quinta-feira, 30 de maio de 2013

Depressão, produto de vidas reprimidas?

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É mais fácil criar necessidades externas que enfrentar medos e convenções morais que bloqueiam amor e prazer
Por Katia Marko, editora da coluna Outro Viver | Imagem: Frida KahloAs Duas Fridas(1939)
Corpos deprimidos. Espíritos anulados. Assim caminha a humanidade. Egos sem qualquer conexão com o corpo. Sentir é perigoso. O melhor é continuar a nos iludir com nossas gaiolas de ouro. Prisões internas que nos mantêm atados ao toco. Conceitos morais que a cabeça nega, mas o corpo carrega. Tensões crônicas que não permitem a vibração espontânea, o prazer, o orgasmo.
Medos irreais. Necessidade excessiva de segurança e estabilidade. Raiva enrustida, cuspida em brincadeiras sem graça. A crença de que não vai dar certo. Essas foram algumas das coisas que habitam meu ser e me dei conta durante um trabalho terapêutico de nove dias na Comunidade Osho Rachana. “Paixão: Qual é a tua?” era o nome do grupo. Pode parecer, num primeiro momento, uma pergunta simples. Mas quando mergulhamos mais fundo no mar de ilusões e falsos desejos, percebemos a dificuldade em acessar o que realmente nos preenche, nos faz feliz.
Vivenciar intensamente os meus medos, conflitos, personagens, fantasmas e emoções, me possibilitou ver com mais clareza como limito minha liberdade e capacidade de amar. O quanto ainda estou presa às convenções, apesar do discurso vanguarda. O que eu quero de verdade? Cada vez mais percebo que não é o que está fora de mim. Na real, é mais fácil criar necessidades externas do que entrar em contato com o vazio, a falta de confiança, o medo de amar e ser amada. Buscamos subterfúgios, elaboramos estratégias com maestria para fazer de conta que o buraco não existe.
A campanha “Mais amor, por favor” chegou a Porto Alegre. É uma bela iniciativa, mas só palavras não mudam o mundo, muito menos as pessoas e suas relações. Falta consciência e indignação para romper as barreiras e querer amar de verdade. Iniciei este artigo afirmando que nós, seres humanos, estamos com nossos corpos deprimidos e nossos espíritos anulados. Pode ser arrogante. Corro o risco. Sentimos muito pouco e pensamos, ou achamos que pensamos, em demasia. Talvez seja mais correto dizer que rodamos em círculos em pensamentos cristalizados e neuróticos. Nossos espíritos estão enjaulados em corpos entupidos de comida ruim e remédios entorpecentes; obesos, sem tônus e vitalidade.
É bem mais cômodo se queixar da vida, dos outros, do que assumir a responsabilidade da mudança. “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”, já dizia a revolucionária Rosa Luxemburgo. Segundo o mestre indiano Osho, no qual busco inspiração, sofrer de depressão simplesmente significa que você tem se reprimido demais. “Depressão nada mais é do que repressão. Você está deprimido porque não lhe é permitido se expressar. Ao se expressar, ao catarsear tudo o que está reprimido em seu inconsciente, você vai se tornar mais sano, mais saudável.”
Bloqueadas as emoções, impedimos que a nossa energia vital circule livremente por nosso corpo, o que faz com que ele perca a vitalidade original e passe a refletir os bloqueios a que se submete. Apesar de as emoções bloqueadas serem frequentemente as “negativas” (raiva, dor e medo), a perda de sensibilidade do corpo gera uma incapacidade também para os sentimentos ditos “positivos”, como a alegria e o amor. A vida torna-se, então, carente de significado e, em níveis mais profundos de depressão, a pessoa não deseja sequer viver. Mas a depressão é mais comum do que se pensa na vida das pessoas.
O médico norte-americano Alexander Lowen, questiona, em seu livro Alegria, por que não nos curamos espontaneamente, se ficamos deprimidos? “Na verdade, há pessoas que superam espontaneamente uma reação depressiva. Infelizmente, na maioria dos casos, a depressão tende a reaparecer, porque a causa subjacente persiste. Essa causa é a inibição da expressão dos sentimentos de medo, tristeza e raiva. A repressão desses sentimentos e a tensão concomitante reduzem a motilidade do corpo, resultando em um estado de redução ou depressão da vitalidade.”
Aliada a isto, afirma Lowen, está a ilusão de que seremos amados se formos bons, servis, bem-sucedidos e assim por diante. Essa ilusão serve para manter o ânimo do indivíduo durante a luta para obter amor, mas, como o amor verdadeiro não pode ser adquirido ou obtido por qualquer desempenho, cedo ou tarde a ilusão cai por terra e o indivíduo entra em depressão. “A depressão desaparecerá, se o indivíduo puder sentir e expressar seus sentimentos.(…) Expressar os sentimentos alivia a tensão, permitindo ao corpo recuperar sua motilidade, aumentando assim a sua vitalidade. Este é o lado físico do processo terapêutico.”
Para mim, e para as pessoas que optaram viver na Comunidade Osho Rachana, o processo terapêutico é constante. Nossa busca por consciência e uma vida mais plena exige um olhar atento para dentro. Sem isso, não saímos da volta do toco.

