quinta-feira, 30 de junho de 2011

Saúde do trabalhador: entre o antigo e o novo

Entrevista especial com Carlos Minayo
Ao apresentar o livro Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011), o professor Carlos Minayo destaca a importância de se pesquisar e discutir a respeito dos estudos e das interpretações em torno desta questão: saúde do trabalhador.
Em entrevista à IHU On-Line realizada por e-mail, Minayo fala que “há problemas muito sérios que misturam doenças antigas com novos problemas derivados das relações atuais de trabalho, muitos deles de caráter psicossocial”. Ao analisar o modelo de trabalho chinês, em alguns casos já copiados no Brasil, o professor afirma: “A cultura chinesa do trabalho não é nada recomendável. É um regime tremendamente absorvente, uma exigência a tais níveis que, como foi divulgado recentemente, levou trabalhadores a cometerem suicídios”,
Carlos Minayo Gomez é graduado em Ciências pela Universidad de Santiago de Compostela (Espanha), mestre em Sociologia pela New York University (Estados Unidos) e doutor em Ciências pela Universidad de Salamanca (Espanha). Atualmente, é pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sobre o que deve-se ficar atendo quanto à saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea?
Carlos Minayo – O livro é fruto do primeiro simpósio brasileiro sobre a saúde do trabalhador. Nesse evento, debatemos as questões que avançaram na área de saúde do trabalhador de hoje, as tendências dos estudos e da prática institucional, os desafios para quem pesquisa esse tema, as principais carências, etc. Foi um momento de reflexão a respeito dos avanços do conhecimento e da prática no campo quanto à saúde do trabalhador.
Os problemas que assolam atualmente a saúde do trabalhador no país são os mais variados. É fundamental discutirmos como nós estudamos, interpretamos esses problemas e como atuar diante deles.
Para melhoria do quadro de saúde dos trabalhadores no país, é necessário intensificar as ações da vigilância em saúde, sobretudo em articulação com setores do trabalho e do ambiente. O Sistema Único de Saúde ainda está muito aquém de responder às necessidades específicas de atenção aos problemas dos trabalhadores.
IHU On-Line – Quais seriam as principais doenças modernas da sociedade contemporânea?
Carlos Minayo – Precisaríamos, para tanto, de uma discussão mais ampla. Isto porque ainda convivemos com problemas ditos antigos, mas que permanecem na nova realidade, como é o caso das intoxicações por diversos agentes e de todo tipo de acidentes. Além disso, há os efeitos da chamada reestruturação produtiva, do avanço tecnológico e do crescente setor de serviços. Há problemas muito sérios que misturam doenças antigas com novos problemas derivados das relações atuais de trabalho, muitos deles de caráter psicossocial.
IHU On-Line – Podemos dizer que, no mundo do trabalho contemporâneo, o desemprego, a precarização, a divisão sexual do trabalho, a violência, o trabalho informal e formal adquirem novas dimensões e significações?
Carlos Minayo – Certamente, todas essas questões vêm tendo maior visibilidade. Fazem parte das agendas de pesquisa e começam a estar presentes nas reivindicações de organizações representativas dos trabalhadores.
IHU On-Line – Que novas implicações foram impostas ao trabalhador nos últimos anos de forma que influenciassem sua saúde?
Carlos Minayo – Com as transformações tecnológicas, houve uma redução de determinadas situações que geravam grandes agravos para a saúde. No entanto, foram introduzidas mudanças na gestão do trabalho que, ao valorizarem as potencialidades dos trabalhadores, demandam maiores exigências de produtividade geradoras de estresse e manifestações de sofrimento. Em determinados setores, o trabalhador deixou de ser considerado um mero executor de tarefas e tem certo grau de autonomia para sugerir e mudar situações adversas que influenciam em seu dia a dia e, principalmente, em sua saúde. Em outros, porém, observa-se uma tendência contrária, submetendo o trabalhador a um rígido controle no modo de realizar as atividades, como no exemplo clássico dos operadores de telemarketing.
IHU On-Line – E hoje, em relação à saúde do trabalhador, qual a situação que mais preocupa?
Carlos Minayo – Não se pode falar de uma única situação. Elas são variadas. Por exemplo, é o caso dos trabalhadores da alimentação, do setor de frigoríficos, que se encontram submetidos a condições trabalho totalmente insalubres, geradores de diferentes tipos de agravos. O número de afastamentos do trabalho é elevadíssimo nesse setor.
Na área rural, temos a situação dos cortadores de cana migrantes que recebem pagamento por produção, com o qual reduzem a sua vida produtiva útil e, em casos extremos, conduz à morte por exaustão.
IHU On-Line – O Brasil é um dos países que mais contempla o regime informal de trabalho. Como analisar a saúde do trabalhador que está na informalidade?
Carlos Minayo – Temos uma grande carência de estudos sobre esse amplo e diversificado universo de trabalhadores. Precisam-se desenvolver estratégias que permitam identificar esses trabalhadores nas diversas portas de entrada do trabalhador no SUS, como emergências e urgências, atenção básica, média e alta complexidade. Em relação à atenção básica, a Estratégia de Saúde da Família pode desenvolver um papel importante.
IHU On-Line – A indústria da construção civil tem bastante informalidade?
Carlos Minayo – De fato, na indústria da construção civil tem um número elevado de trabalhadores com vínculos informais. Por outro lado, existem neste mesmo setor níveis de terceirização, a qual poderíamos qualificá-la de espúria, intermediada pelos conhecidos “gatos”. Nos canteiros de obra, há muita ausência de política de segurança e ocorrem muitíssimos acidentes, ao ponto de terem sido considerados o setor “campeão de acidentes de trabalho".
IHU On-Line – Como o senhor vê o modelo chinês de trabalho? Ele pode ser comparado, de alguma forma, ao modelo brasileiro?
Carlos Minayo – Graças a Deus, não. Mas corre-se o risco de ser implantado em algumas empresas. Nesse país, há grandes avanços tecnológicos, sofisticação nos processos produtivos e um variado sistema de exportação de mercadorias. No entanto, junto a esse processo moderno, há um alto grau de exploração que recai particularmente nos trabalhadores de níveis inferiores. Existe um controle brutal e rígido nas relações de trabalho; as jornadas são abusivas. A cultura chinesa do trabalho não é nada recomendável. É um regime tremendamente absorvente, uma exigência a tais níveis que, como foi divulgado recentemente, levou trabalhadores a cometerem suicídios.
IHU On-Line – Por que as grandes empresas como a Apple, a Nokia, a Adidas, escolhem a mão de obra chinesa? É só pelo preço?
Carlos Minayo – É o preço, é a disciplina. Sem dúvida, o salário médio dos trabalhadores chineses é baixo. E com essas condições de trabalho e mecanismos disciplinares impostos aos trabalhadores, diminuem-se ainda mais os custos de produção.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a saúde do trabalhador ligado aos empreendimentos econômicos solidários? É diferente do trabalhador do setor econômico formal?
Carlos Minayo – É preciso fazer algumas distinções. Nesses empreendimentos, supostamente os trabalhadores mantêm o controle dos seus processos de trabalho. Há a possibilidade de se definir coletivamente, entre outros aspectos, as metas de produção, os ritmos, a distribuição das funções, as medidas para redução ou eliminação dos riscos. Mas para que isso aconteça, o desafio é mudar a cultura do assalariamento já introjetada por eles e se envolvam na gestão coletiva. Em alguns casos, os recursos são bastante limitados e as questões de saúde passam o ocupar um lugar secundário.

