segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cinema Nômade - Príncipes e Princesas


Olhares sobre as práticas de justiça


Mil Platôs e esquizoanálise: micropolítica e o uso dos afetos


Entrevista com Luiz Fuganti - Desejo


Ação Cultural como Produção de Subjetividade


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às guerras, NÃO! 
No rescaldo das ações em Paris, reivindicadas pelo Estado Islâmico e que culminaram com a morte de mais de uma centena de pessoas, alguns anarquistas que vivem na França, integrantes do Alternative Libertaire, apresentaram um texto singular que destoou das reivindicações de movimentos organizados ligados à política. Consideraram abominável a chacina reivindicada pelo EI e explicitaram a dissimulação das “declarações de guerra” professadas pelo atual presidente francês. Os anarquistas mostraram que o sangue derramado pelas ruas da cidade é precisamente um dos efeitos diretos das guerras na Líbia, no Mali, na Síria, conflitos que o governo produz e sustenta há longo tempo. A atitude ferrenha e enérgica dos anarquistas atualizou um notável combate contra a guerra e a sua sintaxe. 
inventar vidas 
O renhido antimilitarismo afirmado pelos anarquistas não se restringiu ao combate às retaliações do governo francês e demais autoridades mundiais. Frente ao “estado de emergência”, os libertários convidaram as pessoas a ocuparem as ruas em vez de deixá-las nas mãos do Estado. Afirmaram, novamente, uma rara coragem, visto que o convite visou, sobretudo, impedir que o Estado, em nome da sua segurança e apoiado por sedentos fascistas, massacre homens e mulheres identificados como suspeitos. Em pleno século XXI, o não às guerras dos anarquistas segue com potente vitalidade. Homens admiráveis afirmam: onde houver um funeral, cabe aos anarquistas inventarem a vida. 
livres da UE, USA, EI... 
Há pouco mais de três anos, nas fronteiras entre a Síria e a Turquia, homens e mulheres anarquistas resistem ao Estado Islâmico e ao governo de Assad, praticam a autogestão, convivem com o que chamam de diversidade curda, reinventam costumes. Livres do EI e dos estímulos da UE e dos USA, expõem que os principais envolvidos na “luta contra o terrorismo” não figuram nas manchetes de grandes jornais e blogs de intelectuais alpinistas. E vejam só como são as coisas: os senhores do G- 20 se reúnem na Turquia, país cujo governo oportunista aliou-se ao EI para dizimar as experiências em Kobane e em povoados ao norte da Síria. Os anarquistas resistem. 
disputas pelo petróleo 
Os atentados terroristas e a guerra ao terror parecem mais o jogo entre o herói e o vilão que se alimentam mutuamente. O combustível para tal parece ser o bom e velho ouro negro, ponto de interesse comum entre ambos os lados. Mas, diferente dos filmes enlatados, heróis e vilões mudam de lado conforme a perspectiva da guerra. Anos antes do famoso september eleven, declarava-se guerra contra o Iraque de olho no petróleo de Kuait. Algumas décadas mais tarde, escorados nos atentados da Al-Qaeda, a coalizão liderada pelos Estados Unidos declarou uma inconsistente “Guerra ao Terror” e aterrorizou o Iraque pela segunda vez, apoiou “insurgências” na Síria e na Líbia e deixou, no lugar dos regimes autoritários, o caos. 
espirais sem fim 
Após o atentando em Paris, o presidente russo vai a público e diz ter provas de que as atividades do EI são financiadas pela venda de petróleo e derivados a dezenas de empresários, muitos deles integrantes de países que compõem o G20. No mesmo pronunciamento, conclama os EUA a juntar forças (armadas) contra o EI. Em uma elipse perigosa, a cada ataque o ocidente se indigna e promete retaliação quase que instantaneamente. Em seguida, brotam do chão outros homens bombas para explodirem o cotidiano de alguma capital que simbolize a potência do ocidente. Depois, outra retaliação violentamente desmedida e imediata que passa como rolo compressor por culturas, estruturas e tantas outras vidas no território do oriente médio que pouco têm a ver com os soldados do EI. E, como uma espiral sem fim, impulsiona-se atentados e retaliações sangrentas em razão exponencial. 
zero de conduta 
Como resposta à chamada “reorganização escolar” imposta pelo governo do estado de São Paulo, jovens secundaristas ocuparam dezenas de escolas paulistas. O governo respondeu como esperado e enviou as chamadas tropas de choque para a porta de algumas unidades de ensino. Durante quase uma semana, os estudantes experimentaram práticas que, para desespero de autoridades, nenhum governo pode conter. “O Estado pode vir quente que a gente está fervendo”, cantaram em frente a uma das escolas. Em outra, homenageada com o nome de um notório canalha celebrado pela História como herói, estamparam: “Fora Fernão Dias bandeirante assassino”. Agora, resta saber se os jovens vão se escolarizar em algum Movimento ou se farão como na sequência de “zero de conduta”, filme do anarquista Jean Vigo, e, alegremente, escaparão rumo a outros espaços. 
ora, horas 
Uma cidade inteira riscada do mapa. O Rio Doce morto. Militantes, ONGs e pesquisadores falam em ecocídio – termo sugerido por Murray Bookchin para descrever o novo totalitarismo capitalista, embora essa procedência anarquista seja omitida. Fala-se em responsabilização, embargo, multa, reparação. Diante da produção de mais um “sujeito vitimado”, a linguagem jurídica é dominante. Não há como reparar ou restaurar o que fez a principal atividade econômica do país, da colônia aos nossos dias. A disputa judicial apenas formaliza o ridículo de pentecostais na cidade de Colatina fazendo uma sessão de “descarrego” para curar o rio ou das vigílias e das preces, ali, aqui e acolá. Trata-se de decidir como queremos viver! Como disse um simples homem do campo: tudo acabou em duas horas de relógio. ação direta Os guerreiros krenak partiram para ação direta: bloquearam a ferrovia que liga os postos de coleta de minério às usinas de pelotagem e ao Porto de Tubarão em Vitória.