Mais medicalização, menos autonomia

Entrevista especial com Charles Dalcanale Tesser

Não dá para dizer que os profissionais de saúde sejam os principais atores ou molas propulsoras da medicalização, mas de qualquer forma tendem a ter uma ação pró-medicalização, constata o médico e professor da UFSC.
Ao comentar sobre os desafios que surgem a partir da hegemonia político-epistemológica da biociência e da disputa mercadológica atual no campo da saúde, o médico e professorCharles Tesser considera que esse é um dos dramas atuais na área da saúde, porque, segundo ele, “a tendência da especialização e as dificuldades da sociedade contemporânea, em função do capitalismo, cada vez mais vão acirrando o ambiente de competividade e de disputa”.
Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, esclarece que existe na área da saúde uma competição entre as categorias profissionais, dos especialistas, pelas fatias do mercado. “Afinal, as pessoas querem se estabelecer, trabalhar, ter um lugar na sociedade, com reconhecimento e remuneração. Isso é algo que tende a acirrar o processo de medicalização, no sentido de que as pessoas e as corporações querem abocanhar pedaços de técnicas, procedimentos, de fazeres como sendo seus”.
Tesser fala na importância de resgatar a autonomia do sujeito diante do enfrentamento da vida, no combate à medicalização desnecessária. De qualquer forma, continua, “temos um processo histórico que vem desde o fim do século XX, que é uma tendência de, na atuação profissional, exigir submissão, pouca autonomia; a gente faz e intervém. O médico dá o remédio, opera e a pessoa só cumpre ordens. Isso é frustrante, medicalizante e funciona muito mal”.
Charles Dalcanale Tesser é médico formado pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com residência em Medicina Preventiva e Social pela mesma instituição. Tem especialização em Homeopatia pela Associação Paulista de Homeopatia e mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Unicamp. É professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Dentre outros, é organizador do livro Medicalização social e atenção à saúde no SUS (São Paulo: Hucitec, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que podemos entender por medicalização social?
Charles Tesser – A medicalização não tem uma definição muito simples ou fácil. Mas podemos pensá-la como um processo de múltiplas dimensões que envolvem duas características principais. A primeira consiste no fato de que ocorre um processo de transformação de eventos, de características, de aspectos das pessoas e de suas vidas em problemas que passam a ser objeto da ação profissional da área da saúde.
Ou seja, ocorre a transformação de aspectos relativos a experiências da vida das pessoas em problemas médicos, que até recentemente não eram consideradas como tal. É um processo que está avançando desde a década de 1960, principalmente em função do avanço tecnológico e da medicina. Uma segunda característica do processo de medicalização é o fato de esse processo gerar cada vez mais dependência das pessoas de profissionais de saúde ou de médicos, ou de tecnologias especializadas que são dominadas por profissionais de saúde, para tocarem sua vida.
IHU On-Line – Como a questão da medicalização social afeta o Sistema Único de Saúde no Brasil?
Charles Tesser – O SUS está tentando se organizar, com muita dificuldade, como algo que ainda está incompleto, pela metade, e que sofre as consequências da medicalização. Ele não só sofre as consequências, porque se gera uma demanda infinita por profissionais de saúde, como também está diante de algo não resolvível, porque é muito frustrante atribuir um tratamento a coisas da vida com remédios ou cirurgias.
Por outro lado, os próprios profissionais de saúde que trabalham no SUS tendem, por sua formação, pela tendência das práticas, a reforçar a medicalização. Isso é um tiro no próprio pé. Não dá para dizer que os profissionais de saúde sejam os principais atores ou molas propulsoras da medicalização, mas de qualquer forma tendem a ter uma ação pró-medicalização.
IHU On-Line – O que faria parte de um processo de pluralização terapêutica das instituições de saúde?
Charles Tesser – A ideia de pluralização dos cuidados ou pluralização terapêutica não é algo novo e nem surgiu aqui no Brasil. É uma ideia de reconhecimento que foi feita por outros pesquisadores, normalmente sociólogos e antropólogos da saúde, de que, na sociedade em geral, as pessoas e grupos sociais recorrem a diversos tipos de cuidado, incluindo o cuidado médico e científico. Além desse, há uma procura crescente, nos últimos 40 anos, de outros tipos de cuidado. Diante disso, o sistema de saúde reconhece que ele mesmo pode se pluralizar também.
IHU On-Line – A que outros tipos de cuidado o senhor se refere?
Charles Tesser – Posso citar alguns exemplos, como as medicinas orientais, dentre as quais a acupuntura. Há outros tipos de tratamento já reconhecidos pela sociedade, como a homeopatia, práticas corporais, como a yoga, meditação, relaxamento.
IHU On-Line – Quais os desafios que surgem a partir da hegemonia político-epistemológica da biociência e da disputa mercadológica atual no campo da saúde?
Charles Tesser – Esse é um dos dramas, porque a tendência da especialização e as dificuldades da sociedade contemporânea, em função do capitalismo, cada vez mais vão acirrando o ambiente de competividade e de disputa. Temos, na área da saúde, uma competição entre as categorias profissionais, dos especialistas, pelas fatias do mercado. Afinal, as pessoas querem se estabelecer, trabalhar, ter um lugar na sociedade, com reconhecimento e remuneração. Isso é algo que tende a acirrar o processo de medicalização, no sentido de que as pessoas e as corporações querem abocanhar pedaços de técnicas, procedimentos, de fazeres como sendo seus. 
 
IHU On-Line – O que deve ser levado em conta quando se fala de autonomia em saúde-doença?
Charles Tesser – A maior parte do que as pessoas fazem em relação à própria vida e à saúde é por conta própria, ou seja, em um ambiente de cuidado doméstico, familiar, na sua rede de relações sociais. Uma parte das ações para se cuidar foi introduzida na cultura pelos próprios profissionais de saúde. No entanto, a autonomia diminui conforme aumenta a medicalização. E conforme aumenta a medicalização, se dissemina nas pessoas e nas populações uma sensação de insegurança e de incompetência para fazer as coisas que costumam fazer para enfrentar a vida: pequenos problemas, pequenas dores não necessariamente precisam gerar demanda de um profissional de saúde.
A ideia hoje é muito explorada em todo mundo, até nas próprias profissões acadêmicas da saúde, é que, dado o aumento da longevidade e a proeminência de doenças crônicas, deveríamos tentar trabalhar para incrementar, resgatar, valorizar ou estimular a autonomia das pessoas em geral, seja para terem mais segurança, tranquilidade e mais conhecimento, senso crítico e bom senso para se cuidarem por conta própria, seja para participarem dos cuidados que transcendem a esfera da competência leiga e que necessitam de um curador, um profissional de saúde.
De qualquer forma, temos um processo histórico que vem desde o fim do século XX, que é uma tendência de, na atuação profissional, exigir submissão, pouca autonomia; a gente faz e intervém. O médico dá o remédio, opera e a pessoa só cumpre ordens. Isso é frustrante, medicalizante e funciona muito mal.
Nota: A fonte da imagem que ilustra esta página é http://migre.me/eIDlO

