaparecem para dar lugar a novos quarteirões remodelados segundo planos urbanísticos modernos?
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Enquanto algumas cidades, principalmente europeias, começam a abrir espaços de convivência para seus habitantes e a reduzir o espaço do carro, as cidades em desenvolvimento ou subdesenvolvidas obtêm financiamentos mundiais para se transformar no antigo modelo. É o caso de Istambul, retratada no documentário Ecumenópolis: cidade sem limites,3 de Imre Azem. Seguindo a orientação do Banco Mundial, a Turquia busca modernizar cidades e orienta seu crescimento com base nas já conhecidas indústrias da moradia, do automóvel e dos serviços, incrementando a presença de corporações internacionais em seu solo. O filme acompanha a história de uma família migrante desde a demolição de seu bairro – onde será construído um condomínio luxuoso, envolto em verde, com piscina e campo de golfe, graças à valorização do entorno causada pela construção de um estádio olímpico – até a luta por moradia a partir desse episódio.4
Jan Gehl é o arquiteto conhecido pela mudança de Copenhague nos anos 1960. Ele observou como as pessoas usavam os espaços e fez uma espécie de mapa de comportamentos. Seu primeiro livro, Life between buildings, publicado em 1972, analisava o comportamento das pessoas no espaço público, usando como laboratório a primeira rua de pedestres da cidade, a Strøget. À medida que carros perderam espaço nas ruas centrais da cidade, que passaram a ser devotadas ao pedestre, a vida pública foi se multiplicando.5
Processos semelhantes ao de Copenhague foram desenvolvidos ou estão em desenvolvimento em outras cidades, que começam a rever a escala e providenciar espaços de convivência, ampliando as áreas para pedestres e ciclistas, considerando, finalmente, o lugar do homem nesse desenho. A cidade de São Paulo vive boa parte desses dilemas. Hoje estamos em processo de revisão do Plano Diretor Estratégico,6 e o escritório de Jan Gehl está envolvido em um projeto de requalificação para o centro da cidade, chamado Centro Diálogo Aberto.7 Simultaneamente a isso, movimentos e pessoas promovem ocupações de espaços de passagem, transformando-os em locais de convívio e promovendo apropriações da cidade. É o caso de mobilizações como A Batata Precisa de Você, Imargem, Hortelões Urbanos, Pedal Verde, Rios e Ruas, Árvores Vivas, entre vários outras, que desenham, espalhadas por diversas regiões – mas de certa forma em conjunto –, uma nova cidade, sob uma nova ótica.
De 20 a 27 de março, salas do circuito de cinema da capital paulista recebem os filmes citados neste artigo e muitos outros, que abordam temas variados, dentro da programação da 3a Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Serão promovidos também debates com realizadores e especialistas. A programação, totalmente gratuita, está disponível no site do evento: ecofalante.org.br/mostra.
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*Mônica C. Ribeiro é Jornalista e mestre em antropologia
1  Le Corbusier preocupava-se com a cidade da era da máquina, imaginando que para acomodar a crescente população da Europa e do mundo seria necessário criar um novo modelo de assentamento. Os princípios do Plano para a Cidade Contemporânea eram basicamente descongestionamento do centro das cidades; aumento da densidade populacional; aumento das áreas verdes; separação entre usos e unidades de vizinhança; separação entre veículos e pedestres. Mais em:htpp://pessoal.ufpr.edu.br/rolando/arquivos/Le_Corbusier2.pdf .
2  The human scale (A escala humana), produção dinamarquesa de 2012 dirigida por Andreas M. Dalsgaard e inédita em São Paulo, documenta como cidades modernas repelem a interação humana e argumenta que podemos construir cidades de uma forma que leve em consideração necessidades humanas e intimidade.
3  Ecumenopolis: city without limits (Ecumenópolis: cidade sem limites), documentário de 2011 dirigido por Imre Azem e inédito no Brasil, aborda o caminho de Istambul e de outras cidades rumo à globalização.
4  No Brasil, os Comitês Populares da Copa divulgaram um dossiê abordando questões como violação ao direito de moradia, ao direito à informação e à participação nos processos decisórios envolvendo a Copa que se realizará no Brasil este ano e também as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, além de desrespeito à legislação e aos direitos ambientais e trabalhistas. Disponível em: goo.gl/gonvu
5  Informações sobre o trabalho de Jan Gehl podem ser acessadas em: www.gehlarchiects.com .
6  Mais informações em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretor-estrategico/ .
7   Ver mais em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/centro-dialogo-aberto/o-vale-do-anhangabau/ .

Para romper a masmorra do individualismo

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro
Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell
O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.
Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.
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Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”
Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”
A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.
Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.
Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.
No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”
Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”
No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”
O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.
Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”
Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

quinta-feira, 27 de março de 2014

caminhos do cuidado - vídeos

pessoas, aí estão os três vídeos da formação do Caminhos do Cuidado...
1. crack! crack?
2. fora de si
3. pedras no caminhos