domingo, 22 de novembro de 2015

observatório ecopolítica

ano I, n. 0, novembro, 2015.



Depois de realizar uma extensa pesquisa sobre a emergência da ecopolítica do planeta, inauguramos o observatório ecopolítica, na puc-sp, vinculado ao nu-sol, núcleo de pesquisa autogestionário, que publicará análises de seus pesquisadores e de interessados relativas aos fluxos meio ambiente, direitos, segurança e penalização a céu aberto.

O planeta como alvo de governo transterritorial coincide com mudanças cada vez mais significativas na gestão da vida, produzindo suas verdades relativas à nova maneira de pensar e produzir o vivo com vistas a consolidar melhorias para as futuras gerações. Os resultados dos ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), traçados pela ONU e programados para serem alcançados no período 2000-2015, desdobraram-se em Objetivos de Desenvolvimentos Sustentável (ODS) previstos para serem alcançados até 2030. Os ODM tinham como meta elevar as condições de saúde, educação, introduzir a gestão do meio ambiente, produzir mais seguranças nos Estados considerados em desenvolvimento e naqueles considerados sob condições mínimas precárias. Os novos objetivos, por sua vez, são destinados a todos os Estados, sob a forma de gestões compartilhadas. A racionalidade neoliberal consolidou um gradiente a ser governado pelo capitalismo sustentável como governamentalidade planetária.

Não há liberdade liberal ou neoliberal que não se funde na segurança. Diante das sucessivas crises quanto ao manejo e os usos dos recursos naturais, realizaram-se a partir de muitas contestações significativo número de eventos pretendendo diagnosticar e definir as crises em torno da ameaça da continuidade humana no planeta. Estes embates e a busca pela concórdia trouxeram desdobramentos que compõem o dispositivo meio ambiente. Os grandes encontros realizados desde o Clube de Roma, em 1968, e seus incrementos sequenciais em reuniões mundiais, conectando empresários, Estados e sociedade civil organizada, definiram a sustentabilidade, desde o relatório Nosso futuro comum, em 1987, como programática de produção de riquezas para uma governança global.

Do mesmo modo, a pletora de direitos que se desdobra desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, encontra um modo de subjetivação que se consolida com o anúncio de povos resilientes em um planeta resiliente pela ONU em 2012. Os históricos dispositivos de segurança dos Estados-nação, compostos das práticas diplomático-militar, em escala internacional, e policial, no âmbito interno, viram as missões de paz se voltarem para a reconstrução democrática de Estados e os ataques de coalizões militares, com ou sem a chancela da ONU, desdobraram-se em ocupações sem previsão de término.