O pensamento de Hannah Arendt em um filme fascinante


Fonte: Hanna Harendt CenterA diretora Margarethe von Trotta, cujo numinoso filme de 2009 Visão contou a história da vida deSanta Hildegarda de Bingen, se debruçou sobre a história de outra mulher influente, a filósofa e teórica política Hannah Arendt (1906-1975).
A análise é da irmã paulina norte-americana Rose Pacatte, diretora do Pauline Center for Media Studies de Los Angeles. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 25-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hannah Arendt começa em Nova York, em 1960, onde Arendt (Barbara Sukowa), uma imigrante alemã e judia secular, escreve e ensina em uma universidade. Quando o Mossad, a agência de inteligência israelense, captura o oficial nazista Adolf Eichmann e o leva clandestinamente a Jerusalém para ser julgado, Arendt, que tem um grande interesse filosófico no totalitarismo, discute com seu marido, Heinrich (Axel Milberg), sobre o fato de pedir que William Shawn (Nicholas Woodeson), o editor da revista The New Yorker, a envie para cobrir o julgamento iminente para a revista. Shawn hesita, porque, como observa o seu assistente, "os filósofos não obedecem prazos". Mas ele concorda, e Arendt parte para Israel em 1961.
O filme gira em torno da cobertura de Arendt do julgamento para a revista e das suas aulas que abordam as controvérsias que os artigos despertam em seu retorno.
Arendt fica atordoada quando fica sabendo que o réu será mantido em uma "jaula" de vidro durante o julgamento (para protegê-lo) e questiona a legitimidade da jurisdição de Israel para interrogar um homem por crimes não cometidos lá, cometidos, de fato, mesmo antes que Israel fosse um país. Ela pensava que o único interesse do tribunal era aderir às exigências da justiça para os assassinatos cometidos por Eichmann, mas o julgamento era mais complicado do que isso por causa do seu papel como um burocrata que, ao compartimentalizar a sua consciência, facilitou a "Solução Final" e as mortes de milhões de pessoas.
Assim, o tribunal foi confrontado com um crime que ele não conseguiria encontrar em um livro de direito e com os gostos de um criminoso que ele nunca tinha visto antes. O primeiro-ministro David Ben-Gurion estava determinado a realizar um julgamento de fachada, e testemunhas após testemunhas contaram as atrocidades nazistas cometidas contra elas e suas famílias, enquanto Eichmann afirmava, e nunca vacilava, que ele nunca tinha matado ninguém.
Mesmo assim, segundo Arendt, o tribunal "tinha que definir um homem em julgamento por seus atos", porque não era possível interrogar um sistema ou uma ideologia.
As reportagens de Arendt na New Yorker distinguiam entre o mal radical de uma ideologia e o mal banal de um burocrata que seguia a lei. Os leitores de Arendt não conseguiam compreender as complexidades que ela estava tentando enfatizar e acusaram-na de tomar o lado de Eichmann. As polêmicas aumentaram quando o julgamento levantou a questão dos líderes judeus que haviam trabalhado com a Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial e que talvez haviam facilitado as mortes dos judeus. Arendt informou o fato, mas seus leitores interpretaram isso no sentido de que ela culpava o povo judeu pelas suas próprias mortes.
Eichmann, o organizador das deportações judaicas e dos campos de extermínio, logo havia defendido em sua defesa que ele só tinha "obedecido ordens". Como Arendt explica para os seus alunos em Nova York depois do julgamento, "ele insistia em renunciar a sua culpa pessoal. Ele não tinha feito nada por iniciativa própria". Em suma, Eichmann preferiu não pensar. Ele foi junto com a multidão.
Como uma filósofa que estudara com Martin Heidegger (1889-1976), com quem ela teve um intenso caso de amor, os escritos de Arendt se focavam em como a capacidade de uma pessoa de pensar é o que faz dela humana e um membro da sociedade. Os seus pontos de vista sobre abrir mão das habilidades de pensamento crítico aos outros é central para as conclusões que ela tirou do julgamento, ao qual ela via como "a totalidade do colapso moral que os nazistas causaram na respeitável sociedade europeia".
Poucas pessoas, mesmo na academia, entenderam a sua resoluta abordagem de filósofa ao relatar e avaliar as complexidades que ela via em torno do julgamento de Eichmann. Arendt ataca os seus críticos, muitos dos quais eram amigos íntimos, dizendo que os assassinatos de caráter não são argumentos, que "entender é a responsabilidade de qualquer pessoa que tenta colocar a ponta da caneta no papel sobre esse assunto", porque "tentar entender não é o mesmo que perdoar".
Na cena final do filme, Arendt responde à insistência de Eichmann de que ele estava apenas fazendo o seu trabalho e que, pessoalmente, não matara ninguém. "O maior mal do mundo é o mal cometido por ninguém", diz ela. "O mal cometido pelos homens sem motivo ou convicção, sem um coração perverso ou palavras demoníacas é o que eu chamo de 'banalidade do mal'".
Hannah Arendt, coescrito por Von Trotta e Pam Katz, não é um filme biográfico em larga escala, embora haja flashbacks à vida de Arendt quando estudante. O diálogo preenche os detalhes da sua breve internação em um campo de prisioneiros francês. O filme flui facilmente do inglês para o alemão, embora demore um pouco para se acostumar com o inglês com sotaque alemão de Sukowa. O seu desempenho é simplesmente justo. Von Trotta e Sukowa, que também interpretou Hildegard, fazem uma equipe formidável nessas histórias sobre mulheres fortes e influentes.
O roteiro parece em grande parte baseado no livro de Hannah ArendtEichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, que inclui, com algumas edições de Arendt, os artigos publicados na New Yorker. Publicado pela primeira vez em 1963 nos Estados Unidos, o livro não foi publicado em Israel até o ano 2000. Eu descobri que a edição de 2006 do livro, com uma introdução de Amos Elon, faz uma excelente companhia para o preenchimento das questões que o filme de Von Trotta levanta.
Outra importante intelectual norte-americana da época, Mary McCarthy (Janet McTeer), é uma grande amiga deArendt. Elas compartilham conversas sobre amor e relacionamentos. McTeer parece estranha, mas se encaixa na minha imagem dela como romancista e crítica. Embora Arendt perca seus amigos e colegas homens nas polêmicas após a série da New Yorker, seu marido fica ao lado dela. O filme termina como começa: com Arendt fumando um cigarro, pensando.
Eu achei o filme fascinante, embora o seu estilo expositivo possa não agradar a alguns. A inclusão de imagens de arquivo do julgamento de Eichmann é arrepiante, enquanto ele professa a inocência pelas mortes de 6 milhões de pessoas. Mas se você for como eu e se lembrar da captura e do julgamento de Eichmann na televisão (eu era muito jovem para apreciar a revista New Yorker), esse filme e as profundas questões que ele evoca sobre o mal e a responsabilidade humana, a legitimidade da tortura e a jurisdição nessa era de guerra como vida normal, assim como os terríveis episódios de genocídio no fim do século XX e início do século XXI, com as pessoas fazendo pouco ou nada para detê-los, valerão muito o seu tempo.

Megaeventos e "uma limpeza urbana injustificada''

