sábado, 31 de agosto de 2013

Quando a xenofobia veste branco



13239443“Se ser ‘Ceará Moleque’ é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira a fascismo


Por Rosemberg Cariry

(Este texto é dedicado ao Dr. Luiz Teixeira Neto e

à memória do Dr. Caetano Ximenes de Aragão,
dois médicos-poetas e humanistas,
que muito me ensinaram da vida e da solidariedade).
Um choque profundo, uma sensação de mal-estar, uma vontade de vomitar… Algo me atingiu em cheio, acho que não no corpo, mas no espírito. Não posso precisar o que senti naquele momento, em que vi, pela TV, o constrangimento que alguns médicos cearenses infligiram aos aqui aportados médicos estrangeiros, em franca ação de hostilidade. Esses senhores, vestidos de branco, em nome dos seus interesses corporativos e econômicos  fizeram um espécie de “corredor polonês”, por onde os médicos estrangeiros, que vieram para trabalhar pela saúde da população, nos mais distantes e miseráveis rincões do país, foram obrigados a passar, entre vaias e xingamentos. Talvez o melhor termo para traduzir o que senti seja a palavra VERGONHA. Acreditem, fui acometido de uma profunda vergonha, ao ver um ato de tamanha hostilização e incivilidade acontecer na minha terra, sob a tutela do Sindicato dos Médicos do Ceará. Pensei comigo: chegamos ao fundo do poço!
Posso compreender toda a mística que se faz em torno do “Ceará Moleque” e do sentido cultural do uso da vaia, ao longo de toda a nossa história. Porém, se ser “Ceará Moleque” é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira muito mais a xenofobia e a fascismo.  Quanto ao significado deste ato, como ação política, podem os senhores sindicalistas ter a certeza de que atraíram para si o desprezo de milhões de cearenses e de brasileiros. Em todo canto deste imenso Brasil, nos últimos dias, não se comenta outra coisa, a não ser esta atitude vergonhosa.
Eu sou de um tempo em que os médicos eram conhecidos pela civilidade, pela erudição, pelo humanismo, pelo saber profundo que nascia de uma vocação, do ser e do construir-se na vida dentro de uma comunidade de destinos. A maioria destes médicos de boa cepa, pois, além de grandes profissionais, eram ainda homens que cultivavam as artes, que sabiam filosofia, que refletiam sobre a vida e o destino da humanidade, colocando a ética como um bem supremo.
Eram homens sábios, homens de tal grandeza, dos quais as comunidades se orgulhavam, chegando a nomear ruas e praças para que as futuras gerações deles se lembrassem, quando eles deixavam o nosso convívio. Quem na vida não conheceu um desses médicos, também escritores, poetas ou filósofos, com os seus ensinamento de caráter iniciático na vida e nas artes? Quem poderia imaginar um médico desta envergadura espiritual vaiando um colega estrangeiro, em um ato cheio de ódio e xenofobia? Impossível imaginar!
Mas o que acontece hoje? No Ceará, alguns médicos hostilizam, de forma escandalosa, estrangeiros com ameaças e xingamentos. É bem possível, que as universidades, sobretudo as universidade e faculdades particulares, fábricas de lucro e de técnicos destituídos de cultura e de humanismo, estejam produzindo estes “monstrinhos vestidos de branco”, analfabetos de qualquer humanismo, incapazes de ler a dimensão humana de um romance de Dostoievsky ou a metafísica de um conto de Guimarães Rosa. Falar em Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Gilberto Freire, Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, perto deles, é falar em javanês. Pobres médicos-tecnocratas, jogados a um convívio viciado e naturalizado com a indústria farmacêutica, quantas vezes submetidos aos grandes laboratórios que, em nome do lucro e da ganância capitalista, erguem o seu reinado da morte, travestidos de tecnologias arrojadas e mascarados de patentes.
Quando vi estes jovens médicos, feito moleques incultos e incivilizados, vaiando e xingando os seus colegas estrangeiros de profissão, pensei comigo mesmo: esperem, mas não somos todos netos de estrangeiros? Não vivemos em um país que nasceu de um grande encontro de povos e culturas? Não é esta a grande característica do nosso país? Não é a generosidade e a hospitalidade o nosso maior tesouro? A cena brutal e humilhante imposta aos médicos estrangeiros, fez-me imaginar os nossos avós estrangeiros sendo vaiados, forçados a passar pela humilhação do xingamentos e do preconceito, nos corredores poloneses armados pelos “reacionários nacionalistas” da época (filhos também de estrangeiros).
Não devíamos receber estes irmãos cubanos, espanhóis, portugueses, ucranianos, venezuelanos, mexicanos e de tantos outros países, com água de coco e maracatu? Não devíamos recebê-los ao som de violas e rodas de coco? Não deveríamos aplaudir aqueles que quisessem ficar e ajudar na construção da grande nação, da mesma forma que fizeram os nossos avós, que aqui chegando, casaram-se com gente de todas as raças e nos fizeram mestiços e multiculturais? Não somos nós os herdeiros de mil e um povos e de mil uma culturas?
O que aconteceu no Ceará neste triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como o Dia da Vergonha, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo cearense e brasileiro.
Acredito que os médicos cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do lucro e da ascensão social.
Para concluir este meu simples ato de indignação, cito um fato cotidiano. Discutia o grave acontecimento com um motorista de táxi e dizia a ele que iria escrever sobre o assunto. Do alto da sua sabedoria, o motorista de táxi, aconselhou-me: “Escreva não. Um dia o senhor pode chegar em um hospital, cair nas mãos de um deles e eles podem desligar os aparelhos”. Eu que preparava-me para fazer duras acusações contra os “vândalos vestidos de branco”, terminei defendendo-os, quando de pronto respondi: “Nisto eu não posso acreditar! Sei sim, que estes médicos que hostilizaram os médicos estrangeiros, com vaias e xingamentos, agem como moleques, como xenófobos pequeno-burgueses e corporativistas, mas não acredito que as faculdades de medicina do meu país estejam também forjando potenciais assassinos”. Acreditar nisto seria descrer não apenas da medicina, mas da sua deontologia, como princípio e garantia de regulação ética das normas que regulam esta profissão, cunhada, desde os seus primórdios, para proteger e salvar a vida humana.
De qualquer forma, cito o fato, para que estes equivocados “médicos-moleques” saibam qual o conceito que terminaram por cravar no coração das pessoas, com tal espetáculo público de despreparo profissional.


