segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

divulgação: O PLISSADO BARROCO DA PINTURA

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
O PLISSADO BARROCO DA PINTURA - Por Christine Buci-Glucksmann*
Imagine o jogo inicial, infinitamente variado, de três elementos pegos na sua dinâmica pictórica: uma estrutura, aquela das grandes pinceladas uniformes de cor, monocromáticas, disformes e sempre vibrantes; figuras, puros acontecimentos estáticos de corpos deformados, espasmados, habituados a todas as violências e rompendo com seu rio de carne as intenções narrativas ou figurativas da pintura; e finalmente, contornos delimitando um lugar, organizando um espaço fechado e atordoante. Tal seria a aventura de um Bacon segundo Deleuze, uma pintura da Figura e do Grito, um sentir crucificado e convulsivo de onde nasce a inteligência da matéria: uma «lógica da sensação» (1).
Dezessete seqüências então, quase musicais, onde o entrecru-zamento de diferentes planos do sentir e da análise levam a descrição dos quadros e a história da pintura, reinterpretada a partir da arte bizantina e de Cézanne, ao seu ápice. Este abismo, esta plenitude de presença - este «excesso histérico» onde o pensamento corre o risco de se perder em seu silêncio ou na profusão das aparências, caso ele não se meça pelo que se arrisca mesmo na pintura: «De todas as artes, a pintura permanece sem dúvida a única que integra necessariamente, histericamente, sua própria catástrofe»(2).
Mas agora como abranger o caos? E como em filosofia escrever sobre esta pintura de Bacon que rejeita o código lingüístico da abstração visual, sem por isto desposar o informal, apintura-catástrofe e gestual de um Pollock? De onde o paradoxo central de Bacon: construir uma lógica da sensação - um tipo de topologia das forças - naquilo que escapa a toda a lógica conceituai: as sensações colorantes e este furor de esvaziar todo o clichê, toda a imagem pré-pictórica de sua banalidade para fazer aparecer a figura mesma, para além de todo o figurativo. Dos «corpos sem órgãos» de Bacon, os corpos em horrível ou torturado, mas o corpo mesmo da tortura, seu acontecimento aqui e agora.
Porque «a cor está no corpo, a sensação está no corpo e não nos ares. A sensação é isto que é pintado»'3'. No sentido absoluto, se é verdade que a sensação não está nem no objeto representado (um corpo violentado), nem em um elemento empírico isolável (tal amarelo), nem mesmo num simples sentimento, seja ele negativo (suscitar o desgosto ou o horror), ela seria sobretudo o efeito de fronteira, de contexto e de diferença, tal como este suspender camadas finas de matéria saídas do trabalho manual do pintor, que se dá de um só golpe no movimento forçado, pregueado e despregueado, no corpo-carne do Triptych de 1970: Studies of the human body. Uma amálgama de cinza-rosa-negro à Velasquez, repentinamente plissado em um espasmo de violência e de afetos. Do grito como premissa no entrelaçamento de uma incisão verde, surgida do vazio transparente de uma pincelada uniforme alaranjada onde a luz da cor vibra. Corpo intenso, violento e excessivo que agiu diretamente sobre o cérebro.
É por isso que não se saberia analisar aqui a pintura no par estético hegeliano da forma e do fundo. A captar energias invisíveis, ela só pode explorar a radicalidade barroca da diferença material/força em movimento apagando o limite do sensível e do inteligível. Como se o regime da luz, a potência do material forçassem a pensar. E, sem dúvida, a «lógica da sensação» seria ela o avesso de toda uma outra lógica, aquela do simulacro e do trompe-1'oeil. A se construir num teatro de matérias sem espetáculo mas não sem testemunha, o acontecimento pictórico conduz a alma no atordoamento do corpo, nas «pregas da matéria» em seu hystéresis (4). A força insensível daquilo que faz gritar em uma «figura sem horror» que não parece menos horrível. O grito «à morte» de Tosca ou de Lulu...
Histeria e carne da pintura: os termos de Deleuze, em seu equívoco, não devem deixar pensar que a lógica da sensação se releva de uma fenomenologia da «carne» do mundo no sentido de Merleau-Ponty (a despeito de quaisquer proximidades), nem com mais razão de uma lógica freudiana. Toda sensação remetendo a uma força fará do corpo o material da figura. Suas leis são os ritmos plissando os corpos e os submetendo a energias plásticas de desagregação, de deformação ou de isolamento. Toda uma «concepção muscular da matéria» já próxima de Leibniz(5).
Também, se o ser é prega, suas dinâmicas se repartem nestes dois andares próprios à alegoria da «casa barroca»(6). Aquele dos corpos em baixo com suas cavidades violentas («prega da matéria») e aquele das almas no alto, em sua ascensão alada toda espiritual, como no quadro de Greco, O enterro do Conde de Orgaz. Mas, à diferença da glória (defunta) do barroco, os corpos de Bacon caem infinitamente e a elevação não é mais religiosa: o aéreo não toca mais que as pinceladas uniformes de cor onde a luz cria o ritmo e a melodia, como no misticismo luminoso de um Rothko.
Desde então, neste mundo saturado de forças, a visão pictóri-ca, sempre para além do único ver ótico, não saberia surgir de um vazio, de um Olhar castrado, da «voyure» no sentido de Lacan. Se a pintura é bem «histérica», o olho da pintura, o terceiro olho, não é jamais ótico mas áptico. De haptein, tocar. Tocar com os olhos, ver o mundo como um tecido, uma textura, um papel plissado, um tecido veneziano.
E compreenderemos então que esta visão tátil e multisensível do Olhar reconduz a matriz dos três elementos de Bacon ao que o unifica e o organiza: a cor no sentido muito forte de Goethe no seu Tratado. A cor, como potência de clareza e energia, tato do ver e capacidade musical. Cores - cores fluidas de figuras, cores-estruturas e forças de pinceladas uniformes, cores-linhas: a lógica das sensações não é senão a análise dos regimes de cores, de suas modulações e de seus diferenciais. Tal seria o fundo da lição de Cézanne para Bacon: uma lógica colorida do abismo, com toda a potência formal do material.
Que uma tal lógica desempenha um papel privilegiado e limite na obra de Deleuze é certo. Porque ela se confronta em permanência ao «mal» da matéria, à sua catástrofe, ela seria um tipo de ponto entre a Lógica do sentido com suas figuras, acontecimentos e paradoxos e esta outra lógica toda leibniziana, do último livro: Le Pli (Leibniz et le Baroque). Mania de Deleuze: como constituir uma lógica das singularidades que não deixe jamais o sentido sem se confundir com ele. Mania do barroco: nas retóricas de Gracian ou de Tesauro,o conceito não é jamais conceito, ele não deixa mais a «carne» da língua e do mundo, procedendo por analogia e metáfora, dissonância e consonância em uma «nova harmonia».
Talvez a lógica da sensação remeta já àquela da Prega. Os corpos-pregas e tormentos desta violência vinda da Irlanda não param de evocar o traço fundamental do barroco segundo Gilles Deleuze: «A prega que vai ao infinito», a forma em suas inflexões, suas modulações, suas variações, se esgotando para fazer renascer sempre a fenda e o buraco(7).
Um barroco do pleno, do desdobramento sem fim onde as maneiras remetem ao teatro das matérias em ausência de toda a retórica e efeitos de língua. Uma lógica sensível e do sensível, inventando, como Deleuze em sua escrita, o plissado prometendo um novo tipo de expressão: «a entre-expressão, prega segundo prega». Uma loucura de pregas, o incomensurável e a desmedida do mundo-prega. Que um tal paradigma maneirista e musical duplifique uma dinâmica barroca das forças explica sem dúvida a pregnância de uma lógica de duas entradas que abre e fecha a prega: «dois andares» do barroco. Como se o livro-labirinto de Deleuze irradiasse a partir de um ponto selado. Certo, tudo é ponto de vista, multiplicidade e perspectiva. Mas, como em certos jogos, só há duas entradas para atingir um centro ausente: pregas da matéria onde cada forma se inclina, se espasma, se metamorfoseia e se anamorfisa, até o adormecimento, o desmaiar das marcas mudas. E pregas da alma, onde todo o real de um mundo submetido ao princípio da razão retorna a cada coisa espiritual (as «mônadas») em uma série de acontecimentos que ela inclui. Inflexão e inclusão, duas faces distintas e idênticas de um mesmo mundo e entre, no Entre-dois-plissado, todo o entrelaçamento infinito das analogias entre a alma e o corpo. Talvez a pintura, que Bacon diz ser «linguagem analógica» por excelência, exploraria este «entre as pregas» misterioso, sempre ao limite de...
Da Pintura-Grito de Bacon a estes curiosos «gritos-premissa» de um Leibniz, a mesma coisa não diferindo senão pela maneira? A pintura seria então este grande maneirismo de corpos desenhando a grande dramaturgia das almas pelas suas posturas, a fluidez de sua matéria e o fundo sombrio de suas «pequenas percepções». Estes pequenos azuis de Cézanne ou estes pequenos rosas de Bacon...
No fundo, isto é o barroco segundo Gilles Deleuze: «O esplêndido momento onde se mantém qualquer coisa mais do que nada» (8). A última glória de um mundo pirâmide e cúpula, conjurando o vazio em sua ponta luminosa e conceituosa, sem outro pecado que este ódio-furor de Deus próprio aos condenados, toda esta «raiva da razão» que freme no plissado barroco dos corpos de Bacon e o trançado também denso que secreta a escrita da Prega. «A alma na ponta dos dedos» dizia Diderot, tais as últimas vibrações sonoras de uma Ópera do pensamento: seu sutil-sublime e seu ouvinte-ver. In furore...
* Filósofa e diretora do Collège International de Philosophic.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» nº 257, set./1988. Tradução do francês por Carmen Bello.
NOTAS
1. Francis Bacon. Logique de Ia sensation. Ed. de la Différence.
2. Idem, p. 67.
3. idem, p. 27.
4. Sobre esta histeria da pintura, cf. o capítulo VII e, mais particularmente, a p. 37 ("com o pintor, a histeria tornou-se pintura") e p. 41 (sobre o Grito).
5. Francis Bacon, capítulo III: o atletismo e Le Pli. Leibniz et le baroque (Ed. Minuit) p. 6 e ss.
6. Le Pli, pp. 7,41, 133 e ss. "O que é propriamente barroco é esta distinção e repartição de dois andares."
7.Le Pli,p. 51.
8. Le Pli, p. 92.
cooperação.sem.mando