Entrevista especial com Sônia Fleury

“Esses processos das remoções têm tido um impacto muito grande nas relações sociais”, diz a cientista política.
Confira a entrevista. 
A reestruturação urbana do Rio de Janeiro irá remover “cerca de 30 mil pessoas, dando prioridade para investimentos empresariais e negócios”, disse Sônia Fleury à IHU On-Line. Para ela, “trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente muito violento”.
Ao comentar os dados do documento Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro, publicado recentemente, Sônia assinala que haver uma “concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade, que não são exatamente nas quais as pessoas estão morando. De certa forma, há um deslocamento dessa população pobre para essas áreas mais longínquas das cidades, o que representa perda em termos de transporte, horas e gastos para essa população chegar aos locais de trabalho”.
Para a realização dessa reestruturação, assegura na entrevista realizada por telefone, foi criado um “projeto de segurança pública e de investimento nas favelas, especialmente nessas que têm uma interface maior com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs”. A cientista política acompanha a ocupação militar nas favelas e enfatiza que ela não está “acompanhada de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania”.
E esclarece: “A suposta integração da população à cidade, na medida em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do comércio, ou seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços formalizados”.
Sônia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e doutora em Ciência Política pela mesma universidade. Atualmente coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública, da Fundação Getúlio Vargas – FGV.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as novidades apontadas no documento "Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro"? 
Sônia Fleury – A importância do documento é agregar várias informações que a cidade não está tendo conhecimento, porque elas não têm sido discutidas na mídia, a prefeitura não presta contas, e porque não há um processo transparente e participativo. Então, a grande importância desse relatório é mostrar como estão sendo feitas essas remoções e como esse tipo de processo de reurbanização tem violado os direitos dos moradores e direitos em geral, tais como os de participação, de informação e de propriedade.
IHU On-Line – Os dados do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas revelam que o número de atingidos chega próximo de 30 mil pessoas. Como está acontecendo o processo de remoção? Em que regiões há mais remoção e para onde as pessoas foram removidas?
Sônia Fleury – Estão para ser removidas cerca de 30 mil pessoas, sempre dando prioridade para investimentos empresariais, negócios, com prejuízo para os próprios atletas, que estão tendo de deixar o país porque foi fechada a Oficina do Delamari. Então, não se trata de uma lógica que beneficia o esporte, a cidadania; é muito na esteira dos grandes empreendimentos imobiliários.
Há todo um circuito que vai nessa linha do BRT, do transporte rápido para a zona oeste, na Barra da Tijuca, e que tem envolvido várias comunidades. Há contralaudos: as pessoas têm tentado resistir apresentando outros laudos técnicos que a prefeitura não necessariamente aceita. É um processo muito autoritário.
O que chama a atenção é a falta de discussão com a população. Trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente, muito violento. Os técnicos marcam com as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação as casas que terão de ser removidas. Os órgãos públicos assim como alguns vereadores e o Ministério Público têm tentado defender as populações de situações mais arbitrárias, mas não têm sido muito efetivos.
IHU On-Line – A senhora mencionou recentemente haver um desrespeito ao Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro por conta dos interesses imobiliários. Pode nos explicar em que sentido este Plano Diretor é alterado? Como são planejadas as reestruturações urbanas e como as remoções impactam no planejamento urbano das cidades?
Sônia Fleury – A Constituição havia previsto os direitos à moradia, nos itens dos Capítulo 182 e 183. Mais tarde, oEstatuto da Cidade, de 2001, reforçou esses itens, tomando o Plano Diretor como sendo o principal instrumento de um planejamento participativo da cidade, o que não está acontecendo. Ou seja, as decisões estão sendo tomadas sem nenhuma participação da sociedade, como estava previsto na composição de Planos Diretores. A ideia era de que a sociedade fosse ouvida, que fossem discutidas alternativas.
Há várias manifestações de institutos de arquitetos e de engenharia discutindo quais são as soluções não necessariamente para as remoções, mas, por exemplo, se se decide fazer um píer em “Y”, vários urbanistas, arquitetos e institutos mostraram que isso será muito prejudicial para a cidade, porque os transatlânticos que vão aportar aí nesse local vão aportar a vista da baía. Eles apresentaram uma proposta alternativa, mas ela não foi levada em consideração. Não há um processo a ser seguido e não estou falando só das remoções, mas de todas as decisões da cidade.
IHU On-Line – Nesse processo de reestruturação da cidade, há a possibilidade de se criar novas favelas?
Sônia Fleury – O dossiê mostra que há uma concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade que não são exatamente nas quais as pessoas estão morando. De certa forma, há um deslocamento dessa população pobre para essas áreas mais longínquas das cidades, o que representa perda em termos de transporte, horas e gastos para essa população chegar aos locais de trabalho.
Em alguns lugares estão sendo feitas obras do PAC dentro das próprias comunidades, mas na zona oeste há um deslocamento de populações para áreas mais longínquas. Está ocorrendo uma limpeza urbana, às vezes de forma totalmente injustificada. Por exemplo, no Morro da Providência, onde tem o projeto do Porto Maravilha, algumas famílias foram removidas para um teleférico, mas outras foram removidas para áreas que têm casas sólidas, áreas que não possuem nenhum risco.
IHU On-Line – Como acontece a distribuição dos recursos? Existe algum critério? Em que regiões do Rio de Janeiro se concentram os maiores investimentos da Copa do Mundo?
Sônia Fleury – Tanto na zona oeste como na área do porto. Nesta última, há investimentos de alto vulto que melhoram a cidade em vários aspectos, tal como a área central, que era deteriorada. Não há a menor dúvida de que é a recuperação de uma área importante. Agora, que tipo de recuperação está se discutindo? Ali é uma área que tem história. Vai se preservar essa história? Por exemplo, ali há a Pedra do Sal, onde surgiu o samba. Vamos cortar essa história como foi feito com a urbanização na reparação do porto na cidade de Buenos Aires, que não tem nenhuma conexão com o resto da cidade e se criou um bairro de milionários?
A nossa ideia era de que, se se pudesse ter uma reurbanização, então que se preservasse essa característica. Não parece que isso vai acontecer. A área de terras públicas, como mostra o dossiê, será ocupada com grandes apartamentos, enquanto poderia ter sido usada para reassentar populações de favelas que vivem em áreas de risco. Mas, ao contrário, é uma área pública que está sendo cedida para investimentos empresariais. Grande parte daquelas terras do centro, das áreas onde irão ser construídos investimentos imobiliários, são áreas que o governo federal repassou para a prefeitura e agora serão vendidas.
IHU On-Line – Além dos problemas de habitação, quais são os principais impactos sociais das obras da Copa para as cidades que sediarão os jogos?
Sônia Fleury – Para a realização disso, criou-se um projeto de segurança pública e de investimento nas favelas, especialmente nessas que têm uma interface maior com a zona onde irá haver os eventos da Copa: as UPPs. Estou acompanhando esse processo em algumas favelas e o que se vê é que há um projeto de tomada do território pela Polícia Militar, mas isso não vem acompanhado de um avanço nos serviços e nos direitos de cidadania.
Então, a suposta integração da população à cidade, na medida em que ela é marginalizada e favelada, está acontecendo através do comércio, ou seja, entra o BOPE e, em seguida, entram os serviços formalizados.
A população não está sendo preservada, ela não pagava quase nada por esse serviço, porque usavam “gatos” e, de repente, tem acesso a esses serviços sem ter os direitos correspondentes. O saneamento é precário, as escolas e os serviços de saúde são precários e não há um projeto social correspondente ao mesmo investimento que está tendo no projeto de segurança.
Esses processos das remoções têm tido um impacto muito grande nas relações sociais. Por exemplo, ao tratar cada problema de realocação de famílias ou de qualquer outro tipo como um problema individual de cada morador, esses órgãos, de certa forma, estão desmontando o que foi o capital social dessas comunidades, ou seja, a capacidade delas em se organizar e resistir ao clientelismo, às remoções anteriores, ao tráfico. Não sei se irão resistir a esse processo que está acontecendo agora, porque ele está minando o principal capital dessas comunidades, ou seja, a organização comunitária. De certa forma, o governo está desmontando isso.

terça-feira, 28 de maio de 2013

flecheira.libertária.296

mais do pior 
Na semana que passou, foi aprovado no Congresso um projeto de lei que modifica a Lei de Drogas, de 2006. Dentre as alterações, está o aumento da pena mínima para tráfico (de 5 para 8 anos) e a autorização para a internação compulsória de usuários. No grotesco debate que antecedeu a votação, deputados mostraram pó de giz fazendo as vezes de crack, clamaram por mais punição e mais tratamento, lançaram loas ao futuro das crianças da nação. Enfim, avançou a atual articulação entre segurança e saúde, presente desde o início do proibicionismo, mas que agora se rearticula, envolvendo polícia, humanitarismo, punição e medicalização. Os militantes, organizados em marchas e congressos, ficaram com o sorriso amarelo... Tinham apostado alto nas pressões por uma revisão mais branda dessa lei. Os ouvidos da presidência e dos parlamentares, no entanto, continuam afinados com o controle e punição. O proibicionismo muda, mas não para longe dos castigos. Ele contempla e reacomoda progressismos, ou melhor, ele os captura e domestica. fuck for the fore$t 
Criada no meio da década passada, a ONG ecológica Fuck for the Forest, conhecida por disseminar slogans como salvar o planeta é sexy ou porque não ter tesão por uma boa causa?, arregimentou nos últimos anos cerca de mil militantes. Sustentada pela colaboração financeira de simpatizantes, doações de fotos sensuais realizadas em áreas de preservação, a ONG que financia, inclusive, projetos ecológicos na América do Sul, reivindica a atenção para a sexualidade e a ecologia como nossa natureza como humanos. Não foi surpresa esta ONG ser celebrizada recentemente em documentário. Certos corpos nus tornam-se, pouco a pouco, carteirinhas de filiação a organizações profissionais de protestos alternativos. Ao que tudo indica, o Fuck for the Forest não vem acompanhado do gozo do Fuck Capitalism.
a solução 
Em sua terceira edição, a Marcha das Vadias de São Paulo levou cerca de mil pessoas às ruas para “quebrar o silêncio” de mulheres violentadas. Neste ano, pela primeira vez, viu-se na marcha, para além dos seios nus, corpos pintados e cartazes bem humorados que as caracterizam, bandeiras partidárias e gente uniformizada. Aos poucos, os gritos de guerra que, ao seu modo, afirmam o gozo dessas garotas apartado das caquéticas reivindicações por segurança, deram lugar à ladainha partidária, identitária, à reclamação por mais direitos e muita punição. Foi distribuído um panfleto — “violência doméstica: manual de resistência da mulher” — que ensina às mulheres como se proteger: discar para o 180 (central de polícia especializada em atendimento à mulher). Assim é impossível produzir resistências, mas somente exercitar denúncias!
marchando, não importa o tom 
No final da marcha, concentradas na bem policiada praça dos alternativos, elas bradaram palavras de ordem por seus representantes e novas penalizações. Afastado da algaravia, um pequeno grupo se formou em torno de um megafone a disposição de quem quisesse falar sobre o problema do estupro. Ouviu-se algumas histórias de pessoas que passaram por essas violências. O pequeno grupo propunha criar conversas em vez de repetir palavras de ordem. Entretanto, a conversa não aconteceu e o espaço ficou restrito à emissão de opiniões. E mais uma vez, o que poderia ter se tornado uma conversa foi reduzido a um mero guichê de reclamações. 
sigla identitária ou uó do penacho colorido 
A busca incessante por visibilidade levou o movimento homossexual a gerar e instituir siglas. Primeiro foi o GLS – gays, lésbicas e simpatizantes. Depois, travas e transex reivindicaram seu lugar, o simpatizante virou purpurina ou assumiu a posição de bissexual. A sigla passou a ser: GLBT – gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Insatisfeitas, as lésbicas reivindicaram que o L deveria inaugurar a sigla, agora, LGBT. Para incluir tudo, todas e todos, chegou uma nova alteração: LGBTQI – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, questionando, intersexo, afins e aliados. Ui! Tá bom ou achou pouco? Ainda não encontrou uma letra que te inclua?

