quarta-feira, 26 de junho de 2013

RESOLUÇÃO CFP N° 001/99

RESOLUÇÃO CFP N° 001/99
DE 22 DE MARÇO DE 1999
"Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual"
O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais,
CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;
CONSIDERANDO que na prática profissional, independentemente da área em que esteja atuando, o psicólogo é freqüentemente interpelado por questões ligadas à sexualidade.
CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade;
CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão;
CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida sócio-culturalmente;
CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações;
RESOLVE:
Art. 1° - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.
Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. 
Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.
Art. 5° - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 6° - Revogam-se todas as disposições em contrário.
Brasília, 22 de março de 1999.
ANA MERCÊS BAHIA BOCK
Conselheira Presidente

terça-feira, 25 de junho de 2013

flecheira.libertária.300

pingos nos ‘is’ 
Anarquistas não são democratas convencionais. A democracia acolhe em seu “seio” o pluralismo que dá voz aos fascistas. A direita fascista manifesta-se com sua lei e ordem e o faz em nome da lei e da ordem do Estado. Ela subjuga, humilha, prende, tortura, mata. Nomeia as bruxas, criminosos, baderneiros da vez para sanar a sede sanguinária da população ordeira e covarde. Não me engano: a ação radical de esquerda nada tem a ver com a de direita. Da mesma maneira, um movimento auto-intitulado pacífico pode produzir desdobramentos muito mais sombrios e violentos sobre a vida de cada um. O fogo que alimenta liberdades não é o mesmo que apaga os rastros.
o alvo da polícia 
A sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) foi invadida pela polícia. Após o arrombamento da porta, recolheram jornais e panfletos sob a acusação de que a FAG mantém contato com anarquistas de outros países para trazer táticas de guerrilha para o Brasil. Repetiu-se a invasão de 2009 [http://www.nusol.org/agora/agendanota.php?idAgenda=310]. Em seguida, os policiais dirigiram-se para a casa de uma integrante da FAG para prendê-la, mas não a encontraram. Aquém e além das acusações, os anarquistas seguem como alvo do Estado, seja ele de exceção, seja ele de direitos. 
anarquizar 
Se antes o desejo da massa se cristalizava na figura de um condutor, hoje a própria dinâmica das convocações e a variedade das inserções eletrônicas dispensa, ao menos por enquanto, a figura do líder. Todos lideram todos, e encontram vazão rápida para os desejos fascistas. Basta olhar a variedade de lamúrias e reivindicações para constatar que aquilo que se busca é uma estratégia, algo que faça tudo convergir para o interesse de todos. O Estado é quem deve alinhavar esses interesses, pois segue como ponto final das variadas táticas dessa estratégia. Entretanto, a anarquia é a ruína do exercício da autoridade centralizada. A ausência de líderes é irrelevante diante da emergência dos mediadores. 
sobre liderança e convocações 
Confunde-se anarquia com baderna pelo simples fato das pessoas não conseguirem viver sem uma autoridade central constituída. No entanto, em dias que se fala de movimentos sem lideranças como um traço libertário é preciso diferenciar. Na sociedade de controle a horizontalidade das relações, que dinamiza a convocação democrática, não prescinde de um quadro moral e jurídico que faz e refaz as relações de mando e obediência, retroalimentando a cultura do castigo. A alegada horizontalidade renova o exercício da autoridade centralizada em torno de uma moralidade que unifica o que deve ser comum. Desse modo, todos 
trabalham para o Um. Será o feicibuque o novo líder? 
desafinado 
Após ampla divulgação na mídia e dos efeitos da ação policial, os protestos que irromperam com as reivindicações pela redução da tarifa foram sufocados pelo hino brasileiro. Do embate direto com as Tropas 
de Choque país afora, o fogo das manifestações abrandou-se rapidamente, efeito da voz do rebanho que repetia pelas avenidas ter orgulho de “ser brasileiro”. Quem decide sair às ruas para defender a pátria consente e deseja a polícia. Sempre há uma gente disposta a experimentar a desafinar no coro, seja ele qual for, e experimentar, no presente, uma vida livre. Em meio à marcha verde-e-amarela, um bando ecoou: “nacionalismo é o caralho, esse país é racista e sanguinário”. 
uma diferença vital 
A maioria dos manifestantes que tomaram as ruas do país nas últimas semanas se identificaram com o apartidarismo. Muitos, embrulhados em bandeiras do Brasil, passaram a queimar e a rasgar bandeiras partidárias. Não tiveram problema algum em se aliar a skinheads para bater em quem as carregava. Distante da extrema-direita, mas, também aproveitando a onda apartidária, crescem na internet reivindicações pela “democratização da democracia” e pela “reforma política”. Conectados e muito atentos à insatisfação geral, certos líderes políticos do bem aproveitam para ampliar sua rede rumo à obtenção do registro legal de novo partido. Surpreendente? De modo algum! A maioria desolada apartidária da ocasião não vai além; não questiona e não experimenta práticas que dispensam Estados, polícias e bandeiras. A diferença entre apartidarismo e antipartidarismo não se reduz à semântica. 
kit manifestação 
Nos últimos anos, a máscara de V passou a ser utilizada pela legião Anonymous enquanto forma de  manter-se anônimo em uma manifestação e de seguir os preceitos do personagem. A máscara popularizou-se em ataques hackers pela liberdade de informação e como acessório durante os protestos do Occupy Wall Street. O Anonymous não é um grupo, mas busca sua legitimidade ancorado em certa reivindicação reformista baseada no “combate à corrupção e garantia da liberdade de informação”, articulando ciberativismo com manifestações de ruas, sem líderes. Nos recentes atos pelas ruas de São Paulo, a famosa máscara da legião, somada à bandeira do Brasil, foi vendida como item de kit manifestação. Nada mais que o esperado para militantes timoratos e jovens frequentadores de micareta. Todavia, como já havia afirmado certo filósofo pré-socrático, debaixo do rosto da mascara existe a máscara do rosto. E é sempre bom lembrar que a máscara difundida amplamente pelos militantes estampa o rosto de um soldado. 

