"retalhos de sol, caminhos de seda"
Diálogo Filosófico - por Carlos Drummond de Andrade
As coisas não são o que são, mas também não são o que não são - disse o professor suíço ao estudante brasileiro.
Então, que são as coisas? - inquiriu o estudante.
As coisas simplesmente não.
Sem verbo?
Claro que sem verbo. O verbo não é coisa.
E que quer dizer coisas não?
Quer dizer o não das coisas, se você for suficientemente atilado para percebê-lo.
Então as coisas não têm um sim?
O sim das coisas é o não. E o não é sem coisa. Portanto, coisa e não são a mesma coisa, ou o mesmo não.
O professor tirou do bolso uma não-barra de chocolate e comeu um pedacinho, sem oferecer outro ao aluno, porque o chocolate era não.
(Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1261)
PS: este é um escrito que me foi enviado pelo ivo, por email, em 18.06.2010)
vou falar/escrever um pouco, porque preciso fazer uma literatura que me ajude a elaborar alguns dos acontecimentos ocorridos em minha e em muitas vidas nos últimos dias... porque a vida sempre é uma literatura... são acontecimentos nada fácil de se lidar, pois dizem de um amigo que é um dos mais importantes da minha vida toda e, em muitos aspectos, é o mais importante e até mais importante do que todos os demais juntos... minha vida tem uma acontecedura até a chegada dele e outra, a partir disso... e minha história com ivo foi sempre tramada em ideações literárias... tínhamos essa coisa de inventar, de inventar sempre... criamos códigos próprios de comunicação... modulamos nossos afetos de forma a respeitar o tempo, o espaço e a memória de um na vida do outro... criamos a sintonia fina de nossos sentimentos... ampliamos à máxima potência a intensidade dos afetos que nos compunham subjetivamente!
hoje estou tendo um fulgor de posse em meio aos meus afetos... estou indicando como meu, algo que é nosso e ao mesmo tempo de ninguém... mas, na verdade, falo desse "meu", exatamente para compor com os afetos que me dizem respeito! e, além do mais, estou quieta e continuarei quieta durante o tempo que for necessário... o que também não sei quanto durará... talvez logo queira algum barulhinho-bom pra me ajudar no compasso de meu tranco... não sei! a elaboração do luto pede silêncio, pede quietude, pede um andar cadenciado com a vida que muda de marcha e de modulação... o luto por alguém que se retirou de si e, por assim fazer, se retirou também de nossa vida física, é algo que se faz quieto, em silêncio, porque não tem a ver com morte e sim com vida... é a vida dos viventes que deve tecer novas modulações depois que alguém se retira... temos que recompor o que antes fora composto de outra forma... temos que tesser (com dois s) novas composições... temos que cadenciar em outros ritmos, aquilo que antes contava também com a presença física da pessoa... esse é um trabalho que deve ser feito com muito cuidado e delicadeza.
conheci ivo no curso de mestrado em filosofia... era lá pelas metades de 2007 - um ano que começou a compor o antes e o depois de minha existência... ele foi o que fez o primeiro lugar na seleção de mestrado, então o olhávamos com caras e olhos de últimos lugares (quando não, de desclassificados)... na verdade, com esse nome (IVONEI), pensávamos que fosse uma genuína mulher... e, logo de cara, fomos descadeirados, todos, por sua figura linda, por sua alegria, por seu carinho, por sua presença intensa, por sua generosidade, por sua vivacidade, por sua festividade, por sua inteligência e por seu imenso senso de humanidade!
com seus genes felinos, ele estava sempre ronronando por perto, roçando meus passos, provocando-me em meu recolhimento antissocial e esquizo... pra tripudiar com seu atrevimento, passei a lhe provocar com meu dito preferido: "e aí, gatinho, você vem sempre aqui?"... e rapidamente nossos codinomes se tornaram gatinho e gatinha (coisas nossas)... quando um sumia por muito tempo, logo vinha o outro com um berro carinhoso (por torpedo, por msn, por email): "e aííííí, gatinhaaaaaaaaaa"... "e aííííí, gatinhooooooooo"?!... depois ele se tornou o gatucho, pra parecer mais intenso!
ele chegou de mansinho, atrevido, amoroso, conectando seus quereres com os meus... logo formamos dupla de dois-em-um... avoávamos em sentimentos que nos levavam das tecituras filosóficas de nossas aulas, aos estardalhaços literários de nossas inventivas imaginações... bastava-nos ver ao mesmo tempo os acontecimentos e nossos pensamentos, sincronizados, disparavam a rir o mesmo riso... tecíamos, por qualquer bobagem, trovas as mais engraçadas, sem ensaio prévio e sem textos escritos antes... logologo, inventamos paródias sobre o amor-posse e nos tornamos, um para o outro, "meu-macho, meu-fêmeo"/ "minha-fêmea"... sempre escrito e dito de forma composta, para sublinhar a paródia... transformamos a casa em que moro, numa entidade literária chamada "casinha", homenageando a singeleza, a acolhedura e a poesia do lugar em que moro (e em que moram todas as figuras afetivas que compõem minha existência)!