Retratos do trabalho infantil no Brasil

Para cumprir os Objetivos do Milênio, seria preciso erradicá-lo, até 2015. Porém, 4 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos trabalham — 30% deles, mais de 40h semanais.
Por Expedito Solaney, no Escrevinhador
No dia 12 de junho comemorou-se o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão das Nações Unidas, pediu aos países membros que sejam tomadas medidas urgentes para erradicar o trabalho infantil perigoso que, neste momento, afeta cerca de 115 milhões de crianças em todo o mundo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) detectou a existência de mais de 4 milhões de brasileiros com idades entre 5 e 17 anos que trabalham, dos quais 30% têm uma jornada semanal superior a 40 horas.
Expedito Solaney, secretário nacional de Políticas Sociais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), acaba de divulgar artigo seu, “Erradicar o trabalho infantil no Brasil!”, que contém dados e informações muito importantes sobre o assunto. O trabalho infantil não está restrito ao campo ou a carvoarias. Nas áreas urbanas ocorre muito trabalho de crianças, não raramente imposto por pais ou familiares ou por instituições tidas como respeitáveis. Vale a pena ler o artigo, que reproduzo a seguir (Pedro Pomar).
Contexto
“Preliminarmente, é importante contextualizar a questão do trabalho infantil no Brasil. Em que pese que essa exploração remonte ao processo de colonização e escravização no Brasil, sua manifestação atual adquire características próprias ao desenvolvimento do neoliberalismo.
No Brasil, em função do aguçamento da luta de classes no final da década de 1970 e durante a década de 1980, o neoliberalismo foi retardado em função da forte pressão popular e do período de transição democrática, o que não impediu um aumento da concentração de renda e de riqueza, agravando ainda mais as condições de vida da população durante todo esse período.
Nesse momento, enquanto a Constituição de 1988, resultado dos variados projetos em disputa, apontava para uma política de bem-estar social para o Brasil, a nova realidade econômica apontava para outros rumos. A acumulação do capital exigia medidas distintas das pretensões universalizantes de políticas públicas de saúde, educação, assistência social, entre outras.
Esse ajuste foi feito, principalmente, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), com as privatizações, a flexibilização das relações trabalhistas e a abertura comercial. As consequências desse novo modelo foram sentidas no agravamento dos conflitos sociais, na contínua concentração de renda e riqueza e no aumento do desemprego no país. Isso colocou o movimento sindical e o conjunto dos demais movimentos populares na defensiva”.
Descompasso
“Verifica-se, também na esfera das políticas públicas concernentes à erradicação do trabalho infantil, o referido descompasso. Havia toda uma perspectiva de garantia de direitos. A Constituição de 1988, no artigo 227, que é baseado na Declaração Universal dos Direitos das Crianças (1959), estabelece nova diretriz para o atendimento à infância e adolescência, institui a “Doutrina de Proteção Integral”, substituindo a “Doutrina da Situação Irregular” do Código de Menores, e coloca esse segmento na posição de absoluta prioridade:
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1998, p. 116).
Porém, o desenvolvimento econômico em curso exigia do Estado um novo papel. As esferas públicas tornaram-se novos espaços de lucratividade, as políticas públicas foram substituídas cada vez mais pelos serviços privados, como ONGs (organizações não governamentais), OSCIPs (organizações da sociedade civil de interesse público), OSs (organizações sociais), fundações e demais entidades de direitos privados. O controle social se “democratizou”, a sociedade civil e os interesses privados assumiram “suas” responsabilidades
Com a eleição de Lula, abriram-se novamente as perspectivas de enfrentamento do trabalho infantil no país. Em 2002, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) foi instituída com o objetivo prioritário de viabilizar o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, tendo como pontos de partida os trabalhos realizados pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). As ações do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) cumprem papel importante na garantia de direitos.
Retórica não basta
Diante de novas possibilidades abertas, é preciso fazer o enfrentamento sem retóricas, porque os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), de 2009, demonstram que a situação do trabalho infantil no Brasil ainda é grave. O estudo indicou que nesse ano 4,3 milhões de brasileiros com idade entre 5 e 17 anos estavam trabalhando, ainda que tenha representado uma queda em relação à amostra anterior.
Em relação ao número de horas trabalhadas, a maioria (30,5%) tinha uma jornada semanal de 40 horas ou mais. Em 2006, esse taxa era de 28,6%.
A PNAD também mostra que, quanto mais nova a criança, maior a chance de estar em atividades agrícolas (trabalho perigoso). Na faixa etária de 5 a 13 anos, 60,7% estão no setor, considerado o mais pesado devido ao manuseio de ferramentas de corte e aos riscos de contato com animais peçonhentos, além do problema da falta de fiscalização.
Considerando os dados da PNAD, o Brasil não cumprirá os compromissos assinados perante a ONU com objetivos do desenvolvimento do milênio com metas até 2015; uma delas é erradicar as piores formas de trabalho infantil.
A CUT é membro efetivo da Conaeti, coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego; também do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), órgão da sociedade civil, com o objetivo de cobrar a aplicação das convenções 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); e, além de ter contribuído na construção, acompanha a execução do II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil.
Em Genebra, na leitura do Informe sobre o Trabalho Infantil na 100ª Conferência Internacional do Trabalho, a OIT pediu aos países membros que sejam tomadas medidas urgentes para erradicar o trabalho infantil perigoso que, neste momento, afeta cerca de 115 milhões de crianças em todo o mundo.
Em novo relatório divulgado por ocasião do Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, que se comemora em 12 de junho, a OIT destaca que este número representa mais da metade de todos os trabalhadores infantis do mundo, estimados em 215 milhões.
O relatório “Crianças em trabalhos perigosos: o que sabemos, o que precisamos fazer”, cita estudos de países industrializados e em desenvolvimento, indicando que a cada minuto durante o dia, uma criança que trabalha em algum lugar do mundo sofre um acidente de trabalho, doença ou trauma psicológico.
O relatório também afirma que, embora o número total de crianças entre 5 e 17 anos em trabalhos perigosos tenha diminuído entre 2004 e 2008, o número de crianças entre 15 e 17 anos nestas atividades teve um aumento real de 20% no mesmo período, passando de 52 milhões para 62 milhões.
A campanha para erradicar o trabalho infantil de 2011 começa agora no lançamento aqui em Genebra, no Brasil e no mundo. No Brasil foi lançada também a campanha do Brasil sem Miséria, são campanhas que se somam. Estamos firmes na luta pela erradicação da miséria e do trabalho infantil. Vamos fazer o acompanhamento e o balanço das ações. Vamos à luta contra o trabalho infantil, a pobreza e a miséria!”

Sinais de democracia participativa

Reportagem sobre as conferências nacionais, conselhos, ouvidorias e mesas de diálogo — espaços em que a sociedade promove debates muito mais ricos que os do Congresso Nacional, e de onde saem políticas públicas efetivas.
Por Simone Biehler Mateos, em Desafios (IPEA)
Mais de cinco milhões de pessoas ajudaram a formular, implementar ou fiscalizar as políticas públicas no Brasil
Pouca gente, além dos diretamente envolvidos, sabe que boa parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), todo o Programa Nacional de Habitação, o plano de expansão das universidades públicas, o ProUni, a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), as políticas afirmativas contra a discriminação racial, de mulheres e minorias sexuais e o amplo conjunto de medidas que impulsionaram enormes avanços na agricultura familiar nos últimos anos foram formulados e decididos com a participação direta de milhões de brasileiros, por meio de inúmeros canais criados ou ampliados para consolidar a democracia participativa no país.
Só as 73 conferências nacionais temáticas realizadas para debater políticas públicas envolveram, em seus vários níveis, cerca de cinco milhões de pessoas. Mais da metade dos conselhos nacionais de políticas públicas que contam com participação popular foram criados ou ampliados nos últimos oito anos.
A participação popular na elaboração, implementação e fiscalização das políticas públicas ganhou amplitude sem precedentes, contribuindo para aumentar tanto a eficácia e abrangência das ações públicas, como a capacidade de formulação dos movimentos sociais.
Durante esse período, programas estruturantes como as medidas conjunturais relevantes foram decididos e implementados por meio de diálogo direto e da mais ampla negociação com os movimentos sociais. Para isso foram criados ou ampliados diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais – conferências, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo etc. -, que já configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de democracia participativa.
Políticas de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, defesa da igualdade racial, dos direitos das mulheres ou de minorias sexuais, dentre tantas outras, foram discutidas nas 73 conferências nacionais sobre políticas públicas. Elas representam 64% do total desses encontros (114) realizados no Brasil nos últimos 60 anos, e abrangeram um leque de temas nunca antes levados ao amplo debate popular pelo poder público (ver tabela 1 pág. 22). Os assuntos abordados e deliberados vão desde saneamento e habitação à políticas de geração de renda, reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos, política científica e tecnológica, de uso das águas, estratégias para o desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs), passando por temas específicos como saúde indígena ou defesa dos direitos das minorias sexuais.
A maior mudança nesse processo democrático, segundo Roberto Pires, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, é que “estes espaços de participação têm gerado oportunidades para atores sociais, grupos, movimentos, associações localizarem suas demandas. São grupos que, frequentemente, por representarem minorias políticas, têm grande dificuldade de levar suas demandas aos legisladores e formuladores de políticas públicas”.
Com formato congressual, algumas conferências começam com debates por bairro ou escola (como as de educação), todas têm etapas municipais que discutem teses de um documento base e elegem representantes para o encontro regional ou estadual, de onde saem os delegados nacionais. Delegados dos ministérios participam ativamente de seus grupos de trabalho e das plenárias das conferências nacionais, trazendo dados, opinando, divergindo e interagindo com os participantes desses encontros, boa parte dos quais contou com a participação do próprio presidente da República.
Esses encontros nacionais, em sua maioria realizados em Brasília, costumam reunir entre 600 e cinco mil pessoas anualmente ou a cada dois ou quatro anos, dependendo do tema. Até brasileiros que vivem no exterior já puderam participar de duas conferências, de Comunidades Brasileiras no Exterior, realizadas em julho de 2008 e outubro de 2009.
As diretrizes aprovadas nas diversas conferências nortearam políticas públicas elaboradas, fiscalizadas e avaliadas pelos 61 conselhos de participação social que – integrados por representantes do governo e da sociedade civil – hoje assessoram as ações de todos os ministérios. Muitas das suas deliberações já se tornaram decretos, portarias ou projetos de lei aprovados ou em tramitação no Congresso Nacional.
Mas as conferências nacionais não foram os únicos canais de participação ampliados nos últimos anos. Dos 61 conselhos nacionais de políticas públicas com participação popular existentes, 33 foram criados ou recriados (18), ou democratizados (15) desde 2003. Hoje, 45% de seus membros são do governo e 55% da sociedade civil, incluindo, dependendo do caráter do conselho, representantes do setor privado e dos trabalhadores em geral ou de dado setor, da comunidade científica, de instituições de ensino, pesquisa ou estudos econômicos, assim como por organizações de jovens, mulheres e minorias.
Por meio das conferências, conselhos, mesas de negociação, audiências públicas e outros canais, tanto os grandes programas do governo -inclusive o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e o Minha Casa, Minha Vida-, como as medidas conjunturais mais importantes -como as de combate à crise- foram previa e amplamente discutidos com a sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, projetos polêmicos -como a transposição do rio São Francisco, a construção das duas usinas do rio Madeira e da BR 163 e o plano de Desenvolvimento Sustentável da Ilha de Marajó- foram objeto de diversas audiências públicas nos municípios afetados.
E para temas importantes e específicos -como uma política para a valorização do salário mínimo, a melhoria das condições de trabalho no setor sucro-alcooleiro, as reivindicações das mulheres camponesas, do funcionalismo, dos atingidos por barragens, da moradia popular- foram criadas mesas de negociação permanente.
“Todas as medidas de maior impacto econômico e social do governo foram decididas e implementadas com ampla participação social”, frisa Luiz Soares Dulci, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República. Tradicionalmente um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com o Congresso, com algumas tarefas administrativas relacionadas ao Planalto, a partir de 2003 a Secretaria ganha formalmente a função de articular uma estreita comunicação do governo com a sociedade civil organizada. A partir daí, todas as políticas importantes passam a ser formuladas junto com os movimentos sociais nas conferências, conselhos e mesas de diálogo.
PROCESSO IGNORADO: Apesar do amplo alcance destas políticas, poucos dos afetados sabem que também o Plano Nacional de Habitação, a Lei Nacional de Saneamento e a de Resíduos Sólidos (já aprovadas) ou o Marco Regulatório da Mobilidade Urbana (em tramitação) refletem essencialmente formulações feitas pelos movimentos sociais no Conselho Nacional das Cidades e nas quatro conferências nacionais que este realizou desde que foi criado, em 2003.
Essas duas instâncias deram institucionalidade e amadureceram reivindicações dos movimentos comunitários que haviam começado a tomar forma na década de 1980, como o Fórum Nacional da Reforma Urbana. Centrado inicialmente em moradia, o fórum logo passou a discutir transporte, saneamento e mobilidade e acabou convidado a participar da elaboração do programa de governo apresentado no segundo turno das eleições para o primeiro mandato de Lula.
Outra conquista do conselho e das conferências nacionais das cidades foi a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. O fundo contempla financiamento para a faixa de renda de zero a três salários mínimos e, pela primeira vez, abriu a possibilidade de projetos habitacionais autogestionados, nos quais os recursos para casas que serão construídas em mutirão são repassados a entidades comunitárias. A Caixa Econômica Federal conta hoje com uma subgerência social para fazer essa interface com os projetos dos movimentos sociais.
“A Caixa nos trouxe vários projetos de habitação popular que foram refeitos na base da negociação. Graças a esse debate, o Minha Casa Minha Vida 2 prevê, por exemplo, o uso de energia solar para o aquecimento de água, e janelas para o máximo aproveitamento da luz natural”, conta Bartira da Costa, presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam).
Ela lembra que a própria criação do Ministério das Cidades, no primeiro dia do primeiro mandato do presidente Lula, era reivindicação antiga do Fórum Nacional da Reforma Urbana. “Claro que essas leis e programas não refletem 100% das nossas reivindicações. Mas hoje podemos dizer que o Brasil tem políticas para a reforma urbana que foram elaboradas com ampla participação social, e que os movimentos sociais colocaram na pauta desse debate os temas necessários para construirmos uma cidade mais justa, mais democrática e com mais qualidade de vida”, analisa Bartira.
CONSENSO CONTRA A CRISE: Grande parte das medidas adotadas para combater os efeitos da crise econômica foram decididas através de um amplo diálogo com a sociedade civil organizada. Foi numa mesa de negociação integrada por empresários, centrais sindicais e governo que se decidiu promover a desoneração tributária condicionada à manutenção do emprego, e a orientação para que os bancos públicos suprissem toda a demanda nacional por crédito.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique, destaca o papel decisivo que teve nesse processo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CNDES), criado em 2003 e integrado por trabalhadores, empresários, movimentos sociais, governo e lideranças de vários setores.
“Ali estabelecemos a agenda positiva para combater a crise, baseada não em demissões, mas em aumento de investimentos, redução de impostos e ampliação do crédito para manter a demanda”, conta Henrique, lembrando que nos meses seguintes à eclosão da crise, o conselho apresentou suas propostas aos bancos públicos e aos empresários da construção civil e do setor automotivo.
Ainda mirando o combate à crise, o governo convocou no mesmo período as quatro maiores organizações nacionais de luta pela moradia para discutir o lançamento de um grande programa habitacional que previa construir 1 milhão de habitações populares para combater os efeitos da crise, o Minha Casa, Minha Vida.
“O governo nos chamou para discutir sua proposta e nós apresentamos as nossas. Como resultado, a lei que regulamenta o programa reflete, na íntegra, a discussão acumulada no conselho e no Ministério das Cidades. Graças ao debate passou a incluir, por exemplo, a regularização fundiária. A primeira edição do programa teve de ser decidida rapidamente para ser usada como medida anticrise, mas suas edições posteriores continuaram a ser aprimoradas pela discussão”, explica Bartira, da Conam.