Rosemberg Cariry é cineasta

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

flecheira.libertária.307

a avaliação e a violência
Nada como o regime da prova para quem aprecia sujeitar. Nada como fazer de alguém um assujeitado submetendo-o ao regime da prova. Mais uma vez, constata-se que na prisão para jovens (Fundação Casa) os funcionários melhor avaliados são os que usam e abusam da violência contra os encarcerados, desde sua chegada. Sobre esta prática regular há os revestimentos humanitários variados, porém o que garante a estabilidade da instituição austera é a violência eficaz e eficiente de funcionários sobre os jovens. Mais uma vez, a mídia escancara esta realidade, na qual ser violentador não é exceção, mas regra. Na escola ou na prisão quando se quer encarcerar corpo e vontade, aplicase o regime da prova. De vez em quando, o estudante se rebela contra a condição de aluno e o jovem prisioneiro mete fogo na cadeia. Educar com provas e repressões é o exercício rotineiro dos dominadores. Abaixo a prisão para jovens! Abaixo o regime da prova que sustenta as avaliações. São os assujeitados que avaliam favoravelmente seus algozes. São eles que disseminam a cultura do castigo e da recompensa. Abaixo a demagogia da avaliação! 
inspetores eletrônicos 
Desde 2012, uniformes com chips são utilizados para a localização de estudantes do ensino municipal de  Vitória da Conquista, Bahia. Por meio de sensores instalados nas escolas, são enviados SMS para os pais sempre que seus filhos atravessam o portão da instituição. Por enquanto, em Vitória da Conquista, são 17 mil crianças entre 4 e 14 anos que vestem o uniforme. Em outra cidade, Itagibá, também na Bahia, os chamados “uniformes inteligentes” passaram a ser empregados neste semestre. Em Santos-SP, uma escola particular viu no chip um diferencial para atrair mais alunos. Entre uma ou outra falha, o projeto segue funcionando e sempre com novas atualizações. Agora, não se trata apenas de saber se o estudante foi ou não à aula, mas de monitorar a sua presença para que ele não circule em certos lugares das cidades. Amparada por uma série de aperfeiçoamentos tecnológicos, a escola atualiza-se e amplia o seu governo para além dos muros. 
outro para o mesmo 
O novo comandante do Batalhão de Choque da Polícia Militar de São Paulo anunciou mudanças nas estratégias de atuação em manifestações na cidade. Disse que é contra o uso de bala de borracha, mas manterá seu uso com redução para um terço. Declarou também a nova aquisição de caminhões tanque que lançam jatos de água com gás e tinta para “prevenir incidentes durante a Copa do Mundo e proteger os turistas”. Sobre a nova arma, que dispersa aglomeração de pessoas e as identifica para posterior prisão, pronunciou que: “jogar só água é gostoso, é diversão”. A argumentação irônica do novo comando expõe para que serve a polícia: proteger patrimônios e propriedades, praticando a violência que lhe é inerente. Qualquer arma, letal ou não, nas mãos da polícia, serve à continuidade das violências do Estado e do derramamento de sangue que lhe intrínseco. 
mais médicos, mais governo 
Um exército de 4 mil jalecos brancos vindos de Cuba desembarcam no Brasil para expandir o atendimento médico a pequenas e afastadas cidades do Norte e Nordeste, onde os doutores brasileiros não querem trabalhar. Mais médicos para mais saúde. A “polícia médica” deve garantir a gestão econômica do corpo do indivíduo e da população para o aumento da força do Estado. Não são quaisquer especialistas: são médicos cubanos, acostumados ao cuidado de famílias, habituados a expandir o governo de condutas e com seu trabalho enriquecer a ditadura cubana. Não é à toa que esta medida é uma resposta do governo federal brasileiro às manifestações de junho. 
neoliberalismo à la esquerda 
A nova fórmula: trata-se de um negócio de saúde entre estados, via Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). O Brasil paga a OPAS, que repassa o dinheiro ao governo cubano. A novidade nem está tanto no fato deste ser um negócio. Para combater a escassez, laissez faire, laissez aller, laissez passer, isto é, abrir o mercado para melhor programar o que deve acontecer. Se funcionou com os cereais no século XVIII, não será com os médicos cubanos que irá falhar. É justamente neste ponto que o novo aparece: as “commodities” são os médicos. Depois do tabaco e do açúcar, a medicina de família. Neoliberalismo, com menos ou mais Estado, é uma prática de governo da sociedade que não é exclusividade da direita ou da esquerda. Brasil e Cuba que o digam. 
o amargo beijinho doce 
Um jogador de futebol, como o hábil oportunista e usuário do Instagram e do Twitter, posta um beijinho doce com o amigo. Poderia estar solidarizando-se com os beijos proibidos e a condenação à vida gay do Estado russo, escancarados durante o Mundial de Atletismo e referendado pela campeã russa saltadora na vara. Virou notícia. A nação corinthiana, como toda nação, não suporta o diferente senão subordinando-o ao seu domínio. Contestou, pressionou e fez o jogador retirar o beijinho doce hetero, desculpando-se pela anormalidade. Expôs o efêmero contido na solidariedade. A nação corinthiana se diz hetero, e acusa a são-paulina de bambi. De fato, os corinthianos gays se submetem ao governo da nação e se calaram. De fato, o futebol é coisa de macho, em cujos vestiários ouvem-se silêncios amordaçados dentro dos armários. Enfim, até no carnaval da nação corinthiana não existem gays, apenas fantasias que se travestem o ano inteiro de machos desajeitados?

prática anarquista aglutina gente em torno do insuportável


Entrevista com Edson Passetti, agosto de 2013.
Por Bruno Pontes

Bruno Pontes - Como você avalia o surgimento do Black Bloc nas manifestações de junho/julho?
Edson Passetti – Há muito tempo, desde as primeiras manifestações do movimento antiglobalização no Brasil, no começo do século, esta tática está presente, incialmente relacionada, talvez por falta de informações da imprensa, às práticas anarco-punks. Nas jornadas de junho em diante o black bloc ganhou visibilidade, não só por expressar a prática anarquista de aglutinar gente em torno do insuportável, mas por alertar e atrair jovens no interior do próprio movimento. A destacar neste acontecimento a redução dos saques a partir da efetiva atitude da tática black bloc.

BP – Você acha que o Black Bloc se insere de fato numa tradição anarquista?
Passetti – Sim. Como é sabido há muitos anarquismos. A tática black bloc faz parte desta atitude, e sem dúvida, teria encontrado respeito em Proudhon e Bakunin, dois marcos das práticas libertárias, que se caracterizam pelas ações em movimento, e não por teorias. Não se trata de juízo de valor (expresso fartamente na mídia oficial e alternativa), mas de uma realidade que demanda análises sobre ação direta.

BP – Você entende como vandalismo as ações do Black Bloc? Se não, o que diz às pessoas que consideram puramente vandalismo?
Passetti – Os anarquismos, desde o final do século XIX, foram associados aos terrorismos, esquecendo-se, propositalmente, do que lhe antecedeu, ou seja, o terrorismo de Estado. Os anarquistas, ora são estigmatizados terroristas, ora baderneiros, desordeiros, e, agora, vândalos. Aliás, esta palavra é interessante porque está associada às invasões que deram fim ao Império Romano. Portanto, diferentemente dos pejorativos anteriores relacionados à questão interna do Estado-Nação, ela se ajusta melhor à situação da chamada globalização. Neste sentido, houve um ar inteligente na designação pejorativa, primeiro por parte da imprensa, e, posteriormente, dos comentaristas acadêmicos.

BP – O que significa, na política brasileira, a entrada do tipo de ação praticada pelos Black Blocs?
Passetti – Veremos. Fazer prognósticos com base no passado remoto é fácil porque apenas reitera a exigência de mais segurança, polícia, ou melhor, acentuada militarização da polícia como ocorre em âmbito planetário, ainda que surjam no interior do movimento, e por fora dele, os pedidos de desmilitarização da polícia. Está em jogo a utopia da democracia capitalista que se pretende indestrutível. A tática black bloc não é recente entre nós, e se manifesta de diversas formas, podendo ou não constituir em uma associação própria.

BP – A maioria dos participantes dos Black Blocs parece ser da classe média. O que explica isso, uma vez que, pelos menos em tese, deveria haver mais pobres na luta contra a opressão estatal? Posso estar errado, claro.
Passetti – Destaco que esta prática foi importante para que jovens pauperizados e praticantes de saques encontrassem finalidades mais contundentes no interior do movimento. Mas isso também é um efeito deste momento. Os anarco-punks não eram e não são de classe média, ainda que pudesse haver simpatizantes entre eles. E continuam vivos! Todavia, hoje, com a divulgação do crescimento de uma nova classe média (baixa) pelos programas de governo essa definição também escorre do patamar cristalizado anteriormente que associava classe média aos indicadores de estudantes de nível médio e universitário.

BP – Em nota publicada no site do partido (link: http://www.pstu.org.br/node/19855), o PSTU afirma que as ações do Black Bloc são “completamente equivocadas”, pois não enfraquecem os grandes empresários, jogam a opinião pública contra as manifestações e dão motivo para a repressão policial. Além disso, o PSTU critica o Black Bloc por julgar que lhe falta um programa revolucionário. O que você pensa das críticas do PSTU?
Passetti – Prefiro não responder a esta questão diretamente. Trata-se de uma posição política com base na teoria da revolução marxista que justifica sua superioridade de consciência sobre o que não seja organizado pelo alto, por meio de intelectuais profetas. Penso que o movimento recente deva trazer alguma oxigenação neste bolor, que é também análogo ao mofo que reveste os comentários liberais. Aliás, por mais que estes difundam a participação institucional por meio da sociedade civil organizada, não conseguem explicar o que se passa durante o surpreendente que enuncia o insuportável. Um protesto iniciado com base na redução de tarifas de transportes coletivos (que é privado) levou às explicitações das forças na sociedade, incluindo as nacionalistas e as fascistas. Movimento é isso: explicitação das forças em luta na sociedade e seus desdobramentos, explicitando suas finalidades. O black bloc expôs a composição móvel de uma delas, e ganhou destaque, simplesmente, porque soube enunciar o insuportável diante das forças moderadas, reativas e congeladas.


Entrevista publicada com cortes em Jornal O Povo, edição do dia 11 de agosto de 2013.