[FAG] Tomar as ruas por uma agenda contra a direita e o governismo. Avançar um programa de soluções populares!

Template Opinião anarquista
A larga noite das lutas de 17 de junho mudou a conjuntura brasileira e redimensionou os protestos sociais. A mobilização massiva de cerca de 1 milhão de manifestantes em dezenas de capitais e cidades do país e do mundo não acontecia em nossa história política desde o Fora Collor em 1992. Há um antes e um depois que põe na cena nacional um novo sujeito histórico coletivo que é catalisador de uma poderosa força social nas ruas.

Na gestação dessa nova correlação de forças a luta contra o aumento das tarifas do transporte coletivo é a expressão mais articulada de uma avalanche de sentimentos e demandas reprimidas que extrapolam os controles dominantes da sociedade brasileira. Há uma saturação do modelo capitalista aprofundado nos últimos 10 anos pela versão neo-desenvolvimentista dos governos do PT. Esse modelo prometeu um Brasil grande e moderno as custas de uma deterioração brutal do meio ambiente, dos espaços públicos e das condições de vida do povo trabalhador e da juventude.
O modelo dominante demandou um pacto social de classes que aumentou o poder dos grandes capitais sobre as cidades, os bens comuns e as fronteiras agrícolas. Todo o território foi redesenhado pelas representações do ideal produtivista de um lugar emergente no sistema mundial do poder e das riquezas. Mega-eventos, obras público-privadas de infra-estrutura, empresas do agronegócio estampam a ideologia do Brasil em crescimento. O neo-desenvolvimentismo se deve a uma variação do papel do Estado como fator de crescimento dos grandes capitais, integração relativa de setores populares e normatização social. Não quebra as estruturas dominantes do poder, da exploração e das desigualdades sociais, pelo contrário, a reformula e desata seus mecanismos através de uma ideologia sintonizada com certos desejos individuais de consumo e prosperidade.
A pretensa inclusão social por meio de bens particulares, associa a felicidade com o consumo, mas não é capaz de satisfazer demandas coletivas que formam a qualidade de vida nas cidades. A percepção de dias melhores pelo povo se esvai pelos efeitos insuportáveis de uma estrutura opressiva da vida social cotidiana. O desenvolvimento urbano acelera a desapropriação do direito dos setores populares sobre a cidade, restringe os espaços públicos e a mobilidade, deteriora a saúde e a educação, espalha o trabalho precário e flexível e negligencia o genocídio da juventude marginalizada das periferias. Para aqueles que não se integram em suas pautas de conduta e ao mundo da pobreza que não é assimilado por suas técnicas de poder, erige um Estado penal que abarrota o sistema penitenciário repleto de pobres e negros. Aos indesejados se desata uma agenda conservadora que reclama a redução da idade penal e a internação compulsória dos dependentes químicos.
Pelo interior do país este modelo é aplicado com força bruta sobre os direitos indígenas e quilombolas e contra uma reforma agrária e urbana que quebra os latifúndios revitalizados pelo agronegócio e a especulação imobiliária. Uma nova etapa da guerra de extermínio dos povos originários suprime a demarcação de terras e criminaliza a resistência, fazendo mortos e dizimando culturas.
O caráter nacional das lutas
Essa saturação do modo de vida ganhou expressão conflitiva pelas ruas de todo o país porque não se viu representada pelas instituições políticas burguesas ou pela voz da imprensa monopolista. No entanto, se num primeiro momento as mobilizações agitavam principalmente pautas relativas ao aumento das tarifas do transporte, temos visto serem agregadas um conjunto de bandeiras e reivindicações que dão contornos policlassistas às últimas mobilizações e em alguns casos, a exemplo de São Paulo, um caráter conservador e nacionalista e ufanista.
Nessa conjuntura de massificação das mobilizações, a grande mídia reorientou o seu discurso e se inicialmente atacava e criminalizava as manifestações, busca agora pautá-las fazendo um discurso que divide entre o que é o legítimo direito à manifestação e o que são atos de vandalismo realizados por uma minoria. Dessa forma, sai de cena o caráter classista e de esquerda das reivindicações por um transporte 100% público e entra em cena um discurso apolítico e muitas vezes de um nacionalismo extremamente ufanista, onde entram em cena gritos como o “jingle” da rede globo “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor!”.