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Propriedade privada: não entre

130526-Gauguin3

Questão fundamental dos relacionamentos deveria ser amor; mas crença na “fidelidade” interrompe fluxos, suscita fantasmas e impede viver criativo
Por Katia Marko | Imagem: Paul Gauguin, A terra dos deleites

“É pena que você pense
Que eu sou seu escravo
Dizendo que eu sou seu marido
E não posso partir
Como as pedras imóveis na praiaEu fico ao seu lado sem saberDos amores que a vida me trouxeE eu não pude viver…”
Raul Seixas

Por que a traição nos afeta tanto? A simples possibilidade da infidelidade em um relacionamento deixa alguns desesperados que nem crianças. Outros parecem não se importar, porque criaram uma defesa que os torna mais frios e também menos abertos à entrega amorosa. De qualquer forma, quando algo que cheire a infidelidade acontece, é uma avalanche, porque sempre há uma dor muito profunda em jogo.
Esta é uma questão que até hoje causa um grande desgaste nas relações, mas também tem sido fruto de debates importantes sobre o modelo monogâmico de família. Muitas pessoas já se arriscam a viver diferente.
Na Comunidade Osho Rachana, experimentamos novas formas de nos relacionar. Os casais, por exemplo, escolheram viver em casas separadas, mesmo com filhos. Não estou dizendo que a fidelidade não seja uma questão forte ainda. Mas buscamos em nossos trabalhos emocionais compreender melhor as causas do desespero.
Como Sartre e Simone de Beauvoir, poderíamos aceitar que nosso amado realizasse seus desejos e simplesmente dizer: “Eu te amo meu amor, portanto, se você sentiu atração por outra pessoa, tudo bem… Você vai ficar mais completa/o e assim a gente vai poder se amar mais”. Mas sabemos que este papo é balela na maior parte das situações.
A realidade da maioria dos mortais é bem menos libertária ou poética e o que acontece é que um parceiro tenta dominar o outro e fazer “contratos” reais, verbais ou até mesmo acordos silenciosos para evitar esta possibilidade. Apenas esquecemos que estes contratos vão também destruindo o amor.
Segundo o terapeuta corporal Prem Milan destaca em seu livro Por que você mente e eu acredito?, é um grande equívoco nos comportarmos como se tivéssemos várias torneiras que pudéssemos abrir ou fechar. “Eu fecho aqui para o João, aqui para a Maria, ali para a Francisca e mantenho aberta só para o Antônio. Esse é um erro, uma vez que a torneira da energia é uma só. Você não pode interromper seu fluxo para uns e abrir para outros. Quando você corta a possibilidade de exercer ou sentir atração fora do relacionamento, tem início um processo de perda da sensualidade. Para atender às expectativas inconscientes do outro, você passa a se vestir mal, a engordar e não se cuidar direito.”
Para não atrair outras pessoas, acabamos ficando não atraentes para nosso parceiro também. “Já não existe criatividade na relação, o sexo já não possui aquele fogo do início, não há mais espaço para o inusitado. Isso porque grande parte da energia dos dois está sendo reprimida em nome de um pacto de fidelidade que não é natural”, afirma Milan.
É claro que não existe uma fórmula de comportamentos ideais nem um manual de instruções. Tudo depende dos limites, dos sentimentos e das escolhas de cada um. Mas uma coisa é certa, conclui Milan: sempre que dizemos que aquela pessoa é nossa propriedade, o amor começa a morrer. E ele deixa claro que não defende que não existe fidelidade. “Quando se está amando profundamente, a gente só quer saber do toque da pessoa amada, só quer para si aquela energia. Mas essa é uma fidelidade que brota naturalmente, não fruto da repressão de seus impulsos e instintos. Nada garante que o desejo de ser fiel vá durar para sempre.”
Forçar a barra no quesito fidelidade tem causado grande dano aos relacionamentos, pois o amor nunca foi posse. O amor é liberdade. “A confiança no amor, mais do que na pessoa amada, é algo fundamental a ser resgatado. Sem ela, o medo do julgamento, do abandono e da rejeição estarão muito presentes, tornando quase impossível a entrega”, conclui Milan. Na sua visão, não olhar mais profundamente para esta questão implica em amar superficialmente, sem viver a verdadeira beleza do amor, sem viver o êxtase sexual, aquele momento em que nos perdemos em explosões orgásticas e que só acontece se estivermos confiando.