flecheira.libertária.331

fogo no rabo
Marcha da Família com deus ou o diabo foi e é a peregrinação de golpistas, covardes terroristas profissionais escudados na força repressiva do Estado. Pouco importa se a Marcha da Família com deus e o diabo teve centena de milhares há 50 anos e apenas umas centenas de dejetos no último sábado. Eles eram e permanecem golpistas, fascistas, terroristas, torturadores, abjetos governantes, zeladores da permanência da família "rodrigueana". Não são para conversa: usam da democracia para vingar seu direito de manifestação no conflito. Depois, usam a democracia como valor a ser preservado por eles mesmos, metendo ditadura em cima de todos, incluindo os que crêem no pluralismo. Que a Marcha da Família com deus e o diabo tenham seus fundilhos tostados por tochas de fogo que os empurrem, imediatamente, ao seu paraíso!
cotidiano
É preciso estar alerta às mobilizações fascistas, assim como combater, para além das efemérides, os pequenos fascismos que circulam nas democracias, esse fascismo miúdo que faz a “amarga tirania de suas vidas cotidianas”.
atualidade
Hoje, para além das marchas reacionárias, o fascismo se atualiza em meios legais, procedimentos corriqueiros e clamores midiáticos. Para quem duvida, repare na atuação e adesão às ações policiais nos protestos e nas favelas, nas propostas legislativas de combate ao chamado terrorismo, no avanço de monitoramentos eletrônicos e de condutas, na sazonal reativação do “debate” sobre a redução da maioridade penal no Brasil... Ofascismo é repressão, mas também produz positividades de poder. Ele se reproduz nas democracias que favorecem a sua estabilidade institucional em detrimento da liberdade de cada um. Em nome da salvação da lei e do Estado, para garantir a segurança dos especiais cidadãos, a liberdade de cada um é a primeira a ser acossada.
todos sabem como se tratam os pretos!
No Rio de Janeiro, na mesma semana em que seis pessoas morreram nos territórios pacificados, Cláudia Silva Ferreira, mulher de 38 anos, negra, mãe de oito filhos, foi alvejada por policiais, quando saía para comprar pão, e teve seu coração e pulmão perfurados por um projétil. Como se não bastasse, ainda teve o seu corpo esfolado pelo asfalto quente, ao ser arrastada pela viatura por quase quinhentos metros em uma avenida de Madureira. Sobre o cadáver não faltaram laudos, exames, perícias e outras ciências que visam escamotear e justificar o óbvio: Cláudia não morreu por “laceração cardíaca e pulmonar de ferimento transfixante do tórax por ação perfurocortante”. Assim como Amarildo e outros anônimos, essa mulher foi executada pela polícia, assassinada pelo Estado.
parasitas: profissionais da democracia em ação
Realizou-se no Brasil um congresso para empresários dos negócios sociais, voltado para a inovação e tecnologias sociais de amortização da pobreza e sofisticação da segurança pública. O representante da neoliberal Open Society Foundations declarou à mídia paulista que ações da polícia, como a que a arrastou o corpo de Cláudia Ferreira, devem “escandalizar” a própria corporação. Fez coro ao atual mantra neoliberal de regulamentação do mercado de drogas e pregou a cantilena da polícia mais humana. Todos devem lucrar! A polícia é violenta, as prisões estão sempre superlotadas e funcionando como centros de tortura, porque o Estado existe para zelar pela propriedade desses benevolentes empresários e de seus asseclas de fala mansa que vivem do empreendedorismo da miséria.
o capitalismo mata
O capitalismo mata e sua ordem se mantém pela continuidade da violência legitimada das polícias, sua mais cara instituição. Escândalo insuportável é afirmar que a violência só cessará com a abolição da polícia.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Desinstitucionalizar é ultrapassar fronteiras sanitárias: o desafio da intersetorialidade e do trabalho em rede

por Magda Dimenstein Mariana Liberato 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN 

Nos últimos anos é visível como a reforma psiquiátrica vem avançando no país, desde discussões mais afinadas acerca dos fundamentos históricos e conceituais da proposta de reforma em curso, até a análise crítica de seus principais dispositivos de intervenção, das conquistas e dos impasses que trabalhadores, gestores, usuários e familiares têm enfrentado no sentido de fazer avançar processos de desinstitucionalização requeridos, mas não garantidos, pelo aparato jurídico/estrutural da legislação vigente. É possível reconhecer também que há uma sensibilidade mais aguçada que nos leva a reconhecer que a reforma psiquiátrica está articulada à produção de novos modos de subjetivação, pressupondo práticas de cuidado diversas das predominantes no modelo asilar, bem como a ruptura da lógica tutelar a ele associada. Esse reconhecimento parte do pressuposto de que a loucura se encontra confinada em saberes e instituições psiquiátricas, e em função disso, as inúmeras possibilidades da loucura enquanto radicalidade da alteridade 
são reduzidas a um único significado: doença mental. 
Sabemos, portanto, que daí derivam as práticas de controle, tutela, domínio, normatização e medicalização, tão evidentes em nosso cotidiano. A manutenção dessas práticas, a produção de novas formas de controle cada vez mais sutis e eficazes, assim como a dificuldade de produzir interferências nesse âmbito, tudo isso vem sendo descortinado dia após dia. Queremos mudar, mas esse querer vai sendo enfraquecido, pois também está atravessado por uma lógica, aqui entendida como marcas invisíveis que produzem formas de subjetivação, que se expressa através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar a vida (Machado e Lavrador, 2001). Trata-se, pois, de uma cultura manicomial, dos nossos manicômios mentais (Pelbart, 1990). Isso indica claramente que a reforma psiquiátrica não se restringe a uma ordem macropolítica. Clausuras subjetivas nos habitam e são muito poderosas. Acreditamos que há também lampejos em nossa compreensão atual de que não é para recuperar socialmente nem para retomar a normalidade perdida que a luta antimanicomial deveria operar, mas produzir novas formas de sociabilidade, reorientar nossas vidas a partir da mistura de diferentes códigos, romper os sentidos de mundo que a época nos impõe, produzir fissuras na ordem mundial, na hegemonia, na monotonia, constranger as linhas de força que operam hegemonicamente e que nos faz cada vez mais silenciosos, obedientes, dóceis e conformistas. 
Com base nesses princípios tentamos contribuir com o debate nacional gerando interlocução com atores sociais envolvidos na luta antimanicomial que produzem interferências decisivas nos rumos do processo de reforma psiquiátrica. Esses atores, independente da condição de gestores, pesquisadores, trabalhadores de saúde mental, usuários, familiares, etc, constituem um coletivo que insiste na sustentação de uma utopia e na não conformação com as atuais promessas enganosas do hospital psiquiátrico humanizado, reformado, maquiado (Amarante, 2007). 
Nesse intuito, queremos “botar lenha” na utopia, fomentar estratégias de resistência e criação no campo da saúde mental que venham ampliar nossa capacidade de análise e intervenção junto aos coletivos de trabalho, assim como contribuir para a produção de novos modos de operar a política de saúde mental que sustente e faça avançar a luta antimanicomial. Consideramos que para fazer um movimento social amplo e complexo acontecer, tal como se apresenta a reforma psiquiátrica, precisamos empreender uma guerra contra essa política de subjetivação que exige consensos, razoabilidade e, em contrapartida, promete segurança, bem-estar, pacificação, conforto, operando pela via do medo e da esperança. É necessário para tanto operar críticas em dois âmbitos: um questionamento no campo científico, no qual a loucura enquanto doença mental é produzida pelo saber psiquiátrico, tendo um arcabouço técnico para tratá-la, e de outro, no âmbito da configuração social, onde as práticas científicas e os ideais modernos sustentam as formas de enclausuramento e silenciamento da loucura. 