Se a direita mais conservadora do país tenta agora surfar na onda que não só não criou, como fez de tudo para reprimir, logrando já alguns ganhos e com isso semeando uma certa confusão entre o campo popular e de esquerda, não podemos tirar uma conclusão precipitada de que essa direita “virou a mesa”. O jogo esta em aberto e cabe ao conjunto da esquerda classista deste país redobrar os esforços no sentido de capitalizarmos ao máximo o sentimento de indignação que hoje varre o país. Sem sectarismos e disputas mesquinhas que levam a calúnia como meio de autoconstrução, urge à esquerda a responsabilidade de cerrar um punho forte e fazer frente ao inimigo.
Se nos precipitarmos afirmando que a direita “virou o jogo” e/ou ao mesmo tempo não formos capaz de superar vícios sectários e, em unidade na luta, incidir com uma pauta classista nesse cenário estaremos, desgraçadamente, entregando o controle das ruas à direita mais reacionária do país, que busca desatar um “carnaval da reação”, agitando sua pauta que inclui desde a genérica e oportunista “luta contra a corrupção” (como se este setor não estivesse inserido na corrupção estrutural que há no país) à redução da maioridade penal,  luta contra as “bolsas miséria” dentre outras reivindicações que agitam seus instrumentos de luta ideológica, os grandes oligopólios da mídia.
Os limites das ruas e a necessidade de organização desde baixo
A dimensão tomada pelos protestos, aliado ao trabalho que a grande mídia e setores da direita tem feito para introduzir suas pautas nas mobilizações, mostra os limites que essa modalidade de luta possui quando não há organização de base que lhe dê sustentação e retaguarda em períodos de refluxo.
Os setores que vem participando dos protestos são, em sua maioria, de uma geração jovem que não possui as mesmas referências de organização e de luta daquela geração do final dos anos 80 e inicio dos anos 90 que lutou pelo fim da ditadura civil-militar e posteriormente contra o neoliberalismo  forjando instrumentos de organização como o PT, a CUT e o MST, além da reorganização da UNE. Trata-se de uma geração que possui novos referentes, muito vinculado às redes sociais da internet que acaba sendo o lugar em que despeja as ideias, as propostas, as críticas e as construções. Nesse contexto, as mobilizações de rua, quando muito massivas, demonstram limitações que em nossa opinião precisam ser superadas.
Para nós, anarquistas da FAG, se a força das ruas e da ação direta é decisiva ao expressar o poder dos oprimidos, ela tampouco é suficiente se esses mesmos oprimidos não possuem instrumentos de luta e de organização em que as pautas expressas nas ruas possam ser discutidas, elaboradas e coordenadas em outros espaços de organização. Sindicatos, Entidades Estudantis e Associações de Moradores são exemplos, mas coletivos por local de trabalho, comitês de discussão sobre temas que nos tocam como transporte, saúde e educação em bairros, escolas, etc. são outros exemplos de organização que devem ser implementadas para que as reivindicações que sentimos cotidianamente sejam discutidas, acordadas e lançadas de forma contundente nas ruas com nossas mobilizações.
Sem esses espaços de base, nos prendemos ao vai e vem da conjuntura, daqueles grupos organizados que possuem interesses bem definidos e que a todo momento tentarão pautar as mobilizações e não construiremos um projeto próprio, enquanto oprimidos e que seja capaz de fazer frente às classes dominantes e seus instrumentos que hoje tentam cooptar as mobilizações que, com muita força, organização e dedicação conseguimos desatar.
Abrir a caixa preta da patronal do transporte coletivo! Por um modelo 100% público!
Democratização da mídia!
Contra os gastos da Copa. Em defesa de saúde e educação pública e de qualidade. Protesto não é crime!
Contra o massacre da juventude pobre e negra das periferias!
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Polícia Federal invade a sede da Federação Anarquista Gaúcha – FAG