Ainda que as tensões entre Estados continuem (e a iminência da guerra permaneça como a condição prévia para a paz entre Estados), as novas formas de intervenção, visando às pacificações internas como condição prévia para a institucionalização da democracia, produziram o dispositivo diplomático-policial. A função de polícia repressiva conta agora com a participação do cidadão na gestão do controle de si e dos outros, proporcionando o compartilhamento de ações que pretendem alcançar efetividades imediatas e que, gradativamente, passa também a governar as denominadas áreas/zonas degradadas socialmente no interior dos Estados.

Não estamos mais diante das vigilâncias sobre os degenerados, os inimigos internos vistos como perigosos e anormais. A cultura do castigo fundante da cultura greco-romana é redimensionada, não mais segundo as relações normalizadoras almejadas pela relação vigilância-punição, própria do governo das disciplinas acopladas aos direitos de soberania modernos, mas agora conecta-se às práticas de monitoramentos sócio-culturais e eletrônicos da sociedade de controle. As instituições austeras se elastificam, assim como as punições, e o degenerado é redimensionado como degradado: o sujeito universal transtornado como ponto de investimento em fluxos que deve normalizar o normal. A psiquiatria e as neurociências, por conseguinte, assumem a condução dos prognósticos normalizadores, situando e orientando a gestão da vida equilibrada possível e a ser governada por todos.

Os efeitos desses diversos dispositivos (meio ambiente, resiliência, diplomático-policial e monitoramento) produzem o novo dimensionamento dos modos de subjetivação governados pelo controle de si e dos outros. Condutas tolerantes para a cultura de paz devem ampliar a chamada qualidade de vida e reduzir vulnerabilidades monitoradas por índices de prognósticos e aferições. Desse modo, espera-se que a participação de cada um na gestão dos problemas sociais seja mais eficaz no interior da máxima que pretende abarcar e conectar o local e o global.

A governança global reveste o indivíduo de sua casa ao Estado e às conexões planetárias até a ONU e dessa retorna, sob a forma modulável, a cada um. A racionalidade neoliberal, ao redimensionar a força de trabalho em capital humano, expandiu as práticas de gestão compartilhada dinamizando a participação e disseminando valores democráticos do âmbito político ao econômico. A sociedade de controle aciona cada vez mais fluxos de participação, monitorando condutas, ampliando seguranças, direitos, zelo pelo meio ambiente e dando ao capitalismo sustentável a nova faceta transcendental empírica pretendida pelo capitalismo como utopia da sociedade democrática, livre e em direção à paz entre Estados. Emerge o ambiente planetário a céu aberto!

A ecopolítica tem por alvo o planeta e o que é vivo para além do que convencionalmente se definia como sendo o dentro e o fora dele, seja na ocupação do espaço sideral em torno da Terra, seja na busca pelos exoplanetas, como redimensionou a física desde a teoria da relatividade, contemplando a noção de universo em expansão. A biopolítica, portanto, é uma de suas facetas, na medida em que a população não é mais pensada e, por conseguinte, governada nos limites territoriais da soberania e em função do controle do melhor governo de cada Estado.
Se a explosão das bombas de Hiroshima e Nagazaki, em 1945, encerrou o evento bélico II Guerra Mundial, ela levou a novos efeitos de segurança transterritoriais e também moveu, nos variados cantos do planeta, a contestação dos usos violentos e pacíficos da energia nuclear, mobilizando componentes que formataram o dispositivo meio ambiente com suas lutas e programas contra a degradação.

Os projetados planeta e cidadão resilientes terão de enfrentar as novas formas do terrorismo transterritorial que atinge no momento a intenção de constituir Estados independentemente da territorialidade das convencionais nações, como o Estado Islâmico. Monitoramentos de superfície, profundidade e siderais dimensionam e procuram controlar o vivo no planeta e suas lutas, guerras e gestão das espécies.

Do corpo individual no capitalismo industrial, que recebeu investimentos em sua força mecânica pelas disciplinas e pela biopolítica enquanto espécie, interessa agora sua inteligência como capital humano, sua perene jovialidade, sua competividade e capacidade inovadora. Os direitos para tal consolidam o empreendedorismo e governam as chamadas formas de empoderamento de minorias, agora como conjuntos dilatados de vulneráveis, voltados para a restauração, proteção, prevenção e precaução relativas ao corpo, do mesmo modo que investimentos de toda sorte também buscam restaurar as cidades, seus monumentos históricos, seus pontos turísticos, enfim, seus espaços a ser embelezados.