A dominância das dimensões médicas na sociedade

Entrevista especial com Luís David Castiel

“O saber médico se aproxima de uma forma de “religião” ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso", constata o médico, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.
“Embora o fenômeno da medicalização seja visto como a ingerência da medicina noutros campos do saber e, sobretudo, em questões essencialmente sociais, não é raro também ser relacionado à elevada dependência dos indivíduos e da sociedade da oferta de serviços e bens de ordem médico-farmacêutica e seu consumo cada vez mais intensivo. Pode-se dizer que a medicalização, hoje, envolve mais atores, instituições, empresas, interesses e práticas tanto curativas como preventivas, e reflete as transformações relativas aos modos como fenômenos de saúde, doença e risco têm sido produzidos, definidos, classificados, administrados e vividos”. A definição é do professor e médico Luis David Castiel, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.
Para ele, a atual configuração social é bastante propícia para a indústria médico-cirúrgico-farmacêutico-cosmética oferecer produtos e intervenções para atender aos anseios de saúde e de boa aparência. “E, se for necessário, remediar os efeitos emocionais e estresses dos eventuais reveses na busca desgastante da felicidade na vida moderna. Em geral, esta noção de procura da felicidade (...) tende a se configurar em metas traçadas que implicam em gestão racional e responsável de ações persistentes para, quiçá, atingir um resultado que seja considerado um êxito culturalmente legitimado. Em termos bem esquemáticos: ter perseverança (e saúde) para esta jornada e, se possível, obter o merecido retorno financeiro e o correspondente reconhecimento social no competitivo âmbito neoliberal contemporâneo”.
Dessa forma, continua ele, “o saber médico se aproxima de uma forma de ‘religião’ ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso. Assim, é possível estabelecer nexos entre saúde e salvação”.
Luís David Castiel (foto)é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Medicina Comunitária pela University of London, doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, e pós-doutor pelo Departamento de Enfermaria Comunitária, Saúde Pública y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, da Espanha. É pesquisador titular do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública e do Programa de Pós-graduação de Epidemiologia em Saúde Pública.
Castiel esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no último dia 15-04-2013, ministrando a palestra “Como restringir seu apetite naturalmente – Os riscos e a promoção do autocontrole na saúde alimentar.” O evento integrou o I Seminário em preparação ao XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tcnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea a ser realizado em outubro de 2014.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No âmbito da evolução mais recente do capitalismo, como podemos caracterizar “saúde” para compreendermos a lógica da sua medicalização?
Luis David Castiel – Antes de tudo, penso que vale a pena tentar definir melhor a noção de medicalização. Apesar de não constar em consagrados dicionários da língua portuguesa, o vocábulo medicalização é recorrentemente empregado na literatura científica para se referir, grosso modo, à intervenção da medicina no tratamento de questões sociais. Peter Conrad – um estudioso do tema – descreve a medicalização como “o processo pelo qual problemas não médicos se tornam definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças ou transtornos”. De outro modo, pode-se dizer que o processo de medicalização centra-se na biologização do social, o que não implica, porém, a aceitação da biologia e da sociologia como ciências mutuamente excludentes.
Trata-se de algo complexo, já que a compreensão de fenômenos, cuja multiplicidade de determinações e interfaces é tão vasta, impede, de antemão, qualquer tipo de simplificação ou de priorização de determinada ciência para sua explicação.
Por sua vez, uma importante contribuição acerca desse tema, a partir do âmbito da saúde mental, foi trazida porThomas Szasz, cujo enquadramento conceitual é mais crítico ainda que o de Conrad.
Para eles, a distinção entre prática médica e não médica é de importância crucial, pois além de influir na atenção médica, no direito e nas políticas públicas, justamente por isso, interfere na vida das pessoas.
Em termos breves, para Szasz, a “medicalização” seria uma prática ilegítima de introduzir vocabulários, conceitos e práticas médicas no terreno da vida pessoal ou social, considerando que esse processo não é apropriado. A medicalização constitui-se numa estratégia de atribuição de sentidos que modela práticas sociais, profissionais e formas de consciência e conduta.
Fora do controle racional
A pressão exercida por essa perspectiva localiza-se no fato de que uma vez que alguém é considerado doente ou seu comportamento visto como resultado de patologia, tal comportamento é encarado como estando fora do controle racional das pessoas. Tais indivíduos tornam-se agentes morais e sociais deficitários.
Assim, eles podem ser vistos como irresponsáveis em relação a seus atos, passíveis de abordagens coercitivas por aqueles que se colocam no lugar de autoridades e experts. Passam, assim, a ser objetos de práticas e estratégias institucionais e especializadas concebidas para conduzir, “aconselhar” e, se for o caso, corrigir as pessoas.
Em geral, essa insidiosa invasão da medicina é inadvertidamente aceita pelas pessoas, a ponto de passarem a regular boa parte de suas vidas de acordo com prescrições de saúde. Comportamentos “de risco” são descritos e desaconselhados (quando não proibidos) no tocante à alimentação, atividade física, ou outras atividades que possam ser caracterizadas como maus hábitos.
Embora o fenômeno da medicalização seja visto como a ingerência da medicina noutros campos do saber e, sobretudo, em questões essencialmente sociais, não é raro também ser relacionado à elevada dependência dos indivíduos e da sociedade da oferta de serviços e bens de ordem médico-farmacêutica e seu consumo cada vez mais intensivo.
Pode-se dizer que a medicalização, hoje, envolve mais atores, instituições, empresas, interesses e práticas tanto curativas como preventivas, e reflete as transformações relativas aos modos como fenômenos de saúde, doença e risco têm sido produzidos, definidos, classificados, administrados e vividos.
O fenômeno da medicalização é interpretado especialmente como estando vinculado à disseminação do uso de medicamentos como principal estratégia para o tratamento de doenças e prevenção de riscos. Segundo a lógica biomédica, os medicamentos “consertam” ou “minimizam” as falhas nas “peças” da máquina humana, fazendo com que ela volte a funcionar satisfatoriamente. Ou seja, grande parte do processo medicalizador atende aos interesses da indústria farmacêutica que atua como um ator central nesse contexto .
Racionalidade do risco
Por sua vez, a racionalidade do risco torna-se bastante adaptada para uma importante faceta medicalizadora contemporânea. São as proposições do autocuidado que veiculam o uso de recomendações epidemiologicamente justificadas e medicamente chanceladas para que pessoas leigas, de alguma forma, tornem-se pacientes e assumam comportamentos saudáveis e diretrizes médicas em nome do tratamento preventivo de agravos à saúde. Caso ainda não tenham assumido este mandato da cultura hiperpreventiva, existe, assim literalmente definida, a “terapêutica de mudança de estilos de vida”.
É sempre possível estar-se à mercê de vários riscos à integridade física e mental, mesmo sem sintomas evidentes. Nestas circunstâncias, temos cada vez mais indivíduos em um estatuto ambíguo: simultaneamente não saudáveis e não doentes. Um exemplo: mais pessoas são diagnosticadas com pré-doenças, como pré-hipertensão e pré-diabetes. Nestas situações, o tratamento médico para ambas as doenças pode ser praticamente equivalente. Claro que a elevação do número de indivíduos sob tratamento se ajusta aos interesses de ampliação de mercados para novas drogas preventivas e outras intervenções. 
 