Na tarde desta quinta feira, 20/06/2013, entre 12 a 15 agentes a paisana, em blazers e utilizando coletes pretos, dizendo ser da Polícia Federal arrombaram e invadiram o Ateneu Batalha da Várzea, espaço político social da Federação Anarquista Gaúcha localizado na Travessa dos Venezianos, e levaram diversos de nossos materiais. Os agentes não apresentaram mandato de busca e apreensão aos vizinhos que buscaram se informar do que se passava. Além disso, agentes, também a paisana, buscaram prender uma companheira em sua casa nessa manhã.
A FAG é uma organização política com 18 anos de existência pública. Ao longo destes anos nunca nos escondemos, sempre mantivemos nossos espaços públicos onde realizamos inúmeras atividades de ordem política e cultural assim como nossa atuação no campo popular e da esquerda gaúcha e nacional. O Ateneu é um espaço onde ao longo de 03 anos temos dado sequência a essas atividades, mantendo uma biblioteca pública e realizando periódicas atividades.
Recordamos também que em Outubro de 2009 tivemos nossa antiga sede, à época localizada na Lopo Gonçalves, invadida pela Polícia Civil por ordens da então governadora Yeda Crusius em função de um cartaz onde a responsabilizávamos, e seguimos responsabilizando, pelo assassinato do militante do MST Elthon Brum em São Gabriel. Na ocasião tivemos todos os materiais da sede apreendidos, levaram inclusive nossas lixeiras.
Desta vez, após inúmeros factóides publicados na RBS, acusando-nos de sociopatas e fantasiando que estaríamos tramando em conjunto com militantes de outros países o emprego de táticas de guerrilha na cidade, com o nítido motivo de semear pânico e instigar a repressão a nossa militância.
Assim como as provocações e factóides plantados pela imprensa reacionária, a repressão empregada pelos aparelhos de repressão do Estado burguês não é nenhuma novidade à nós. Desde nossa origem enquanto corrente política temos sido alvo da sanha repressiva dos patrões em conluio com o Estado. Há mais de um século temos resistido a todas essas investidas covardes, com o punho e a cabeça erguida e não será este episódio que irá afrouxar nossa combativa militância.
Responsabilizamos, por fim, os governos municipal, estadual e federal por mais este ataque covarde a nossa organização. Não nos intimidaremos e seguiremos empregando todos nossos esforços na construção de um povo forte, de um campo popular combativo que organize os oprimidos deste país e suas legítimas demandas.
Não passarão!
Abaixo a repressão aos que lutam!
Federação Anarquista Gaúcha – FAG
20 de Junho de 2013

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segunda-feira, 24 de junho de 2013

URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS EM SAÚDE: PERSPECTIVAS DE PROFISSIONAIS E USUÁRIOS.