Em que condições estamos? 

Atualmente, estamos vivendo um novo cenário da Reforma Psiquiátrica no Brasil onde o hospital não é mais o centro de gravidade, em torno do qual gira tudo e a oferta de cuidados extra-hospitalares é predominante (diminuição das internações e consultas ambulatoriais convencionais). Observamos uma inversão da pirâmide financeira, ou seja, maior proporção de recursos do SUS destinados às ações extra-hospitalares (hoje em 63,35%) no território, uma redução considerável nos últimos 5 anos do número de leitos psiquiátricos e uma mudança no perfil dos hospitais com redução daqueles de grande porte (acima de 400 leitos). O Ministério da Saúde indica que em 1991 as internações psiquiátricas consumiam a maior parte das verbas de internações do SUS. Os leitos para portadores de transtornos mentais ocupavam 20% da capacidade hospitalar instalada no país, só perdendo para internações em clínica médica. A taxa de re-internação dos pacientes era de 70%, portanto, altíssima. E, dos 90 mil leitos psiquiátricos do SUS, cerca de dez mil eram remunerados sem estarem ocupados, ou seja, serviam para internações fantasmas. De lá para cá, foram desativados mais de 50% dos leitos. O tempo médio de internação caiu de 100 para 40 dias e a taxa de mortalidade teve uma redução significativa. No Rio Grande do Norte1 , no período de Janeiro de 2006 a Junho de 2007, a média de permanência foi de 36,6 dias e a taxa de óbitos de 10 pessoas, números que se comparados aos de décadas passadas, indicam mudanças importantes na realidade local. A implementação do PNASH2 foi um grande avanço nesse sentido, produzindo 09 descredenciamentos e 02 intervenções no país (MS, 2008). 
A expansão da rede de serviços substitutivos é outro avanço inquestionável como pode ser observada em relação aos CAPSs (n = 1.291) e residências terapêuticas (n = 502) (MS, 2008). A estratégia da supervisão clínico-institucional também vem avançando e atende atualmente 389 CAPS no país. O Programa de Volta para Casa caminha no mesmo sentido e beneficia 3037 usuários. Registramos ainda uma rede ambulatorial em expansão que objetiva prestar atendimento aos casos menos graves e trabalhar em articulação com a atenção básica, especialmente com a estratégia de saúde da família. Isso certamente provocou o deslocamento dos recursos humanos do antigo centro hospitalar para a rede de atenção psicossocial. 

Que obstáculos enfrentamos? Que desafios ainda temos pela frente? 
  