sábado, 29 de janeiro de 2011

divulgação: A ESQUIZO-ANÁLISE

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
A ESQUIZO-ANÁLISE - Por François Ewald
1972: aparecia O Anti-Édipo. Que brisa, que alegria, que liberdade! De que outro livro poderíamos dizer que tivesse exprimido tanto a filosofia de maio de 1968? Do acontecimento político a O Anti-Edipo, a mesma insolência soberba. Já se estava farto. Já não era mais hora de discutir, ou seja, de ter que se justificar. Não há o que discutir com Freud. Somente morrer de rir diante das suas histórias de Edipo, como se tudo na vida, a política, a literatura, a doença, se devesse reduzir a pequenas histórias de família: papaimamãe- pipi. No momento em que alguns sonhavam que o movimento saído de 68 chamava à grande aventura - Freud com Marx - Deleuze-Guattari jogavam Marx contra Freud. Não que O Anti-Edipo seja um livro marxista, mas porque se não se pode acreditar nas histórias de Freud é necessário utilizar Marx, colocá-lo em máquina, extenuá-lo. Com O Anti-Edipo, Deleuze e Guattari quebram os códigos, mudam os signos, franqueiam a linha e engajam a filosofia em vias nunca antes traçadas.
O Anti-Edipo é um livro voraz, opressivo, por vezes fulgurante, engraçado, apressado, uma torrente que corre numa arquitetura demonstrativa simples. O primeiro capítulo lança, sem precaução, o jogo das categorias da nova psicologia, o mapa do mundo. Mas, pode-se ainda falar de psicologia? A noção central é a das máquinas desejantes. Uma noção complexa - há máquinas desejantes de todas as dimensões supra, infra-individuais, molares, moleculares - que chamam muitas outras, todas inéditas no sentido em que aqui são usadas: corpo sem órgãos (Artaud), devir, códigos, fluxo, território, ter-ritorialização, agenciamento, multiplicidade, intensidade. O inconsciente (ou o desejo)? Não o recalcado, o pequeno segredo sujo, o inconfessável ou o vergonhoso, mas máquinas, máquinas de máquinas, uma fábrica incessantemente ocupada em produzir. No momento, nossas imagens familiares, nossos pequenos conhecimentos freudianos (id, ego, superego) são perturbadas, diminuídas, derrotadas. Se o inconsciente (o desejo) é máquina, então, evidentemente, não existe sujeito do inconsciente; ele é, de saída, coletivo, político, social, histórico. O inconsciente (o desejo) não tem complexos, ele produz. O quê? Sujeito? Algumas vezes, em determinadas conjunturas, mas não necessariamente. O inconsciente máquina produz tudo: a terra, os homens sobre a terra, suas relações, territórios com múltiplos devires possíveis.
Você quer fazer psicologia? Deleuze e Guattari dizem: aprenda a história, percorra as grandes formações da história universal -«selvagens, bárbaros, civilizados» -,espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do economista, empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo, as disciplinas que relatam no seu conjunto e na diversidade as produções do desejo. Mas, e é o propósito do projeto de« esquizo-análise » que termina O Anti-Édipo, aprenda a lê-las sem nunca as interpretar, ou seja, as decompor certo do mesmo e do idêntico. Aprenda a ver o puro múltiplo que aí está em construção.
1980. Oito anos se passaram. As intensidades de 68 já estão longe. Marx e Freud não são mais referências (e motivo). Aparece Mille Plateaux: «A continuação e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia cujo primeiro volume era O Anti-Édipo». Maturação, aprofundamento, Mille Plateaux é um livro suntuoso que retoma e desenvolve os temas de O Anti-Édipo. O Anti-Édipo era um livro maravilhosamente polêmico, mas um livro contra. Aí reinava uma presença obsessiva da psicanálise. Mille Plateaux é um livro completamente positivo, sem inimigos, sereno, certo da sua própria positividade. Mille Plateauxcura livro pacificado, singular, que se situa resolutamente no exterior dos campos de referências tradicionais, pelas categorias que ele constrói, agencia e desenvolve, assim como pela forma do livro: a descrição por «platôs paralelos e correspondentes». Tem muito poucas questões de inconsciente e psicanálise; a oposição máquina de guerra-aparelho de Estado substitui o par capitalismo-revolução. Quase ausente de Mille Plateaux a grande questão que atravessava O Anti-Édipo: «Mostrar como o desejo pode estar determinado a desejar a sua própria repressão no sujeito que deseja».
Mille Plateaux, de que se trata? Como isto se organiza? Como um tratado de filosofia, depois da ruptura, quando o filósofo, o grande nômade, resolveu desertar da filosofia dos códigos, dos territórios e dos estados, a filosofia do comentário. Mille Plateaux é um grande livro porque, com ele, a filosofia ascende a um de seus devires improváveis. Mille Plateaux desenvolve uma filosofia verdadeira, ou seja nova, inaugural, inédita. Duas grandes filosofias nunca se assemelham: é porque elas não são nunca da mesma família. A filosofia não se desenvolve segundo uma linha arborescente de evolução, mas segundo uma lógica dos múltiplos singulares. A questão que Deleuze e Guattari retomam é esta: de que se ocupa então a filosofia se ela não pode nunca se exprimir senão de uma maneira incomparável? Não, evidentemente, do que poderia ser comum a todas as filosofias: do universal, do verdadeiro, do belo e do bem. Deleuze e Guattari respondem: do múltiplo puro sem referência a um qualquer Um, da diferença pura, das intensidades que individualizam, das estida-des. Mille Plateaux é um acontecimento na ordem da filosofia. E ler Mille Plateaux é se perguntar: 1980, Mille Plateaux, o que é que aconteceu?
Mille Plateaux contém todas as componentes de um tratado de filosofia clássico: uma ontologia, uma física, uma lógica, uma psicologia e uma moral, uma política. Unicamente não se vai de uma para a outra segundo uma lógica de desenvolvimento, do fundador ao fundado, dos princípios às conseqüências. Deleuze e Guattari dão o maior privilégio ao espaço sobre o tempo, ao mapa sobre a árvore. Tudo é coextensivo a tudo. As divisões também, não podem corresponder senão a placas, a estrias paralelas, com diferenças de escala, de correspondência e de articulações dos platôs, datados mas co-presentes.
Deleuze e Guattari concebem a ontologia como geologia: no lugar do será terra, com seus estratos físico-químicos, orgânicos, an-tropomórficos. O que é que faz a terra? Quem fez da terra o que ela é? Quem deu este corpo à terra? As máquinas, sempre as máquinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas. Mecanosfera. A filosofia de Mille Plateaux não concebe oposição entre o homem e a natureza, a natureza e a indústria, mas simbiose a aliança. A lógica da mecanosfera não conhece nem a negação nem a privação. Não há aí nada senão devires, sempre positivos, entre os quais os devires perdidos, bloqueados, mortos. Positividade do esquizo.
Como se fazer um corpo sem órgãos? E de que é que se trata num devir? Sem dúvida nunca, antes de Mille Plateaux, se tinha ido tão longe na crítica da representação e da significação, na colocação à luz do que se relaciona a uma representação. Não um significante, mas sempre um ato, uma ação. O «platô» intitulado «Postulados da lingüística» subverte a abordagem à linguagem, de Ferdinand de Saus-sure a Chomski, em torno das noções de «palavra de ordem» e de «redundância» de «forma de conteúdo» e de «forma de expressão».
As últimas duzentas páginas de Mille Plateaux assemelham-se a um tratado de filosofia política. Aí se coloca a questão do Estado e do seu outro: o nômade. Deleuze e Guattari transformam a questão política: eles a arrancam à sua colocação histórica, ao esquema de evolução. O problema não é saber quando nem porque isto acabou mal: o Estado sempre aí esteve, delimitando o. espaço, fixando as identidades. Mas, desde sempre, ele tem o seu outro, no nômade e a máquina de guerra. Eis o que transforma a questão do que se pode querer em política. Não se tem mais que sonhar com uma desaparição do Estado, mas escolher: preferir o exercício do significante um, a ordem e os cadastros, bloquear os devires, ou se dotar de uma máquina de guerra e se fazer nômade.
O Anti-Edipo, Mille Plateaux, obedecerão eles a um método comparatista? Sem dúvida. Como todos os grandes comparatistas do século - Georges Dumézil, Michel Foucault - Gilles Deleuze e Félix Guattari odeiam a interpretação. «Interpretar, dizem eles, é a nossa maneira moderna de crer e ser piedoso.» A interpretação eles opõem a experimentação. O seu método, a esquizo-análise ou pragmática, obedece às regras de um positivismo radical. Não se trata de amar a ciência mas de produzir fatos. Os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia são uma máquina de produzir fatos, como tal inéditos. A sua importância é renovar de alto a baixo os fatos de que trata a filosofia e que tramam nossa existência.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» nº 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
cooperação.sem.mando

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"qual é a sua graça?"