Giglio-Jacquemot A. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 144 pp. ISBN: 85-7541-059-8 
O importante e instigante livro da antropóloga Armelle Giglio-Jacquemot, problematiza as noções de urgência e emergência em saúde a partir das perspectivas e dos usos que delas fazem os profissionais e os usuários da rede pública de saúde. Por meio de uma pesquisa etnográfica, realizada no período de setembro de 1997 a janeiro de 1999 na Cidade de Marília, São Paulo, Brasil, elege como campo de análise um Hospital Universitário ­ Pronto Socorro do Hospital das Clínicas ­ e a central de chamadas com sistema móvel 192, focando os modos como são realizadas as triagens das urgências e emergências pelos diferentes atores deste processo, desde o vigilante, porteiro, recepcionista, atendente das centrais, motoristas até a equipe de saúde propriamente dita e os usuários.
Giglio-Jacquemot vivencia o cotidiano desses serviços através da observação participante, e compartilha com o leitor os processos que a põem em contato com a polivocidade e heterogeneidade que estes conceitos ganham nos processos cotidianos de produção de saúde; em que a vida urge e requer mobilização coletiva. Nos percursos de construção de suas análises, a autora utiliza dois instrumentos fundamentais e muito pouco valorizados nos processos de produção de saúde: a escuta e a produção de vínculo como modo de acolher o outro em seus pedidos e necessidades. Estes instrumentos, por um lado, colocam em cena os "atores invisíveis" que participam desse processo e possibilitam, ou não, o longo caminho até o atendimento, são eles: vigilantes, recepcionistas, atendentes e a rede social do usuário e, por outro lado, fazem ver o modo como os diferentes atores gestam seu trabalho.
A autora, em seu mergulho no campo pesquisado, puxa as várias linhas que tecem a dura e penosa realidade das emergências nos serviços públicos de saúde no Brasil, na qual esses diferentes atores se entrelaçam, mesmo que estes sequer a considerem ou percebam. Uma delas aponta para o longo percurso enfrentado pelos usuários, e sua rede social, nas múltiplas triagens que passam para ter validado seus pedidos e necessidades de acesso ao atendimento. Este percurso se caracteriza, seja pela necessidade de ter de se enquadrar no que é ambivalentemente entendido como urgência/emergência com base no discurso biomédico e nos heterogêneos critérios dos diferentes profissionais envolvidos, seja no enfrentamento de preconceitos de classe social, escolha sexual e de modos de ser. A questão que a pesquisadora "caricaturalmente" nos convoca a fazer é: como é validada uma urgência/emergência que não chega ao pronto-socorro do "jeito certo", ou seja, "em viatura do corpo de bombeiros, deitado em uma maca, com fratura exposta e/ou artéria babando?".
Um outro fio de análise puxado pela autora aponta para os modos como os efetivos triadores do sistema, profissionais não-médicos, constroem seus critérios de acesso e urgência dos usuários ao serviço de saúde para além do seu trabalho prescrito (encargo oficial da função). Na observação do trabalho real (atividade realizada), esses profissionais são os que mais interagem com os usuários, se mobilizam frente à dor, ficam atentos às expressões e comportamentos dos usuários e se sentem responsáveis em identificar os sinais de agravo dos que esperam. Em contraste com os profissionais de saúde, boa parte desses, como destaca Giglio-Jacquemot, não desconfiam dos usuários pois "acreditam em seus comportamentos e falas", o que muitas vezes lhes confere os qualificativos de "muito sentimentais", "molengas", "inexperientes" ou "ignorantes e desqualificados" por não "atuarem de maneira certa e eficiente" na triagem. Mas isto é função deles? Eles estão preparados para essa função? Os critérios que utilizam para qualificar a necessidade de rapidez nos atendimentos se apóiam em múltiplas determinações, desde as mais próximas dos critérios biomédicos ­ sangramento, fratura exposta ­ até no entendimento de que quase tudo que chega ao Pronto Socorro tem de ser atendido, tem uma urgência. Estas múltiplas determinações obedecem a graus de hierarquização construídos pela experiência e tempo no serviço, repassados pelos mais