MAIOR ACORDO COLETIVO DO MUNDO: A política de valorização permanente do salário mínimo, que assegura ganhos reais anuais para 45 milhões de brasileiros ativos e aposentados, também foi fruto de ampla negociação que incluiu todas as centrais sindicais brasileiras.
Em 2005, foi criado um Grupo de Trabalho – integrado pelas centrais sindicais e os ministérios da Previdência, Trabalho e Planejamento – para elaborar um programa de valorização do salário mínimo. Desde que passou a vigorar, essa política elevou o salário mínimo em 60%, o que, segundo estudo do Dieese de 2010, impulsionou também o aumento do piso de várias categorias. O plano acordado prevê aumentos reais do mínimo, atrelados ao crescimento, até 2023. “O salário mínimo deixou de ser considerado mero instrumento de custo da previdência social para ser encarado como instrumento de desenvolvimento”, destaca o ex-ministro Dulci.
Nessa mesa de diálogo com as centrais sindicais foram pactadas também: a nova tabela do imposto de renda – que isentou totalmente mais de 700 mil trabalhadores e reduziu a contribuição dos assalariados médios -, várias medidas de desoneração tributária das classes populares, como a extinção de impostos federais sobre alimentos básicos e materiais de construção; além das iniciativas para expansão do crédito, como o programa de crédito consignado, com juros mais baixos e desconto na folha de pagamento. Esse programa direcionou para o consumo popular e para o aquecimento do mercado interno mais de R$ 105 bilhões.
Como resultado desse diálogo, o governo também enviou ao Congresso um projeto de lei que cria obstáculos à demissão voluntária e outro que estende a convenção coletiva para o setor público.
ASSISTÊNCIA SOCIAL: Também as políticas de proteção social e transferência de renda para as famílias que viviam abaixo da linha da pobreza foram concebidas, e vêm sendo executadas, em conjunto com centenas de entidades da área social, laicas ou religiosas, em todo o país.
Quatro conferências nacionais de Assistência Social discutiram em profundidade essas políticas, cujo carro chefe é o Bolsa Família, mas que incluem também o salário mínimo pago a 3,2 milhões de portadores de deficiências e idosos pobres, os programas de aquisição de alimentos e merenda escolar, o programa de construção de um milhão de cisternas e os quase 6 mil centros de referência da assistência social (Cras) instalados em mais de 4 mil municípios.
Uma das conquistas mais importantes dessas conferências foi a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Com modelo similar ao do Sistema Único de Saúde (SUS), o Suas foi uma deliberação da Conferência de Assistência Social de 2003, debatida e aprovada em outras conferências.
“As conferências foram importantes para que se evitasse o desmonte do orçamento específico da seguridade social, como ficava implícito em algumas propostas colocadas na discussão sobre a reforma tributária. Além de colocar a assistência social como política pública e não como caridade, o Suas define, mais claramente até que o SUS, a responsabilidade de cada ente federativo no financiamento da área”, opina José Antonio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
A VOZ DO CAMPO: A mesma lógica participativa está por trás das políticas públicas para o campo. O diálogo com os movimentos sociais permitiu os programas de ampliação da assistência técnica, as políticas de preços mínimos e a criação do seguro investimento que, em caso de quebra de safra por seca ou enchentes, garante o pagamento não só do financiamento obtido como também de parte dos ganhos previstos.
“O estreitamento do diálogo ampliou não só o volume de recursos, como a eficácia da sua aplicação porque a essência de todos esses programas é fruto de anos de experiências acumuladas por organizações cooperativas e movimentos sociais do campo, que passaram a ser ouvidos”, avalia a coordenadora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), Elisângela Araújo. Criada há cinco anos, a entidade aglutina quase mil sindicatos de agricultores rurais, além de federações de 17 estados.
Entre os avanços obtidos, a dirigente rural menciona o fato de a Embrapa estar começando a se preocupar, também, em desenvolver tecnologias adaptadas à agricultura familiar – que, por ter produção diversificada, requer logística diferente das monoculturas das grandes propriedades – e, sobretudo, os avanços no acesso ao crédito: “Antes tínhamos muitíssima dificuldade para dialogar com os bancos e o crédito para agricultura familiar acabava ficando todo no Sul, onde as cooperativas eram mais organizadas. Muitos nem nos recebiam e tínhamos de ocupar as agências. Isso mudou completamente, houve orientação e capacitação para que os bancos dialogassem conosco e o cooperativismo avançou em todo o país”, conta, destacando, porém, o muito que falta por avançar: “nossos diálogos com o governo agora se centram em desenvolver programas de capacitação dos agricultores familiares para que desenvolvam bons projetos”.
Outra iniciativa que espelha uma reivindicação antiga das organizações de trabalhadores do campo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) pelo qual o governo compra, a preços de mercado, a produção de agricultores familiares locais para abastecer creches, escolas e hospitais.
Criado em 2003, o PAA ampliou-se muito nos últimos três anos, sobretudo no Norte e Nordeste, garantindo R$ 2 bilhões em vendas para o setor em 2010. E, desde o final de 2008, uma lei estabelece que o Programa de Alimentação Escolar compre ao menos 30% dos alimentos de agricultores familiares. Em mais de 300 municípios, essas compras já são feitas localmente, por meio de editais específicos para cooperativas.
“Com esses programas, os agricultores passaram a receber preço justo e ampliaram sua renda, ao mesmo tempo em que asilos, creches, orfanatos, escolas e hospitais passaram a consumir frutas e legumes frescos, em vez de sopas de macarrão com salsicha e bolachas, que caracterizavam a alimentação de muitas dessas instituições”, frisa Elio Neves, da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), acrescentando que graças a esses programas, apenas uma cooperativa coordenada pela Feraesp, que congrega 240 famílias, ampliou sua renda em 60% nos últimos dois anos. “O PAA é um programa que fortalece o mercado interno, a produção e a qualidade dos alimentos consumidos”, salienta Neves.
CANAIS PARA PAUTAS NACIONAIS: Segundo o presidente da Contag, Alberto Broch, além do conselho e das conferências, o tradicional “Grito da Terra”, que as entidades de trabalhadores rurais promovem anualmente para negociar suas reivindicações com o governo tornou-se outro espaço privilegiado de interlocução: “Realizamos o ?Grito? há 16 anos, mas nunca tivemos um diálogo tão fluído e tão próximo como no governo Lula”, diz o dirigente da Contag. Ele dá exemplos bem concretos:
“Antes, era quase impossível conseguirmos conversar com o Itamaraty por mais que um acordo internacional prejudicasse produtores brasileiros. Hoje temos interlocutores lá não só para evitar prejuízos como para obter acesso, por exemplo, a linhas de financiamento da Associação Brasileira de Cooperação Internacional”.
Broch destaca que, no ano passado, as entidades que integram o “Grito da Terra” negociaram diretamente com 18 ministros debatendo não só agricultura, assistência técnica e financiamento, como saúde, educação rural e políticas sociais para o campo.
O Grito da Terra é apenas uma das grandes pautas nacionais para as quais o governo criou canais institucionais para facilitar o mais amplo debate. Outro exemplo de movimento cujo canal de diálogo com o governo foi ampliado é a Marcha das Margaridas, que uma vez a cada três ou quatro anos reúne em Brasília cerca de 5 mil mulheres do campo que vão apresentar suas reivindicações, que incluem desde questões de gênero e combate à violência doméstica até problemas de educação, saúde, alimentação e transporte escolar.
Como essas pautas nacionais incluem questões relacionadas a diversos ministérios, a discussão geralmente é coordenada pela Secretaria-Geral de Presidência da República. “Não tem sentido um governo que preza a participação popular deixar esses movimentos baterem de ministério em ministério. Então, a Secretaria-Geral discute previamente a pauta com as lideranças, as apresenta aos gestores da participação social dos vários ministérios, coordena longas discussões e negociações e, ao final, entrega aos movimentos um caderno volumoso com as respostas às reivindicações, inclusive as não atendidas”, explica Kleber Gesteira Matos, secretário executivo adjunto da Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR).
POLITIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS: O diálogo intenso aumentou não só a eficácia das políticas públicas, como também o nível de politização dos movimentos sociais. “Estávamos acostumados a reivindicar para outros fazerem, fossem prefeituras, Estado ou patrões. Com os novos canais criados, participamos não só da formulação, como da operacionalização das políticas”, diz Élio Neves, da Feraesp.
Elisângela, agricultora da região sisaleira da Bahia que há duas décadas milita nos movimentos do campo – primeiro em comunidades eclesiais, logo nos sindicatos e hoje na Fetraf e na CUT Nacional – concorda. “Ampliamos nossa compreensão sobre o funcionamento do Estado e nos tornamos capazes de não só reivindicar como também participar na elaboração, implementação e fiscalização das políticas públicas”.
Dulci lembra que essa maior politização se traduz na intensa participação das centrais sindicais e movimentos sociais não só na discussão de temas trabalhistas e específicos, como também de aspectos estruturais e conjunturais da política econômica, como a redução dos juros, a ampliação do crédito, os incentivos ao mercado interno, a descentralização industrial.
“Na verdade, [os movimentos sociais] negociam cada vez mais uma estratégia nacional de desenvolvimento. Na crise financeira internacional isso ficou evidente quando as centrais pactuaram com o governo um conjunto de medidas para evitar a recessão, sustentar o consumo e garantir o emprego”, avalia o ex-ministro.
CORTADORES DE CANA: Outra mesa de negociação importante que reflete a ampliação do foco trabalhista para o de um projeto de desenvolvimento foi a instituída para obter a melhoria das condições de trabalho do setor sucroalcooleiro. Nela, ao longo de quase dois anos, usineiros, trabalhadores do setor e governo (representado nada menos que por seis ministros) construíram um conjunto de medidas e um amplo compromisso: “Por ter representantes dos três setores, essa mesa deliberou coisas que foram muito além das condições de trabalho, incluindo também estratégias de geração de emprego e um plano nacional de requalificação para facilitar a recolocação dos trabalhadores que ficarão desempregados com a mecanização da colheita”, frisa Élio Neves, da Feraesp, lembrando que o plano prevê requalificar cerca de 25 mil pessoas nos oito estados produtores de cana.
