A casa do poeta
Foi um pequeno alumbramento: uma senhora muito velha, neta da aia que havia cuidado do poeta, nos conduzia pela pequena casa falando de Whitman como se ele estivesse vivo. ‘Aqui ele escreve’, dizia apontando para uma mesa posta debaixo de uma janela que dava para o pátio dos fundos. ‘Aqui costuma tomar seu café da manhã, aqui escreve cartas antes do almoço, aqui ele gosta de ler antes de ir dormir’. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno
Em 1983, a primavera foi especialmente agradável em Nova York. A cidade celebrava o primeiro centenário da Ponte do Brooklin, e as pessoas pareciam flutuar na luz suave dos dias amenos. A cantora venezuelana Soledad Bravo estava por lá, depois do êxito desenfreado de ‘Caribe’, em que reuniu canções do cubano Silvio Rodrigues e de Chico Buarque. Costumávamos nos encontrar nos começos de noite para ouvir as novidades da jornada – ela contava histórias de músicos, Martha e eu contávamos do que tínhamos visto enquanto flanávamos pela primavera.
Num daqueles dias chegou, vindo de Washington, o boliviano Enrique Arnal, um dos grandes pintores da América Latina desses nossos tempos. Estava trabalhando num enorme mural para a Organização dos Estados Americanos, e resolveu ir até Nova York para comprar pincéis. Eu ficava pasmo com sua meticulosidade, escolhia um por um apalpando as fibras como se quisesse confirmar se alguma vez haveria diálogo entre sua mão, o pincel, as cores, a tela.
Decidimos ir com ele até Washington, de automóvel. Eu queria parar numa cidadezinha chamada Camden, em Nova Jersey, para visitar a casa que tinha sido o derradeiro pouso de Walt Whitman. Estava mergulhado até a alma na leitura de alguns de seus poemas, e lá fomos nós. Chegamos no final da tarde, e o primeiro que vimos foi uma gigantesca lata de sopa Campbell’s, plantada na porta da fábrica que eu não sabia que ficava na cidade. Ninguém sabia dizer onde ficava a casa de Whitman. Lembro que fomos parar num bairro estranho e um negro enorme, de macacão, limitou-se a olhar para nós e dizer: ‘Caiam fora, este bairro é perigoso para gente como vocês’. Decidimos perguntar no Corpo de Bombeiros. Nada. E quando já íamos desistindo vimos a casinha de madeira cor de cinza, com a pequena placa dizendo que ali o poeta Walt Whitman havia passado seus últimos anos.
Foi um pequeno alumbramento: uma senhora muito velha, neta da aia que havia cuidado do poeta, nos conduzia pela pequena casa falando de Whitman como se ele estivesse vivo. ‘Aqui ele escreve’, dizia apontando para uma mesa posta debaixo de uma janela que dava para o pátio dos fundos. ‘Aqui costuma tomar seu café da manhã, aqui escreve cartas antes do almoço, aqui ele gosta de ler antes de ir dormir’. Contava de seus hábitos mínimos, de sua enorme dificuldade em se locomover depois de ter ficado com metade do corpo paralisada, de seu humor melancólico.
Whitman tinha morrido 91 anos antes daquela tarde, ela jamais conhecera o poeta, mas falava dele como alguém que ainda estivesse por ali.
Na despedida, perguntou de onde éramos. Evidentemente não tinha a menor idéia de onde ficava o Brasil, e muito menos do que seria a Bolívia. Explicamos que eram países da América do Sul. Ela então nos disse que dias antes havia passado por ali um senhor muito velho que conhecia tudo de Walt Whitman e que também era ‘lá de baixo’, quer dizer, daquela estranha e misteriosa parte do mundo de onde nós tínhamos vindo. Pediu que assinássemos o livro de visitas. E então vi que antes de nós, apenas dois visitantes haviam assinado o livro naquele maio de 1983: uma mulher chamada Maria Kodama e um velho muito velho que deixou um garrancho disforme, onde se podia ler, com algum trabalho, o nome de Jorge Luís Borges.
Mas tudo isso foi há muito tempo, em outro lugar do mundo, quando éramos jovens, líamos Walt Whitman, e Soledad Bravo mostrava que o Caribe não tem fim.
Num daqueles dias chegou, vindo de Washington, o boliviano Enrique Arnal, um dos grandes pintores da América Latina desses nossos tempos. Estava trabalhando num enorme mural para a Organização dos Estados Americanos, e resolveu ir até Nova York para comprar pincéis. Eu ficava pasmo com sua meticulosidade, escolhia um por um apalpando as fibras como se quisesse confirmar se alguma vez haveria diálogo entre sua mão, o pincel, as cores, a tela.
Decidimos ir com ele até Washington, de automóvel. Eu queria parar numa cidadezinha chamada Camden, em Nova Jersey, para visitar a casa que tinha sido o derradeiro pouso de Walt Whitman. Estava mergulhado até a alma na leitura de alguns de seus poemas, e lá fomos nós. Chegamos no final da tarde, e o primeiro que vimos foi uma gigantesca lata de sopa Campbell’s, plantada na porta da fábrica que eu não sabia que ficava na cidade. Ninguém sabia dizer onde ficava a casa de Whitman. Lembro que fomos parar num bairro estranho e um negro enorme, de macacão, limitou-se a olhar para nós e dizer: ‘Caiam fora, este bairro é perigoso para gente como vocês’. Decidimos perguntar no Corpo de Bombeiros. Nada. E quando já íamos desistindo vimos a casinha de madeira cor de cinza, com a pequena placa dizendo que ali o poeta Walt Whitman havia passado seus últimos anos.
Foi um pequeno alumbramento: uma senhora muito velha, neta da aia que havia cuidado do poeta, nos conduzia pela pequena casa falando de Whitman como se ele estivesse vivo. ‘Aqui ele escreve’, dizia apontando para uma mesa posta debaixo de uma janela que dava para o pátio dos fundos. ‘Aqui costuma tomar seu café da manhã, aqui escreve cartas antes do almoço, aqui ele gosta de ler antes de ir dormir’. Contava de seus hábitos mínimos, de sua enorme dificuldade em se locomover depois de ter ficado com metade do corpo paralisada, de seu humor melancólico.
Whitman tinha morrido 91 anos antes daquela tarde, ela jamais conhecera o poeta, mas falava dele como alguém que ainda estivesse por ali.
Na despedida, perguntou de onde éramos. Evidentemente não tinha a menor idéia de onde ficava o Brasil, e muito menos do que seria a Bolívia. Explicamos que eram países da América do Sul. Ela então nos disse que dias antes havia passado por ali um senhor muito velho que conhecia tudo de Walt Whitman e que também era ‘lá de baixo’, quer dizer, daquela estranha e misteriosa parte do mundo de onde nós tínhamos vindo. Pediu que assinássemos o livro de visitas. E então vi que antes de nós, apenas dois visitantes haviam assinado o livro naquele maio de 1983: uma mulher chamada Maria Kodama e um velho muito velho que deixou um garrancho disforme, onde se podia ler, com algum trabalho, o nome de Jorge Luís Borges.
Mas tudo isso foi há muito tempo, em outro lugar do mundo, quando éramos jovens, líamos Walt Whitman, e Soledad Bravo mostrava que o Caribe não tem fim.
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