antigos aos mais novos, quais sejam: a observação do modo como chegam os usuários ao pronto socorro ­ andando, de ambulância, em carro do corpo de bombeiros ­ do grau de nervosismo/aflição identificado no pedido, no "poder de mobilização" do usuário e sua rede social, tudo isto entremeado por identificações de classe, empatia e preconceitos frente ao que qualificam como "doença de verdade" ou "escolhas", estas últimas referenciadas aos "bêbados", pacientes psiquiátricos e drogados, justificando, muitas das vezes, o descaso e mal-tratos. O que se deixa entrever neste processo é a responsabilidade atribuída oficiosamente a esses profissionais que, apesar de estarem muitas vezes invisibilizados neste processo, são os efetivos triadores do sistema e operam em seu fazer cotidiano a construção de vínculo e escuta aberta com os usuários, o que para uma boa parte dos profissionais de saúde não se constitui como parte de suas terapêuticas. Entretanto, para tal não recebem qualificação teórico-técnica específica e têm de resolver suas angústias e dúvidas praticamente sozinhos.
Nos discursos-práticas da equipe médica, Gilgio-Jacquemot observa, recorrentemente, a importância dada à distinção entre urgência e emergência e a alusão à "ignorância da população quanto à identificação do que seria uma urgência ou uma emergência", aliada à crença de que esta diferenciação se refere a critérios estritamente objetivos que garantem a assertiva do atendimento às "urgências verdadeiras", e que nesta diferenciação não necessitam ou não são utilizados processos ditos "extraclínicos". Entretanto, nas falas da equipe aparecem a imprecisão dessa diferenciação, o não consenso e o uso dos critérios ditos "subjetivos" ou "extraclínicos" em suas tomadas de decisão ­ adulto ou criança? Tem leitos ou não tem? Como o paciente chegou? Como foi a espera por atendimento? De onde vem? Está com muita dor? Esta pessoa me lembra alguém querido, ... ­ que eles insistem em negar em nome da objetividade do seu fazer ancorada numa lógica pretensamente circunscrita à queixa-conduta, em que a vida e as histórias dos sujeitos ficam de fora. A desconfiança no usuário é também uma outra característica observada por Giglio-Jacquemot nas falas dos médicos e enfermeiras, os usuários são "apresentados e considerados 'ignorantes, mentirosos, atores, fracos, ... espertinhos', que tentam enganar os médicos ou se aproveitar do pronto-socorro para satisfazer necessidades não médicas".
Ao se interrogar sobre o que mobiliza a equipe médica do pronto-socorro, a autora descreve como pontos principais levantados a equivalência "emergência = casos traumáticos = fraturas expostas = artéria babando = representações biomédicas da urgência/emergência". Refere-se também ao descrédito da equipe a tudo que é considerado psicológico, tanto o sofrimento físico quanto moral, fazendo notar a naturalização da não produção de vínculo e conseqüente desresponsabilização na integralidade do processo de produção de saúde.
Um dos pontos importantes que a pesquisa da autora nos aponta é que, apesar das diferentes perspectivas que embasam as triagens do que seria urgência e emergência para os diferentes profissionais envolvidos, médicos e não-médicos, elas convergem em alguns pontos, são eles: priorização dos aspectos vitais dos pontos de vista biológicos e físicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais constitutivos dos processos vitais, a comunhão de preconceitos e valores sociais no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como "essencialmente não urgentes" (os alcoólatras, drogados e pacientes psiquiátricos), a presteza maior no atendimento a usuários de classe social e nível cultural mais abastados, na importância da identificação dos que fingem ou estão dizendo a verdade sobre suas urgências e no consenso de que se a dor ou o problema é antigo, "quem esperou tanto para acessar o serviço pode esperar mais".