A negociação culminou na elaboração de um protocolo que determina, entre outras coisas, que a contratação de migrantes deveria ser feita pelo Serviço Nacional de Emprego, para garantir que eles já saiam com contratos firmados na origem e que tenham boas condições de transporte. Com isso se elimina a figura do gato, principal responsável pela prática da escravidão por dívida, tristemente famosa entre os trabalhadores migrantes.
Embora seja de adesão voluntária, esse protocolo já foi assinado por mais de 300 das quase 500 usinas em funcionamento no país, “O suficiente para que os outros se sintam pressionados a aderir também”, diz o presidente da Contag, Alberto Broch.
A mesa agora continua para organizar a fiscalização conjunta do cumprimento do acordo. “Tudo foi estabelecido conjuntamente, do questionário à forma de abordar e entrevistar os trabalhadores, passando por outras estratégias de verificar se eles estão mesmo recebendo os benefícios”, conta o presidente da Contag, que já participou de quatro experiências piloto de fiscalização conjunta com representantes do governo e dos usineiros.
“Ser responsável também pela fiscalização do acordo favorece o entendimento do processo inteiro e imprime uma qualidade diferente à participação, um outro nível de compromisso para que as coisas funcionem. Não se trata mais de só reivindicar. Em 53 anos nunca vi um processo assim, mas é assim que a democracia mais se fortalece”, pondera Broch.
EDUCAÇÃO: Na área da educação, as estratégias globais foram estabelecidas pelas quatro conferências nacionais da área, das quais participaram milhares de pessoas, e projetos fundamentais foram decididos e implementados a partir de uma ampla aliança com as mais variadas organizações engajadas na defesa do ensino público. Foi o caso da reforma universitária, do Programa Universidade para Todos (ProUni), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), do plano de reconstrução e expansão das universidades federais e do piso nacional do magistério.
“Sem essa aliança para neutralizar o lobby privatista, não teria sido possível a elevação do orçamento educacional em 125%, criar 250 novas escolas técnicas (mais que em todo século anterior), inaugurar 15 novas universidades federais e expandir outras 42, inclusive instalando 131 novos campi pelo interior do país”, frisa o ministro Dulci.
DIREITOS ESPECÍFICOS: Para além dos direitos econômicos e sociais clássicos, como saúde, educação, emprego, salário e proteção social, a democracia participativa propiciou ainda, nos últimos anos, importantes avanços em direitos de segmentos sociais específicos. Dessa forma, desenvolveu-se uma ampla discussão e a adoção de medidas concretas, que incluíram diversas políticas afirmativas, em favor da igualdade racial, do reconhecimento de demandas próprias da juventude, de idosos, portadores de deficiência e minorias sexuais.
Para criar e implementar essas políticas pública foram, inclusive, criados órgãos específicos, como as secretarias especiais de Políticas para as Mulheres, de Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. As conferências nacionais dessas três áreas mobilizaram centenas de milhares de pessoas, difundiram valores de tolerância e direito à diferença e produziram conquistas importantes como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial – depois de dez anos de tramitação -, o programa Brasil Sem Homofobia, pioneiro na América Latina – e a Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica contra a Mulher.
Em 2004, foi criada a Secretaria Nacional da Juventude e logo depois o Conselho Nacional dessa área, que conta com a participação de 67 organizações de jovens, da União Nacional de Estudantes (UNE) ao hip-hop, dos trabalhadores rurais aos jovens empresários, da Pastoral da Juventude ao Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (LGBT). Mais de 500 mil jovens de todos os estados participaram das várias etapas da Conferência Nacional da Juventude, que teve como principal resultado o ProJovem que, em menos de quatro anos, atendeu a mais de dois milhões de jovens marginalizados, proporcionando-lhes escolaridade, inclusão digital, formação profissional e inserção comunitária.
“O Brasil é um país complexo, temos desde operariado urbano sob impacto da alta tecnologia até comunidades tradicionais que não querem se integrar à lógica capitalista, como ciganos, quilombolas, castanheiros, ribeirinhos e povos indígenas. O objetivo dessas instâncias de participação popular é estabelecer um diálogo permanente que permita ao governo desenvolver políticas públicas que deem conta dessa pluralidade brasileira”, diz Gesteira Matos, da SGPR.
POLÍTICA EXTERNA: Mesmo a política externa brasileira, antes assunto exclusivo de técnicos e políticos, passou a ser debatida com a sociedade civil. Entidades populares passaram a integrar as delegações brasileiras aos principais foros multilateriais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o G20, as conferências das Nações Unidas sobre clima e direitos humanos ou as cúpulas do Mercosul.
E a cooperação com os países do Sul passou a ser encabeçada também pelos movimentos sociais. Em 2007, por exemplo, instituiu-se o Conselho Brasileiro do Mercosul Social e Participativo, além do Instituto Social do Mercosul. No Brasil, encontros com o Mercosul foram realizados em sete estados e quatro grandes cúpulas sociais da região reafirmaram a necessidade de ir além da integração comercial, incorporando à agenda comum temas de educação, cultura, ambientais e étnicos.
A “PRECURSORA”: Até as viagens que o presidente Lula realizou a cada ano pelo país foram transformadas em canais para estreitar a interlocução do governo com os movimentos sociais. Isso ocorre por meio da “precursora”, grupo de assessores que visita antecipadamente os locais preparando a viagem. Tradicionalmente integrada por profissionais da área de segurança, cerimonial, comunicação e assessores técnicos, desde 2003, a “precursora” conta também com a participação de assessores da Secretaria-Geral encarregados de estabelecer contatos com os movimentos sociais locais para prospectar suas reivindicações. O diálogo já evitou situações difíceis como a ocupação de uma hidrelétrica durante uma visita presidencial a Águas de Chapecó, em Santa Catarina, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
“Eles estavam acampados numa área próxima à usina e planejavam ocupá-la quando o presidente chegasse, para abrir um canal de negociação. Nós chegamos antes, colocamos o pessoal do MAB frente a frente com o ministro das Minas e Energia e com o presidente e abrimos a negociação”, conta Cândido Hilário de Araújo, assessor da Secretaria-Geral e integrante da precursora, mais conhecido como “Bigode”.
Na negociação, os representantes do MAB apresentaram um documento que analisava os problemas locais e nacionais: “Chapecó foi um marco fundamental para que a Secretaria-Geral estabelecesse relações permanentes com o MAB, a partir daí os consórcios tiveram de aprender a negociar com os afetados pelas usinas, o que culminou em um acordo nacional que estabeleceu um patamar mínimo de compensações para que uma barragem fosse construída”, lembra Bigode.
A precursora mudou até a organização espacial dos eventos dos quais participa o presidente, “Antes a linha de frente ficava reservada para as autoridades, agora é dividida entre essas e populares e colocamos sempre lideranças sociais locais no palco para falarem”, diz Geraldo Magela, secretário nacional adjunto de Estudos e Pesquisas Político-Institucionais da Secretaria-Geral.
“A precursora organiza cerca de 1.000 eventos ao ano, recolhe as demandas locais e procura os órgãos finalistas para que deem continuidade às negociações, todas têm desdobramentos. É um processo rico de aprendizado: o Estado mais poroso à participação social faz os militantes se apropriarem dele, entenderem como funciona e ajudarem a aprimorá-lo”, diz Magela.
PARTICIPAÇÃO, NÃO COOPTAÇÃO: O ex-ministro Dulci destaca que toda essa sintonia e a institucionalização desses canais para a participação popular no governo não implica, de forma alguma, a subordinação ou redução da autonomia organizativa e política dos movimentos.
“É comum divergirem abertamente do governo”, afirma Dulci. Foi o que ocorreu, aliás, durante o primeiro mandato de Lula, no que se refere a aspectos importantes da política macroeconômica: “Os movimentos cobravam uma inflexão desenvolvimentista – redução de juros, expansão do crédito e ampliação do investimento público – que favorecesse o crescimento e a inclusão social”.
Dulci ressalta que essas divergências se expressaram não só nos canais institucionais para esse debate como também em manifestações de massa. Ele menciona as três grandes marchas da classe trabalhadora com 40 mil ou 50 mil pessoas cada, os “Gritos da Terra”, realizados anualmente pela Contag, os acampamentos nacionais do MST e as Marchas das Margaridas, que reuniram na Esplanada dos Ministérios 30 mil camponesas de todo o país.
O desafio agora, segundo ele, é ampliar a qualificação específica para os processos participativos, tanto no governo como nos movimentos sociais. Com esse intuito, a Secretaria-Geral desenvolveu, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Programa de Formação de Conselheiros. Além de quadros do governo, 4.372 lideranças e militantes frequentaram os cursos e entre as monografias apresentadas há algumas que abrem novas perspectivas teóricas e práticas para a democracia participativa.
Segundo o ex-ministro, justamente para tornar irreversível o aprofundamento da democracia participativa foi elaborado o projeto de Consolidação das Leis Sociais.
Reivindicação das próprias organizações populares, o projeto se propõe a institucionalizar – tornando-as políticas de Estado – os programas sociais e canais de participação existentes, mantendo, entretanto, sua flexibilidade política e organizativa.
Nessa proposta de lei “estava inclusa a ideia de institucionalizar, de dar amparo legal a essas experiências de participação no governo federal”, explica Pires, do Ipea. Apesar de o projeto de lei não ter sido enviado ao Congresso, “esta é uma agenda que permanece nas intenções do governo".