sábado, 24 de agosto de 2013

CONVIVENDO COM OS MORCEGOS

este é um texto que foi escrito em 05.12.2004 e que, segundo uns afoitos, anunciou os morcegos por perto dos meus amigos Vera Prola e Pércinho... coisa besta!... no fim das contas, tudo vira literatura, mas não deixa de apresentar algumas atualidades!
(publicado no Jornal Estilo)
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Estávamos, num grande grupo, participando de uma atividade pontualmente política, na sexta-feira (03.12), no Salão de Eventos do Restaurante Cia do Buffet, quando, num repente, irrompeu pelo ambiente, vindo da chaminé da lareira (que não estava acesa), um  morcego extraviado de sua comodidade noturna... deu algumas revoadas no ambiente iluminado tentando reencontrar o escuro de seus hábitos, até que conseguiu alcançar o caminho da chaminé e não mais retornou.
No dia seguinte comentava esse assunto com a Vera (parceria de longa data, que é a mãe do Pércio, proprietário da Cia), sobre o morcego, sem pensar em matá-lo, mas talvez espantá-lo, quando ela trouxe uma informação que eu desconhecia, de pelo fato do morcego ser uma espécie em extinção, matá-los é um crime inafiançável... portanto, só um fogo fumarento na lareira pode resolver a situação com os posseiros da chaminé.
Tenho que destacar que quando tenho que comer fora de casa (e às vezes é por vários dias seguidos), a minha comida preferida é a do Restaurante Buon Manggiare (onde há vários dias não como), apesar de gostar da comida dos outros também, mas neste sábado (04.12) provei da comida da Cia do Buffet, que é um estilo diferente do Manggiare e dos demais, e que é muito boa, realmente muito boa... é uma comida que sempre que puder, voltarei a comer.
Mas nessa conversa com a Vera, ela relembrou a viagem que fez a Portugal no primeiro semestre deste ano, quando em suas andanças conheceu a Biblioteca do Direito de Coimbra, e conheceu, também, muitas igrejas cujo altar e adereços são feitos com Jacarandá e com Ouro retirados das terras do Brasil (digamos, com ênfase, ROUBADOS do Brasil naqueles tempos em que era permitido que nos roubassem não só a dignidade, mas principalmente os recursos naturais e, por ora, materiais)... e voltando à Biblioteca Joanina, foi lá que se doutoraram José Bonifácio, Gilberto Freyre e, diga-se também, Tancredo Neves (que não podemos negar que foi uma importante figura política no Brasil)... foi lá, também, que a Vera soube que habita aquele antro do conhecimento, uma Colônia de Morcegos que durante o dia refugiam-se no teto e em todos os cantos escuros que encontrarem para se protegerem da luz do dia, mas durante a noite fazem seus movimentos e depois grudam-se nos livros/ livros centenários que se mantêm “vivos” exatamente porque os morcegos comem os bichinhos, inclusive as traças que tentam devorar, sem sistematizar, os livros.
Comecei, naquele instante, a pensar de outra forma nos morcegos (uma: que se é uma espécie em extinção, já não sugam mais o nosso sangue para sobreviverem; e outra: se eles protegem os livros, devem ser cultivados)... confesso que essas reflexões me deixaram confusa com relação à metáfora que tanto gostamos de usar sobre morcegos e, por extensão, sobre vampiros, e também, porque nunca vi um morcego sair atacando uma pessoa, assim como nunca conheci um vampiro genuíno, somente vampiros humanos, desses que vivem mesmo do sangue dos outros... desses que produzem e sustentam a barbárie com a exclusão social e com o desrespeito aos direitos humanos básicos, mas que acreditam que fizeram o melhor pelas pessoas e pela coisa pública... desses que se outorgam o direito de julgar e emitir julgamentos sobre pessoas que mal conhecem ou mesmo sequer conhecem, não tendo, portanto, conhecimento de causa... desses que brindam com champanhe e com plumas e paetês o encerramento de uma caminhada de exploração social, de assistencialismo, de clientelismo e de promoção da exclusão... desses que percebem as demais pessoas apenas pelos elementos e informações presentes em seu imaginário... desses que fazem o discurso do respeito às diferenças, mas não constroem efetivamente o respeito... desses que ocupam certos lugares políticos e depois de serem absolutamente rejeitados e perderem as mamatas num dado lugar, vão articular mamatas em outros lugares, mas continuam querendo definir politicamente a vida das pessoas e do lugar do qual saíram... desses que vivem de alimentar os ideais e o ideário de uma aristocracia falida; que gostam de escolher rainhas e princesas; que gostam de render homenagens aos que se “destacam” em alguma coisa; que gostam de dar e garantir voz e vez àqueles que melhor representam o ideário burguês; que gostam de fragilizar, explorar e fazer de conta que não existem os seres humanos que lutam nas teias da sobrevivência e da exclusão... desses que se alimentam da fome dos outros... desses que se acham supra ou sumo de alguma coisa e, no desvario de suas pretensões, mal podem ler um texto de ficção porque saem a se identificar com seus personagens e assim, a querer processar juridicamente seus autores ou a pedir direito de resposta à literatura e à ficção... desses que só sabem viver de cargos políticos, um dia numa teta, outro dia noutra teta... desses que vivem da hipocrisia e que têm uma cara para cada situação/ uma cara para cada pessoa com que se relacionam... desses que se deslumbram com os espaços políticos que ocupam ou que possam vir a ocupar... desses que enquanto estão numa dada caminhada e necessitam das pernas alheias para poderem andar, tratam-nos por amigos e depois que já não mais necessitam, parecem inclusive temer conversar com aqueles que os acompanharam, talvez por temerem, paranoicamente, que lhes peçam também as pernas... desses que sobrevivem sendo traiçoeiros... desses que se alimentam da dor alheia!
Interrompi a conversa com a Vera, pois já recomeçava a atividade da qual participava e saí matutando aquela história de morcegos... o temor que temos com relação aos morcegos vem dos monstros que foram pintados em nosso imaginário... o temor que temos dos morcegos humanos vem do fato deles, também, circularem apenas à noite/ apenas na escuridão, para não serem vistos, por necessitarem da obscuridade e não por temerem a luz do dia; por comerem as indefesas, mas devoradoras traças, não porque elas destroem os livros, mas por temerem que elas possam, de alguma forma, decifrar o que está escrito neles, porque sabem que depois que se aprende a ler os livros e a ler o mundo, a fome que se passa a ter não é como a deles que é de sangue, mas é de vida... e fome de vida é a coisa mais incontrolável que existe!

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

flecheira.libertária.305

o que não quer calar
Há quase um mês, um pai de seis filhos é mais outro “desaparecido”. Foi sequestrado por policiais militares na maior favela do Rio de Janeiro e levado para o interior de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Em meio aos recentes protestos na cidade, moradores da Rocinha caminharam rumo à casa do governador, passando pelo túnel Zuzu Angel, nome da mãe de outro “desaparecido” nas garras dos policiais da ditadura civil-militar. Em todos os cantos do país ecoa a pergunta: “cadê o Amarildo?”. Permanece outra questão: o destino de Amarildo é palha dos protestos de junho, ou indica que certos jovens não cessarão de indagar onde estará este e os outros inúmeros corpos que o Estado sistematicamente assassina por quebradas, vielas, favelas?
pelos ossos
Passado um mês do “desaparecimento” de Amarildo, alguns advogados entraram na justiça com o pedido de “morte presumida” visando adquirir a certidão de óbito necessária para garantir o pagamento de pensão pelo Estado à família. Diante do pedido, autoridades defenderam o projeto das UPPs, argumentando que o “caso Amarildo” representava um episódio isolado no interior das comunidades pacificadas. Rompendo o silêncio conivente com tais violências, a mulher de Amarildo, do mesmo modo que muitas mulheres que tiveram seus companheiros “desaparecidos” durante a ditadura civil-militar, não se calou e exigiu mais do que a declaração de “morte presumida”: eu quero os ossos para enterrar o meu marido. O discurso dos crápulas agora condena a mulher e Amarildo como traficantes e, com isso, justifica a execução: prática comum tanto à polícia quanto ao tráfico.
presos!
Novas estatísticas afirmam que a segunda causa que leva à prisão de jovens nas penitenciárias chamadas “instituições socioeducativas” são atividades relacionadas ao tráfico de drogas. Com isso, os jovens criminalizados equiparam-se aos adultos criminalizados, para os quais o tráfico já era a segunda maior via de acesso à condenação e reclusão, atrás apenas dos “crimes contra o patrimônio”. O mesmo estudo sustenta que a maioria dos jovens “reincide” no crime que o levou à primeira “internação”. A nova lei brasileira sobre drogas, de 2006, coincide no tempo com a reforma das instituições prisionais para jovens. A lei prometeu inovar tratando o uso de drogas como “questão de saúde pública” e as reformas das FEBEMs no Brasil afora insistiram no aprimoramento da educação para jovens denominados infratores. Não houve e não há coincidência, visa-se acintosamente associar jovens à adultos no comércio ilegal de drogas. Com isso permanece inalterado o tráfico e se fortalece a prisão para jovens no país.
operação segurança
As explosões de carros-bomba no Iraque após o fim do Ramadã intensificaram a busca por terroristas no país. Os Estados Unidos, que jamais perderiam a chance de participar dessa aventura, lançaram uma recompensa ao estilo velho-oeste de 10 milhões de dólares por informações que contribuam para “matar ou capturar” terroristas no Iraque. A busca estadunidense pela segurança internacional é construída pela identificação e eliminação dos perigosos, os potenciais criminosos. Se nos tempos do “wanted dead or alive” terceirizava-se a captura para os matadores por recompensa, hoje a busca é por informações que produzam o terrorista, cabendo ao Estado exterminá-lo.