Tudo isto mostra uma radical diferença e desencontro com o que pensam os usuários, pois estes, como aponta a autora, entendem a questão da saúde indissociada dos aspectos globalizantes da vida, avaliam que o fato de uma dor ou mal-estar ser persistente indica a urgência/emergência de sua ida ao Pronto Socorro, mostram em suas estratégias de acesso ao sistema que sabem os gargalos do mesmo, o que faz com que muitas vezes procurem o pronto socorro como porta de entrada no sistema de saúde e atuem sintomas reconhecidos como urgentes pelos triadores para serem mais rapidamente atendidos, ou mesmo façam uso do serviço para questões reconhecidas como não-urgentes como garantia de que lá, apesar da espera, vão ter seus problemas resolvidos. O que estes desencontros entre as percepções e as demandas dos profissionais de saúde e usuários têm a nos dizer?
Giglio-Jacquemot, ao fazer este estudo etnográfico por dentro de um serviço público de saúde, nos dá indícios do funcionamento da saúde pública no Brasil, pois sabemos que a emergência funciona como um termômetro do funcionamento do sistema de saúde e suas falhas. É na porta das emergências que vão aparecer a falência e o sucateamento da atenção primária em saúde, a não acessibilidade universal, a não eqüidade, a miséria e a agudização da desassistência da população, ou seja, o sucateamento da saúde pública pelas diferentes instâncias de governo e o descaso com a vida da população usuária do SUS.
Trata-se então de nos perguntarmos, todos os envolvidos nos processos de produção de saúde, sobre as nossas ignorâncias. O que ignoramos? O que queremos desconhecer? O que estamos botando para fora de nosso fazer em saúde cotidiano que insiste e persiste em entrar? O que vem embrutecendo e fechando nossa escuta a tudo que acreditamos escapar dos pressupostos biomédicos nos quais nos escudamos? Quem são nossos verdadeiros inimigos no restabelecimento do prazer e da ética no trabalho em saúde? No que precisamos juntos interferir em prol da produção de processos de saúde dignificadores da vida de todos e de qualquer um?
Penso que, dentre muitos outros enfrentamentos, alguns se impõem como urgentes, são eles: a fragmentação dos processos de trabalho e da relação entre os diferentes profissionais, a precarização das relações de trabalho e sucateamento dos serviços públicos de saúde, a burocratização e verticalização do sistema público de saúde ancorada numa lógica de exclusão, o baixo investimento na qualificação dos trabalhadores, especialmente no que se refere à gestão participativa e ao trabalho em equipe, o desrespeito aos direitos dos usuários, o modelo de atenção centrado na relação queixa-conduta, o despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção e gestão, a formação dos profissionais de saúde distante do debate e da formulação da política pública de saúde, e o controle e participação social frágeis dos processos de atenção e gestão do SUS. Como vemos, estes são alguns dos inimigos que não nos despotencializam de fora do processo, mas, ao contrário disto, se inserem em nossos modos de estar nos verbos da vida ­ trabalhar, sentir, pensar, estar com o outro, viver, produzir saúde, são eles, também, que temos de combater coletivamente no cotidiano do nosso fazer em saúde. E sobre grande parte deles temos governabilidade, pois a construção de vínculos é terapêutica para os usuários e para os profissionais de saúde e a interação supõe troca de saberes (incluindo os dos pacientes e familiares), diálogo entre os profissionais, modos de trabalhar em equipe produzindo uma grupalidade que sustente construções coletivas, que suponha mudança pelos encontros entre seus componentes.
Indubitavelmente, o trabalho de Giglio-Jacquemot é um importante dispositivo de problematização desses processos, seja nas práticas dos profissionais envolvidos na produção de saúde, seja nos processos de formação dos profissionais, pois interroga concepções tidas como objetivamente verdadeiras e coloca em cena a dimensão subjetiva nesses processos. Ao interrogar a cisão clássica e insustentável entre objetividade x subjetividade, sua pesquisa nos auxilia no entendimento radical e potencialmente revolucionário de que em nossas escolhas estão sempre envolvidos processos éticos e de produção de subjetividade. O convite que Giglio-Jacquemot nos faz em seu livro me faz citar um conterrâneo seu, o filósofo francês Michel Foucault, quando nos fala: "existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e refletir1 (p. 13). Este é o convite!!!