A ordem depende de monitoramentos seguros de coisas, gentes, palavras e imagens. Cria-se, enfim, a constatação de que tudo se encontra inacabado e que o esforço de cada um e de todos na governança global seja capaz de consolidar uma cultura de paz em perpétua atualização.

As relações ascensionais e descensionais de poder produzem resistências contínuas em fluxos, que necessitam ser mitigadas pelas novas práticas que governam os modos de subjetivação resiliente.

A disseminação das práticas democráticas em todas as relações, não mais circunscritas às políticas propriamente ditas, tende a destinar ao ostracismo as intenções revolucionárias procedentes dos movimentos advindos do século XIX e que teriam se esgotado com o fim da URSS e com o ajuste neoliberal da ditadura do proletariado na China.

Porém, desde os anos 1990, as revoltas passam a rapidamente aparecer e, com suas existências efêmeras ou não, a configurar novos modos de subjetivação das resistências que vão destemidamente dimensionando a trans-historicidade do cinismo grego, produzindo um novo cuidado de si e novos pronunciamentos parresiásticos. Os saberes insurgentes são indomesticáveis.

Sob e contra o regime da participação incentivada e efetivada de novas construções da vida em transformação, trata-se de se opor destemidamente às ilusões da pacificação política, configurando uma atitude antipolítica. Se o militantismo organizado pacificou o confronto reconduzindo-o aos parâmetros platônico-aristotélicos, a revolta, por sua vez, escancara a recusa não só da filosofia prostrada e cada vez mais professoral, portanto acadêmica, para sinalizar compreensões da emergência dessa vida outra, que mais uma vez reinsere os anarquismos como práticas atualizadoras, impossíveis de serem propositalmente renegadas ou destinadas ao esquecimento como um saber insurrecional singular, mas superado.

Os anarquismos, como antipolítica, desvencilham-se dos julgamentos autoritários e, mais uma vez, dispensam-se de ter um quadro teórico fixo, constante e imutável. As resistências não cessam e as revoltas, aos poucos, indicam os traçados de um modo de subjetivação que recupera e opõe o cuidado de si diante do controle de si e dos outros para delinear e realizar de modo insolente e aguerrido a vida outra.

O informativo quinzenal observatório ecopolítica convida a todos a essas possíveis conversações.



observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

brasil e a lei contra o terrorismo - entrevista com edson passetti


Entrevista publicada pelo Instituto Humanitas UNISINOS (IHU), dia 17 de novembro de 2015.
Por Patricia Fachin e Ricardo Machado

IHU On-Line – Como se deu o processo de formação e aprovação do PL 101/15?

Edson Passetti – A aprovação pelo Senado do PL 101/15 segue aConstituição Federal quanto à regulamentação do terrorismo. De acordo com o “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O PL 101/15disciplina o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais, reformula o conceito de organização terrorista e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Na EMI nº 00125/2015 MJ MF, de 06/06/2015, os ministros José Eduardo Martins Cardozo e Joaquim Vieira Ferreira Levy expõem à presidenta do país o detalhamento sobre a nova compreensão de terrorismo, acompanhado das referidas leis a serem alteradas. A votação resultou em 34 votos pelo sim, 18 pelo não, com zero abstenção, e o voto favorável do presidente do senado. Os partidos que recomendaram o não foram: PSB, PT, PSB, PCdoB, REDE. Os senadores que votaram não ao PL 101/15 foram dos seguintes partidos: PSB, PDT (2 de 4), PT (nem todos), PR (1 de 3) REDE e PCdoB.


IHU On-Line – Que avaliação faz da aprovação do PL 101/15, conhecido como Lei antiterrorismo no Senado? Que fatores e motivações contribuíram para a aprovação da lei até o momento?

Passetti – É preciso deixar claro que ao se falar de liberdade no capitalismo se está dizendo, antes de tudo, segurança para essa liberdade. Portanto, a democracia no capitalismo não é determinante, mas uma variável no governo do Estado. Do mesmo modo, a democracia representativa e pluralista jamais estará isenta de dispositivos de exceção. Dito isso, o terrorismo sempre é definido pelo Estado como uma prática que lhe é exterior e contra seu governo; que visa alterá-lo e, no limite, abolir o Estado. Dessa maneira, tudo o que não for reconhecido pelo Estado e pelas forças que o sustentam como legal, normal ou legítimo fica passível de ser compreendido como prática terrorista. Reconhece-se, porém, como um levante legítimo aquele que visa alterar o exercício do soberano pelo fato de ele exorbitar em suas prerrogativas. É o jogo político das forças envolvidas e reconhecidas no âmbito parlamentar que autoriza qualificar uma contestação como terrorista e outra como levante legítimo.