Nossas cidades são bombas socioecológicas

A urbanista da USP Ermínia Maricato não se surpreende com o fato de o transporte ter sido o estopim das manifestações que vêm ocorrendo nas cidades brasileiras. Nesta entrevista, ela fala sobre o caos urbano e quase tudo que o compõe, como mobilidade, mercado imobiliário, interesses das corporações, condições de vida e saúde. Por Rose Spina, da revista 'Teoria e Debate'


Alguma surpresa com o fato de as manifestações ocorridas em junho terem como estopim a situação do transporte coletivo?
Ermínia Maricato: Nenhuma. Eu estou surpresa de ver tanta gente surpresa com essa explosão, que é principalmente de classe média, mas não só. E sobre ter o transporte como o estopim. Há alguns anos falamos que o transporte é uma das principais questões. Também não estou surpresa de a direita estar na rua. Ao contrário, estava perplexa de ver a organização da direita nos veículos de comunicação, em eventos e fóruns que tenho frequentado e até em conselhos, como o de Desenvolvimento Urbano, por exemplo. Estou muito impressionada com o que está acontecendo com o chamado desenvolvimento urbano. Trata-se de uma involução, principalmente em função do mercado imobiliário.

Construímos, nos termos do capitalismo da periferia, cidades que são bombas socioecológicas devido à incrível desigualdade e segregação – nos últimos anos, com o boom imobiliário, a prioridade dada aos automóveis, às obras viárias, e ainda elevamos o grau dessa febre, com os megaeventos, a Copa. Realmente, as cidades estão entregues ao caos, a interesses privados, e as condições de vida da maioria estão piorando muito.

Por que você trata desenvolvimento como involução?
Ermínia: Existe um projeto para o crescimento do país. Nós tivemos as décadas perdidas e voltamos a investir em políticas públicas recentemente, e em transporte urbano não voltamos a investir. Existe um investimento que acompanha a Copa, mas, política de transporte urbano em nível nacional, nós não temos desde a década de 1980. Houve recuo nos investimentos em políticas públicas, habitação, saneamento e transportes, que estruturam as cidades. Em 2003, houve um retorno do investimento em saneamento, em torno de R$ 3 bilhões. Depois, em 2005, um retorno do investimento em habitação e saneamento. Em 2007, obras de infraestrutura urbana, com o PAC, e, em 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, acontece do jeito que o diabo gosta. A apropriação principalmente da renda imobiliária e fundiária se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro de preço do metro quadrado com despejos violentos, política que não esperávamos que fosse voltar tão rapidamente.

São Paulo teve episódios emblemáticos no ano passado.
Ermínia: Sim, mas há muitos incêndios e despejos em favelas. E uma das principais forças ligadas ao crescimento econômico e vinculada a essa tragédia é a mobilidade urbana. O transporte coletivo está em ruínas, não foi recuperado nos últimos trinta anos. E o automóvel entra fortemente no cenário com todas as consequências que estamos vendo.

O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada priorizando o que decidem. Isso é incrível porque há cidades onde oferecem ao prefeito uma obra e não precisa ter Plano Diretor, nada... a obra sai e pronto! Se a obra é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz.

Em São Paulo, a ampliação da Marginal Tietê é uma obra que contraria completamente a visão dos urbanistas sobre o que é prioritário. Do ponto de vista ambiental, então, é um desastre impermeabilizar ainda mais as margens do rio. Uma obra que custou R$ 1,7 bilhão. E pasmem! O ex-prefeito Gilberto Kassab deixou licitado um túnel de R$ 3 bilhões, que nem servirá para ônibus. Faz parte da operação urbana Águas Espraiadas. Felizmente pude falar sobre isso no Conselho da Cidade.

Vivemos uma situação de desmando nas cidades brasileiras. A política urbana realmente sumiu do cenário nacional. Política urbana não é um monte de obras.

O Movimento pela Reforma Urbana está organizado?
Ermínia: Está recuado e muito focado em uma demanda pontual: casa própria e financiamento para o movimento. Não há discussão de uma política ampliada.

Nossos anos dourados foram com a política do modo petista de governar, que não sei por que foi esquecido até pelos municípios. Ao olhar para a cidade ilegal, constatamos que os trabalhadores a construíram assim porque ganhavam pouco e esse deveria ser nosso lugar prioritário de ação. Então construímos uma política para recuperar a cidade ilegal.

No que consistiu essa política?
Ermínia: Prioridade à área construída ilegal, desurbanizada, esquecida pelos governos e planos anteriores. Eram bairros inteiros, periféricos, onde não existia lei. Favelas, áreas degradadas, e era preciso evitar riscos, como enchentes, desmoronamentos, epidemias, a condição insalubre e melhorar os padrões de esgoto, drenagem, coleta de lixo...

Pavimentação e equipamento de educação foram uma das coisas mais revolucionárias que fizemos na gestão Marta Suplicy. Construímos teatro, cinema, natação, dança, arte, esporte. Nosso trabalho ficou conhecido no mundo, por causa da arquitetura de habitações, pelo know how de urbanização de favelas.

Além de encontrar essa cidade ilegal e dar um outro padrão a ela, fomos em busca de outras formas de arquitetura, habitação e legislação. Nós temos um arcabouço institucional e legal, que o mundo não entende por que reclamamos.

Quais leis compõem esse aparato legal?
Ermínia: Constituição Federal, Estatuto da Cidade, famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades, Conselho das Cidades, lei federal de consórcios públicos, Plano Nacional de Habitação, lei federal de saneamento, lei de resíduos sólidos e a última é de mobilidade.

Então, onde está o problema?
Ermínia: Temos grande quantidade de conselhos, algo em torno de 20 mil. Uma enorme variedade de conferências, municipal, estadual, federal, criança, adolescente, idoso, educação, cultura... Está todo mundo ocupado no institucional. O PT está absolutamente incluído no institucional. O resultado da convocação do partido que não cobriu a Avenida Paulista de vermelho deve soar como uma luz. Eu mesma fiquei impressionada. Cadê a militância? Ela está ocupada. E a militância que foi às ruas, que não está no espaço institucional, é despolitizada, o que também é nossa responsabilidade. “Nunca fomos tão participativos”, como digo em meu livro O Impasse da Política Urbana no Brasil. Há novas instituições e um novo arcabouço legal. Tivemos muitas conquistas sociais: aumento do salário mínimo, bolsa família... Mas isso se esgotou.

E onde foi parar a reforma urbana? Não havia uma proposta?
Ermínia: Em 1979 e 1980 o país cresceu muito, depois houve queda e uns voozinhos de galinha. Com o governo Lula o país cresce. Mas esse crescimento com base na indústria automobilística deveria ter sido mais bem avaliado, pois as cidades pagariam um preço muito alto. E o pior: para criar pouco mais de 20 mil empregos durante um certo tempo, uma vez que a lógica desse tipo de indústria é desempregar.

A partir de 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento e em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Com o primeiro decola a atividade de construção pesada e com o segundo a construção residencial.

Se atentarmos para a relação do PIB brasileiro e o da construção, observamos que, em 2008, o primeiro foi de 5,2%, enquanto o segundo foi de 7,9%. Em 2010, o PIB brasileiro vai a 7,5% e o da construção a 11,6%.

O PAC se destina a financiar a infraestrutura econômica (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e toda a infraestrutura de geração e distribuição de energia) e a infraestrutura social (água, esgoto, drenagem, destino do lixo, recursos hídricos, pavimentação). Finalmente o Estado reconhecia a cidade ilegal e o passivo urbano, buscando requalificar e regularizar áreas ocupadas ilegalmente. Com o Minha Casa, Minha Vida é diferente. Retoma-se a visão empresarial da política habitacional, ou seja, de construção de novas casas, apenas, sem levar em consideração o espaço urbano em seu conjunto, e muito menos a cidade já comprometida pela baixa qualidade.

Com a finalidade explícita de enfrentar a crise econômica de 2008, o programa apresenta pela primeira vez uma política habitacional com subsídios do governo federal, e para tanto foi bem-sucedido.

A taxa de desemprego na construção diminuiu muito comparada ao desemprego em outras atividades. Isso não é pouco importante, a questão está nas empresas de construção e incorporação. Em 2007, dezessete delas abriram capital na bolsa de valores, compraram um estoque de terras e estavam justamente aguardando fundos para a construção de moradias. O programa responde a essa necessidade e as empresas passaram imediatamente a construir febrilmente.

O financiamento habitacional cresceu 65% de 2009 a 2010, e no ano seguinte, 42%. O montante de subsídio concedido de 2008 a 2009 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. Quando as empresas entram o salto é vertiginoso. Esse subsídio foi parar no preço da terra, porque na verdade no déficit de moradia da baixa renda, até três salários, não se mexeu ainda.

Essa também é sua crítica ao programa?
Ermínia: É. O programa nesse período incluiu a classe média, de cinco a dez salários mínimos. Mas a reprodução da desigualdade e da segregação se deu pela forma agressiva com que os capitais imobiliários reassumiram o mercado de terras expulsando, com despejos violentos ou incêndios nunca bem explicados favelas ou ocupações ilegais situadas em áreas com potencial de valorização.

A elevação de preço do metro quadrado no Rio foi de quase 185% e em São Paulo de 151%. Há pessoas que fazem esse acompanhamento, como o pessoal do blog Fogo no Barraco, que mapeia os incêndios em favelas e a valorização imobiliária. Há também o Observatório de Remoções de São Paulo, sobre despejos, criado por nossos pesquisadores.

A favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes, está localizada na linha de uma operação urbana prevista da Lapa ao Brás, feita por um escritório americano. Eles tomaram conta!

E a região da Cracolândia?
Ermínia: Lá ficou claro que se tratava de um programa do Kassab com o Serra, Nova Luz, que o Fernando Haddad suspendeu. É outro ponto dessa linha Lapa-Brás.

Há também investimento pesado na Barra Funda, Campos Elísios. A máquina do crescimento utiliza capital imobiliário, empresa de construção pesada, interesses de determinados setores... As empreiteiras tomaram conta da cidade. Elas, que também são financiadoras de campanha, já estavam presentes na coleta de lixo, na energia, na mineração, estão passando para o setor imobiliário.

O que você diz dos efeitos do estresse urbano nas populações de nossas cidades?
Ermínia: Vamos aos dados: 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. É uma pesquisa da USP.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentam transtornos mentais, nos doze meses anteriores à pesquisa. Ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso. Isso é uma bomba.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico. Há filmes que mostram bem essa realidade, por exemplo, Os Doze Trabalhos, de Ricardo Elias. 

Qual é o tempo médio das viagens?
Ermínia: O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2:42 horas. Para um terço da população esse tempo é de mais de 3 horas. Um quinto leva mais de 4 horas, ou seja, passa uma boa parte da vida nos transportes, seja ele um carro de luxo, seja em um ônibus ou trem superlotado, o que é mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana.

Em São Paulo, em 2011, morreram em acidentes de trânsito 1.365 pessoas, 45,2% (617) delas atropeladas, o que revela a insegurança de pedestres, e 512 motociclistas. Ou seja, as vítimas são os pedestres e motociclistas, mas quem causa a morte são os carros, responsáveis por 83% das ocorrências.

Contando ninguém acredita, mas a velocidade média dos automóveis em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em junho de 2012, foi de 7,6 km/h – quase a mesma de uma caminhada a pé. Durante a manhã a velocidade é de 20,6 km/h – de uma bicicleta. É um absurdo!

Os congestionamentos na capital paulista, onde circulam 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros de vias. Todas as cidades de porte médio e grande estão apresentando congestionamentos devido à enorme quantidade de veículos que entram nelas a cada dia. O consumo é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns estaduais para a compra de automóveis. Em 2001, em doze metrópoles brasileiras, somavam 11,5 milhões; em 2011, 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Em diversas metrópoles, o de automóveis dobrou nesse período.

Em todos os lugares onde vou a grita é geral. Estive no Sindicato dos Engenheiros, em Recife, e todo mundo reclamando do tempo que gastava no trânsito. Se a classe média alta está com esse discurso, imagine como estão os trabalhadores das periferias.

E os dados de poluição também são importantes. Segundo o professor da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva, estima-se que para cada dez microgramas de poluição retirado do ar há um aumento de oito meses na expectativa de vida. Aproximadamente 12% das internações respiratórias em São Paulo são atribuídas à poluição do ar, um em cada dez infartos é resultado da associação entre tráfego e poluição – 76% dela gerada pelos automóveis. Os atuais níveis de poluição do ar respondem por 4 mil mortes prematuras ao ano na cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de um tema de saúde pública.

Como você identifica a atuação dos três poderes com relação à política urbana?
Ermínia: Eles ignoraram. Não é competência do governo federal, por exemplo, tratar do uso e ocupação do solo. Tudo fica a cargo dos municípios: Plano Diretor, Lei de Uso do Solo, transporte urbano, saneamento urbano. Mas o governo federal não colocou transporte urbano na agenda nem no período em que estivemos lá. Essa foi uma das lutas que tentamos encampar. A mobilidade é tão importante quanto a saúde.

Até para moradia se dá um jeito. A população se instala em algum lugar, ocupa área de mananciais, Serra do Mar, beira de córrego, mas, quando está morrendo, não tem jeito. Então saúde e transporte são urgentes.

E qual é a solução?
Ermínia: A reforma urbana é uma agenda. É preciso garantir a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade, o controle público sobre a propriedade e o uso da terra e dos imóveis – conforme competência legal constitucional –, e tornar os transportes coletivos, e o não motorizado, como prioridade da matriz de mobilidade urbana.

As nossas empresas de transporte são um grande problema. Fernando Haddad pegou um “rabo de foguete”, mas teve apoio do Conselho da Cidade, para abrir a caixa-preta dos transportes.

A presidenta Dilma anunciou o Plano Nacional de Mobilidade. Temos de ir para a rua, porque eu, por exemplo, não quero mais cargo. Quero ser movimento social, sociedade civil, porque não adianta ir para o governo se a sociedade não empurra. Acabará fazendo o jogo dos caras...

Você se refere aos governos de coalizão?
Ermínia: Como é que conseguíamos fazer tanta coisa sem coalizão, na época do modo petista de governar nos municípios? O transporte, hoje, atinge todo mundo, porque quem tem carro também está parado.

As pessoas sentem isso, que a cidade está entregue. Você não vê em lado nenhum que tem uma força do bem conduzindo para algum lado. Isso faz uma sociedade entrar em caos... Qual é a maior causa dessa crise hoje? É o avanço imobiliário que está totalmente descontrolado e avançando sobre a periferia também, empurrando os pobres. A cidade está se espalhando.

Falamos sobre o arcabouço legal, mas como é o desempenho do Judiciário no cumprimento do que está estabelecido?
Ermínia: O Judiciário é extremamente conservador. Tenho quarenta anos de ação em política urbana e o número de sentenças que já vi serem dadas contra a lei impressiona. Se é que podemos dizer que um juiz dá uma sentença ilegal – é surpreendente. Uma hipótese que já levantei é que o Judiciário não conhece a legislação urbanística. Dei aula para o Ministério Público de vários estados. Sempre tem pessoas bem avançadas. Por exemplo, a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, pelo menos durante um certo período, era mais avançada, e setores do Ministério Público de São Paulo ligados ao meio ambiente e à questão urbana, também.

Mas o Brasil é um país continental, como se dá isso por aí afora?
Ermínia: Minhas pesquisas apontam um país em que a fraude registrária é regra. No mais das vezes em propriedades contíguas a limitação não confere. As propriedades registradas no Pará dão cinco vezes o território do estado. O Incra tem documentos muito bons, inclusive de governos da década de 1990, sobre fraudes em desapropriações. São comuns as fraudes ligadas à questão fundiária, o que se estende à cidade. Há shopping centers em área da União, loteamentos, como Alphaville, que tem parte na área da União. Em São Paulo o bairro São Miguel Paulista ocupou áreas indígenas.

Há um discurso dos ruralistas aparentemente rigoroso por parte de suas lideranças, principalmente a deputada Kátia Abreu, mas uma condição do latifúndio é de invasão de terra. O principal objetivo na aprovação do Código Florestal é a regularização de terras, porque o registro de terras no país é uma barafunda. Ao mesmo tempo, o Judiciário e a mídia acusam o MST de ocupar, derrubar árvores. A Globo mostrou ao Brasil inteiro o MST derrubando árvores, em uma propriedade supostamente de uma empresa de laranjas, só que era uma propriedade grilada, questionada pelo Ministério Público Federal. É propriedade da União.

E qual é a relação reforma agrária e reforma urbana?
Ermínia: É impossível separar as duas coisas porque, atualmente, o que se vê em vários países é que para segurar a expansão urbana se faz uma agricultura urbana, que tem um papel urbanístico e ambiental muito importante na absorção das águas de chuva e não deixa a cidade inundar. São Paulo, segundo o ambientalista Hans Schreier, que está no Canadá, é a maior área impermeabilizada do mundo. O Rio Tietê acabou também tendo a margem mais impermeabilizada por uma obra viária recente. Só a permeabilização do solo é que pode melhorar, porque fazer obra, tipo piscinão, contenções, tem limite. A manutenção é ruim.

Além do papel ambiental, a agricultura urbana evita que o alimento viaje. João Pedro Stédile disse outro dia que em Manaus se come o tomate de Mogi das Cruzes. Isso é um crime. Por que isso se podemos ter o alimento próximo da cidade, principalmente o perecível, na merenda escolar, fresco e sem veneno? O Brasil se tornou o grande país consumidor de agrotóxico no mundo.

Temos florestas no sul do município de São Paulo, temos mata ainda. Uma das propostas é conservar e fazer uma agricultura orgânica nessa região. Os sonhos a gente nunca abandona.

E o comportamento do Legislativo quanto a todos esses temas elencados aqui?
Ermínia: O Legislativo é um caso seriíssimo. Há o capitalismo global de um lado e o clientelismo do outro. Quando eu estava no Ministério das Cidades, aparecia muito deputado pedindo asfalto – em uma quadra, rua, cidade –, era a maior reivindicação de emenda. Fizemos até uma cartilha para tentar politizar os deputados e explicar pelo menos que era preciso instalar a rede de água e esgoto antes de fazer o asfalto.