Uma “nova consciência de saúde”
O início da trajetória deste estado de coisas pode ser, de alguma forma, situado no começo dos anos 1970. Há autores que identificam neste período, nos Estados Unidos, um momento em que a saúde passa a ser vista como algo em relação a qual as pessoas deviam estar devidamente informadas para, em nome da liberdade de escolha e do direito de decidir autonomamente, tomarem as medidas supostamente mais acertadas. Neste quadro, a mudança de comportamento deslocou-se para o centro da experiência das classes médias. Como se houvesse a produção de uma “nova consciência de saúde” para indicar uma formação ideológica emergente que definia questões de saúde e suas soluções dentro dos limites do controle pessoal.
A dimensão da responsabilidade pessoal se desenvolveu em meio a práticas culturais com as quais essas classes médias há muito se identificavam. Constituía-se como uma espécie de referência moral central para as pessoas passarem a crer que a operação na esfera de si mesmo, através de um trabalho no próprio corpo, proporcionaria efeitos benéficos para a saúde.
As consequências ideológicas da redefinição do problema da saúde ligada ao estilo de vida e a solução para a responsabilidade individual é relevante. A nova consciência de saúde se tornou um modelo no qual a responsabilidade individual (ou sua falta) deveria também reproduzir a responsabilidade individual pelo bem estar econômico. Não é à toa que ambas operam com a categoria “risco”.
Contribuição para a ordem social neoliberal
Olhando retrospectivamente, as práticas de saúde daquela época contribuíram para o crescimento da ordem social neoliberal. O sucesso das soluções privatizadas de mercado para problemas públicos deve ser entendido pela forma como a responsabilidade individual venceu a moralidade política baseada na responsabilidade coletiva para o bem-estar econômico e social, em meio a outros elementos, que não vêm ao caso agora.
Ainda em retrospecto, ficou claro que a responsabilidade individual pela saúde, mesmo com algumas resistências, se mostrou especialmente efetiva para determinar o “senso comum” dos princípios centrais do neoliberalismo em função de gastos sociais com saúde ao contrastarmos a imagem de indivíduos autônomos, prudentes, autorresponsáveis com visões antagônicas de descuidados, imprudentes, irresponsáveis. Os cuidadosos pagariam impostos para proporcionar atenção médica para os que adotavam estilos de vida insalubres e, por isso, adoeciam. Falar de saúde se tornou falar de responsabilidade .
E, assim, estava traçada a fórmula da saúde como um valor elevado que participa na busca pessoal de bem-estar subjetivo. Tal “bem-estar” é dependente de perspectivas individualizadas da relação das pessoas com suas identidades. Estas devem estar modeladas, em grande parte, pela aparência somática, sobre a qual a opinião de outros e os valores culturais dominantes exercem grande influência e enfatizam a importância da imagem corporal e fisionômica na vida em sociedade.
Aqui, cabe mencionar conhecidos conceitos autorreferidos (como autoestima, autoconfiança, autossatisfação, autocuidado) que participam ativamente das dinâmicas subjetivas das pessoas. E há intervenções médicas que oferecem a possibilidade de obter alterações corporais desejáveis cuja carência teria o poder de impedir que a felicidade na vida fosse alcançada.
A meta principal é manter elevado nosso estado de autossatisfação em meio a um contexto capaz de produzir níveis consideráveis de insatisfação. É preciso que estejamos constantemente alertas e atuantes em relação à nossa saúde e à imagem que temos de nós mesmos, dispostos a adotar práticas, consumir produtos e serviços para impedir o movimento “inercial” da “autoestima”, que é diminuir.
Esta configuração é bastante propícia para a indústria médico-cirúrgico-farmacêutico-cosmética oferecer produtos e intervenções para atender aos anseios de saúde e de boa aparência assim configurados. E, se for necessário, remediar os efeitos emocionais e estresses dos eventuais reveses na busca desgastante da felicidade na vida moderna. Em geral, esta noção de procura da felicidade (ou popularmente: “correr atrás de seu sonho”) tende a se configurar em metas traçadas que implicam em gestão racional e responsável de ações persistentes para, quiçá, atingir um resultado que seja considerado um êxito culturalmente legitimado. Em termos bem esquemáticos: ter perseverança (e saúde) para esta jornada e, se possível, obter o merecido retorno financeiro e o correspondente reconhecimento social no competitivo âmbito neoliberal contemporâneo.
IHU On-Line – Quais os riscos da sedução das tecnologias de aprimoramento para produzir um projeto humano melhor para a humanidade? Aliás, o que seria um projeto humano melhor?
Luis David Castiel – As tecnologias de aprimoramento são difundidas, em geral, como tendo o papel fundamental de ferramentas para produzir um projeto humano melhor, mais bem sucedido, de acordo com os valores dominantes. Mas a busca da felicidade como projeto humano se torna um tipo estranho de dever que demanda tecnologias de aprimoramento para garantir que a existência renda motivos para autossatisfação maximizada. Quem quer que seja infeliz ou perdedor (loser – como costumam dizer os estadunidenses) pode ser malvisto. Uma vez que a autossatisfação está atada ao sucesso na vida humana, ela pode se tornar uma desgastante responsabilidade pessoal para cada um que endosse essas proposições. Voltaremos ao final a esta questão.
Assim, talvez um projeto melhor para a humanidade fosse tentar estratégias coletivas em busca de alternativas ético-políticas que enfrentem a ideologia utilitarista que possui o poder retórico de se apresentar como o único caminho viável e que procura tornar natural o capitalismo que, dessa forma, se torna a realidade. Realidade que apresenta seus resultados de ganhos e perdas como se fossem meras questões de perspicácia, sorte e tirocínio num mercado regido por leis próprias de funcionamento e de busca de equilíbrio, sem contradições .
De certa forma, há um grande risco das tecnologias de aprimoramento não darem conta de produzir tal projeto em termos coletivos, caso as condições ético-políticas utilitaristas neoliberais se mantiverem presentes. De qualquer maneira, há a priori a questão de desigualdades de acesso a tais tecnologias que, inevitavelmente, têm o potencial de produzir efeitos eugênicos. Alguns poderiam desfrutar de suas possíveis vantagens, mas muitos, os consumidores falhos (como diz Bauman), teriam muitas dificuldades para isso.
IHU On-Line – Quais as implicações da medicalização da andropausa (reposição hormonal masculina), da calvície e da disfunção erétil?
Luis David Castiel – Estes itens indicam a medicalização de aspectos relacionados a noções legitimadas de masculinidade – sob a influência dos vetores socioculturais dominantes, especialmente em certos setores da sociedade que seguem valores de aparência e desempenho atrelados a ideais de jovialidade, vitalidade, força física e potência sexual. Como se fosse desejável e necessário manter qualidades viris com o avançar da idade. De modo simplificado, a sustentação da ideia de masculinidade sob o ponto de vista do funcionamento corporal parece muito vigorosa na autoconcepção identitária dos homens. Há evidentes interesses da indústria farmacêutica nesse sentido e que entram em ressonância com tais questões.
Mesmo que os empreendimentos médicos e farmacêuticos tenham mercadorizado estas condições e oferecido tratamentos para a calvície e andropausa, não se define claramente se estas condições de fato são problemas propriamente médicos no sentido de tratar-se de patologias mensuráveis e tratáveis. Na verdade, não é absurdo indicar que talvez pertençam a um campo que costuma ser chamado de “medicina dos desejos e das vaidades” .
IHU On-Line – Quais os riscos do uso de hormônio do crescimento em crianças de baixa estatura? Como se relaciona aqui a questão da altura como valor social?
Luis David Castiel – Não pretendo tratar diretamente as questões do risco do uso hormônio do crescimento em crianças de baixa estatura. Mas, sim, dos possíveis aspectos relacionados à questão da altura como valor social, especialmente no âmbito masculino. O debate não se refere à questão da baixa estatura constituir-se como uma doença e os riscos médicos em relação ao tratamento, mas, sim, quão “ruim” é ser “baixinho” na vida adulta...
As discussões sobre o uso do hormônio do crescimento não são recentes. Desde meados dos anos 1980, nos Estados Unidos, partidários do seu emprego faziam questão de apontar que maior estatura masculina é vinculada a maior status social, atratividade física e sexual elevadas, sucesso profissional e, até, capacidade de melhor desempenho eleitoral. Meninos baixos sofreriam mais assédio moral por seus colegas e teriam mais dificuldades de encontrar esposas.
Parece que a grande preocupação de pais pertencentes a determinados estratos sociais com a capacidade de desempenho e com a aparência dos filhos na infância diz respeito mais à preparação nesta fase crucial para a vida adulta jovem, quando a intensa competitividade social pode trazer incertezas e dificuldades ao alcance de metas socialmente consagradas para atingir a felicidade, mediante, por exemplo, o sucesso em conseguir parceiros sexuais atraentes, casamentos satisfatórios e carreiras profissionais em trabalhos privilegiados, estáveis e bem remunerados. Enfim, trata-se de lutar com as melhores armas à disposição no mercado para ser bem sucedido na vida, levando em conta os critérios de êxito e status elevado socialmente estabelecidos .
IHU On-Line – Como as tecnologias de aprimoramento interferem em relação aos mal-estares da cultura contemporânea, como a busca de longevidade e a redução/controle dos processos de envelhecimento? Quais relações podem ser estabelecidas entre a medicalização e a ideia de “felicidade”?
Luis David Castiel – Se levarmos em conta que a noção da felicidade vigente coloca a questão de “quanto” tal ideia está vinculada ao capitalismo consumista, não é despropositado afirmar que há um vínculo íntimo entre esta felicidade e o volume e qualidade do consumo. Pode-se até dizer-se que a nossa era moderna começou de fato com a proclamação do direito universal à busca de felicidade. Busca compulsória de felicidade, sobretudo, como autossatisfação em um exercício que vincula individualismo e capitalismo globalizado.
Os mercados alteram o sonho da felicidade como um estado de vida satisfatória para a busca infindável dos meios para se alcançar essa vida feliz, que sempre parece escapar para adiante. Numa sociedade de consumidores, estamos felizes enquanto não perdemos a esperança de sermos felizes. Infelizmente, a obsolescência das mercadorias nos faz felizes de maneira fugaz. Há uma contradição interna importante em uma sociedade que estabelece para todos um padrão que a maioria não consegue alcançar .
A felicidade definitiva parece ser a de realizar o sonho humano de permanência terrena, longevidade infinita, eternidade do indivíduo. vale a pena comentar brevemente os tipos de ciências e tecnologias de aprimoramento dirigidas ao envelhecimento (e à finitude) através de uma proposta de classificação, mesmo tendo áreas de superposição:
1) cosmética – a) práticas cosméticas: botox, cirurgias plásticas, cremes antirrugas, etc.; b) regimes profiláticos: dietas, exercícios, estilos de vida saudáveis; c) técnicas compensatórias: medicamentos para disfunção erétil, hormônio do crescimento;
2) médica – a) medicina regenerativa: terapia com células-tronco; b) intervenções clínicas para doenças específicas do envelhecimento (câncer, artrites, doenças cardíacas); c) terapias médicas baseadas em mudança de estilo de vida: dietas e exercícios dirigidos a doenças degenerativas do envelhecimento;
3) biológica – a) pesquisas epidemiológicas: populações de centenários e genes; b) modelagem evolucionária: descobrir e superar os limites evolucionários da duração da vida; c) ciência dos processos celulares e de seu respectivo envelhecimento; d) ciência genômica: mapeamentos e sequenciamentos gênicos para verificar processos genéticos responsáveis pelo envelhecimento para desenvolver terapias genéticas que podem retardar interromper ou reverter processos de envelhecimento;
4) imortalista – meta redentora da medicina do aprimoramento definitivo: alcançar a imortalidade: a) mediante substâncias e dispositivos supostamente com poder de ampliar a longevidade, incluindo câmaras criônicas; b) programas científicos para a imortalidade biológica e/ou cibernética: projeto da “Singularidade Tecnológica” de Ray Kurzweil ou as “Estratégias para uma Engenharia da Senescência Ínfima” de Aubrey de Grey .
IHU On-Line – O que pode ser dito sobre a medicalização da comida a partir da concepção de que o alimento é cada vez menos considerado por seu sabor, mas cada vez mais por seu valor calórico (preferentemente baixo) de tal forma que assume o lugar de medicamento, como tratamento preventivo para os riscos das dietas não restritivas?
Luis David Castiel – A questão atual relativa ao medo de engordar chama a atenção para as dimensões morais do problema, assim como faz a perspectiva da ansiedade excessiva diante do risco e das exigências de autocontrole na ingesta. De todas as formas, a relação da promoção da saúde alimentar com o ganho de peso tende a se inscrever no âmbito dos tratamentos morais que acompanham o mal-estar na civilização globalizada e a correspondente racionalidade contraditória na operação de suas estruturas normativas duais que simultaneamente estimulam e restringem. As pessoas, de um modo variável, podem não passar incólumes às precarizações e sofrimentos provocados por este panorama.
Há necessidade de análise crítica dos modos opressores produzidos pelos aspectos paradoxais do capitalismo que se naturalizam a ponto de serem considerados como a “realidade”. Isso ocorre, por exemplo, mediante o tratamento moralista dos riscos à saúde através da normatividade restritiva da promoção da saúde alimentar voltada para uma ideia exacerbada socioculturalmente de controle do peso.
 