Hoje foi dia de lutas no jardim. As chuvas que tem molhado todos os dias por aqui, dão viço às gramas e aos inços da época. Numa parte do jardim, coloquei em combate com a grama, o poderoso boldo (que não serve só pra ajudar o "figo" a se livrar de si) que tem a capacidade de vencê-la... o boldo venceu e liberou um eito de terra pra plantar as coisas que não tem forças pra lutar com a grama.
Quando estou dedicada à essa tarefa que se dá rente à rua, é tempo, também, das conversas com a vizinhança. Todos param pra conversar alguma coisa, enquanto me ergo do chão e alivio um pouco as costas e as pernas.
Dia desses uma vizinha perguntou se eu não teria cavalinha "nos fundos" da casa. Não tenho, mas consegui a cavalinha noutra vizinha que a cedeu com todo gosto, dizendo que "isso é uma praga que depois que pega, toma conta do terreno".
Estava eu nessa labuta braçal e literária, quando parou um moço que perguntou "qual é mesmo sua graça?"... pensei rápido em responder que minha graça pode estar em qualquer coisa que me faça inventar alguma coisa ou pensar à toa... mas o moço era tão sério e impressionante que respondi com urgência, sem pestanejar "minha graça é maria luiza", com vontade de rir por reconhecer que minha graça pudesse ser eu mesma... há muito tempo que ninguém me perguntava por "minha graça"... e o moço prosseguiu: "só queria me desculpar com a senhora, porque antes de ontem roubei um girassol aí do seu jardim... é que minha mulher estava de aniversário e quis fazer um agrado pra ela e quando vi a flor não me assegurei e levei"... perguntei: "e ela gostou?"... seus olhos brilharam e ele respondeu: "ela ficou demais de contente, porque nunca tinha ganhado um girassol e achou tão bonito!"... então disse-lhe que por causa tão bonita, não havia porque se desculpar e pedi que esperasse um pouco... entrei em casa e busquei um punhado de sementes de girassol... disse-lhe que, se ele tivera a idéia e se a companheira gostara tanto da flor, poderiam plantar em seu próprio jardim e teriam as flores todos os dias possíveis... ele marejou os olhos e disse que não tinham jardim, pois tinham pouco tempo e dinheiro... disse, ainda, que ele trabalha "de biscate e ela de faxina"... falei que não seria necessário muito tempo e nem dinheiro, basta querer, ter uma terrinha, mudas e sementes, e tá feito o jardim... ele pegou meu embrulho com as sementes e perguntou se não seria desaforo me dar um abraço... abracei-lhe como resposta e prometi que noutro dia providenciaria as mudas de algumas plantas para que ele possa ir ampliando o jardim!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

divulgação: FOUCAULT, DELEUZE: UM DIALOGO FECUNDO E ININTERRUPTO

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
FOUCAULT, DELEUZE: UM DIALOGO FECUNDO E ININTERRUPTO - Por François Ewald
Gilles Deleuze e Michel Foucault encontraram-se em 1963. Era a véspera da aparição do Nietzsche. Michel Foucault queria trazer Gilles Deleuze como professor para a Universidade de Clermont-Ferrand, onde ele mesmo ensinava. A coisa não se realizou, tendo o Ministério da Educação preferido nomear Roger Garaudy para este cargo. Mais tarde, em 1969, Gilles Deleuze viria substituir Michel Foucault na Universidade de Vincennes-Paris VIII.
Uma profunda amizade, misturada a um grande respeito, ligará os dois homens, cada um nunca deixando de estar atento ao trabalho do outro onde ele sabia encontrar ecos do seu próprio pensamento. Em novembro de 1970, Michel Foucault fará, na revista «Critique», uma exposição de Diferença e Repetição e Lógica do sentido: «Necessito falar», escrevia Michel Foucault, «de dois livros que me parecem grandes entre os grandes. Tão grandes, sem dúvida, que é difícil falar deles e que poucos o fizeram. Creio que durante muito tempo esta obra pairará sobre as nossas cabeças, em ressonância enigmática com a de Klossowski, outro sinal maior e marcante. Mas um dia, talvez, o século será deleuziano». E, numa nota em Surveiller et Punir (p. 20), Michel Foucault escrevia: «De qualquer forma, eu não saberia medir em referências ou citações o que este livro deve a Gilles Deleuze e a seu trabalho com Félix Guattari». Ainda na revista «Critique», lugar privilegiado do seu diálogo, Gilles Deleuze fará a exposição de Arqueologia do saber - «um novo arquivista» - e de Vigiar e Punir - «escritor ou não, um novo cartografo».
A proximidade entre Gilles Deleuze e Michel Foucault era também política: na véspera do Maio de 68, Gilles Deleuze juntar-se-á ao Grupo de Informação sobre as Prisões (G.I.P.) principalmente animado por Michel Foucault. E numerosas fotos os apresentam juntos nas manifestações de intelectuais contra os abusos policiais e judiciários.
Momento privilegiado desta conivência: a entrevista aparecida em 1972, no número de «L'Arc» consagrado a Gilles Deleuze, onde os dois filósofos, cada um no seu próprio estilo, analisam a transformação das relações teórico-práticas características da nova conjuntura política.
Este diálogo necessário devia prosseguir depois da morte de Foucault (1984). Gilles Deleuze consagrar-lhe-á o seu penúltimo curso e publicará, em 1987, o livro maior sobre Michel Foucault: é, diz ele mesmo, o livro que ele teria gostado de escrever com ele.
Publicamos aqui dois textos que testemunham este diálogo ininterrupto.
Artigo traduzido e retirado da revista «Magazine Iittéraire» nº 257, set./88. «Foucault e Deleuze; um diálogo...» e «II - Foucault, historiador do presente» em tradução de Ana Sacchetti. «I - Anti-Edipo: uma introdução...» em tradução de Carmen Bello.
NOTA MINHA: O escrito "I - Introdução à vida não fascista", de Michel Foucault, foi postado neste blog em 8 de novembro de 2010, em: http://marialuizadiellooutrascompotas.blogspot.com/2010/11/divulgacao-i-introducao-vida-nao.html

II - FOUCAULT, HISTORIADOR DO PRESENTE - Por Gilles Deleuze *
A conseqüência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação, que se afasta do Eterno para apreender o novo. Não é suposto que o novo designe a moda mas, ao contrário, a criatividade variável seguindo os dispositivos: de acordo com a questão que começou a nascer no século XX, como é possível a produção de qualquer coisa nova no mundo? E verdade que, em toda a sua teoria da enunciação, Foucault recusa explicitamente «a originalidade» de um enunciado como critério pouco pertinente, pouco interessante. Ele quer somente considerar a «regularidade» dos enunciados. Mas o que ele entende por regularidade é a amplitude da curva que passa pelos pontos singulares ou os valores diferenciais do conjunto enunciativo (da mesma forma ele definirá as relações de forças por distribuições de singularidades num campo social). Quando ele recusa a originalidade do enunciado, quer dizer que a eventual contradição de dois enunciados não é suficiente para os distinguir, nem para afirmar a novidade de um em relação ao outro. Porque o que conta é a novidade do próprio regime de enunciação, no momento em que ele pode englobar enunciados contraditórios. Por exemplo, se perguntará qual o regime de enunciados que apareceu com o dispositivo da Revolução francesa, ou da Revolução bolchevique: é a novidade do regime que conta, e não a originalidade do enunciado. Assim, todo o dispositivo se define pelo seu conteúdo exato de novidade e criatividade, que marca, ao mesmo tempo, a sua capacidade de se transformar, a menos que, ao contrário, seja desprovido de força sobre suas linhas mais duras, mais rijas ou mais sólidas. Na medida em que elas escapam das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetiva-ção parecem particularmente capazes de traçar os caminhos de criação, que não cessam de abortar mas também de ser retomados, modificados até a ruptura do antigo dispositivo. Os estudos ainda inéditos de Foucault sobre os diversos processos cristãos abrem, sem dúvida, numerosas vias a este respeito. Não se acreditará portanto que a produção de subjetividade esteja reservada à religião: as lutas anti-religiosas são igualmente criadoras, da mesma forma que os regimes de esclarecimento, de enunciação ou de dominação passam pelos domínios mais diversos. As subjetivações modernas não se parecem mais com as dos gregos do que com as do cristãos, e o mesmo se passa com o esclarecimento, os enunciados e os poderes.
Pertencemos a dispositivos e agimos neles. A novidade de um dispositivo em relação aos precedentes chamamos a sua atualidade, a nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nos tornamos, o que estamos a caminho de nos tornar, ou seja, o Outro, nosso tornar-nos-outro. Em qualquer dispositivo é preciso distinguir entre o que somos (o que já não somos mais) e o que estamos a caminho de nos tornar: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho disto que somos e que deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço do que nos tornamos. Se bem que a história ou arquivo é isto que nos separa de nós mesmos, enquanto o atual é este Outro com o qual já coincidimos. Acreditou-se por vezes que Foucault desenhava o quadro das sociedades modernas como outros tantos dispositivos disciplinares, por oposição aos velhos dispositivos de soberaneidade. Mas não se trata disso: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que deixamos de ser pouco a pouco, e nossa atualidade se delineia em dispositivos de controle aberto e contínuo, muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault está de acordo com Burroughs, que anuncia nosso futuro mais controlado que disciplinado. A questão não é saber se isto é pior. Já que também apelamos para produções de subjetividade capazes de resistir a esta nova dominação, muito diferentes daquelas que se exerciam recentemente contra as disciplinas. Uma nova luz, novas enunciações, uma nova potência, novas formas de subjetivação? Em qualquer dispositivo devemos distinguir as linhas do passado recente e as do futuro próximo: a parte do arquivo e a do atual, a parte da história e a do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo, é porque se serviu da história em proveito de outra coisa: como dizia Nietzsche, agir contra o tempo e assim sobre o tempo, em favor, eu o espero, de um tempo por chegar. Porque, segundo Foucault, o que aparece como o atual ou o novo é aquilo que Nietzsche chamava o intempestivo, o inatual, este devir que se bifurca com a história, este diagnóstico que assegura a continuidade da análise com outros caminhos. Não predizer, mas estar atento ao desconhecido que bate à porta.
Nada o demonstra melhor que uma passagem fundamental de Archéologie du savoir, válida para toda a obra (p. 172): «A análise do arquivo comporta, portanto, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, é a borda do tempo que envolve nosso presente, que o cobre e que o indica na sua alteridade, é aquilo que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo abre suas possiblidades (e a maestria de suas possibilidades) a partir dos discursos que, justamente, acabam de deixar de ser os nossos; o seu patamar de existência é instaurado pelo corte que nos separa daquilo que não podemos mais dizer, e do que sai fora de nossa prática discursiva; ela começa com o exterior de nossa própria linguagem; seu lugar é o distanciamento de nossas práticas discursivas. Neste sentido, ela é válida para o nosso diagnóstico. Não porque ela nos permitisse traçar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar antecipadamente a figura que teríamos no futuro. Mas ela nos desprende de nossas continuidades; ela dissipa esta identidade temporal onde gostamos de nos olhar a nós mesmos para afastar as rupturas da história; ela quebra o fio das teologias transcendentais; e lá, onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade, ela faz surgir o outro, o exterior. O diagnóstico assim entendido não estabelece a constante da nossa identidade pelo jogo das distinções. Estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras».
As diferentes linhas de um dispositivo se repartem em dois grupos, linhas de estratificação ou sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última conseqüência deste método diz respeito a toda a obra de Foucault. Na maior parte de seus livros, ele assegura um arquivo bem delimitado, com meios históricos extremamente novos, sobre o hospital geral no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão no século XIX, sobre a subjetividade na Grécia antiga, depois no cristianismo. Mas é a metade da sua tarefa. Já que, por preocupação de rigor, por vontade de não misturar tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra metade. Ele a formula, só e explicitamente, nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus grandes livros: que se passa hoje com a loucura, a prisão, a sexualidade? Que novos modos de subjetivação vemos aparecerem hoje que, certamente, não são gregos nem cristãos? Particularmente esta última questão obcecou Foucault até o fim (nós que não somos mais gregos, nem mesmo cristãos...). Se, até o fim da sua vida, Foucault deu tanta importância às entrevistas, na França e mais ainda no estrangeiro, não foi pelo gosto da entrevista, mas porque ele aí traçava estas linhas de atualização que exigiam um outro modo de expressão que as linhas assinaláveis nos grandes livros. As entrevistas são diagnósticos. É como em Nietzsche, de quem é difícil ler as obras sem aí juntar o Nachlass contemporâneo de cada uma. A obra completa de Foucault, tal como a concebem Defert e Ewald, não pode separar os livros todos marcantes e as entrevistas que nos conduzem para um futuro, para um devir: os estratos e as atualidades.
* Este texto foi extraído da intervenção de Gilles Deleuze no colóquio «Mi-chel Foucault, filósofo», realizado em janeiro de 1988 pela Associação para o Centro Michel Foucault.
cooperação.sem.mando