Sem reforma política não dá. Agora temos de ir para a rua. Criamos um Ministério das Cidades pra quê? Mais um espaço para ser moeda de troca? A esse arcabouço legal e institucional precisa corresponder uma correlação de forças favorável, senão é inútil. O Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro e nós não conseguimos aplicá-lo.

Todos esses serviços urbanos estão no âmbito dos municípios. Mas em muitos casos a solução de grandes problemas extrapola essa esfera. Não faltam instrumentos para organizar esse tipo de demanda?
Ermínia: Sim, muitas dessas questões são metropolitanas. A única ressalva que eu faria em lei federal é que deveríamos ter um tratamento unificado sobre o que é metrópole e como administrá-la. A Constituição de 1988 remeteu aos estados a questão metropolitana. Então cada um resolveu ou deixou de resolver de um jeito. Há estados que consideram cidades médias metrópoles e estados que não consideram a cidade principal metrópole. Manaus não era região metropolitana e Blumenau era. Não dá para resolver, por exemplo, questões de esgoto, água, transporte, moradia.

E os impactos dos megaeventos nas cidades?
Ermínia: Os megaeventos são como o aumento da febre. Porque junto com megaevento vem um tsunami de capitais para o país, engordam e vão embora. Esses capitais vêm com certas regras, mas nem todas são interessantes para o país, que acaba ficando com elefantes brancos. É o que está acontecendo na África do Sul, na Grécia, na China, onde ocorreram eventos esportivos.

No Brasil, o estádio de Natal por exemplo, já não lotava. Só que o colocaram abaixo e estão construindo outro com o dobro do tamanho. O governo não está investindo, mas toda a infraestrutura de transporte é em função das Copas. Servirá para a população ou só para quem vai do aeroporto para os hotéis?

Mas a situação não é diferente em cada estado?
Ermínia: Sim, é diferente, mas há abuso em todos os estados. Onde há maior arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com que a população pobre saia do centro e vá para o fim do mundo. Há casas do Minha Casa, Minha Vida só para remoção de risco e em consequência da Copa. Tem áreas das quais as pessoas foram retiradas que estão vazias. Pobre desvaloriza.

Você tem esperança de que é possível mudar?
Ermínia: A esperança sempre tem de estar nas gerações que estão vindo, porque para quem tem a minha idade o tempo é limitado. A nossa cabeça é um patrimônio. Somos educados, aprendemos, vivemos experiências e adquirimos certa sabedoria. Eu sempre achei que a educação para os direitos humanos é fundamental e deve começar nas crianças, e agora acho isso mais importante do que nunca.

Há alguns anos, quando eu ia para a periferia, pensava que perderíamos uma geração, porque ninguém estava dando suporte para aquela criançada. Mas estou muito mais otimista depois que as manifestações explodiram. Porque eu acho que a direita neste país, apesar de muito agressiva, não tem condições de dar um golpe. A esquerda, sim, está em condições de se reorganizar e voltar a trabalhar de forma menos institucional e mais preocupada com o social.

Você tem ido para as periferias?
Ermínia: No momento, não, mas acho que tem uma vida na periferia mais interessante do que antes. Mano Brown e Emicida estão entre as lideranças mais importantes do país. Pela cultura, eles discutem tudo, especulação imobiliária e também a questão urbana. Essa efervescência me dá esperança. É afirmação de identidade, reivindicação de melhores condições de vida. É uma tentativa de enfrentar esse abismo que é o tráfico na periferia. Um cara como Mano Brown, que não se vende para a Globo, para mim é um herói.

Das políticas do repouso às políticas do movimento

"A atividade política, no sentido amplo do termo, está vivendo o início de um deslocamento tectônico de grandes ressonâncias. Uma mudança estrutural no modo como se organizam as relações sociais como um todo. Ou seja: uma passagem dos princípios de repouso aos princípios do movimento. Uma transição da estabilidade fornecida pelas grandes ideologias e das grandes estruturas verticais ao movimento horizontal, pulverizado, ubíquo e paradoxal do cinismo", escreve Rodrigo Petronio, escritor e filósofo, com graduação em Letras Clássicas (USP), autor, editor e organizador de dezenas de obras. Organizou as Obras Completas do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (Editora É). Tem mestrado sobre a obra do filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk (PUC-SP). Desenvolve doutorado na interface entre Teoria da Literatura e Filosofia (UERJ).
Segundo ele, "o cinismo é a complementaridade paradoxal e a solidariedade invisível existente entre as forças que escravizam e as forças que libertam".
"Se os movimentos sociais de esquerda não entenderem isso, - continua o escritor e filósofo - vão aos poucos se transformar em ilhas de ressentimento e melancolia, incrustadas em um oceano de guerras cínicas e de miragens cinéticas. Morrerão à margem da economia simbólica das comunidades midiáticas globais. Nas democracias pós-representativas, a divisão do poder tem deixado de se organizar a partir da político-partidária das siglas representativas, agrupadas sob as determinações ideológicas. A polarização do poder reside cada vez mais na capacidade maior ou menor, mais ou menos eficaz dos grupos de sanar problemas pontuais".
Eis o artigo.
Se recapitularmos a ordem das manifestações que se espalharam por todo Brasil, veremos uma mudança significativa na sua fisionomia. Paralelamente a essa guinada de orientação das manifestações, um aspecto ficou muito nítido: o repúdio dos movimentos sociais de esquerda e de todos aqueles que se autointitulam progressistas à feição genérica que os protestos assumiram. É compreensível que eles façam essa demarcação para não serem confundidos com os protagonistas de outras reivindicações que não são suas.
Mas uma pergunta não quer calar: os protagonistas do Movimento Passe Livre teriam mesmo conseguido a redução da tarifa se não fosse a avalanche de globais verde-amarelos e os centenas de milhares de manifestantes genéricos que se somaram ao núcleo duro do movimento original? A meta da redução tarifária teria sido alcançada se o MPLnão tivesse sido assimilado por diversos setores da sociedade com intenções inclusive golpistas e opostas à pauta ideológica das reivindicações iniciais? Esses paradoxos do mundo contemporâneo nos convidam a uma curiosa sintomatologia.
Não é apenas grande imprensa que vampiriza as manifestações de esquerda e as desvirtua. Não são apenas as massas anômicas genéricas que se valem das conquistas das pautas pontuais dos ativistas. Os próprios movimentos sociais de esquerda, ainda que o reneguem e ainda que isso ocorra à sua revelia, só se tornam eficazes quando são assimilados pelas estruturas midiáticas de poder e pelas massas sem orientação ideológica definida. Não por caso, da extrema direita à extrema esquerda, é preciso reconhecer que todos ficaram totalmente perdidos com os acontecimentos.
Esse diagnóstico nos deixa detectar uma mudança estrutural em franca expansão: a passagem das democracias representativas do século XX para as democracias pós-representativas do século XXI. Pois a questão não diz mais respeito aos governos, aos partidos ou a reivindicações específicas. Ela se refere a uma guinada do modo de organização da polis promovida pelas redes sociais. Por mais diversas que sejam as motivações dos protestos que se espalharam por vários países do mundo, a crise do sistema representativo e a emergência do ativismo digital são as matrizes que unificam fenômenos sociais de massa do Brasil, do Egito, da Síria e de outras localidades.
Boris GroysManuel CastellsPeter SloterdijkMichel MaffesoliFrancis FukuyamaPaul VirilioJean Baudrillard,Pierre Lévy. A lista é grande. Os grandes comunicólogos, filósofos da tecnologia e pensadores da informação há tempos chamam a atenção para essa mudança de paradigmas. Finalmente ela começa a sair dos livros e tomar as ruas. A passagem das democracias clássicas às democracias midiáticas consiste em uma mudança no tipo de política a partir de novos suportes técnicos, criados pelas tecnologias da informação. Trata-se de uma transição de uma política ideológico-partidária a uma política cínico-cinética, baseada em jogos cínicos de poder e em estratégias de ilusionismo e cinetismo. Uma guerrilha virtual em constante oscilação entre o repouso e o movimento, entre a conservação e a transformação.
A diferença é que estes pares de opostos não designam mais atitudes estáveis diante do mundo. Tampouco se referem a aspectos substanciais de seus agentes. Toda a atividade política do último século foi parametrizada a partir de um dos mais potentes critérios estabilizadores criados pela filosofia política: o conceito de direita-esquerda. Essa visão substancialista forneceu as linhas de força da política ao longo do século XX e teve seu ápice na Guerra Fria. Hoje ela se encontra em pleno declínio e é absolutamente ineficaz para compreender o mundo ao redor.
Na política cínico-cinética que começa a vigorar, os opostos não descrevem propriedades de seus agentes. Descrevem, sim, o movimento por meio do qual, em dadas circunstância, determinados atores sociais refletem ou deixam de refletir as aspirações dos grupos que representam. Sejam esses atores jornalistas, governantes, senadores, deputados, sindicalistas, patrões ou qualquer outra liderança.
A atividade política, no sentido amplo do termo, está vivendo o início de um deslocamento tectônico de grandes ressonâncias. Uma mudança estrutural no modo como se organizam as relações sociais como um todo. Ou seja: uma passagem dos princípios de repouso aos princípios do movimento. Uma transição da estabilidade fornecida pelas grandes ideologias e das grandes estruturas verticais ao movimento horizontal, pulverizado, ubíquo e paradoxal do cinismo.
Quando falo em cinismo, não me refiro à acepção negativa que o senso-comum lhe atribui. Não designo uma falsidade que oculta uma motivação verdadeira, como o poderíamos definir em termos psicológicos.
Tampouco descrevo a afirmação de uma realidade amoral pessimista, sob o pretexto de crer que a vida é assim e assim sempre será. O cinismo é a estrutura universal difusa do capitalismo planetário em que nos encontramos. O cinismo representa a ambivalência própria do atual funcionamento das relações de troca do capital simbólico no plano mundial. Em outras palavras, o cinismo é a complementaridade paradoxal e a solidariedade invisível existente entre as forças que escravizam e as forças que libertam.
Se os movimentos sociais de esquerda não entenderem isso, vão aos poucos se transformar em ilhas de ressentimento e melancolia, incrustadas em um oceano de guerras cínicas e de miragens cinéticas. Morrerão à margem da economia simbólica das comunidades midiáticas globais. Nas democracias pós-representativas, a divisão do poder tem deixado de se organizar a partir da político-partidária das siglas representativas, agrupadas sob as determinações ideológicas. A polarização do poder reside cada vez mais na capacidade maior ou menor, mais ou menos eficaz dos grupos de sanar problemas pontuais.
Continuaremos a enfrentar a demarcação entre progressistas e conservadores. Mas essa demarcação dependerá muito mais de critérios pragmáticos do que de orientações ideológicas eletivas. Em outras palavras, a política da era pós-ideológica se alimenta de alguns consensos provisórios em torno das pautas que devem ser definidas. Não depende do conjunto de ideias e ideais de seus representantes, mas da eficiência cirúrgica dos seus gestos.
A guerra agora é de guerrilha, não uma guerra de grandes massas combatentes sob o cenário heroico de uma História rumo a um futuro escatológico redentor. Nesse sentido, as distinções políticas começam a abandonar as bandeiras divisórias entre esquerda e direita, entre partido e partido, entre sigla e sigla e entre movimento e movimento. As demarcações passam aos poucos a ser pensadas entre Governos e Movimentos e, acima de tudo, entre Repouso e Movimento.
Sejam quais forem os partidos que nos representem, a questão daqui para frente será sempre a qualidade de sua representação. Sejam quais forem nossos representantes, em uma era midiática a democracia global transnacional dependerá cada vez menos de saber se nossa bandeira é vermelha, preta ou a de um país. E dependerá cada vez mais de sabermos por quais centavos estamos dispostos a lutar. O ensinamento político que extrairemos dessa nova condição transcende o escopo político-partidário e um dia será revelado em toda sua profundidade. Provavelmente quando, para conseguirmos a maior de todas as nossas conquistas, tivermos que marchar nas ruas de braços dados com o nosso inimigo.     