Os levantes do século XXI
O chamado terrorismo em solo nacional se esgotou no século XX. Um novo terrorismo transterritorial, inaugurado peloAl Qaeda e dimensionado hoje em dia pelo Estado Islâmico, acionou novas relações internacionais relativas ao chamado combate ao terrorismo. Entretanto, o chamado perigo interno está cada vez mais presente a partir do momento em que diversos agrupamentos voluntários que emergiram no interior dos movimentos de protestos planetários se comunicam intensamente por meio de redes eletrônicas apresentando condutas políticas e atitudes antipolíticas transterritoriais. Os Estados-nação, por meio de capturas e revisões nas formas de participação, procuram incorporar as recentes contestações, mas são incapazes de tragar todas elas.

Assim, de um lado, investem no controle monitorado do terrorismo transterritorial que visa ocupar ou criar um novo Estado, agregando territórios em novas fronteiras (EI), e, de outro lado, precisam demarcar, imediatamente, um ponto de contenção jurídico-político para protestos e levantes de teor antipolítico, cujo alvo imediato chama-se black bloc. A nova lei antiterrorismo no Brasil pretende responder a essas novidades sintonizadas como a comunicação informacional.

Repare que essas inovações legais já foram realizadas em outros países sempre em direção a dois pontos: o terrorismo transterritorial identificado com o fundamentalismo islâmico e as ações de rua relacionadas aos anarquistas. Foi assim no Reino Unido em 2000, com “Terrorism Act 2000”, que visava o movimento antiglobalização; nos EUA em 2001, com “Patriot Act”; na Grécia em 2008, visando os koukoloforos; mais recentemente na Espanha, com a Lei Mordaça, uma nova lei antiterrorismo e a Operação Piñata, que mantém mais de 60 anarquistas presos e/ou processados.


IHU On-Line – Quais são os pontos mais polêmicos do texto aprovado no Senado? O que o PL entende por "atos de terrorismo"? 

Passetti – Não se trata de isentar um ou outro ponto ou de justificar alguns deles. A aplicação da lei é de direito do soberano, da mesma forma que ela encontra na normatividade das relações sociais seu ponto justo de aplicação. Há uma sociedade que deseja cada vez mais seguranças, punições, monitoramentos, penalizações e que crê ser assim, porque sempre foi e será a vida normal. O cidadão, majoritariamente, crê tanto no Estado como no pastor, em seus condutores civis, militares, comunitários e religiosos. Por isso, mesmo o art. 2º desta lei situa claramente seus alvos:

1. os/as que podem pôr em perigo parte da humanidade com uso de gases, venenos e conteúdos biológicos, químicos e nucleares (e não esqueçamos que o monopólio de manejo desses produtos é legal e legítimo pelo Estado, e por empresas por ele autorizadas, sob circunstâncias determinadas);

2. as/os manifestantes que atentam contra o patrimônio capitalista travestido de público ou escancaradamente privado (bancos, transportes etc.), ou seja, a segurança da propriedade privada e de seu mercado;

3. os/as que invadirem bancos de dados;

4. as/os que interferirem nas garantias de propriedade por meio de sabotagem ou ocupação temporária, interceptando a circulação de mercadorias ou de pessoas (portanto, interferirem na segurança dos fluxos de circulação capitalista);

5. os/as que atentarem contra a integridade física de pessoas (logo, a violência policial nada mais é do que legítima conduta naturalizada; e qualquer um(a) pode ser guindado(a) à categoria de terrorista em uma manifestação).

Enfim, estão isentos todos os indivíduos e movimentos que agirem em manifestações de forma ordeira no intuito de colaborar para o equacionamento de reivindicações (assim sendo, a lei não atinge os movimentos sociais até que o jogo político assim o desejar). O restante da lei contém a mesma obviedade das leis de segurança em qualquer regime político, além da inclusão de complementos à penalidade quando se provocarem danos ambientais (e aqui estão excluídos todos os efeitos positivados para o desenvolvimento sustentável e as tragédias que levam vidas decorrentes destes benefícios). As penas, como sempre, serão cumpridas em presídios de segurança máxima (mais um ponto para a indústria do controle do crime).


IHU On-Line – Quais são os interesses em aprovar o PL e por que ele é votado em caráter de urgência? Há tal necessidade? 