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

sem título

A comunidade de Porto Alegre vive, mais uma vez, o sério dilema com relação à atuação dos profissionais da área médica no campo da saúde pública. Essa pendenga, por conta do corporativismo da categoria, já derrubou vários secretários municipais de saúde da capital. No atual capítulo, o Sindicato dos Médicos aproveita o pano da criação de uma Fundação de Saúde e costura com a questão da atuação dos profissionais.
O Secretário de Saúde argumenta que com a criação da Fundação seria possível, inclusive, melhorar os salários pagos aos profissionais médicos e cobrar o cumprimento da carga horária. Mas o que sustenta a idéia de que somente o salário desses profissionais deva ser qualificado? E, em não sendo Fundação, não se pode cobrar o cumprimento da carga horária e da efetiva atuação?
Essa situação não é característica somente de Porto Alegre. A grande maioria das comunidades enfrenta a mesma dificuldade e há muitos pontos a serem modificados no campo da saúde pública. Vejamos alguns:
1. Saúde pública não é feita somente por profissionais da área médica. O médico é somente um dos profissionais que atua no campo da saúde. É comum os profissionais das outras áreas, por conta de uma formação cultural e profissional conservadora, acabarem submetendo a própria prática ao crivo e determinação do colega médico, não assumindo aquilo que seja da sua responsabilidade; assim como, é comum, também, o médico impor o saber de sua área como o saber dominante.
2. O fato da maioria das comunidades ser guiada pelas práticas curativas e medicalizadas, torna comum a expectativa das pessoas de serem atendidas pelo profissional da área médica, não aceitando o atendimento integral produzido pelo coletivo de profissionais de diferentes áreas; portanto, ao não encontrarem o médico na unidade de saúde, entendem que estejam sem atendimento.
3. A velha cultura do médico que porta a verdade sobre a doença e a saúde do usuário, fazendo-o um mero paciente que não produz nenhum protagonismo sobre si, transforma esse usuário num refém de práticas definidas por gavetas e prontuários.
4. A maioria dos Concursos Públicos descuida em definir de forma mais aproximada do campo da saúde pública, as características dos profissionais a serem selecionados. Essa é uma condição que acaba gerando o ingresso de profissionais, de todas as áreas, mas principalmente da área médica, sem nenhum interesse pela produção de trabalho em saúde pública.
5. É comum vermos profissionais, principalmente da área médica, que comparecem nas unidades de saúde por breves instantes, atendem um número X de "fichas" e se retiram, sendo, inclusive, acobertados por colegas de outras áreas que guardam a devida subserviência à essas situações. O uso do argumento de que os profissionais dessa área contam com amparo legal para atenderem tal número de "fichas", limita-se à atuação no SUS, pois, concluído o atendimento das "fichas", acabam indo para o consultório particular, onde não há limite de "fichas".
6. Não se trata somente de cumprir uma carga horária, pois o profissional pode estar em tempo integral em seu espaço de trabalho e não estar envolvido ou guiado pelas práticas em saúde pública. Em primeiro lugar, o não cumprimento da carga horária para a qual o trabalhador público foi nomeado ou contratado, constitui-se num absoluto desprezo e desrespeito para com o coletivo e a coisa pública; em segundo lugar, é ter muita cara de pau, pensar que enquanto os demais trabalhadores estão ralando e trabalhando, alguns que se creem acima dos demais (e isso se refere à todas as áreas profissionais) podem atuar de forma precária, em tempo reduzidíssimo e ainda se dar ao direito de sair pela sombra.
Enfim, poderíamos seguir os andaimes, mas por hoje já deu... tenho estertores quando começo a pensar nessas coisas... em profissionais precários e irresponsáveis, que são contratados 20 ou 40 horas semanais e que atuam no máximo em 20% desse tempo (e se atuassem mais tempo não mudaria suas práticas precárias)... em profissionais contratados que se outorgam o direito a férias e, além de não trabalharem regularmente, cobram, nessas férias,  para emitir documentos ou atender os usuários do SUS... em profissionais de diferentes áreas que fazem acordos com gestores, para redução remunerada de suas cargas horárias, sob o argumento de que os médicos tem "o direito" à jornada reduzida, o que lhes garante  o mesmo "direito"... em profissionais que justificam o seu não cumprimento da carga horária e do efetivo trabalho, comparando suas atuações às dos colegas e argumentando que se os outros conseguem cumprir, é por não terem outras atividades fora do trabalho público... em profissionais que mal olham para os usuários, fazendo atendimentos relâmpago e surdos... e por aí vai!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sim, uma humana pescadora!