domingo, 26 de junho de 2011

O papel de Wall Street no narcotráfico

A política dos EUA para o México é um pesadelo. Ela minou a soberania mexicana, corrompeu o sistema político e militarizou o país. Obteve também como resultado a morte violenta de milhares de civis, pobres em sua maioria. Mas Washington não está nenhum pouco preocupado com os “danos colaterais”, desde que possa vender mais armas, fortalecer seu regime de livre comércio e lavar mais lucros das drogas em seus grandes bancos. Os principais bancos dos EUA se tornaram sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga. A guerra contra as drogas é uma fraude. Ela não tem a ver com proibição, mas sim com controle. O artigo é de Mike Whitney.
por Mike Whitney - SinPermiso
Imagine qual seria sua reação se o governo mexicano decidisse pagar 1,4 milhões de dólares a Barack Obama para usar tropas norte-americanas e veículos blindados em operações militares em Nova York, Los Angeles e Chicago, estabelecendo postos de controle, e elas acabassem se envolvendo em tiroteios que resultassem na morte de 35 mil civis nas ruas de cidades norte-americanas. Se o governo mexicano tratassem assim os Estados Unidos, vocês o considerariam amigo ou inimigo? Pois é exatamente assim que os EUA vêm tratando o México desde 2006.
A política dos EUA para o México – a Iniciativa Mérida – é um pesadelo. Ela minou a soberania mexicana, corrompeu o sistema político e militarizou o país. Obteve também como resultado a morte violenta de milhares de civis, pobres em sua maioria. Mas Washington não está nenhum pouco preocupado com os “danos colaterais”, desde que possa vender mais armas, fortalecer seu regime de livre comércio e lavar mais lucros das drogas em seus grandes bancos. É tudo muito lindo.
Há alguma razão para dignificar essa carnificina chamando-a de “Guerra contra as drogas”?
Não faz nenhum sentido. O que vemos é uma oportunidade descomunal de empoderamento por parte das grandes empresas, das altas finanças e dos serviços de inteligência norteamericanos. E Obama segue meramente fazendo seu leilão, razão pela qual – não é de surpreender – as coisas ficaram tão ruins sob sua administração. Obama não só incrementou o financiamento do Plano México (conhecido como Mérida), como deslocou mais agentes norteamericanos para trabalharem em segredo enquanto aviões não tripulados realizam trabalhos de vigilância. Deu para ter uma ideia do cenário?
Não se trata de uma pequena operação de apreensão de drogas, é outro capítulo da guerra norteamericana contra a civilização. Vale lembrar uma passagem de um artigo de Laura Carlsen, publicado no Counterpunch, que nos mostra um elemento de fundo:
“A guerra contra as drogas converteu-se no veículo principal de militarização da América Latina. Um veículo financiado e impulsionado pelo governo norteamericano e alimentado por uma combinação de falsa moral, hipocrisia e muito de temor duro e frio. A chamada “guerra contra as drogas” constitui, na realidade, uma guerra contra o povo, sobretudo contra os jovens, as mulheres, os povos indígenas e os dissidentes. A guerra contra as drogas se converteu na forma principal do Pentágono ocupar e controlar países à custa de sociedades inteiras e de muitas, muitas vidas”.
“A militarização em nome da guerra contra as drogas está ocorrendo mais rápida e conscienciosamente do que a maioria de nós provavelmente imaginou com a administração de Obama. O acordo para estabelecer bases na Colômbia, posteriormente suspenso, mostrou um dos sinais da estratégia. E já vimos a extensão indefinida da Iniciativa de Mérida no México e América Central, incluindo, tristemente, os navios de guerra enviados a Costa Rica, uma nação com uma história de paz e sem exército...”
“A Iniciativa de Mérida financia interesses norteamericanos para treinar forças de segurança, proporciona inteligência e tecnologia bélica, aconselha sobre as reformas do Judiciário, do sistema penal e a promoção dos direitos humanos, tudo isso no México” (“The Drug War Can’t Be Improved Only be Ended” – “A Guerra contra as drogas não pode ser melhorada, só terminada”, Laura Carlsen, Counterpunch)
A impressão que dá é que Obama está fazendo tudo o que pode para converter o México em uma ditadura militar, pois é exatamente isso o que ele está fazendo. O Plano México é uma farsa que esconde os verdadeiros motivos do governo, que consiste em assegurar-se de que os lucros do tráfico de drogas acabem nos bolsos das pessoas adequadas. É disso que se trata: de muitíssimo dinheiro. E é por isso que o número de vítimas disparou, enquanto a credibilidade do governo mexicano caiu como nunca em décadas. A política norteamericana converteu grandes extensões do país em campos de morte e a situação não para de piorar.
Veja-se esta entrevista com Charles Bowden, que descreve como é a vida das pessoas que vivem na Zona Zero da guerra das drogas no México, Ciudad Juárez:
“Isso ocorre em uma cidade onde muita gente vive em caixas de papelão. No último ano, dez mil negócios encerraram suas atividades. De 30 a 60 mil pessoas, sobretudo os ricos, mudaram-se para El Paso, no outro lado do rio, por razões de segurança. Entre eles, o prefeito de Juárez, que prefere ir dormir em El Paso. O editor do diário local também vive em El Paso. Entre 100 e 400 mil pessoas simplesmente saíram da cidade. Boa parte do problema é econômico. Não se trata simplesmente da violência. Durante esta recessão desapareceram pelo menos 100 mil empregos das empresas fronteiriças devido à competição asiática. As estimativas são de que há entre 500 e 900 bandos de delinquentes”.
Há 10 mil soldados das tropas federais e agentes da Polícia Federal vagando por ali. É uma cidade onde ninguém sai à noite, na qual todos os pequenos negócios pagam extorsão, onde foram roubados oficialmente 20 mil automóveis no ano passado e assassinadas 2.600 pessoas no mesmo período. É uma cidade onde ninguém segue o rastro das pessoas que foram sequestradas e não reaparecem, onde ninguém conta as pessoas enterradas em cemitérios secretos onde, de forma indecorosa, volta e meia aparecem alguns corpos em meio a alguma escavação. O que temos é um desastre e um milhão de pessoas que são muito pobres para poder ir embora. A cidade é isso”. (Charles Bowden, Democracy Now)
Isso não tem a ver com as drogas; trata-se de uma política externa louca que apoia exércitos por delegação para impor a ordem por meio da repressão e militarização do Estado policial. Trata-se de expandir o poder norte-americano e de engordar os lucros de Wall Street. Vejamos mais alguns dados de fundo proporcionados por Lawrence M. Vance, na Future of Freedom Foundation:
“Um número não revelado de agentes da lei norteamericanos trabalha no México (...) A DEA tem mais de 60 agentes no México. A esses se somam os 40 agentes de Imigração e Aduanas, 20 auxiliares do Serviço de Comissários de Polícia e 18 agentes da Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, mais os agentes do FBI, do Serviço de Cidadãos e Imigração, Aduana e Proteção de Fronteiras, Serviço Secreto, guarda-costas e Agência de Segurança no Transporte. O Departamento de Estado mantém também uma Seção de Assuntos de Narcóticos. Os EUA também forneceram helicópteros, cães farejadores de drogas e unidades de polígrafos para examinar os candidatos a trabalhar em organismos de aplicação das leis”.
“Os aviões não tripulados norteamericanos espionam os esconderijos dos carteis e os sinais rastreadores norte-americanos localizam com exatidão os carros e telefones dos suspeitos. Agentes norteamericanos seguem os rastros, localizam chamadas telefônicas, leem correios eletrônicos, estudam padrões de comportamento, seguem rotas de contrabando e processam dados sobre traficantes de drogas, responsáveis pela lavagem de dinheiro e chefes dos cartéis. De acordo com um antigo agente anti-droga mexicano, os agentes norteamericanos não estão limitados em suas escutas no México pelas leis dos EUA, desde que não se encontrem em território norteamericano e não grampeiem cidadãos norteamericanos. (“Why Is the U.S. Fighting Mexico’s Drug War?”, “Por que os EUA travam a guerra contra as drogas no México?”, Laurence M. Vance, The Future of Freedom Foundation).
Isso não é política externa, mas sim outra ocupação norteamericana. E adivinhem quem enche os cofres com essa pequena fraude sórdida? Wall Street. Os grandes bancos ficam com sua parte como sempre fazem. Vejamos essa passagem de um artigo de James Petras intitulado “How Drug profits saved Capitalism” (“Como os lucros das drogas salvaram o capitalismo”, publicado em Global Research). É um estupendo resumo dos objetivos que estão configurando essa política:
“Enquanto o Pentágono arma o governo mexicana e a DEA (Drug Enforcement Agency, a agência anti-droga dos EUA) põe em prática a “solução militar”, os maiores bancos dos EUA recebem, lavam e transferem centenas de bilhões de dólares nas contas dos senhores da droga que, com esse dinheiro, compram armas modernas, pagam exércitos privados de assassinos e corrompem um número indeterminado de funcionários encarregados de fazer cumprir a lei de ambos os lados da fronteira...”
Os lucros da droga, no sentido mais básico, são assegurados mediante a capacidade dos carteis de lavar e transferir bilhões de dólares para o sistema bancário norteamericano. A escala e a envergadura da aliança entre a banca norteamericana e os carteis da droga ultrapassa qualquer outra atividade do sistema financeiro privado norteamericano. De acordo com os registros do Departamento de Justiça dos EUA, só um banco, o Wachovia Bank (propriedade hoje de Wells Fargo), lavou 378.300 milhões de dólares entre 1° de maio de 2004 e 31 de maio de 2007 (The Guardian, 11 de maio de 2011). Todos os principais bancos dos EUA tornaram-se sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga”.
“Se os principais bancos norteamericanos são os instrumentos financeiros que permitem os impérios multimilionários da droga operar, a Casa Branca, o Congresso dos EUA e os organismos de aplicação das leis são os protetores essenciais destes bancos (...) A lavagem de dinheiro da droga é uma das fontes mais lucrativas de lucros para Wall Street. Os bancos cobram gordas comissões pela transferência dos lucros da droga que, por sua vez, emprestam a instituições de crédito a taxas de juros muito superiores às que pagam – se é que pagam – aos depositantes dos traficantes de drogas.
Inundados pelos lucros das drogas já desinfetados esses titãs norteamericanos das finanças mundiais podem comprar facilmente os funcionários eleitos para que perpetuem o sistema”. (“How Drug Profits saved Capitalism, James Petras, Global Research).
Vamos repetir: “Todos os principais bancos dos EUA se tornaram sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga”.
A guerra contra as drogas é uma fraude. Ela não tem a ver com proibição, mas sim com controle. Washington emprega a força para que os bancos possam garantir um bom lucro. Uma mão lava a outra, como ocorre com a Máfia.
(*) Mike Whitney é um analista político independente que vive no estado de Washington e colabora regularmente com a revista norteamericana CounterPunch.
Tradução: Katarina Peixoto