hoje só posso falar de algumas das coisas que o ivo significou para mim... não tenho como dizer do que eu tenha significado para ele (muito menos do que ele tenha significado para os outros ou do que os outros tenham significado para ele)... sei dizer que sempre respeitamos nossos tempos e nossos espaços, nossos quereres e nossos fazeres! ele vinha chegando pelas beiradas e eu fazia de conta que não via... ele tomava minha mão e andava pelo mundo com a serenidade que compunha nossos passos... ele nunca atropelou minhas dificuldades com a vida e eu nunca atropelei as dele... fazíamos rimas imperfeitas para nossas existências-ventanias... sei dizer, também, que ele nunca deixou de marcar a minha presença em sua vida, nos seus compassos e em suas poetagens... sempre que podíamos, nossas interseções e nossos encontros (de uma ou de outra forma) eram diários, o que se arrefeceu em seus tempos de adoecimento, por conta das limitações impostas.
acontecedor de coisas e de afetos, por onde passasse, provocava os gostares e os quereres... generoso com aqueles de quem gostava, era agenciador de encontros... onde via possibilidade de encontramento entre as gentes, dava um jeito de fazer um vento soprar para polinizar tais aconteceres!
agora estou transitando nessa toada difícil de ter que lidar com a intensidade da presença afetiva de ivo em minha vida, ao mesmo tempo em que elaboro sua ausência física... é estranho ver e sentir as coisas que sempre compartilhava com ele e, agora, não poder mais enviar um torpedo ou ligar para dizer e conversar coisas... suas últimas intervenções feitas na "casinha", quando de sua última estada aqui, ainda marcam a força da sua presença... hoje está difícil fazer coisas que ele pediu pra aguardar sua próxima vinda para fazermos a quatro mãos (e sempre contei com sua participação em coisas domésticas que não tinha como fazer sozinha)... essas coisas todas, no meio de partidas intempestivas, ficam pelas metades, assim como, pelas metades ficam todas as coisas de nossa existência... e é do meio desse descampado que temos que ir recompondo a vida e a existência.
isso tudo está provocando reencontros com nossas amizades e com nossos amigos... é como se estivéssemos re-olhando para a vida, para a existência, para nossas relações, para nossos quereres e para nossos fazeres... ivo viveu tão intensamente, fazendo-o de forma tão bonita e corajosa, que a condição de MORTE simplesmente não cabe em sua existência (e nem em seu corpo coube)... para os que o viram esvaído de si, deitado em seu leito florido para nossa despedida física, ficou muito claro que não se tratava de um estado de morte... não houve morte... não vimos morte... não sentimos morte... a imagem do ivo desfalecido não encaixava com a vitalidade do ivo que nunca deixará de estar presente na vida de todos nós... logo depois do ocorrido, as pessoas que não sabiam o que estava se passando, viam nossos facebook, email e torpedos, mas não entendiam de que se tratava nosso anúncio e nosso lamento... ninguém falou e ninguém fala de morte... não foi morte o que se assucedeu com ivo...ninguém sentiu ou sente isso como morte... sua presença no mundo físico sempre foi tão bonita, tão intensa, tão alegre, tão ativa, tão vitalizada, tão potente, que isso sempre se fez de forma a atravessar e compor a existência de todas as pessoas com quem cruzava ou compartilhava seus múltiplos existires... ele não era um só... ivo era muitos... e é claro que estamos tendo que lidar com sua ausência física, mas ivo está vivo, presente e pulsando em todos nós... sua existência está presente e pulsando na existência de todos nós e ainda, na existência daqueles com quem nos relacionamos... hoje experiencio novos sentimentos em minhas relações afetivas e consigo tomar em alta conta aqueles que realmente são importantes em minha e também, aqueles para quem eu seja efetivamente importante... não sou pessoa de muitos amigos e nem sou dada a muita socialização... tenho poucos e grandes amigos... são pessoas que efetivamente aprecio, gosto, quero bem, me preocupo, quero por perto, gosto de conversar e compartilhar a vida, que me atravessam, que me habitam, que contam comigo e com quem conto incondicionalmente... enfim, são pessoas que estão efetivamente presentes em minha vida e em cujas vidas eu também estou presente... são gentes cuja grandeza e cujos afetos fazem rima com as suas e com a minha existência!
hoje quero lidar com tudo isso bem devagar... é muito difícil tocar de uma nova forma, nas coisas em que sempre se tocou tão bem... a saudade é um descampado que nos agonia, que nos faz inventar miragens, buscar intensidades, de coisas que já não serão como antes, mas também é um sentimento que nos faz produzir novas e inventivas modulações... não é de morte que estou falando... não é com a morte que é difícil lidar, pois essa é a questão mais certa e mais exata com que temos que lidar em nossa existência e não é de morte que se trata o caso... estou falando da vida, do quão difícil seja lidar com a vida e com as coisas próprias aos viventes... do quanto de vida o ivo deixou plantada no terreno da minha e de muitas outras vidas... sua presença não para de acontecer em nossas vidas, fazendo ritornelos de afetamentos e acontecimentos, do mesmo jeito que sempre fez!
dou laço neste escrito, com uma poetagem que ivo me enviou no 30.05.11:
O meu amor, o meu amor, MariaÉ como um fio telegráfico da estradaAonde vêm pousar as andorinhas...De vez em quando chega umaE canta(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)Canta e vai-se emboraOutra, nem isso,Mal chega, vai-se embora.A última que passouLimitou-se a fazer cocôNo meu pobre fio de vida!No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:As andorinhas é que mudam.(poeminha sentimental - m. quintana)beijos saudosos e cansadosteu gatinho-- "retalhos de sol, caminhos de seda"