Apesar desse quadro promissor, inúmeros desafios se apresentam no cenário da reforma e afetam sua sustentabilidade. O primeiro deles refere-se ao modelo de financiamento em vigor que produz sérias distorções. O custeio por procedimentos nos CAPS, por exemplo, produz a necessidade de manobras que visam atingir o teto disponível para o serviço. Produz, inclusive, em CAPS III, leitos ocupados initerruptamente, produzindo retenção no serviço e encaminhamento para hospitais psiquiátricos. O custeio das residências terapêuticas com as AIHs também é muito limitado, restringindo as possibilidades de realização de inúmeras atividades com os moradores em função do baixo orçamento. Em segundo lugar, ainda existem quase 40 mil leitos psiquiátricos no país, muitos dos quais permanecem em função da falta de internação domiciliar, da dificuldade abertura de serviços do tipo CAPS III, bem como dos inúmeros obstáculos à implantação de leitos de atenção integral em hospitais gerais e de urgência e emergência. Não há nenhum trabalho no sentido de fazer uma classificação de risco para o paciente psiquiátrico que possa orientar a recepção e atenção nesses espaços. Aliás, esse é um ponto nevrálgico, pois as dificuldades de fechamento de hospitais psiquiátricos no país devem-se, em grande parte, à falta de serviços que dêem suporte à crise. Assim, os manicômios continuam ocupando um lugar central em função na inexistência desses dispositivos e tendo sua existência justificada socialmente. 
Outro aspecto absolutamente desafiador diz respeito à reintegração dos pacientes de longa permanência, já que 25 a 30% dos usuários são crônicos e há um alto índice de reinternação nos hospitais. No Hospital João Machado, referência em psiquiatria no estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, em 2007 esse índice foi de 62,77%, e somente de janeiro a julho de 2008, de 60,38%. Essa população de crônicos representa um contingente enorme de pessoas moradoras (ou candidatas) dessas instituições que podem se beneficiar com a estratégia do Programa de Volta para Casa e das residências terapêuticas. Porém, é possível observar que o benefício desse programa, apesar de crescente, ainda contempla um número restrito de usuários em função dos problemas jurídicos envolvidos, fato que termina intensificando o problema da evidente sobrecarga familiar junto aos portadores de transtornos mentais, especificamente no aspecto financeiro. Em função disso, uma das ações mais urgentes é a saída planejada e assistida do hospital, não só daqueles que aí vivem por muitos anos, bem como daqueles que registram inúmeras e sistemáticas entradas e saídas. Sabemos que para sustentar a saída do hospital é preciso criar outros recursos na comunidade que sirvam de suporte social, em parceria com as secretarias de cultura e ação social. Um desses recursos são os Centros de Convivência e Cultura. Porém, existem atualmente apenas 60 concentrados na região sudeste do país. Outro aspecto imprescindível é a articulação com programas estaduais e municipais de habitação, 
no sentido de viabilizar a construção de moradias e estruturas intermediárias, e, principalmente, de evitar a transinstitucionalização tão comum nesse campo. Entretanto, o que vem se observando, é que as propostas de ampliação da rede têm ficado concentradas no aumento do número de CAPS, tornando-se esse o principal indicador de avanço da reforma. Esses serviços têm sido implantados sem a devida problematização acerca dos seus limites, da impregnação da burocracia, da trama das pequenas relações do dia- a-dia que dificultam a transformação/avanço das práticas em saúde mental. Inúmeros estudos vêm apontando para a manutenção da lógica ambulatorial e das filas de espera nos CAPS, para a falta de profissionais qualificados, apesar das supervisões, as quais, por sua vez, demonstram uma nítida dicotomia entre a clínica e política, e especialmente, para o fato de ser um serviço sem nenhuma articulação no território, voltado para si próprio. Ou seja, a proposta de ser o ordenador da rede não se efetiva, indicando a produção de novas ordens de cronicidade. 
Se a constituição de uma rede de serviços substitutivos integrada entre si e com outros equipamentos sociais presentes nas comunidades é algo imprescindível para o avanço da reforma, esse é um dos aspectos que apresentam mais fragilidades, pois, de fato, ainda não dispomos de uma rede ágil, flexível, resolutiva, onde o trânsito dos usuários é facilitado e o mesmo é acolhido em suas diferentes demandas. Identificamos muito mais serviços isolados, que não se comunicam, fechados em suas rotinas. 
Sabemos que há uma articulação precária entre os CAPS e a rede de atenção básica, que não há clareza acerca da proposta de Apoio Matricial e, pior, que há forte resistência por parte das equipes de dar esse tipo de retaguarda, compreendida como mais uma tarefa a ser inserida na rotina do CAPS. Por outro lado, há uma forte demanda cotidiana de saúde mental não acolhida na atenção básica, pois os técnicos não se sentem capacitados para tal e indicam a necessidade de apoio e instrumentalização nesse campo. Não é raro escutarmos as queixas muito bem fundadas das equipes voltadas exatamente para esses problemas. Isso é o que vem sendo apontado pela Política Nacional de Humanização/PNH, pouco incorporada aos processos de trabalho na saúde mental: precisamos fomentar redes de valorização do trabalho e do trabalhador, já que os modos de fazer estão intimamente relacionados com o grau de implicação desses coletivos. Por fim, as possibilidades de referenciamento e co-responsabilização são pequenas em função da precariedade da rede de serviços substitutivos e destes com a rede SUS como um todo. 
Outro grupo de problemas/desafios para a política de saúde mental pode ser identificado a partir da vontade explícita de alguns usuários de permanecerem hospitalizados e sob a tutela do estado (Machado et al, 2005). Para eles o hospital representa segurança frente aos perigos da cidade, considerada local perigoso e hostil à loucura; garante condições básicas de sobrevivência (abrigo, alimentação, roupa limpa, etc) e de tratamento de saúde (medicação e assistência). O hospital-albergue, por assim dizer, os protege também do retorno ao mundo do trabalho, extremamente competitivo e desigual, bem como da falta de programas e equipamentos sociais que viabilizaria seu acolhimento na vida extra-manicomial. Sabemos que a grande maioria das pessoas que vivem muitos anos confinados em hospitais psiquiátricos tem comprometimentos importantes em termos de suas habilidades e de seu trânsito fora do ambiente hospitalar. Eles precisam enfrentar a absoluta falta de uma rede de equipamentos sociais – estatais, comunitários e familiares – que sirva de base de apoio e local de acolhimento, diversão e encontro para que não fiquem confinados dentro de instituições ou mesmo na família e circulem nas cidades. 
Em outras palavras, há problemas que ultrapassam o campo da saúde mental e do próprio SUS e dizem respeito à falência das políticas públicas de bem-estar social através das quais se disponibilizariam aos cidadãos acesso a bens e serviços considerados direitos de todos. Lutamos por reinserção, reabilitação e cidadania para portadores de transtornos mentais quando essa questão se refere ao fato de que a constituição da cidadania em um país como o Brasil é menos uma questão relacionada à condição de louco e, mais uma questão social, tendo em vista a grande parcela da população brasileira que não desfruta das condições de vida identificadas com a cidadania. As infindáveis filas de espera, a longa permanência de usuários em hospitais, nos CAPS II e ambulatórios que se vê hoje em dia é conseqüência da falta de uma rede de suporte social. A possibilidade de alta esbarra em demandas que não são previstas para tais serviços. Tais circunstâncias acabam delegando à rede de atenção em saúde mental demandas que seriam de outra ordem e que não poderiam ser “resolvidas” por seus equipamentos, mas pelas instâncias públicas responsáveis por moradia, trabalho, geração de renda. A alta não ocorre e a dependência do serviço é criada, pois os usuários acabam não encontrando alternativa melhor de apoio fora da rede sanitária. 
Nesse sentido, estamos operando uma reforma que tem ficado restrita aos serviços de saúde e propondo uma desinstitucionalização que não ultrapassa as fronteiras sanitárias. À medida que investimos prioritariamente na ampliação da rede de serviços assistenciais, estamos trabalhando com uma concepção muito limitada de rede, estreitando o circuito por onde a loucura pode transitar, estamos tomando-a como objeto específico da saúde, criando poucas possibilidades de reinserção social e de co-responsabilização pelas diversas políticas públicas. Nesse sentido, a experiência espanhola tem muito a nos oferecer, pois, segundo Desviat (2007)  
Sea cual sean las administraciones comprometidas y el tipo de 
dependencias, si queremos una actuación eficaz y sostenida en el 
tiempo que llegue a mantener el paciente en la comunidad, hay que 
construir una red donde la rehabilitación y el soporte social sean dos 
programas más que puedan atravesar todos los dispositivos y 
servicios” (p.126) 