Arrecado sonhos jogados pelas esquinas. Percorro as veredas das zonas de meretrício, e recolho as vidas que escorrem pelas calçadas. Pego caronas incertas, em certas estações. Certas. Bem certas. Jogo sementes em precipícios. Algumas serão bonsai. Outras, somente sementes. Jogos sementes ao vento. Algumas serão árvores. Outras, arbustos. Jogo sementes em terra fértil. Algumas brotarão, crescerão, florirão e frutificarão. Outras, apenas florirão. Ou crescerão. Não há rumo certo, exato, para uma semente. Nem pra vida há rumo certo. Jogo rizomas pelos terrenos em que passo. A vida simplesmente acontece, se transversaliza, é rizomática. Vida feito raiz, é apenas um rabanete, um nabo, uma cenoura, uma beterraba... vida rizomática se espalha e toma o terreno, faz a volta em suas bordas e se perde nos confins do mundo, tramando redes, tecendo teias.
Tomo liberdades com as palavras... componho-as... decomponho-nas... invento-as... desinvento-nas... tenho (des) interesse pelo que elas são... interesso-me mais, pelo que não são ou pelo que é dito que não podem ser. Não me apego na fixidez das raízes. Sou, ao mesmo tempo, eremita e tribal.
Aproveito os comentários na postagem sobre a vinda da mais nova pescadora da família diello, para resgatar umas anotações que dormiam esquecidas em meus papéis de embrulho.
Claudinha, vegana, pergunta: pescadora? Sim, Claudinha, uma humana pescadora.
Lembro do comercialmente-comercial filme “Austrália” (comercial, mas de uma ímpar beleza fotográfica e de um interessante retrato cultural)... Nuhlah, um pequeno mestiço australiano, cruza de uma mãe aborígene com um inglês explorador, que diante das dificuldades invocava seu avô aborígene (Rei George) que orientava sua vida e lhe ensinava a ser mágico, a ser mago, a ser gullaca. Eis o que me vem da mágica dos nativos, dos negros, dos índios de todas as terras: não se pode aprender um modo de vida sem aprender a vida, sem entender a vida... é necessário entender para conhecer: isso nos faz mágicos! Mágico é aquele que aprende os caminhos que lhe ensinam por condição cultural e depois vai fazer a sua própria vida, a sua própria caminhada, a sua própria existência, o seu próprio percurso.
Quando quero cartografar olho para as coisas, para os espaços, para as pessoas, com as chancelas do meu pensamento sempre abertas e tento ver a vida ou a falta dela, a vida que circula. Cartografar é uma experiência mística... é essa coisa de olhar para o que circula dentro e entre as coisas, os espaços, as pessoas.
O pescador é o cartógrafo que traça o mapa incerto da vida da natureza. E quando falo de pescador é no mais absoluto sentido poético e literário que o termo possa significar. Falo da condição de pescador como um modo de vida. Não o modo de vida predatório, mas o modo de vida indígena, afeito e afetado pelas coisas e pelos movimentos da natureza. O pescador reconhece os sinais da água, do vento, da chuva, do sol, da lua, dos pássaros, dos peixes, da vida. O pescador respeita os ciclos dos peixes e da natureza.
É disso que falo quando me refiro às histórias que a vida de pescadora me fez tramar. Quando saímos para pescar, vamos vendo os movimentos das margens, das águas e dos territórios pelos quais passamos... vamos recolhendo as imagens dos acontecimentos que ali se passaram em outros tempos... há lugares em que outros bichos vão tramando a vida, para além dos peixes... à beira do riacho pouco visitado, as aranhas tecem suas teias formando redes que se perdem em meio às árvores... as plantas vão se fincando onde os acontecimentos da natureza às jogam... as borboletas, que até há pouco tempo estavam quase desaparecidas, formam um colorido e uma vivacidade ímpar... as marrecas do banhado que haviam sumido, hoje voejam aos bandos... os próprios peixes que, em outros tempos, eram dizimados pelos agricultores que abasteciam nos rios e riachos seus equipamentos de espalhar veneno, assim como, espalhavam-no por todos os territórios... as pedras que cedem à força das águas e, tão pesadas, rolam feito plumas... enfim, são tantas coisas...
Foi pescando que aprendi a ouvir o som das águas e som dos ventos. Foi pescando que aprendi que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”. Foi pescando que aprendi que a água, com sua leveza e força, com sua constância, com seu rumo, vai definindo as sinuosidades e as margens do rio. Foi pescando que aprendi os caminhos das águas.
É nessas andanças que vou mostrando para as crianças e para outros adultos, as coisas que já vi acontecerem... mostro a pedreira em que hoje há o lago cuja imagem pinta este blog, de onde foram tiradas as pedras para asfaltar aquela região... isso, na época, se chamava “progresso” e foi feito pela empresa Andrade Gutierrez que, além de fazer esse tal progresso, deixou danos ambientais irreparáveis... há um terreno onde fora instalado um grande depósito de piche e que, terminada a tarefa na região, foi simplesmente deixado sepultado lá... piche que a natureza nunca absorverá! Quando dinamitavam a pedreira, tínhamos que sair fora de um certo raio de distância, pois pedras enormes e pequenas eram lançadas ao longe, sendo que muitas atingiam as casas próximas, assim como, tais explosões afetavam toda a vida no entorno.
É nessas andanças que vamos conhecendo e comendo os frutos do mato... que vamos espalhando sementes... que vamos transversalizando a vida dos peixes, deixando nos açudes e lagos o que interessa para esses espaços e levando para os rios o que interessa à vida dos rios... os pequenos e as prenhas são respeitados, para crescerem e multiplicarem a espécie... que vamos recolhendo restos da natureza para animar os espaços em que vivemos.
Quando o sistema capitalístico encontra sua exaustão, não é do sonho predatório, exploratório e acumulador de nossos antepassados europeus que lembramos... é da cultura indígena que tomamos os referenciais do usufruto da vida e da natureza... é da vida indígena que lembramos ao pensar o não abuso da natureza, a vida coletiva, a sustentabilidade, o cuidado, o usufruto baseado na necessidade e não na acumulação, exploração ou consumo... então, quando falo sobre a condição humana de pescador, refiro-me ao modo de subjetivação, ao modo de vida pescador... não como um ideal cego e absoluto, mas como um modo de vida que pode ser produzido e que produzi em minha existência... e que posso mostrar para os pequenos cujos passos ajudo a andar!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

a mais nova pescadora da família diello!

Estou meio boba. No dia 11.01.11 nasceu a mais nova pescadora da família Diello e passei os últimos dias lambendo a cria. Rafaela veio depois de 13 anos sem novas crianças em nosso núcleo familiar.
Sou a herdeira, por escolha, de muitas coisas bonitas que meu pai trouxe em sua história pessoal, familiar e coletiva. Tenho seu mesmo olhar, atravessado, às vezes, por um silêncio ensurdecedor. Ando num tranco igual ao seu. Desalinho somente das coisas que não lhe foram boas. Sou pescadora muito mais pelas histórias que ouvi vindas dele e de meus tios, do que propriamente pelo exemplo da pesca. E é isso que mais me interessa na pescaria: as histórias!
Não pude acompanhar o desenvolvimento de vários dos meus sobrinhos, por motivos de ordem prática, mas o Daniel, que deixou de ser o mais jovem com a vinda da Rafaela, acompanha meu tranco desde bem pequeno. Sempre dizia-lhe que para ser um pescador era necessário pescar mais do que sete peixes numa só pescaria... no dia em que alcançou tal tento, fui obrigada a conceder-lhe o diploma... no mais, temos alguns rituais em nossas andanças de pescarias... aprontamos o material para a pesca... temos um feixe grande de caniços e uma bolsa com as linhas para espera... nossa questão é esperar... quem não sabe da literatura dessas coisas, acha um exagero tanto caniço, mas há os mais diversos tipos de composição de linhas, chumbadas e anzóis... para cada interesse de pesca há um caniço preciso!
Há, ainda, uma pequena que hoje tem oito anos e que desde muito pequena me acompanha nas lides com os caniços... é a Giovana, que faz parte de meu bando afetivo e que segue, também, o tranco de sua mãe e de seu pai nas pescarias.
Percorremos vários lugares cartografados ao longo de nossas andanças... pescamos na lagoa do meu pai, no bueiro perto de sua casa, no riacho que cruza nos fundos da casa, nas lagoas dos vizinhos e noutros lugares que vamos inventando... sempre vamos recriando a história das águas, das pedras, das plantas e das margens... cada enxurada muda os cursos e percursos... cada andança provoca a lembrança de histórias que levam a outras histórias... às vezes pescamos muito pouco... mais andamos, esperamos, conversamos, contamos coisas e inventamos outras... os afetos passam por essas coisas... por isso, além de algumas das coisas básicas de que a criança necessita para seus primeiros tempos fora da barriga da mãe, levei para Rafaela as coisas essenciais: seu primeiro, do que espero que sejam muitos livros... "Exercícios de ser criança", do Manoel de Barros... e, também, seu primeiro, do que espero que sejam seus muitos caniços... um pequeno caniço, com uma curta linha, um pequeno anzol e uma pequena chumbada!
Penso que essas sejam as coisas mais bonitas que podemos mostrar para nossas crianças... as histórias, as imaginações, os desavergonhamentos das palavras e das idéias, as descomplicaduras da existência, as bonitezas do existir... assimassim... a vida... e aí vai um retrato da pequena Rafaela com a tia boba!

sábado, 15 de janeiro de 2011

divulgação: O GOVERNO DE SI E DOS OUTROS

Aí está a tradução do curso completo do Curso de Foucault, O GOVERNO DE SI E DOS OUTROS
Curso no Collège de France (1982-1983)
Filosofia
FOUCAULT, MICHEL
Este curso de Michel Foucault, ministrado em 1983 no Collège de France, é particularmente interessante porque os temas abordados não foram publicados em nenhum estudo durante sua vida. Qual governo de si deve ser o fundamento e o limite ao governo dos outros? A partir desta questão, Foucault se situa em relação à herança filosófica e problematiza o status da sua própria fala.
Tradução de Eduardo Brandão
em: http://www.wmfmartinsfontes.com.br/detalhes.asp?id=553115&__akacao=378555&__akcnt=b6af5a24&__akvkey=1b23&utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Boletim+WMF+Martins+Fontes+-+Janeiro%2F2011

uma canção: palavra acesa

para este sábado lindo, uma canção!
palavra acesa, de fernando filizola, em interpretação do quinteto violado.
em: http://letras.terra.com.br/quinteto-violado/48178/

divulgação: escola-droga


escola-droga
em: VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº1 (maio 2002 - ). - São Paulo: o Programa, 2002- Semestral
por guilherme corrêa
Pesquisador do Nu-Sol. Professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, mestre em Educação pela UFSC e doutorando no PEPG em Ciências Sociais na PUC/SP. Desenvolve pesquisas sobre estratégias educacionais não escolarizadoras no Brasil contemporâneo.
revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.
O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um
regime de governamentalidade múltipla.
Michel Foucault