Para Mészáros, capitalismo vive uma crise estrutural profunda


Em conferência na Bahia, Mészáros defendeu que o capitalismo enfrenta uma “crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável”. Apesar de comumente a crise ser apresentada como ‘atual’, Mészáros discorda que ela tenha se originado em 2007, com a explosão da bolha habitacional dos EUA. A crise teria começado há mais de quatro décadas e, em 1971, ele já escrevia no prefácio de “Teoria da Alienação em Marx” que as revoltas de maio de 68 e seus desdobramentos “salientavam dramaticamente a intensificação da crise estrutural global do capital”.
por Ana Maria Amorim - Brasil de Fato
De passagem pelo Brasil, o filósofo húngaro István Mészáros teve em sua agenda a conferência plenária “Crise estrutural necessita de mudança estrutural”, no Salão Nobre da Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no dia 13 de junho. Começava com Mészáros, portanto, o II Encontro de São Lázaro, que comemora os 70 anos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. O Salão Nobre da Reitoria foi tomado por uma maioria jovem que recebeu Mészáros com entusiasmo e sonoras palmas.
Mészáros começa sua fala deixando claro que nada do que ele está propondo pode ser visto como uma “utopia não realizável” e que, para transformarmos este tão-chamado impossível em realidade é primordial que a crise do capitalismo seja avaliada adequadamente. “Sem uma avaliação da crise econômica e social de nossos dias, que já não pode ser negada pelos defensores da ordem capitalista, ainda que eles rejeitem a necessidade de uma mudança maior, a probabilidade de sucesso a esse respeito é insignificante”, diz o filósofo.
Natureza da crise
Para Mészáros, a crise que o mundo enfrenta é uma “crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável”. Apesar de comumente a crise ser apresentada como ‘atual’, Mészáros discorda que ela tenha se originado em 2007, com a explosão da bolha habitacional dos Estados Unidos. A crise teria começado há mais de quatro décadas e, em 1971, ele já escrevia no prefácio de “Teoria da Alienação em Marx” que as revoltas de maio de 68 e seus desdobramentos “salientavam dramaticamente a intensificação da crise estrutural global do capital”.
Por ser uma crise estrutural, e não apenas conjuntural, esta crise não pode ser solucionada no foco que a gera sem que não haja uma mudança desta estrutura que a criou. Mészáros reforça a diferença entre as crises conjunturais e estruturais, diferenciando-as pela impossibilidade destas realimentarem o sistema, se remodelarem a partir de uma nova forma ainda nas bases do sistema capitalista. Isto, contudo, não significa que as crises conjunturais possam se apresentar até mesmo de forma mais violenta que as crises estruturais.
“O caráter não-explosivo de uma crise estrutural prolongada, em contraste com as grandes tempestades, nas palavras de Marx, através das quais crises conjunturais periódicas podem elas mesmas se liberar e solucionar, pode conduzir a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da interpretação errônea da ausência de tempestades, como se tal ausência fosse uma evidência impressionante da estabilidade indefinida do ‘capitalismo organizado’ e da ‘integração da classe trabalhadora’”, diz Mészáros.
O que esta crise (que não é nova) teria como características que a definem como estrutural? Mészáros aponta quatro aspectos principais: o caráter universal (ou seja, não é reservada a um ramo da produção, ou estritamente financeira, por exemplo); o escopo verdadeiramente global (não envolve apenas um número limitado de países); escala de tempo extensa e contínua (“se preferir, permanente”, adiciona Mészáros, enfatizando que não se trata de mais uma crise cíclica do capital) e, por fim, modo de desdobramento gradual (“em contrates com as erupções e colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado”, diz o filósofo). Assim é construído o cenário que qualificaria esta crise como estrutural, com a impossibilidade de solução das “tempestades” dentro da atual estrutura.
Capitalismo destrutivo
Outro ponto levantado por Mészáros – e recebido com manifestações de apoio pela platéia – foi delinear os “limites absolutos” do capitalismo. Um desses limites passa pelo papel do trabalho na sociedade, que é visto como uma necessidade, tanto para os indivíduos que produzem quando para a sociedade como um todo. Uma situação onde o trabalho seja visto como um problema, ou pior, como uma falha, tem em si um limite a ser resolvido. O capitalismo, para Mészáros, “com seu desemprego perigosamente crescente” (ainda que a questão não seja meramente numérica), apresenta no trabalho um dos seus limites.
Mészáros chama ainda a atenção para outros males dessa estrutura. A primeira questão apresentada pelo filósofo estaria no foco que o capital vem apontado, os “setores parasíticos da economia”. Para ilustrar o que seria isso, Mészáros aponta para o aventurismo especulativo que a economia tem vivenciado (e que, quando peca em seus resultados, é apontado como um fracasso individual, pertencente a um determinado grupo, quando, para o filósofo, deveria ter o sistema como grande culpado, visto que ele deveria responder por aquilo que produz para se oxigenar) e a uma “fraudulência institucionalizada”.
As guerras e o seu complexo aparato industrial militar aparecem como um desperdício autoritário ao qual o capital submete a sociedade. Este ponto é analisado por Mészáros como uma “operação criminosamente destrutiva e devastadora de uma indústria de armas permanente, juntamente com as guerras necessariamente a elas associadas”. Esta produção sistemática de conflitos e estímulo a uma produção militar resultaria no outro limite destrutivo no capitalismo, apesar de não ser apenas resultado deste, que seria a destruição ecológica: “o dinamismo monopolista militarmente embasado teve até mesmo que assumir a forma de duas devastadoras guerras mundiais, bem como da aniquilação total da humanidade implícita em uma potencial terceira guerra mundial, além da perigosa destruição atual da natureza que se tornou evidente na segunda metade do século XX”.
Criar o futuro
“Existe e deve existir esperança”, diz o filósofo. Apesar do retrato de destruição apresentado por Mészáros e vivenciado cotidianamente dentro da própria estrutura capitalista da sociedade, faz-se o esforço de pensar o futuro, não apenas como um desejo sonhador, mas sim como uma tarefa necessária para mudar o sistema.
A solução para os problemas apontados pelo capital já foram apresentados em momentos históricos anteriores. Mészáros resgata as soluções apresentadas para o capitalismo. Relembrando o liberal John Stuart Mill, Mészáros aponta como inconcebível que o capitalismo chegue a “um estado estacionário da economia”, como defendia Mill, pois faz parte da lógica capitalista a incessante expansão do capital e da sua acumulação.
Retomando o ponto do limite da ecologia, fica mais visível o caráter ilusório de um freio para o capital, visto que em 2012 será realizado o Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que pretende engajar as nações em um projeto sustentável de crescimento. As tentativas de criar projeções para as taxas de emissão de carbono, por exemplo, sempre presente nas pautas ecológicas, seriam, para Mészáros, a evidência da incompatibilidade entre o capital e o freio, ainda, entre o capital e o não-avanço destrutivo na natureza.
Mészáros ainda aponta como soluções já tentadas na história: a saída social democrata, socialismo evolutivo, o Estado de Bem Estar Social e a promessa da fase mais elevada do socialismo. “O denominador comum de todas essas tentativas fracassadas – a despeito de suas diferenças principais – é que todas elas tentaram atingir seus objetivos dentro da base estrutural da ordem sociometabólica estabelecida”. Pensar a mudança sem erradicar o capital, portanto, seria deixar latente a possibilidade do capital voltar, ser “restaurado”. A mudança, para Mészáros, precisa ser estrutural e radical, como ele bem especificou para a plateia, extirpando o capital pela raiz.
O rombo estadunidense na economia, com um débito alarmante de U$ 14 trilhões, é, para o filósofo, a marca de um desperdício. Ao ver a inquietude dos capitalistas com a China e seus “três trilhões [de dólares] em caixa”, o capitalismo já pensa um “melhor uso” para esse montante. “E qual é o melhor uso? Por de volta no buraco que fizeram nos Estados Unidos?”, questiona Mészáros. Como foi gerado e como se pode assegurar que um rombo desta proporção não se repita na história são perguntas entrelaçadas ao caráter estrutural da crise e, em conseqüência disto, da resposta necessariamente estrutural que ela requer. Crise esta que tropeça em suas intermináveis guerras, devastação da natureza e contínua produção destrutiva.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Biografia Vinciane Despret