Em outras palavras, a desmontagem do manicômio como organização e, principalmente, como instituição efetiva-se, pois, através de uma luta política, teórica e prática que visa a articular uma rede comunitária de cuidados, englobando diferentes serviços substitutivos ao manicômio, que se conecte também a outros espaços da cidade. Tal rede torna possível não apenas uma modificação nas formas de cuidado e acolhimento, a partir das mudanças administrativas e da criação de novos equipamentos, mas principalmente, possibilita a invenção de novas relações e sociabilidades dentro da comunidade e do espaço urbano. 
Percebemos que, ao longo do tempo, a reforma não avançou de modo semelhante em todas essas áreas, mas principalmente, no nível técnico-assistencial, apesar de podermos constatar também desenvolvimentos bem significativos no campo teórico-conceitual e jurídico-político. A dimensão sócio-cultural em comparação às outras, no que tange ao direcionamento da política nacional, foi aquela que deteve menos atenção e investimento, apesar de apresentar uma relevância fundamental na proposta de desinstitucionalização e reinserção da loucura. 
Perguntamo-nos, então, por que as políticas públicas tomaram esse rumo. A que necessidades e demandas respondiam? Que efeitos foram provocados pela escolha deste foco? E que novos caminhos são necessários para fomentar tal eixo e apontar outras saídas para a Reforma no Brasil? Como diversificar a rede de serviços substitutivos e conectá-la a outras redes de intervenção cultural pode ampliar e efetivar mudanças nas relações estabelecidas com a loucura (transformações no imaginário social, nas representações e conceitos a ela vinculados, nas práticas e nos territórios urbanos)? 
A cronificação provocada pela falta de articulação de diferentes serviços e apoios sociais, culturais e assistenciais produz efeitos danosos, tais como a sobrecarga dos operadores de saúde, a burocratização das práticas e o fomento de uma rede que, ao invés de ser acentrada, com múltiplas conexões, como em um modelo rizomático (Deleuze & Guattari, 1995), apresenta-se muito mais como um circuito que se retroalimenta (Rotelli, Leonardis & Mauri, 2001), causando a estagnação dos fluxos de experimentação e a reprodução de modos de relação homogêneos. Assim, ao contrário dos princípios de desmanicomialização, vão construindo-se outras segmentações que apartam, ou pelo menos, dificultam, os encontros com a diferença. 
Vemos, portanto, delinear-se claramente que para o processo de desinstitucionalização continuar a se efetivar é preciso mais do que uma mudança de ordem técnica. Como observamos, tais transformações são fundamentais e imprescindíveis, mas realizadas de forma descolada da modificação de outros processos, elas encontram seu limite na impossibilidade de criação de um “fora”, que diz respeito tanto ao que está espacialmente fora dos serviços, como a uma cisão com a própria lógica manicomial (Barros, 2003). 
É neste sentido que entendemos ser urgente pensar, inventar e propor outras formas de lidar com o espaço urbano, com as relações que se constituem cotidianamente na cidade e, de modo mais abrangente, com os discursos e práticas que modelam e modulam os processos de subjetivação e as sociabilidades contemporâneas. Assim, outra vez, percebemos que a questão da desinstitucionalização não nos reporta a um campo fechado e estrito do que se convencionou a chamar saúde a partir de uma perspectiva de medicalização da vida (Foucault, 2003). Com isso queremos dizer que desinstitucionalizar é ultrapassar fronteiras sanitárias; é enfrentar o desafio da intersetorialidade e do trabalho em rede, o que implica na adoção de modelos de atenção integral de base territorial. 
Precisamos daqui pra frente nos ocupar não só de expandir serviços substitutivos tal como conhecemos, mas investir em uma rede diversificada de dispositivos que dêem retaguarda ao usuário e às famílias no próprio território, que os ajudem a atravessar suas crises. Precisamos fortalecer a atenção básica como a via de acesso por excelência, como filtro. As experiências exitosas no campo da saúde mental têm em comum o fato de terem direcionado seus esforços para mecanismos eficazes de intervenção na crise e na criação de 
uma rede de recursos com amplo leque de estratégias interdependentes, não só sanitárias, mas de suporte social, de moradia, de geração de renda, de potencialização das associações, dos recursos comunitários, etc. A loucura não é só uma questão para o campo da saúde. Como dizia Basaglia (1979), a loucura é também uma questão de desigualdade, de opressão, de intolerância, de marginalização, de exclusão, pois tudo o que não é produtivo é doente. Sem investir nisso, os velhos manicômios vão continuar cheios e as novas estruturas, a despeito de toda boa vontade e técnica, não serão capazes de interferir nesse modo de funcionar que nos faz operadores daquilo que queremos combater. 