Imagine-se com dez anos de idade e aluno em uma sala de aula de quarta série do ensino fundamental; não se veja no passado, quando cursou a quarta série, mas como uma criança hoje, num universo onde contam "vídeo games", computadores, tênis da moda, as infindáveis sessões de marquetagem destinadas às crianças em que se transformaram os programas infantis na televisão, "pokemons", o medo de seqüestros, etc1. Então, em sua sala de aula - que não mudou muito em relação àquela em que você estudou, a não ser talvez os materiais e o desenho da mobília - a professora, ou professor, como queira, distribui uma folha de papel na qual vocês devem fazer uma redação com um tema que diz respeito à aula sobre drogas ministrada anteriormente. Assim, acima das linhas em branco da folha, diante de você está o título: "Eu conheço um viciado". Antes de "sair" de sua sala de aula, elabore rapidamente as linhas gerais da sua composição - lembre-se que tem dez anos: conhece alguém viciado em drogas? é algum parente, amigo, conhecido? como
sabe que é viciado? viciado em quê? Este exercício que lhe propus eu mesmo o fiz quando chegou às minhas mãos umas folhas fotocopiadas do que, a primeira vista, parecia ser um livro didático para crianças, devido ao grande número de ilustrações. As cinqüenta páginas não numeradas e sem referência bibliográfica, tratavam de um projeto chamado "Drogas? Tô fora!" com o planejamento de cinco aulas de "Língua Portuguesa/ Educação para Saúde". A redação referida acima é o exercício final sugerido como avaliação da primeira dessas aulas. A publicação na qual este material estava inserido2 foi encontrada numa escola de uma pequena cidade do interior de Santa Catarina. É um material bastante curioso e mereceria um artigo inteiro apresentando não só sua noção de drogas, mas também as estratégias de saúde a serem desenvolvidas junto a crianças das quatro primeiras séries do ensino fundamental3. Destinado a professores do ensino fundamental tem por objetivo desenvolver o tema transversal4 "Saúde".
Recorrendo sempre a ilustrações - árvores, sóis brilhantes e muitas carinhas infantis nas mais diversas situações -, encaixadas no clichê do mundo infantil feliz, o material vai apresentando sua versão pedagógica da abordagem do uso de drogas. Assim, ao sugerir ao professor que faça alguns adesivos para serem distribuídos pela escola, um deles tem a frase: "Ao ir ao hospital, visite a enfermaria de pneumologia, não para ver como os enfimatosos [sic] vivem, mas sim, para ver como é que eles estão morrendo". Ilustrando esta frase há um leito de hospital, com um crucifixo sobre a cabeceira, e deitado sob as cobertas um menino exibe seu rosto tranqüilo. Noutra sugestão de adesivos, em que o livro comenta "overdose de tranqüilizantes", aparece o desenho de um menino com as pernas e o olhar desencontrados, como que embriagado. Ao sugerir ao professor que crie cartazes a serem reproduzidos, logo em seguida recomenda as frases ou cartazes que deve criar: "Evite a tentação da primeira dose", "Droga é uma droga", "Eu não entro nessa fria!". Do mesmo modo, abaixo da sentença: "Crie um cartaz alertando sobre o perigo do consumo de cigarros", aparece já pronto o desenho de um cartaz, no qual se vê um menino de óculos escuros com três cigarros acesos ao mesmo tempo, tossindo muito, e a frase "Você está bem... perto da Morte".
Assim, entre as várias imagens de crianças - ou adultos infantilizados? - fumando, bebendo álcool, chá de cogumelo, cheirando lança-perfumes, imagens de seringas, caveiras, sepulturas com uma carinha sorridente na lápide, e muitas carinhas sorridentes, este livro da série "Alfabetização sem segredos" vai construindo uma noção de drogas, baseada no conceito de que “droga é toda substância que, introduzida no organismo, altera suas funções". A droga aparece estreitamente ligada à degradação da vida e à morte, ao mesmo tempo em que promove uma espécie de sondagem da índole do aluno: "Você aceitaria experimentar algum tipo de droga para não ser criticado pelos colegas? Por quê?"; "Qual seria sua reação se alguém lhe oferecesse drogas?"; "Caso algum colega estivesse usando drogas, você falaria com a família dele? Por quê?"; "O que você costuma fazer quando se sente aflito ou inquieto?" Imaginar os possíveis efeitos do desenvolvimento do trabalho escolar com o título "Eu conheço um viciado", deixou-me curioso a respeito do modo como o tema das drogas vem sendo tratado nas escolas. 
Uma vez que todas as escolas espalhadas pelo território nacional - sejam elas financiadas pelo Estado ou privadas - são orientadas pela LDB, cabe, antes de saber como essas escolas desenvolvem um tema como o das drogas, perguntar o que o Estado diz sobre as drogas. Uma tarde na biblioteca da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina rendeu quase oito quilos de fotocópias. Deste material tomei cartilhas, relatórios e pesquisas feitos por órgãos oficiais do Estado, mais especificamente pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), Casa Militar, Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e pela Universidade de Brasília. Com este material tentei apreender a noção de "drogas" que orienta as ações do Estado brasileiro. Com a outra parte, composta por cartilhas, programas de prevenção e folhetos elaborados por especialistas da área de educação, tento mostrar a correspondência do debate e das estratégias de abordagem da problemática das drogas nas instituições de ensino responsáveis pelo ensino fundamental. A organização do material em ordem cronológica - a partir, principalmente, da última metade da década de noventa - mostrou-se bastante esclarecedora do movimento pelo qual passa a noção de droga neste curto período.
Em meados dos anos noventa a sociedade brasileira mobilizou-se a partir da promoção pelo Estado para diversos encontros, seminários e fóruns, a propósito da questão das drogas. Ao dar mostras claras de que não era uma doença circunscrita aos grupos de homossexuais e de usuários de drogas injetáveis - derrubando a noção moral e administrativamente confortável de grupo de risco -, a AIDS mostrou uma possibilidade concreta de larga contaminação de indivíduos pertencentes aos mais variados estratos sociais. Isso fez com que o Estado, cuidadoso em melhorar a sorte da população, elaborasse uma série de campanhas com a finalidade de conter o avanço da doença sobre os cidadãos. Os números referentes aos infectados chamavam especial atenção para o grupo dos usuários de drogas injetáveis. É dessa constatação que acontece a passagem da utilização de estratégias de controle da AIDS para o emprego de estratégias de prevenção integral tendo como coluna mestra a prevenção ao uso indevido de drogas. Para enfrentar a ameaça representada por uma possível explosão do contágio de AIDS por meio dos usuários de drogas injetáveis, e lidar diretamente junto à população, foram publicadas cartilhas, fitas de vídeo, e promovidos cursos para multiplicadores5.
Estas estratégias, então, empregadas pelo Ministério da Saúde enfatizavam a política da redução de danos e dirigiam-se especificamente às populações em situação de risco, a saber: "profissionais do sexo, jovens socialmente marginalizados, presidiários, populações de rua, e usuários de drogas"6. O trabalho preventivo e educativo com essas populações não ficava como responsabilidade dos serviços formais de saúde, educação e serviço social, mas das emergentes organizações não governamentais7. Neste contexto, a droga é tratada como fenômeno histórico, reconhecendo que "o ser humano sempre conviveu com drogas, e delas fez diferentes usos, ao longo da história."8 E é interessante ver referências a grandes nomes da literatura mundial e ao uso que fizeram de drogas "perturbadoras": Fernando Pessoa -"há doenças piores que as doenças..."-, Baudelaire e o ópio e Aldous Huxley e suas experiências com a mescalina; a droga como substância que "transportava o espírito para outros territórios, para outras sabedorias"9.
O problema do abuso de drogas, ainda nestes materiais do Ministério da Saúde, é situado dentro do espectro das drogas legais: "o panorama epidemiológico do Brasil (...) mostra a prevalência das drogas legais: elas representam mais de 90% dos abusos ou usos freqüentes praticados pela população. Seu custo social é altíssimo, ultrapassando de longe aquele das drogas fora da lei. Em termos de mortalidade, o abuso de álcool e fumo é responsável por cerca de 95% dos casos de óbito devidos a drogas, sendo que somente 5% são imputados às 'outras drogas', no seu conjunto"10.
É clara a oposição às posturas radicais defendidas pelos setores da organização estatal responsáveis pela repressão ao uso de drogas ilegais: "os expoentes da postura antidroga, (...) não enxergam o óbvio: que a "guerra contra as drogas" é inoperante, e que nunca haverá "vitória final", já que as drogas fazem parte, desde sempre da vida humana. Mas há ainda mais: todas aquelas intervenções que se pautam na abordagem exclusiva do "dizer não", são contraproducentes e surtem efeitos contrários"11.
A preocupação aqui não é criminalizar o uso de drogas, mas recuperar o dependente, que deve ser considerado como um doente12, dentro do ideal da reinserção social, pela via da reconstituição familiar13. É neste ponto "ideal" que ocorre a reintegração dos que se encontram em situação de risco. Ponto no qual esses sujeitos passam a estabelecer laços familiares, mesmo que tênues, no qual, automaticamente, as instituições formais passam a atuar. Reinseridos, reajustados, eles restabelecem contato com a rede formal de assistência à saúde, educação e serviço social. Ou seja, o isolamento, que é a condição que caracteriza as populações de risco, impede qualquer intervenção preventiva; portanto, qualquer ação neste sentido deve promover o restabelecimento dos vínculos sociais, num crescendo que vai da família à escola, aos grupos de auto-ajuda e à rede formal de assistência. Dentro deste conjunto de ações de ajustamento e de reinserção, a escola assume um papel de grande importância.
Desta maneira, "freqüentar uma escola representa um referencial de cidadania e fortalece a identidade pessoal, tantas vezes abalada sob o impacto das adversidades sofridas. Devidamente instrumentalizada e com habilidade para segurar e direcionar o aluno, a escola é capaz de manter os jovens afastados da marginalização, mesmo com suas estruturas familiares precárias ou quase inexistentes"14.