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Luis David Castiel – Para tentar fazer uma síntese, convivemos com uma dominância das dimensões médicas em nossa sociedade – algo que pode ser representado pelo processo de medicalização, que se sustenta em função da procura de saúde ter ocupado na nossa época o formato de busca preventiva de saúde sob a égide da segurança individualista. Algo que pode até chegar a assumir a finalidade fundamental da existência: ser longevo com vitalidade.
E o saber médico passa a ter o papel não apenas da prevenção e da cura, mas também de fornecer significados a questões autoidentitárias do indivíduo em relação ao mundo social a seu redor e se estabelece também como moral e se institui como matriz comportamental para além dos domínios biológicos, determinando modos de se levar a vida. E é até capaz de gerar uma pedagogia do medo através das possibilidades de perda dos benefícios da vitalidade longeva para aqueles que não se pautam por condutas preventivas preconizadas como sadias.
Dessa forma, o saber médico se aproxima de uma forma de “religião” ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso. Assim, é possível estabelecer nexos entre saúde e salvação. É preciso seguir o catecismo preventivo proveniente das muitas recomendações médicas que exaltam as virtudes que levam a boas ações de saúde, se estendendo desde a carteira de vacinação na tenra idade (algo realmente benéfico) aos exames regulares de check-up a partir dos quarenta anos, evitando fumo, álcool, sedentarismo, dietas não balanceadas – maus hábitos de saúde, enfim. Com isso o indivíduo se candidata a ser atendido à benção da probabilidade mais elevada de não ser atingido pelo mal – a enfermidade, o sofrimento e a morte antes do prazo prometido pela expectativa de vida do contexto onde vive.
A carga das responsabilidades individuais
Enfim, diante do exposto até aqui, aqueles que compartilham das críticas ao panorama do estado de coisas fragmentadamente descritas – sobretudo por suas facetas de produção de sofrimentos e sustentação de desigualdades – têm uma importante tarefa no âmbito ético, qual seja, atuar na busca de outros compromissos ético-políticos que se afastem da perspectiva utilitária de agentes supostamente autônomos e racionais.
Todos estamos envolvidos em nossas missões de carregar esta carga excessiva de responsabilidades individuais que atuam como imperativo e modelo de referência em várias dimensões, não só da saúde como também da vida econômica e social. Como se fosse viável a obrigação de se produzir soluções pessoais para complexidades e paradoxos produzidos sistemicamente.
Todos somos, de alguma maneira, colocados na obrigação de lidar com propostas irrealistas de administração de supostos benefícios diante de custos estipulados a priori em um quadro de opções bastante restritas em termos de projetos humanos de felicidade afastados de perspectivas coletivas emancipatórias. Os projetos que apontam para uma ideia de felicidade disponível no mercado se confundem com autossatisfação e, infelizmente, para a maioria dos mortais, possuem um prazo de validade determinado.
Enfim, vivemos numa época acelerada de riscos, prevenções e responsabilidades individuais em meio a impressionantes avanços tecnológicos que podem nos trazer longevidade, confortos, mas também desconfortos. Para terminar com certo humor, cabe a anedota de Carl Elliott no desfecho de seu livro referido acima, em função dos muitos estímulos que têm aqueles com poder aquisitivo para buscar autossatisfação através de tecnologias de aprimoramento para terem certeza existencial de usufruírem suas vidas ao máximo. O trem saiu da estação e não sabemos para onde está indo. O mínimo que podemos fazer é estarmos seguros que está fazendo a viagem sem problemas, sem atrasos, com boa velocidade.