Biografia Vinciane Despret
Eu nasci em Bruxelas, no dia 12 de novembro de 1959. Fui a segunda de uma família de cinco crianças, entre elas quatro meninas. Nós nos mudamos para Liège (Bélgica), onde eu cresci e sempre vivi. Após meus estudos de filosofia, eu encontrei aquele que viria a se tornar meu marido, Jean-Marie Lemaire, um psiquiatra que hoje trabalha uma boa parte de seu tempo na Italia, em Turin. Ele me ensinou algumas coisas importantes: o fato de renunciar o querer responder a todas as questões, o fato que a pesquisa por solução era, por vezes, mais importante e mais interessante que a solução dela mesma. Sua prática, a clínica da concertação, me parece exemplar quanto a fecundidade deste processo. Nós tivemos um filho, Jules-Vincent, que logo terá 18 anos, e que é mencionado no livro, já que foi ele que me ensinou a prática dos mal-entendidos / a incompreensão das práticas (?). Meus estudos de filosofia me levaram ao desemprego, o que é frequente na Bélgica, onde a filosofia somente é ensinada no nível universitário. À partir disto eu retomei os estudo de psicologia. Eu descobri a etologia e me apaixonei pelos humanos que trabalham com os animais. Este segundo diploma me levaria, paradoxalmente, de volta à minha primeira formação, já que o departamento de filosofia da universidade de Liège me contratou a partir da obtenção do meu diploma de psicóloga. E não queria abandonar minha paixão pelos homens – e pelas mulheres – que estudavam os animais: como conciliar os dois campos? A filosofia das ciências podia me permitiria (a conciliação): podia empreender uma filosofia ou uma antropologia das ciências consagradas a da etologia. Isabelle Stenger e Bruno Latour abririam o caminho a uma prática apaixonante: seguir os cientistas na sua prática, compreender como eles tornavam seus objetos interessantes, levar em conta o paciente trabalho de invenção e de tradução colocado em prática. Este duplo re-encontro e a amizade que nos liga desde então é muito importante para mim. Eu realizei meu primeiro ensaio de antropologia da etologia seguindo um etólogo Israeliano sobre os vestígios de um pássaro extraordinário: aquele que os anglo-saxãos chamam “babbler”. Uma questão me parecia importante: como, no início da observação, os cientistas chegavam a construir uma teoria? Como dar conta das múltiplas influências que participam na sua elaboração: a influência política, a questão do gênero do observador, a qualidade dos dispositivos, as condições do campo e do próprio animal, como ator desta criação do saber. Minha tese prologou este trabalho tentando compreender como as teorias das emoções podem elas mesmas ser o objeto de uma análise deste tipo . A parte consagrada às emoções para os humanos foi o objeto de um livro, já publicado pela Editora Eleuthera. Esta pesquisa me fez conhecer o que viria se tornar muito importante para mim, tanto no campo da etnopsicologia quanto na etologia: as pesquisas feministas. A desconstrução engajada que elas propõem, e que renuncia a separação do campo científico e do campo político produz uma epistemologia inventiva e frequentemente cheia de humor. Eu tento ser uma digna hereditária. Hoje eu trabalho entre os dois campos, aquele da psicologia humana e da etologia, numa perspectiva que me leva a me interessar mais às consequências políticas de nossas escolhas teóricas: o que me conduz a me interessar ainda mais, de um lado, a questão de “como viver com o animal”, e de outro lado às questões políticas que nos colocam hoje as práticas psicoterápicas com o humano.
A Profª. Neuza Maria de Fátima Guareschi, com o propósito de discutir os textos produzidos pela psicóloga belga Vinciane Despret, desenvolve no PPGPSI da UFRGS, a discilplina "Leituras em Vinciane Despret I". E é da proposta de trabalho da disciplina que suguei essa "pequena biografia da autora, traduzida por Aline Accorsi".

zonas autônomas temporárias¹

dia desses um colega catou, na biblioteca aqui de casa, o TAZ - zona autônoma temporária, do hakim bey, e leu sem parar, estupefato com o que via e por nunca ter visto tal autor antes. hoje aproveito um texto publicado na verve-dobras n. 19, para desdobrar isso.
por colin ward*
Tenho uma longa lista de livros que eu gostaria de ler ou de escrever, mas por razões prosaicas, como uma renda baixa, acabo ficando em casa até ser atraído para fora quando alguém paga a conta. Isso explica porque anarquistas de diferentes países, como França, Alemanha, Holanda e Itália questionaram minha opinião² sobre as perspectivas de Hakim Bey³.
É sempre constrangedor, pois por muito tempo eu não fiz ideia de quem era essa pessoa e de quais eram ou são suas opiniões. Muitos de nós, incluindo eu mesmo, são hesitantes em revelar o vasto escopo da própria ignorância. Duas fontes me explicaram sobre o quê os questionadores estavam falando. Uma, certamente, é o inestimável artigo da Freedom “Food for thought… and Action!”, e a outra o recente livro de Murray Bookchin4 Anarquismo Social ou Anarquismo Estilo de Vida: Um Abismo Intransponível5.
Bookchin e eu temos maneiras opostas de confrontar pessoas cujas ideias têm algum tipo de conexão com as nossas, mas das quais nós discordamos. A dele é pulverizá-las com críticas para que não emerjam novamente. A minha é seguir a política de Paul Goodman5, que tem sido objeto do desdém de Bookchin. Goodman gostava de contar uma fábula: “Tom diz a Jerry: ‘Quer brigar? Cruze a linha!’ e então Jerry a cruza, ‘Agora’, lamenta Tom, ‘Você está do meu lado!’. Desenhamos a linha nas condições deles; mas prosseguimos em nossas próprias condições”.
Enquanto propagandista, geralmente acho mais útil reivindicar como camaradas pessoas cujas ideias são, de alguma maneira, parecidas com as minhas, e salientar nossos pontos em comum, ao invés de fazê-las desaparecer sob um dilúvio de desdém.
O que aprendi com o livro de Bookchin é que o livro de Hakim Bey se chama TAZ: A Zona Autônoma Temporária, Anarquismo Ontológico, Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares6, que o nome verdadeiro do autor é Peter Lamborn Wilson, e que seu livro tem uma série de noções que não exercem apelo em pessoas da geração Bookchin/Ward. E após seu trabalho de demolição, Murray pergunta: “O que, afinal, é uma ‘zona autônoma temporária’?” E ele explica com uma citação de Hakim Bey, descrevendo-a como: “uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la”.
E continua citando do ensaio de Hakim Bey como, numa TAZ, nós podemos “compreender muitos dos nossos verdadeiros desejos, mesmo que seja apenas por uma temporada, uma breve Utopia Pirata, uma pervertida zona-livre dentro do velho contínuo do espaço-tempo” e como “TAZs em potencial” incluem “a ‘reunião tribal’ dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, as festas gays” isso sem falar, como cita Murray, de “casas noturnas, banquetes” e “os piqueniques dos antigos libertários” — nada menos.
Murray Bookchin, naturalmente, comenta que “tendo sido um membro da Liga Libertária nos anos 60, adoraria ver a cara de Bey e seus discípulos num ‘piquenique dos antigos libertários’!” E faz alguns comentários pé-no-chão ao elogio de Hakim Bey ao “analfabetismo voluntário” e ao ser sem-teto “no sentido de uma virtude, e uma aventura.”
Corretamente, ao meu ver, Murray observa que: “Oh, ser sem-teto pode até ser uma ‘aventura’ quando se possui um confortável lar para retornar, enquanto o nomadismo é a luxúria característica daqueles que podem permitir-se uma vida sem ter de ganhar seu sustento. A maioria dos ‘vagabundos’8 nômades da era da Grande Depressão, dos quais me recordo vividamente, sofriam de uma vida desesperada de fome, doença e indignidade e em geral, morriam cedo — como ainda hoje acontece nas ruas da América”.
Ele nos vence com seu árido realismo, mas o conceito de Zona Autônoma Temporária é tão familiar a mim, e muito provavelmente também a ele, que vale a pena considerá-lo fora do contexto de Hakim Bey. Muitos de nós, com certeza, já vivemos situações nas quais pensamos como certas experiências nos parecem estar exatamente de acodo com o modo como elas seriam se estivéssemos em uma sociedade anarquista.
Acho que foi por volta de 1970 que um leitor da Anarchy, Grahan Whiteman, escreveu sobre o equivalente das zonas autônomas temporárias que ele percebia nos grandes festivais de rock ou pop que começaram a acontecer em 1967, especialmente o evento de Woodstock no Estado de Nova York, em agosto de 1969. Houve ainda muitos outros mais próximos de casa nos 25 anos subsequentes.
Mas, uma vez que a expressão Zona Autônoma Temporária se instala na nossa mente, começa-se a vê-la em todos os lugares: efêmeros esconderijos de anarquia que ocorrem na vida cotidiana. Neste sentido, ela descreve um conceito mais útil do que o de uma sociedade anarquista, uma vez que as sociedades mais libertárias que conhecemos tiveram seus elementos autoritários, e vice-versa. Li recentemente a biografia do pintor Augustus John6 escrita por Michael Holroyd, um auto-intitulado anarquista que era também um monstro em criar em torno de si a versão particular de anarquia que o agradava. Holroyd descreve o retorno de John, em seu septuagésimo terceiro aniversário em 1950, à St-Rémy, na França, lugar que este havia deixado às pressas em 1939: “A cozinha francesa já não era mais como antigamente e o vinho parecia ter-se ido. Mas ao fim da tarde, no Café des Varietés, ele ainda podia obter aquele peculiar equilíbrio de espírito e corpo que descrevia como um ‘distanciamento-na-intimidade’. A conversação rodopiava ao seu redor, o acordeão tocava e, de vez em quando, era recompensado ‘pela aparição de um rosto ou de uma parte de um rosto, de um gesto ou de uma conjunção de formas, que eu reconhecia como pertencendo a um mundo mais real e harmonioso do que aquele com o qual estamos habituados’”.
Esta última frase do velho pintor descreve de maneira ainda mais bela a sensação que um outro colaborador da Freedom, Brian Richardson, chamava de “momentos dourados”.
Seu raro vislumbre de um mundo mais real e harmonioso é o significado que estou inclinado a atribuir às palavras sobre as Zonas Autônomas Temporárias.
Tradução de José Paulo M. Souza
* Colin Ward (1924-2010). Anarquista nascido no Reino Unido, foi arquiteto, urbanista e pedagogo. Depois da Segunda Guerra, passou a contribuir com o periódico Freedom, fundado por Piotr Kropotkin no século XIX. Editou o periódico Anarchy entre 1961 e 1970. Entre suas obras mais importantes estão Anarquia e ação (1973) e A Criança na Cidade (1978).
Notas
1 Texto extraído de The Anarchist Library. Diposnível em: http://theanarchistlibrary.org/HTML/Colin_Ward__Temporary_Autonomous_Zones.html. (acesso em: 24/04/2011). (N.E.)
2 Apareceu originalmente na publicação Freedom, na primavera de 1997.
3 Hakim Bey (1945- ) é autor de diversos textos que circulam na web e que causaram grande impacto no movimento libertário nas décadas recentes, alguns de seus livros foram publicados no Brasil pelas editoras Conrad e Deriva. (N.T.)
4 Murray Bookchin (1921-2006) — importante teórico e militante anarquista estadunidense, formulador do chamado anarquismo social e crítico às ideias de Hakim Bey. (N.T.)
5 Edinburgh, AK Press f5.95, frete grátis da Freedom Press.
6 Paul Goodman (1911-1972) — sociólogo, intelectual anarquista estadunidense, co-fundador da Gestalt Terapia, colaborou com o movimento pacifista e estudantil na década de 1960. É autor do livro Growing Up Absurd, ainda não publicado no Brasil. (N.T.)
7 Augustus John (1878-1961) — pintor galês celebrado pelo seu estilo pós-impressionista. (N.T.)
8 Hoboes designa a condição de sem-teto e a desocupação dos desempregados durante a Grande Depressão nos EUA. (N.T.)
Resumo
No artigo, Colin Ward apresenta sua leitura das proposições de Hakim Bey, especialmente o conceito de Zona Autônoma Temporária (TAZ). Apesar de suas diferenças em alguns aspectos, o autor estabelece um diálogo com o conceito de TAZ a fim de reforçar seu valor como meio para pensar e experimentar uma vida libertária na sociedade atual. Palavras-chave: TAZ, anarquia, Hakim Bey