Em novembro de 1998, acontece o "I Fórum Nacional Antidrogas", evento que inaugura um importante passo para a compreensão de uma noção de "drogas" utilizada pelo Estado brasileiro. Com o objetivo de abrir um diálogo entre a sociedade e o Governo Federal, e de ouvir as sugestões da sociedade, o Fórum, destinado exclusivamente às organizações não-governamentais15, reuniu representantes dos mais diversos setores. Ao todo foram 30 subgrupos separados em quatro grupos de trabalho: grupo de prevenção, de tratamento, de repressão e um último grupo chamado global. Entre todos estes subgrupos havia, por exemplo, um subgrupo para o pessoal da redução de danos, outro chamado Populações Excluídas, e ainda Criação de Empregos, Internação, Reinserção Social, Mútua-ajuda, Comunidades Terapêuticas, Modificações Legislativas, Comunicação e Marketing, etc. Havia também o subgrupo Escola, um dos treze subgrupos do Grupo Global, juntamente com outros como Família, Local de Trabalho, Mulheres, Crianças e Adolescentes, Instituições Religiosas e outros. No discurso que profere na abertura do encontro, o Presidente da República refere-se à escola da seguinte maneira: "Precisamos, no Brasil, ampliar a consciência do professorado, da gestão das escolas, mas, sobretudo, das famílias, com relação à questão das drogas"16. E segue apresentando um outro lado da questão: "mas, há o outro lado, digamos, propriamente repressivo, da questão das drogas. (...) Isso requer um trabalho de inteligência e de informação. Não é apenas um trabalho de repressão, mas é de conhecimento das tramas que estão por trás daquilo que aparece à primeira vista e que é, normalmente, o objeto da repressão. O objeto da repressão, raramente, está diretamente vinculado à trama de sustentação do tráfico de drogas (...) É ilusão pensar que as informações, hoje, são monopólio do Estado. Pelo contrário. Hoje, também a sociedade dispõe das informações. E, muitas vezes, até mais depressa e mais abundante do que o próprio aparelho de Estado"17.
Consultando cuidadosamente o relatório, ficam mais claras frases tais como "Isso requer um trabalho de inteligência e de informação" ou "É ilusão pensar que as informações, hoje, são monopólio do Estado.", ou ainda "Hoje, também a sociedade dispõe das informações". O "subgrupo R2", um dos três subgrupos do "grupo de repressão", responsável pelo tema "Participação da Sociedade na repressão ao Tráfico - Proteção à Testemunha e Definição do Campo de Atuação das ONGs", em seu relatório "deu destaque à necessidade de estimular-se a denúncia; incentivar-se a delação premiada e de editar-se lei estabelecendo regras de proteção às testemunhas, concedendo-se às ONGs as missões de dar apoio psicossocial aos familiares de testemunhas protegidas e fornecer moradias provisórias"18.
Chamo atenção para a proximidade, a sinonímia mesmo, entre as palavras denúncia e delação. Nesse contexto de "participação da sociedade na repressão ao tráfico" a diferença possível é que a delação pode mobilizar uma rede de proteção à testemunha, todavia, perde sua diferença qualitativa ao produzir o mesmo efeito: ao chegar aos órgãos oficiais competentes, "por correio, telefone ou outros meios"19, transformam-se em informação, em trabalho de inteligência.
As situações apresentadas até agora, enfatizando os discursos produzidos por órgãos e pessoas representantes do Estado, compõem uma galeria que tenta, mesmo que apressadamente, mostrar o largo espectro do que se diz, oficialmente, em relação às drogas. Desta variada flora discursiva, muitos espécimes são aproveitados para decoração, enquanto outros são produzidos e distribuídos gratuitamente à população e devorados vorazmente. O efeito ornamental de alguns discursos não deve, todavia, ser subestimado pois são estes que dão corpo a uma imagem de Estado acolhedor, no qual o cidadão tem ampla liberdade de expressão.
Um episódio ocorrido no Fórum permite começar a delinear o discurso sobre drogas que o Estado brasileiro efetivamente faz funcionar, que tem força e volume para preencher os largos canais das políticas destinadas aos grandes contingentes populacionais e, ao mesmo tempo, fluidez e simplicidade suficientes para percorrer os complicados e finíssimos canais que penetram nas comunidades, nas famílias e, até o mais íntimo da vida de cada um, ali onde percebe-se a si mesmo como cidadão, com direitos deveres e sujeito ao assédio do Estado em vista do cumprimento das leis.
O subgrupo chamado Redução de danos e portadores de HIV, teve uma participação inesperada de pessoas ligadas a grupos religiosos "Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, Amor Exigente, Pastoral de Dependência Química/CNBB" e ao aparato policial, que correspondeu a 68% dos integrantes; eram contrários à troca de seringas e propunham a abstinência como única forma de tratar a questão das drogas. Os outros 32% eram pessoas envolvidas em atividades de redução de danos em instituições governamentais e não-governamentais. Foram produzidos, assim, dois relatórios, um incluindo troca de seringas e outro excluindo troca de seringas20. Esta reunião insólita de membros de ONGs, professores universitários, religiosos e policiais, põe em cena os principais atores do teatro da prevenção ao uso de drogas e expõe o argumento da pantomima: grupos com interesses realmente opostos "confrontando ciência e dogma religioso, estratégias libertadoras e medidas repressoras — unidos na promoção da impossibilidade de pensar a vida sem governo.
Os diversos grupos ali presentes legitimam e conferem, pela sua diversidade e proveniências "militares, policiais, religiosos, advogados, agentes comunitários, assistentes sociais, professores, pesquisadores..." uma voz à sociedade. Seus relatórios "pedindo verbas; aperfeiçoamento de leis e regulações; integração entre agências federais, estaduais e municipais; aumento de pessoal qualificado, cursos de aperfeiçoamento; campanhas de prevenção; repressão policial; criminalização; descriminalização; reformulação de práticas pedagógicas; reinserção social, etc." dirigem-se ao Estado e reforçam seu qualificativo de democrático.
Escola e droga
A partir das recomendações do I Fórum Nacional Antidrogas, foi organizado, pela Secretaria Nacional Antidrogas e pela Universidade de Brasília, o curso "Prevenção ao Uso Indevido de Drogas: diga sim à vida". Este curso visava "contribuir para a formação de profissionais ou de membros da comunidade em geral devidamente qualificados para atuar na prevenção ao uso de drogas"21. Os conteúdos elaborados por especialistas tinham por objetivo "oferecer informações consistentes (...) de maneira clara e fundamentada em literatura atualizada"22. As estratégias de ensino empregadas neste curso "oferecido gratuitamente a trinta mil futuros trabalhadores da missão de prevenir contra o uso indevido de drogas" surpreendem ao ressuscitar a instrução programada23. Enquanto os conteúdos eleitos para o programa seguem a já consolidada liturgia dos cursos de prevenção às drogas "definição de droga, classificações das mesmas (naturais, sintéticas, psicotrópicas, lícitas e ilícitas, classificação dos usuários (experimentador, recreativo, funcional e dependente), uma listagem das drogas e seus efeitos e estratégias de prevenção" a instrução programada, rediviva, causa a impressão de que o que importa aprender são os conteúdos expressos no programa, quando o que está se processando, é um amortecimento da capacidade de pensar e de querer, do exercício da vontade. A descrição de um desses exercícios presente na apostila do curso não vai deixar dúvidas sobre o que estou dizendo: sob o título "autoavaliação" está a sentença "Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:", segue então um conjunto de doze palavras que devem ser colocadas nas lacunas existentes nas frases de "a" a "f", imediatamente após as frases aparece o mesmo conjunto de palavras só que desta vez colocadas na ordem em que devem aparecer nas lacunas das frases acima.
"AUTO-AVALIAÇÃO
Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:
Palavras-Chave
experimentador habitual abusivo comportamento controlada consciência tranqüilizantes dependência motivação ocasional pessoa droga
a) As drogas psicotrópicas são substâncias capazes de alterar o ________________ das pessoas.
b) Mesmo certas drogas chamadas lícitas podem ter sua comercialização ______________ por leis. É o caso dos _____________ .
c) O uso indevido de certas drogas lícitas é uma questão importante em relação à saúde da população porque pode causar _____________ .
d) Existem tipos diferentes de usuários de drogas. O usuário ____________ é aquele que experimenta um ou mais tipos de drogas sem dar continuidade ao uso, enquanto o usuário ___________ faz uso freqüente, podendo ocorrer prejuízos à vida profissional ou familiar. Há também o chamado usuário ___________ que se utiliza da droga esporadicamente, numa situação especial, como no caso dos bebedores sociais e o usuário ____________ cujo consumo adquire papel de destaque na sua vida, acarretando sérios prejuízos profissionais, sociais e familiares.
e) O triângulo básico do consumo de drogas é representado pela _____________ pela ____________ e pelo contexto sócio-cultural.
f) Existem diferentes _____________ para o consumo de drogas como a obtenção do prazer ou a modificação deliberada do estado de _____________ .
Gabarito:
a) comportamento
b) controlada; tranqüilizantes
c) dependência
d) experimentador; habitual; ocasional; abusivo
e) pessoa; droga
f) motivações; consciência"24.
Os materiais didáticos utilizados nas escolas seguem a liturgia, acima referida, dos cursos de prevenção às drogas. E este é umdos fios discursivos com que a escola tece a teia da prevenção, uma teia que arrasta consigo toda sorte de sanção moralizadora: "Todo uso de drogas é arriscado!"25; "(...) Não significa eximir o consumidor ocasional (mesmo criança ou adolescente) da aplicação da pena da lei,..."26; "Solte todas as suas angústias para aquele que patrocinou sua vida, que ELE o ajudará a levar avante seus projetos. [...] Assuma seu papel de cidadão e mude sua vida como você gostaria..."27; "O consumo de drogas deve ser considerado como um sinal de destruição da vida em termos de saúde e de valores..."28 .