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A anorexia infantil e as portas de vidro

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Em crônica contundente, escritora, artista e fotógrafa norte-americana relata doença da filha e revela como tornou-se onipresente associação insana entre sucesso e corpos “bem-feitos”
Por Maíssa Bakri
À primeira vista, não seria de ser esperar que isso aconteceria em uma família como a de Kristi Belcamino: desde o dia em que deu à luz a uma menina, a palavra “dieta” foi banida das conversas da casa. Não se assinavam revistas de moda e a televisão era monitorada de perto. Daí se justifica seu espanto ao perceber que sua filha, com apenas nove anos de idade, estava anoréxica, pesando 22 quilos. Em uma crônica contundente para a revista norte-americana Salon, Kristi relata seu choque ao descobrir que a anorexia não respeita as portas nem dos mais conscientes lares.
Em meio ao tratamento da filha, Kristi descobriu que cerca de 10% dos que sofrem de anorexia nos Estados Unidos têm menos de dez anos de idade. Embora fosse constantemente lembrada de que não há um método de criação dos filhos capaz de prevenir a doença, a culpa não a abandonava. O tratamento de quadros anoréxicos é um processo longo e incerto, já que, além das restrições alimentares, as pessoas que sofrem de anorexia, com seu medo mórbido de engordar, não só restringem a ingestão de alimentos, mas fazem uso de medicamentos como laxantes e diurético, induzem o vômito e praticam exercícios físicos vigorosos. Para o alívio de Kristi, sua filha ainda não sabia que era possível vomitar para se livrar da comida, mas tentava queimar calorias em sessões frenéticas de dança irlandesa em seu quarto.
Depois de tratamento intensivo, a filha já está fora de perigo, mas não é possível afirmar que a batalha tenha sido vencida. Por mais surpreendente que possa parecer a ideia de que a anorexia infantil adentra sem pudores um lar como o de Kristi, devemos nos perguntar: seria de se esperar algo diferente em uma sociedade onde o discurso disseminado pela indústria cultural e pela publicidade associa beleza, saúde, sucesso, felicidade e poder à corpos magros? Por que iríamos achar que, ao fechar nossas portas de vidro, tudo ficaria bem?