“Saiamos de nós mesmos: podemos 
respirar um vento fresco, sem dúvida, mas 
em nada hostil.” 
René Lourau.
Les Cahiers de l’implication no. 1, hiver 1997/98, p. 13  

1 http://tabnet.datasus.gov.br 
2 Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares 

Referências 
Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz. Barros, R. B. de (2003). Reforma Psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em tempos neoliberais. In Conselho Federal de Psicologia (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. (pp.196-206). São Paulo: Casa do Psicólogo. 

Brasil. Ministério da Saúde/DAPES/Coordenação Geral de Saúde Mental. (2008). Apresentação do Dia Mundial da Saúde Mental – Brasília – DF. 

Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34. 

Desviat, M. (2007). De loucos a enfermos. De La psiquiatria Del manicômio a La salud mental comunitária. Ayuntamiento de Leganés. 

Foucault, M. (2003). Microfísica do poder. 18ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. Machado, L. D.; Lavrador, M. C. C. (2001). Loucura e subjetividade. In: Machado, L. D; 

Lavrador, M. C. C.; Barros, M. E. B. (Orgs.). Texturas da psicologia: subjetividade e política no contemporâneo. (p.45-58). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 

Pelbart, P. P. (1990). Manicômio mental: a outra face da clausura. In: Lancetti, A. (Org.). Saúdeloucura 2. (p.130-138). São Paulo: Hucitec. 

Rotelli, F., Leonardis, O. de & Mauri, D. (2001). Desinstitucionalização, uma outra via. In Nicácio, F. (Org.). Desinstitucionalização. (pp. 89-99). 2ª ed. São Paulo: Hucitec. 
Os CAPS e seus trabalhadores: no olho do furacão antimanicomial. Alegria e Alívio como dispositivos
analisadores.
em: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-08.pdf