entrevista com voina – coletivo anarca-artístico na rússia

No passado mês de Dezembro, Bansky declarou que o lucro proveniente da venda dos seus posters seria doado ao Voina – Colectivo de Anarquistas Russos. Voina ficou conhecido actualmente por desenhar um caralho gigante numa ponte do outro lado da rua dos antigos escritórios da KGB e por instigarem um bacanal dentro de um museu (imagem acima). A Don’t Panic falou com o grupo (metade deles ainda a partir da prisão).
Voina (ou Guerra) é um coletivo de artistas que desafia constantemente o governo Russo no que concerne algumas questões políticas relacionadas com atitudes governamentais pró-homofobia, racismo e totalitarismo. Fazem-no através de arte provocatória na Rússia.
Dois membros do Voina, Oleg Vorotnikov e Leonid Nikolayev estão detidos à mais de um mês na Prisão de São Petesburgo sob falsas alegações e aguardam julgamento sob acusações de vandalismo por uma intervenção passada.
A Don’t Panic foi falar com eles mas os outros dois artistas Alex Plutser-Sarno e Natalia Sokol enviaram as suas declarações a partir de um apartamento secreto onde se escondem da polícia.
DP - Podem se apresentar e falar-nos um pouco da estrutura por trás do vosso colectivo?
Alex Plutser-Sarno: Neste momento o centro da estrutura Voina é uma parede altamente impenetrável na prisão de St. Petesburgo, por trás das quais dois artistas, Oleg Vorotnikov e Leonid Nikolayev, desvanecem lentamente... Como devem calcular uma prisão russa é um inferno!
Ainda em fuga, Natalia Sokol continua a coordenar o grupo e eu continuo a fazer trabalhos de media, escrevo concepções e textos e as acções são publicadas no meu blog. Há outros activistas do grupo que fazem trabalho importante, mas os seus nomes serão mantidos em segredo, de outro modo a louca ala-direita do governo russo e as suas autoridades irão prendê-los.
Natalia Sokol: A base do grupo Voina e a sua estrutura está em completa sintonia com os direitos dos activistas e estamos abertos à entrada de novos activistas. O nosso colectivo é um grupo “artistico-punk-anarca”.
DP - Qual é a filosofia intrínseca ao vosso colectivo?
AP-S: Cada activista do grupo tem a sua filosofia. No aspecto político nós simpatizamos com os anarcas, com socialistas e em geral com todos os activistas da ala esquerda. Mas acima de tudo somos artistas – não somos políticos ou filósofos.
Através da nossa arte e métodos artísticos destruimos as ideologias e simbolismos repressivos de outrora.
Oleg Vorotnikov: Na Rússia criámos uma frente de ala esquerda artística e queremos reactivar a arte de protesto político.
Leonid Nikolayev: O nosso colectivo artístico está a combater a reacção do obscurantismo sócio-político da ala direita.
DP - O que é para vocês a anarquia e como pode ela tornar a Rússia um melhor local para se viver?
N.S.: Com todos os seus ideais utópicos a Anarquia é a única forma de poder honesta e destemida que pode existir.
A.P-S: Exactamente! Respeito aos anarquistas.
Mas a Rússia não será um melhor local para se viver enquanto o petróleo e o dinheiro da gasolina estiver a entrar. Nos próximos anos será um local de pilhagem de recursos naturais comprometido por grupos de burocratas traidores e desonestos acompanhados de outros lobos vestidos de cordeiro.
DP - Onde é que o Voina se situa nas tendências actuais da arte contemporânea e no contexto da ciência política e de direitos humanos?
A.P-S: Acima de tudo a arte é... uma forma de pensar e ter a capacidade de olhar para este mundo louco a partir de um novo ponto de vista. Para não falar dos direitos humanos que são violados e crucificados por todo o mundo. Assim sendo continuaremos a espalhar a nossa mensagem.
O.V.: Hoje em dia a linguagem artística é o único instrumento para entender o disparate xenófobo e caótico que nos rodeia. Através das nossas acções nós pintamos o retrato deste mundo louco. E claro, queremos fazer com que o mundo receba e entenda a nossa mensagem... nem que para isso fiquem chocados.
Por exemplo, o nosso Fuck for the heir – Medved`s little Bear! na noite da eleição de Medvedev – foi o retrato da pré-eleição russa onde, metaforicamente, todos se fodem uns aos outros.
L.N.: A linguagem da nossa arte é, de facto, capaz de resistir à onda da ala direita. Quando o nosso Caralho na ponte – com 65 metros de altura por 26 de largura com 4 toneladas – de Liteyniy rompeu pelas janelas dos escritórios do FSB-KGB as autoridades russas não tiveram resposta a não ser prenderem-nos sob acusações falsas.
DP - Podes caracterizar as ideias por detrás de algumas das vossas concepções?
L.N.: O principal para o artista é ser honesto e não se comprometer. Na Rússia torturam pessoas e executam-nas – as prisões estão cheias de dissidentes. A xenofobia e a homofobia reinam. Uma nova sociedade esclavagista impera. Os polícias batem e matam pessoas. E cá estamos nós a aguentar a pressão e em acção com o Palace Revolution virando carros da polícia de rodas para o ar. Essa foi a nossa reforma artística do Ministro dos Assuntos Internos.
O.V.: Ou por exemplo, no Dia da Cidade de Moscovo, o colectivo Voina entrou no maior supermercado da cidade, Auchan, e como forma de protesto simulou o enforcamento de 3 trabalhadores asiáticos, 1 judeu e 1 homossexual. A intervenção foi um presente para o corrupto Mayor de Moscovo que pretende uma política de misantropia e violação dos direitos humanos. Realizámos esta intervenção em honra e comemoração dos 5 Revolucionários Russos enforcados em 1826.
Daí o facto da intervenção ser intítulada “Comemoração dos Dezembristas”. Queríamos que os Russos recordassem os ideais de liberdade que moveram os primeiros revolucionários do país.
A.P-S: Quando o o curador Andrei Yerofeyev foi acusado de fomentar o ódio religioso e étnico, de insultar a dignidade humana ao organizar uma exposição e foi levado a tribunal, o colectivo Voina entrou pelo tribunal interpretando um novo tema All Cops are Bastards do álbum Fuck the Police Those Motherfucking Bosses. A ideia era simples, uma intervenção honesta e descomprometida.
DP - O que pensas de um comentário acerca do activismo ou arte radical na Rússia?
N.S.: Arte contemporânea é acima de tudo, para nós, uma arte de activismo e não a arte de “treta” guardada nas galerias. Hoje em dia o activismo é a única forma de arte de esquerda, que é o que queremos re-activar na Rússia. É importante perceber que não há arte radical na Rússia a não ser a que está representada por uma dúzia de artistas.
A.P-S: Arte-anarco-activista é a única actividade artística viva na Rússia. Hoje em dia, quando a esperança pela chegada da democracia à Rússia está arruinada, desenhar flores e gatinhos ou outro tipo de arte puritana sem qualquer tipo de mensagem socio-política é estar a apoiar a ala de direita.
Está claro que o símbolo do anarcismo – tíbias e caveira – tem que ser pintado no prédio do parlamento Russo. Foi o que fizémos. A nossa projecção laser com quase 50 metros de altura a cobrir quase toda Casa Branca de Moscovo.
DP - Qual é a sensação de se ser preso por um polícia Anti-Extremista Russo?
O.V.: Pode-se dizer sem qualquer hesitação que a retaliação da ala direita Russa está a fundo.
L.N.: O VOINA fez um teste ácido às autoridades e eles fraquejaram.
DP - De que são acusados Oleg Vorotnikov e Leonid Nikolayev?
N.S.: Oleg Vorotnikov e Leonid Nikolayev foram presos ilegalmente. As pessoas que entraram pelos seus apartamentos não tinham mandato de captura. Tudo foi feito ao estilo Estalinista de 1937.
Depois os artistas foram algemados e levados com sacos de plástico na cabeça e levados no chão de um mini-bus numa viagem de 10 horas entre Moscovo e São Petesburgo.
Os prisioneiros (artistas) foram então agredidos com cadeiras. Oleg Vorotnikov tem hematomas dentro e à volta da cabeça e rins. Estes acontecimentos estão registados pelos advogados dos direitos humanos, que visitaram os artistas presos na ala de isolamento duas semanas após a detenção. As nódoas negras e feridas foram tão intensas e graves que não desapareceram após as duas semanas de isolamento.
A.P-S: Agora Olega e Leonid são acusados de “fomentar o ódio e repúdio junto de um grupo social” nomeadamente a polícia. Eu, enquanto artista principal do colectivo, sou acusado de organizar e liderar uma comunidade criminosa – o Voina, colectivo artístico. Esta acusação acarreta prisão de 12 a 20 anos.
Ambos os meus avôs estiveram detidos em campos de concentração por 22 anos durante o regime de Estaline. Dúzias dos meus parentes morreram nos campos de concentração em Auschwitz e no Gueto de Varsóvia. Cumprir 20 anos de prisão por activismo artístico sob o regime de Putin é demais para a minha família.
DP - O que é o Free Voina e o que podem as pessoas fazer para ajudar a libertar os dois artistas Oleg Vorotnikov e Leonid Nikolayev?
N.S.: Free Voina é um grupo de artistas Russos independentes e honestos que começaram a desenvolver acções de apoio para Voina. Encetam acções de protesto e qualquer pessoa pode juntar-se ao site que criaram para apoiar a causa dos artistas oprimidos.
O diário dos acontecimentos pode ser seguido aqui: http://plucer.livejournal.com/266853.html
Para ajudar os Voina visita – http://en.free-voina.org/
Fonte: Revista Eletrônica Don’t Panic
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