Por que ler Cidades Rebeldes

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Coletânea recém-lançada de textos sobre manifestações de junho debate crise da representação, papel das ruas e retomada do Direito à Cidade
Por Raquel Rolnik, em seu blog
Refletindo sobre como escrever o texto de apresentação deste livro [Cidades Rebeldes - Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil], deparei-me com o editorial de um semanário francês com a seguinte pérola:
Como na Turquia, as manifestações violentas que lançaram às ruas mais de um milhão de pessoas nas cidades brasileiras ecoaram como um trovão em um céu aparentemente sereno. Entretanto, elas demonstram, para além dos protestos contra a alta das tarifas nos transportes públicos, a débâcle do m ilagre brasileiro, q ue, após uma década de crescimento excepcional (5% ao ano), que aumentou a renda per capita de 7.500 para 11.800 dólares e fez emergir uma classe média de 90 milhões de pessoas, cresceu apenas 0,9% em 2012, por conta da política estatista e protecionista da presidenta Dilma Rousseff. (Editorial de Le Point, 27 jun. 2013. Tradução minha.)
O artigo prossegue com a ladainha do fundamentalismo neoliberal, apontando o elevado custo do trabalho, a alta carga tributária e a corrupção como os responsáveis pelo grande descontentamento manifesto nas ruas. Explicações como essas, que soam no mínimo patéticas para o grupo de autores que compõe esta bela e forte tentativa de interpretação das chamadas revoltas de junho, estiveram presentes não apenas nas leituras sobre os eventos, mas nas próprias manifestações. No decorrer dos protestos, houve uma disputa nos cartazes empunhados pelo conjunto heterogêneo que ocupou as ruas e uma guerra de interpretações das vozes rebeldes. Nesse sentido, esta iniciativa da Boitempo, que convoca o pensamento crítico independente para interpretar os fatos recentes no Brasil no calor do momento, é mais do que bem-vinda, e fazer a apresentação deste livro é, para mim, um enorme privilégio.
Podemos pensar essas manifestações como um terremoto – uma metáfora mais adequada do que o trovão mencionado no editorial do semanário francês –, que perturbou a ordem de um país que parecia viver uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos. Mas, sobretudo – e isso é o mais importante –, fez renascer entre nós a utopia… No campo imediato da política, o sismo introduziu fissuras na perversa aliança entre o que há de mais atrasado/excludente/prepotente no Brasil e os impulsos de mudança que conduziram o país na luta contra a ditadura e o processo de redemocratização; uma aliança que tem bloqueado o desenvolvimento de um país não apenas próspero, mas cidadão.
Os autores desta coletânea apontam várias agendas como o epicentro do terremoto. Para Ruy Braga, “a questão da efetivação e ampliação dos direitos sociais é chave para interpretarmos a maior revolta popular da história brasileira”. O direito a ter direitos, que alimentou as lutas dos anos 1970 e 1980 e inspirou a Constituição e a emergência de novos atores no cenário político, parecia esvanecido no contexto da formação de uma espécie de hibridismo de Estado, desenvolvimentista e neoliberal, com uma cultura política e um modelo político-eleitoral herdados da ditadura. Nas palavras de Carlos Vainer (parafraseando Mao Tse-Tung), “uma fagulha pode incendiar uma pradaria” e, no nosso caso, essa fagulha foi a mobilização contra o aumento da tarifa nos transportes públicos convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL). O MPL-SP formula a questão da tarifa em seu ensaio neste livro como uma afirmação do direito à cidade. De acordo com o texto/manifesto, a circulação livre e irrestrita é um componente essencial desse direito que as catracas – expressão da lógica do transporte como circulação de valor – bloqueiam. João Alexandre Peschanski, compartilhando dessa visão, analisa a proposta da tarifa zero, sua apropriação possível pelo sistema capitalista e, ao mesmo tempo, seu potencial transformador da sociedade.
A situação da mobilidade nas cidades brasileiras assemelha-se muito à de Los Angeles, descrita por Mike Davis. Nas nossas ruas, o direito à mobilidade se entrelaçou fortemente com outras pautas e agendas constitutivas da questão urbana, como o tema dos megaeventos e suas lógicas de gentrificação e limpeza social. As palavras de Ermínia Maricato – “os capitais se assanham na pilhagem dos fundos públicos deixando inúmeros elefantes brancos para trás” – me lembraram um cartaz que vi em uma das passeatas: “Quando meu filho ficar doente vou levá-lo ao estádio”. A questão urbana e, particularmente, a agenda da reforma urbana, constitutiva da pauta das lutas sociais e fragilmente experimentada em esferas municipais nos anos 1980 e início dos anos 1990, foram abandonadas pelo poder político dominante no país, em todas as esferas. Isso se deu em prol de uma coalizão pelo crescimento que articulou estratégias keynesianas de geração de emprego e aumentos salariais a um modelo de desenvolvimento urbano neoliberal, voltado única e exclusivamente para facilitar a ação do mercado e abrir frentes de expansão do capital financeirizado, do qual o projeto Copa/Olimpíadas é a expressão mais recente… e radical.
Entretanto, não se compra o direito à cidade em concessionárias de automóveis e no Feirão da Caixa: o aumento de renda, que possibilita o crescimento do consumo, não “resolve” nem o problema da falta de urbanidade nem a precariedade dos serviços públicos de educação e saúde, muito menos a inexistência total de sistemas integrados eficientes e acessíveis de transporte ou a enorme fragmentação representada pela dualidade da nossa condição urbana (favela versus asfalto, legal versus ilegal, permanente versus provisório). A “fagulha” das manifestações de junho não surgiu do nada: foram anos de constituição de uma nova geração de movimentos urbanos – o MPL, a resistência urbana, os movimentos sem- -teto, os movimentos estudantis –, que, entre “catracaços”, ocupações e manifestações foram se articulando em redes mais amplas, como os Comitês Populares da Copa e sua articulação nacional, a Ancop.
O direito à cidade é também reivindicado por coletivos ligados à produção cultural, como relata Silvia Viana, que colocam a ocupação do espaço público como agenda e prática. As cidades brasileiras são cada vez mais e em vários momentos não apenas palco, mas objeto de intervenções desses coletivos, como no caso da ocupação Prestes Maia, em São Paulo, que articulou os grupos de produção cultural aos dos sem-teto e outros movimentos. O texto de Silvia Viana aponta para uma diferença substantiva que se estabeleceu nas interpretações – e apresentações – das manifestações: a clivagem entre “pacíficos” e “baderneiros”. Como em outros snapshots da guerra de significados, a ocupação da cidade foi disputada por diferentes sentidos. A tropa de choque, que no cotidiano executa pessoas sumariamente nas favelas e realiza despejos jogando bombas de gás nos moradores, entrou e saiu de cena ao longo das manifestações, lembrando que, no país próspero e feliz, a linguagem da violência ainda é parte importantíssima do léxico político. O artigo de Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira sobre o Rio de Janeiro demonstra a relação entre um projeto excludente de cidade e a militarização dos territórios populares. Ao lê-lo, ecoou em minha memória um dos slogans ouvidos nas ruas: “Que coincidência! Não tem polícia, não tem violência”.
Para a linguagem da polícia – e da ordem – a ocupação das ruas é baderna; porém, amparados pela Constituição, como nos lembra Jorge Luiz Souto Maior, para vários movimentos sociais ali presentes, a retomada do espaço urbano aparece como o objetivo e o método, que determina diretamente os fluxos e os usos da cidade. Nas palavras do MPL-SP:
A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles, que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu próprio cotidiano.
Outros temas – e outras agendas, igualmente presentes nas ruas – podem ser lidos e interpretados a partir dessa fala do MPL: a participação, através de sua expressão mais radical, a autogestão, e as novas maneiras e métodos de fazer política tomaram as ruas como forma de expressar revolta, indignação e protesto. Isso não é novo na política. Mas hoje o tema da ocupação – no sentido do controle do espaço, mesmo que por um certo período, e, a partir daí, a ação direta na gestão de seus fluxos – tem forte ressonância no sentimento, que parece generalizado, do alheamento em relação aos processos decisórios na política e da falta de expressão pública de parte significativa da população. Ocupando as ruas, reorganizando os espaços e reapropriando suas formas, seguindo a linha teórica avançada por David Harvey em seu artigo, aqueles que são alijados do poder de decisão sobre seu destino tomam esse destino com seu próprio corpo, por meio da ação direta.
Desilusão/denúncia em relação à democracia e as formas de expressão pública? Na chamada agenda da “crise de representação” novamente convergem pautas e leituras contraditórias. Venício A. de Lima aponta como os grandes meios de comunicação, conglomerados empresariais monopolistas, investem sistematicamente na desqualificação dos políticos e da política e, nos últimos anos, insistem na pauta da corrupção como grande responsável pelas mazelas do país. Embora, de fato, o pacto de governabilidade tenha influenciado o distanciamento dos atuais partidos e políticos em relação à população e embora os chamados partidos de esquerda, uma vez conquistada a hegemonia na coalizão governante, tenham enterrado a pauta da participação popular e da gestão participativa direta, caracterizar a origem da crise atual no campo moral “corrupção”, do qual só os políticos participam, é, no mínimo, altamente reducionista e pode também resvalar para diversas formas de fascismo, no estilo “Melhor sem os políticos”.
A questão da representação não envolve apenas a crise dos partidos e da política e, portanto, a necessidade de uma reforma política, uma das principais agendas das ruas. Segundo Venício, “os jovens manifestantes se consideram ‘sem voz pública’, isto é, sem canais para se expressar”. Twitter, Facebook e as demais redes sociais, outros personagens dessa trama, não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros segmentos da população brasileira – na chamada “formação da opinião pública”, cujo monopólio é exercido pela grande mídia. É o que nos lembra Lincoln Secco: “Apesar de a maioria dos jovens manifestantes usar a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação”. Assim, entende-se também por que redes de TV foram, e continuam sendo, atacadas pelos manifestantes.
Qual a conexão entre o movimento no Brasil e outros tantos do planeta, como o que ocorreu ao mesmo tempo em Istambul, a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, os Indignados da Espanha? Esses movimentos transformaram da praça Tahrir, no Egito, à praça do Sol, em Madri, da praça Syntagma, na Grécia, ao parque Zuccotti, nos Estados Unidos, passando pela praça Taksim, na Turquia, em palcos de protestos majoritariamente compostos por jovens, convocados por meio de redes sociais, sem a presença de partidos, sindicatos e organizações de massa tradicionais. Slavoj Žižek analisa essa questão com maestria em seu ensaio. Voltando ao semanário francês que citei no início: até a eclosão das manifestações na praça Taksim (e das revoltas de junho no Brasil) o discurso hegemônico dos representantes do fundamentalismo de mercado enquadrava esses movimentos basicamente como protestos pela falta de emprego, renda e democracia representativa, ou de uma combinação desses elementos, ignorando os inúmeros conteúdos e agendas trazidos para as ruas, sobretudo o questionamento do “sistema”, essa velha palavra que sintetiza o modo de produção econômico-político da sociedade.
Nos diversos países que citei, assim como nas cidades brasileiras, os modelos de desenvolvimento e as formas de fazer política estão em questão. De acordo com Leonardo Sakamoto, a “civilização representada por fuzis, colheitadeiras, motosserras, terno e paletó [...] mais cedo ou mais tarde terá de mudar”. O velho modelo de república representativa, formulado no século XVIII e finalmente implementado como modelo único em praticamente todo o planeta, dá sinais claros de esgotamento.
Contra esse modelo baseado em estruturas verticais e centralizadas, movimentos como o Occupy e outros propõem formas horizontais de decisão, sem personificação de lideranças nem comando de partidos e comitês centrais. Esta foi também parte da “surpresa” das ruas: onde estão as bandeiras e os carros de som com os megafones? Quem são os líderes? Quem manda? O apartidarismo ganhou sua versão fascista, antipartidária, quando militantes de partidos quiseram aderir às manifestações e foram espancados… pelos próprios manifestantes.
O leitor deste conjunto de artigos provavelmente concordará comigo que a voz das ruas não é uníssona. Trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e brutalidade, aliás presentes na própria sociedade brasileira. Como diz Sakamoto: “Uma vez posto em marcha, um movimento horizontal, sem lideranças claras, tem suas delícias – assim como as tem um rio difícil de controlar – e suas dores – assim como as tem um rio difícil de controlar”.
As propostas alternativas ao modelo dominante precisarão ter seu tempo de formulação e experimentação. Aos aflitos com a falta de novos modelos, eu perguntaria como teriam se sentido após a Revolução de 1848, na França… Temos que aprender a não nos assustar com isso também e, como diz Mauro Luis Iasi: “Devemos apostar na rebelião do desejo. Aqueles que se apegarem às velhas formas serão enterrados com elas”.
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