Saúde Mental, Atenção Primária Promoção da Saúde

por Antonio Lancetti 

Enquanto no Brasil vem se expandindo a rede de CAPS, de Serviços Residenciais Terapêuticos e outros recursos territoriais para produção de saúde mental as Unidades Básicas de Saúde que praticam a denominada Estratégia da Saúde da Família desenvolveram grande expansão: aproximadamente metade dos habitantes do território brasileiro estão cobertos pelo Programa de Saúde da Família. 
 A relação entre a saúde mental e a saúde da família tem uma importância evidente e coloca questões não tão evidentes. Muitas vezes os Caps e os Serviços Residências Terapêuticas operam no mesmo espaço geográfico. A seguir levantaremos algumas que pretendem alimentar os debates que ocorrera na IVª Conferência Nacional de Saúde Mental. 
A primeira questão deriva do conceito que denominamos complexidade invertida. Na Saúde os procedimentos de maior complexidade, como transplantes ou cirurgias extremamente complexas acontecem em centros cirúrgicos especializados e os de menor complexidade como tratamento do diabetes, hipertensão, aleitamento materno, vacinação etc. acontecem nas unidades básicas de saúde. 
Na Saúde Mental a pirâmide é inversa: quando o paciente está internado em hospital psiquiátrico, quando está contido a situação se torna menos complexa e quando mais se opera no território, no local onde as pessoas moram e nas culturas em que as pessoas existem, quando há que conectar recursos que a comunidade tem ou se deparar com a desconexão de diversas políticas públicas, quando se encontram pessoas em prisão domiciliar ou que não procuram ajuda e estão em risco de morte, quando mais se transita pelo território a complexidade aumenta. 
Decorrente dessa complexidade, as ações acontecidas no território são ricas em possibilidades e, quando operadas em redes quentes mostram maior potencialidade terapêutica e de produção de direitos. 
A segunda questão é proveniente do fato do Programa de Saúde da Família ou Estratégia da Família ser, por assim dizer, já um programa de saúde mental. A diferença de outras modalidades com AMAS, ambulatórios de saúde mental, pronto atendimentos ou mesmo centros de saúde convencionais, os pacientes conhecem os médicos enfermeiros e agentes comunitários de saúde pelo nome e as equipes de saúde da família mantém um vínculo continuado com essas pessoas. Fazem acolhimento, que é uma maneira de escutar o sofrimento de quem precisa quando precisa, dispõem de diversos dispositivos coletivos como grupos de caminhada, grupos de reciclagem de lixo , de ações culturais diversas. 
O fato das equipes estarem compostas por trabalhadores que são ao mesmo tempo membros da comunidade e membros da organização sanitária dotam o PSF de uma potente capilaridade. Os agentes comunitários de saúde visitam pelo menos uma vez por mês cada grupo familiar que habita na sua área. Dessa forma descobrem casos que não chegam à psiquiatria, como esquizofrênicos em prisão domiciliar ou crianças abusadas sexualmente, conhecem as tensões das bocas de fumo e sabem dos que estão ameaçados. 
O fio condutor de uma pratica de saúde mental é a angústia que provoca o contato da loucura, da doença mental e da violência nas equipes de saúde da família. Daí que as equipes de profissionais que se propõem a fazer ou produzir saúde mental na atenção primária precisam priorizar os casos de maior gravidade, a risco de nunca conquistar as equipes de saúde da família. 
A Organização Mundial da Saúde acaba de produzir um documento denominado “Integração da Saúde Mental nos cuidados primários – uma perspectiva global. 
Nesse documento se preconizam princípios para interligar saúde mental e cuidados primários e são descritas boas práticas de diversas partes do mundo, incluído o Brasil com a experiência de Sobral, onde foi desmontado um manicômio e substituído pelo trabalho da saúde mental em parceria com saúde da família. 
São várias as modalidades de operar em parceria e nenhuma delas retrocede á época do preventivismo, quando as equipes de saúde mental pretendiam prevenir as doenças mentais e acabavam aumentando o fluxo de pacientes graves para hospitais psiquiátricos. 
Todas essas maneiras de fazer saúde mental na atenção primária têm em comum o fato de operar junto e não dividir o trabalho ou se recluir nos consultórios definindo o tipo de demanda que irão atender sem priorizar os casos em que agentes comunitários, médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem mais precisam de cooperação. 
Os Núcleos de Apoio á Saúde da Família deveriam ser núcleos de vanguarda e não de retaguarda. e a transformação de uma proposta tão inteligente, pensada para potencializar a Estratégia da Saúde da Família em atendimento ambulatorial. Seria um verdadeiro retrocesso, com a possibilidade de contribuir com a descaracterização da metodologia da Estratégia da Família. 
Esta é uma das grandes dificuldades das práticas de saúde mental interligadas á atenção primária. É preciso de profissionais que estejam acostumados a operar em ambientes não protegidos. Na formação de equipes de saúde mental do Projeto Qualis/PSF contamos com profissionais que tinham passado pela experiência de desinstitucionalização de Santos e os que não possuíam experiência tiveram um fortíssimo investimento em 
formação. 
As equipes de saúde mental que operam na atenção básica realizam intervenções clínicas de maior complexidade que aquelas que acontecem nos CAPS e para tanto deveriam encontrar modos de capacitação em serviço que flexibilize a atuação, que permita trabalhar com pacientes difíceis nos CAPS, que saiba o que é uma enfermaria de hospital psiquiátrico e aprenda a atender crises. 
No Brasil,os programas de saúde mental ligados a atenção básica, em grande medida, são filhos da desmontagem de hospitais psiquiátricos e da invenção institucional para prática da reabilitação psicossocial. 
O objetivo central de uma prática de saúde mental é capacitar, autorizar, contribuir para que toda a organização de saúde possa fazer saúde mental. As vezes uma ida ao medição pode ter um sentido de intervenção de saúde mental, de rearranjo familiar. Outras a indicação de caminhadas periódicas pode ser uma medida fundamental no tratamento de alguém que esta deprimido. 
Quando as equipes de saúde mental atendem e acompanham em parceria os casos mais difíceis, os que mais os angustiam e desafiam, podem atender sem participação de técnicos de saúde mental a inúmeras famílias. 
As equipes de saúde mental e os NASFS podem atuar como conectores entre os CAPS e as Unidades Básicas de Saúde e como conectores com diversas ações informais que acontecem ou se inventam no seio da comunidade, ativando o comum, que é anterior ao conceito de comunidade (que como indicaram Antonio Negri e Michael Hardt a comunidade é uma unidade moral). 
Daí a importância de dispositivos terapêuticos como o da Terapia Comunitária, que além de constituir uma possibilidade de elaboração coletiva do sofrimento empoderam agentes comunitários e técnicos. Mas esses não são os únicos. 
Os operadores de saúde mental que atuam em atenção básica devem estar atentos aos conectores, que são vitais para constituição de redes quentes, redes tensas que gerem subjetividades cidadãs. 
È fundamental a tensão constante da rede de cuidados, mas é fundamental a denominada advogacia. 
Um exemplo disso é a necessidade constante de capacitação na operação do Estatuto da Criança e do Adolescente. As pessoas que assistem as equipes de saúde da família vivem um estado de estrutural déficit de direitos. 
O Controle Social, no século XXI é cada vez menos praticado em instituições fechadas e mais ao ar livre, nos domicílios, e ali onde a saúde mental contemporânea deve livrar seu combate. 
Hoje equipes de saúde da família estão conseguindo fazer experiências promissoras em diversas cidades brasileiras. A inserção nos bairros e nas vilas, a ascendência afetiva conquistada permite que agentes comunitários consigam suspender a ordem de fuzilamento de alguém que deve ao traficante. A ativação de recursos absolutamente informais para conter crises. 
Porém na Conferência Nacional de Saúde Mental deve-se discutir o financiamento dessas práticas, como, aliás, sugere o citado documento da OMS. 
A outra questão a ser discutida na IVª Conferência Nacional de Saúde Mental é que essas práticas podem e devem contribuir para o protagonismo dos usuários do SUS. 
Consideramos que a saúde mental praticada na Atenção Básica, especialmente em parceria com as equipes de saúde da família é altamente promissora, ela pode contribuir com a diminuição da violência tanto a institucional psiquiátrica como a praticada nas periferias das grandes cidades e para construção de territórios de paz. 