Passetti – Quem define as necessidades são as forças políticas no ambiente político. Portanto, é a sociedade que o deseja não só por meio de seus representantes. Não é incomum lermos, vermos ou ouvirmos que é necessário dar um basta à baderna. A essa baderna claramente definida, inclusive nas mídias, que não tratam mais o black bloc a não ser como vândalos, agregando essa qualificação a qualquer conduta diferencial à ordem. Assim, as surpreendentes agitações no decorrer de uma mobilização podem vir a caracterizar um movimento intencionalmente ajustado à ordem e portador de uma estratificação a ser investigada para se identificar supostos terroristas. E, seguramente, por tal procedimento, não serão abocanhados os fascistas, os reacionários violentos, os conservadores desvairados.

Para estes sempre haverá uma justificativa fundamentada na reação inesperada de vítima. O que é necessário para o Estado não necessariamente o é para cada cidadão, mas, quando homogeneizados, os cidadãos se sentem seguros, ainda que seja para marchar como trabalhadores pelo regime liberalizante de seu patrão. O bom para a maioria dos cidadãos ditos “de bem” é ter patrão, polícia e condutores moralizantes. Essa é a urgência e a necessidade de Estado sob quaisquer circunstâncias. E na atual, sob a justificativa do momento, a urgência da legislação brasileira sobre terrorismo está vinculada aos argumentos condicionantes dos organismos internacionais devido à realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016.


IHU On-Line – Caso o PL seja aprovado, há riscos de criminalização dos movimentos sociais? Quais são as brechas da lei que possibilitariam esse tipo de criminalização?

Passetti – Note o argumento dos dois ministros no encaminhamento à presidenta: “7. Com isso, a organização terrorista será caracterizada por três elementos: o fundamento da ação, a forma praticada e o fim desejado pelo agente.

Dessa forma, conseguimos afastar qualquer interpretação extensiva que possa enquadrar como ação terrorista condutas que não tenham esse perfil. 8. Uma importante inclusão é a existência de uma causa excludente para as manifestações políticas, sociais ou sindicais, movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades individuais”.

Qualquer movimento colaboracionista com o Estado e os patrões não correrá perigo. Porém, nem sempre o que se prevê acontece no calor da mobilização. Eis o risco para o confortável cidadão, o militante profissional ou o emergente da hora. Com ou sem direitos humanos.


IHU On-Line – Que implicações o PL pode gerar para a democracia e para as liberdades, caso seja sancionado? Que consequências sociais vislumbra caso o PL seja aprovado?

Passetti – A democracia sob a qual vivemos precisa de leis como essa. Mas pode delas prescindir, claro. Trata-se de saber como o jogo de forças será conduzido. Entretanto, lanço mão novamente do informe dos dois ministros: “5. As alterações foram feitas, em regra, na Lei nº 12.850, de 2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas. Isto porque permitirá uma aplicação imediata de instrumentos de investigações previstas ali, como a colaboração premiada, agente infiltrado, ação controlada e acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações”.

Enfim, note bem, trata-se de controle monitorado sobre cada potencial suspeito, delação premiada (tão em uso atualmente para os gestores do capital) sempre estendida em seu próprio benefício, pretendendo com isso arruinar com as chamadas convicções políticas, mas que podem se deparar com o inevitável boicote, mesmo sob violências (ilegais ou ilegítimas), daqueles(as) que realizam sua atitude antipolítica, ou mesmo dos(as) que não se deixam convencer por prêmios aos alcaguetes.

A delação premiada funciona muito bem entre os gestores do capital: é para eles; não antevejo resultados semelhantes de quem nela não crê (algo similar ao que se passou com presos políticos no regime ditatorial civil-militar que honrosamente se negaram a “abrir o bico” e que ocorre, também, todo dia em delegacias). Minha preocupação é saber se o militante profissional dos movimentos saberá lidar de modo pluralista com os que dele se diferenciam de modo tonitruante; se será audaz em se desvencilhar dos fascistas, reacionários e infiltrados, essa parcela do exército de reserva de poder do Estado; e se recusará a delação premiada. Tudo poderá ser alterado se o PL 101/15 desaparecer das intenções da presidenta. Ela sabe, tão bem quanto muitos de nós, que a liberdade depende mais de democracia do que de segurança; que, muitas vezes, a decisão majoritária está equivocada; que não se deve negligenciar minorias (majoritárias ou potentes). E que nada é fixo, constante e imutável.