Uma boa visão da rede tecida pela prevenção no ensino escolar é dada pelo sumário com “subsídios de prevenção integral para o educador”, constante do “Programa de Prevenção Educação e Vida” realizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. A partir da identificação da gravidade do problema das drogas, este programa compõe uma grande e complexa seqüência de vinte cinco temas29 organizados em planos de aula com os ítens: objetivos, desenvolvimento do tema, atividades da clientela (alunos).
Entre todas essas opções a disposição de professores e alunos, a escola institui um tipo de liberdade ao qual seremos, se já não estamos, acostumados: a liberdade de escolher entre um conjunto restrito e estabelecido previamente de itens postos à disposição, que desembocam sempre na normalização e no ajustamento dos sujeitos de modo a caberem confortavelmente na figura do cidadão livre dentro do horizonte delimitado pelas leis e pela moral.
Agora sim, sinto-me falando de drogas. Refiro-me ao efeito narcotizante dessas intervenções, dessas aplicações diárias, pacientes, constantes, desde a mais tenra idade, de drogas que abalam a vida ao produzi-la morna, prevenida, segura e que têm como princípio ativo o "saber sem vontade"30.
Arremato o vislumbre, que espero que este texto tenha proporcionado, da pedagogia que interessa ao Estado brasileiro na atualidade, com a seguinte declaração do Ministro da Educação, ao comentar os desvios de verbas do Programa Federal Bolsa-Escola e a importância da "participação social nas deliberações públicas": "é importante que tenhamos pessoas como o vereador Otto Barroso, responsável pela denúncia de fraude no município de Jutuabá (MG). O aumento da participação social nas deliberações públicas significa a radicalização da democracia. Certamente surgirão pessoas, atentas como ele, capazes de identificar problemas e denunciá-los. [...] Desde julho o Ministério da Educação vem investigando denúncias de  irregularidades na destinação de recursos. Trezentas denúncias chegaram por meio do telefone 0800-616161, e estão sendo apuradas"31.
A denúncia como forma de participação social e exemplo de radicalização da democracia, sublinhada pelo Ministro, dá idéia da eficiência de uma espécie de pedagogia da delação "com programas, conteúdos e técnicas didáticas" que vem sendo largamente implantada no país. Basta atentar para os programas vespertinos de televisão nos quais o principal argumento são as denúncias da população feitas por meio de telefones gratuitos. Os meios de comunicação de massa mais importantes "televisão, rádio, imprensa, internet e escola", e também o Governo Federal, têm dado mostras de seu empenho em educar o povo dentro dessa perspectiva, por assim dizer, democrática. Inventa-se no Brasil um povo que sente que decide, quando delata.
Olhando os créditos das publicações oficiais que utilizei neste ensaio, encontrei vários nomes nas comissões de consultoria, equipes de elaboração, colaboradores, especialistas... Adriano, Nelita, Sueli, Gilson, Maria, Almeli, Lídia, Saulo, Fernando, Ione, Marisa, Flávia, Carlos, Eliseu, José, Izilda, Clarinha, Ruy, Rosane, Shirley, Juçara, Araí, Mileide, Gey, Ana, Dóris, Liana, Márcia, Thérèse, Aluísio, Waleska, Alício, Aracy... são alguns nomes de pessoas que, como qualquer um de nós, freqüentaram escolas, estudaram segundo as determinações da LDB, tornaram-se profissionais e agora fazem aparecer a expressão do Estado em palavras. Assim, Como sabemos muito bem, "o Estado não tem entranhas, e não simplesmente no sentido de que não tenha sentimentos, nem bons nem maus, mas que não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidade múltipla."32
Notas
1 Esta lista de situações que cercam um estudante brasileiro de dez anos embora pareça "típica" é bastante limitada, pode-se ter uma noção disto lembrando que,em 1990, 60% das unidades escolares do Brasil eram escolas multisseriadas, ou seja escolas que reúnem, simultaneamente, em uma mesma sala de aula e sob a responsabilidade de um mesmo professor as primeiras quatro séries do ensino fundamental, cf. Cássia Ferri. Classes multisseriadas: que espaço escolar é esse? Florianópolis, 1994, p. 152. Dissertação de Mestrado em Educação - Centro de Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. Com isto quero lembrar a grande parcela dos alunos brasileiros nesta faixa etária que não tem acesso a computadores, não conhece "vídeo games", não tem tênis da moda e sequer energia elétrica em suas casas, ou seja, a realidade dos estudantes do país é muito variada e desigual não podendo ser tomada como padrão a classe média dos centros urbanos, até porque classe média no Brasil, com casa, carro e computador, é muito pouca gente.
2 Maria Radespiel. Alfabetização sem segredos: temas transversais. Contagem, Editora IEMAR, 1998.
3 Ensino fundamental é a denominação que substitui, na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei Federal n.9.394 de 20/12/1996, a antiga denominação de primeiro grau da LDB anterior, Lei Federal n. 5692 de 11/08/1971. O ensino fundamental refere-se às oito primeiras séries (mais rigorosamente aos quatro primeiro ciclos, correspondendo cada ciclo a duas séries) da educação escolar e corresponde ao ensino obrigatório exigido pelo Estado, cf. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, MEC/SEF, 1997.
4 Temas transversais, são uma série de cinco temas (ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual e pluralidade cultural), instituídos pela nova LDB para o ensino escolar. Não constituem disciplinas e podem ser desenvolvidos dentro de qualquer disciplina, com maior ou menor grau de aprofundamento, segundo necessidades que podem variar quanto a faixa etária dos alunos, especificidades regionais ou demandas de cada grupo. Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Apresentação dos temas transversais e ética. Brasília, MEC/SEF, 1997.
5 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília, Coordenação Geral de Doenças Sexualmente transmissíveis/AIDS, 1995, p. 3.
6 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério de Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 22.
7 Idem, p. 22.
8 Neri Filho. “ Preconceitos e conceitos sobre drogas in: Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS,
9 Idem, p. 29.
10 Richard Bucher. "Drogas na sociedade" in: Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à saúde. Coordenação-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade. Brasília: Coordenação Geral de Doenças Sexualmente Transmissíveis/ AIDS, 1995, p. 35.
11 Idem, p. 48.
12 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério da Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 08.
13 Idem, p. 27.
14 Ibidem, p. 28.
15 I Fórum Nacional Antidrogas (Brasília: 1998). Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 05.
16 Discurso do presidente Fernando Henrique, na abertura do I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 08.
17 Idem.
18 Relatório do Grupo de Repressão in: I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, p. 40.
19 Idem, p.42.
20 I Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasília, SENAD, 1999, pp. 17-24.
21 Eliane Maria Fleury Seidi (org). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga SIM à vida. Brasília, CEAD/UNB, SENAD/SGI/PR, 1999, vol. 01, p. 04.
22 Idem.
23 Instrução programada é um conjunto de técnicas de ensino baseadas nas teorias da comunicação em que o aluno é encarado como um dispositivo receptor de informações input que processando-as pode devolvê-las ao meio, output; a análise da qualidade da informação processada permite avaliar a aprendizagem. Uma das novidades disso tudo são os materiais auto instrucionais, elaborados por programadores especializados, que segundo a lenda permitem ao aluno aprender conteúdos escolares sozinho, sem a intervenção do professor. Posta em marcha nos anos setenta, a instrução programada foi a panacéia pedagógica da Ditadura Militar, adquirida por preços altos com a celebração do acordo MEC/USAID, quando a educação pública passou a ser estratégia de segurança nacional.
24 Cf. Elaine Maria Fleury Seidl (org.). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga sim à vida. Brasilia, CEAD/UnB; SENAD/SGI/PR, 1999. Vol. 1, pp. 20-21.
25 Carlos dos Santos Silva. Drogas! Se eu quiser parar você me ajuda? Rio deJaneiro, Autores e Agentes Associados, 1977. 3ª ed., p. 17.
26 Idem, p. 8.
27 Secretaria Municipal de Educação de Criciúma. Criciúma cuidando da sua saúde: diga nãao às drogas. Curitiba, Base Editora, p. 13.
28 Governo do Estado de Santa Catarina. Previda, programa prevenção educação e vida: subsídios de prevenção integral para o educador. Florianópolis, Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desporto, p. 11.
29 Família; Adolescência; Sexualidade; DST; AIDS; Relacionamento; Amizade; Religiosidade; Valores; Meios de Comunicação; Poder de Decisão; Projeto de Vida; Participação do Jovem na Construção da História; Educação Ambiental; Educação para o Trânsito; Trabalho e Lazer; Recomendações Gerais; Abordagens de Prevenção; Drogas Psicotrópicas; Automedicção; Álcool; Tabagismo; Drogas Voláteis; Maconha e,finalmente, Cocaína.
30 Max Stirner. O Falso Princípio de Nossa Educação. São Paulo, Imaginário, 2001.
31 Folha de São Paulo, 01/01/2001.
32 Michel Foucault. "Fobia al Estado" in La Vida de los Hombre Infames - ensayo sobre desviación y dominación. Madrid, La Piqueta, 1990, p. 308.
RESUMO: Uma problematização do apelo, cada vez mais efetivo e insistente, para que a sociedade participe das decisões governamentais por meio de denúncias é o ponto de chegada deste trabalho. A partir disto pode-se falar de uma espécie de pedagogia da denúncia levada a termo pelos principais meios de comunicação - televisão, rádio, jornais e rede escolar. A abordagem das drogas legais e ilegais encaminhada por órgãos e representantes oficiais do Estado brasileiro é apresentada aqui como exemplo do modo de funcionamento de estratégias de governamentalidade.

criticamos mais duramente um pensador
quando ele oferece uma proposição
que nos é desagradável; no entanto,
seria mais razoável fazê-lo quando sua
proposição nos é agradável
Nietzsche