domingo, 23 de março de 2014

Só Vim Telefonar

por Gabriel Garcia Márquez

Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa – disse Maria. – Eu só preciso de um telefone.
Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados. A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ônibus. A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.
- Estão dormindo – murmurou.
Maria olhou por cima do ombro e viu que o ônibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.
- Onde estamos? – perguntou Maria.
- Chegamos – respondeu a mulher.
O ônibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimônia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho.
Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ônibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias. Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.
- Será que lá tem telefone? – perguntou Maria.
- Claro – disse a mulher. – Lá mesmo eles mostram.
Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. “No caminho eles secam”, disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou: “Boa sorte”. O ônibus arrancou sem dar tempo para mais nada.
Maria começou a correr para a entrada do edifício. Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso: “Eu disse alto!”, Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:
- Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.
Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório coletivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.
- É que só vim telefonar – disse Maria.
Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.
- Como é o seu nome? – perguntou.
Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.
- É que eu só vim para telefonar – disse Maria.
- Está bem, beleza – disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.
Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ônibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. Maria olhou-a de viés paralisada de terror.
- Pelo amor de Deus – disse. – Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.
Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado. O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicômios da Espanha. Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injetar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.
Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias. Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o diretor do sanatório. Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.
- Aproveite para chorar tudo que você quiser – disse o médico, com sua voz adormecedora. – Não existe melhor remédio que as lágrimas.
Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.
O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. “Ainda não, princesa”, disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. “Cada coisa tem sua hora.”, Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.
- Confie em mim – disse a ela.
Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo diretor: agitada.
Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos. Era a primeira vez que ela não chegava a tempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite. Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente. Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples. O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde atuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido. De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.
Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de gênio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tato e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a idéia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar. Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer. Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.
Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis. Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado. Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível. “Existem amores curtos e amores longos”, disse ela. E concluiu sem misericórdia: “Este foi curto.” Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens. Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite. Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. “E agora até quando?”, ele perguntou. Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes: “O amor é eterno enquanto dura.”, Dois anos depois, continuava sendo eterno.
Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de atriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida. Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. “Não sei nada”, disse Saturno. “Procurem em Saragoça.”, Desligou.
Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilômetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.
O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar. Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte. Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada Maria percebeu que não tinha fósforos. Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador. Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo. Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio. No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. “O sinhôzinho não está”, disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo. Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita Maria não estava.
- Aqui não mora nenhuma Maria – disse a mulher. – O patrão é solteiro.
- Já sei disso – respondeu ele. – Não mora mas vai às vezes, não é?
A mulher se enfureceu.
- Mas quem está falando, porra?
Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona. Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz. Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.
Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canônicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro. Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade. A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efêmero. O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante noturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:
- Aonde estamos?
A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:
- Nas profundas do inferno.
- Dizem que esta terra é de mouros – disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.
- E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.
Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. Maria se assustou, e só ela sabia por quê.
Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse. “Você vai ter de tudo”, dizia, trêmula. “Você vai ser a rainha.”, Diante da recusa de Maria, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório. Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas. No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. Maria deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha. A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.
- Filha da puta – gritou. – Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.
O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.
Maria assistiu divertida ao espetáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.
Maria respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:
- São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.
- Veado – disse Maria.
Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.
- Alô?
Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.
- Coelho, minha vida – suspirou.
As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:
- Puta!
E desligou.
Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injetaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno. Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.
O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.
- Se alguma vez alguém souber, você morre.
Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de Maria. O diretor o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afetuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o diretor era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.
- A companhia de seguros do automóvel me informou – disse.
O diretor concordou satisfeito. “Não sei como o seguro faz para saber tudo”, disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:
- A única certeza é que seu estado é grave.
Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais freqüentes e perigosos.
- Que esquisito – disse Saturno. – Sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio.
O médico fez um gesto de sábio. “Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem”, disse. “Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.” No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.
- Deixe-a falar – disse.
- Fique tranqüilo, doutor – disse Saturno com ar alegre. – É a minha especialidade.
A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. Maria não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral. Deram um beijo de rotina.
- Como você se sente? – perguntou ele.
- Feliz por você enfim ter vindo, coelho – disse ela. – Isto foi a morte.
Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.
- Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro – disse, e suspirou com a alma. – Acho que nunca voltarei a ser a mesma.
- Agora tudo isso passou – disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara. – Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o diretor permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados. Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. “Em resumo”, concluiu, “ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.”, Maria entendeu a verdade.
- Por Deus, coelho! – disse, atônita. – Não me diga que você também acha que estou louca!
- Nem pense nisso! – disse ele, tratando de rir. – Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.
- Mas se eu já te disse que só vim telefonar! – falou Maria.
Ele não soube como reagir à obsessão temível. Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. Maria interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas. Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em Maria uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:
- Vá embora!
Saturno fugiu apavorado. Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos Maria, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.
- É uma reação típica – consolou o diretor. – Já passa.
Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver Maria de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil. Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários. Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a Maria, até que a realidade o venceu. Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para Maria. Mas também ela desapareceu.
Rosa Regas recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para Maria, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. Maria pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.
Abril de 1978.