1. Foucault M. História da sexualidade II ­ o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal; 1994.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A arte de mostrar o invisível

POR 
JOSÉ GERALDO COUTO

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Concebido por Leon Cakoff, Mundo Invisível coloca cineastas como Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Beto Brant em diálogo sobre (in)visibilidade contemporânea
Por José Gerado Couto*, do blog IMS
Não é toda hora que o cinéfilo pode ver, numa única sessão, um pouco do cinema de Wim Wenders, Theo Angelopoulos, Manoel de Oliveira, Jerzy Stuhr, Beto Brant e um punhado de outros realizadores de primeira linha. É isso, nada menos, o que nos oferece o longa Mundo invisível com seus onze segmentos, assinados por doze diretores das mais variadas nacionalidades.
O projeto foi concebido por Leon Cakoff, criador e diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, morto em 2011, e Renata de Almeida, sua parceira na mostra e na vida, nos moldes de outro filme coletivo produzido pela dupla em 2004, Bem-vindo a São Paulo.
Se o longa de 2004 trazia as marcas do improviso e de uma certa precariedade, Mundo invisível, talvez pela parceria com a produtora Gullane, se apresenta como uma obra bem mais madura e consistente, a despeito da deliberada heterogeneidade de enfoques, estilos e linguagens de suas partes, mais ou menos articuladas pelo tema geral da (in)visibilidade no mundo urbano contemporâneo.
Concisão de mestres
A partir dessa ideia um tanto vaga, cada cineasta seguiu um caminho particular. Com exceção do último segmento, dirigido por Atom Egoyan e escrito e protagonizado por Leon Cakoff, que se passa em Yerevan, capital da Armênia, todos os outros são ambientados em São Paulo.
Alguns são curtíssimos, econômicos, quase minimalistas, explorando a concentração temporal do curta-metragem. O caso mais extremo é o de Jerzy Stuhr, que se limita a filmar o público de uma sessão de seu filme O tempo de amanhã, na Mostra Internacional de São Paulo de 2003. A imagem granulada dos rostos banhados pela luz da tela, sob o som dos diálogos em polonês (com legendas em português), cria uma terceira dimensão, que é o território mágico do cinema.
Outro episódio enxuto é o de Manoel de Oliveira, no qual dois amigos (Leon Cakoff e Ricardo Trêpa, neto do cineasta português) encontram-se casualmente na avenida Paulista e, para conversar sem ser interrompidos pelos toques de seus respectivos celulares, resolvem falar um com o outro… pelo celular. A força do filme vem do contraste entre essa situação prosaica e a gravidade dos assuntos abordados na conversa: a crise da ética no mundo, a ânsia pelo poder que atropela tudo, propostas para salvar o planeta. Há apenas três planos no filme: a avenida vista do alto de um terraço do Conjunto Nacional; os dois amigos conversando em plano médio, um de frente para o outro; os mesmos dois vistos a partir do outro lado da avenida, sem que ouçamos suas falas. Uma lição de limpidez e capacidade de síntese.
Atores invisíveis
No outro extremo há segmentos bem mais longos, como o de Maria de Medeiros, sobre um camareiro de hotel que presencia as histórias cômicas ou trágicas de vários hóspedes mantendo-se praticamente invisível a eles, e o de Laís Bodanzky, uma discussão sobre o conceito de “ator invisível” criado pelo diretor e ator japonês Yoshi Oïda. Os dois são parcialmente frustrados. O de Maria de Medeiros, pelo caráter um tanto ingênuo da “mensagem” e pela encenação convencional. O de Laís, pela redundância dos depoimentos (de dois atores e de uma monja budista, além do próprio Oïda), ainda que cada um deles, individualmente, possa ser interessante.
No registro documental, Wim Wenders foi mais feliz ao retratar crianças com grave deficiência visual (vale dizer, quase cegas) tratadas num departamento especial da Santa Casa de São Paulo. A delicadeza e a precisão do olhar de Wenders e o encanto natural das crianças fazem a força do filme. O único senão fica por conta da música onipresente ao piano (de André Abujamra) que, apesar de bela, redunda com as imagens, “perfumando a flor”, como diria João Cabral de Melo Neto.
O segmento mais estranho e ousado – e que parece ter menos a ver com o tema geral proposto – é também um dos melhores. Trata-se de Kreuko, de Beto Brant e Cisco Vasques, dividido em duas partes bem distintas. Na primeira, um homem filmado em close (Mauricio Paroni de Castro, também autor do roteiro), com o rosto parcialmente mergulhado na sombra, diz, com uma fala alucinada e olhos esbugalhados que fazem lembrar Peter Lorre, que optou por enlouquecer durante uma quimioterapia, e passa a narrar cenas de peças de Shakespeare em versões pervertidas. Na segunda parte encenam-se, mais ou menos, essas cenas, em cenários teatrais, com iluminação expressionista e mise-en-scène de cinema mudo. Há algo de David Lynch nesse exercício, e o efeito é tão poderoso que o espectador demora um pouco a identificar Sônia Braga e José Wilker entre os atores.
Testamento de Cakoff
Por fim (já que é impossível falar de todos), cabem algumas palavras sobre o segmento que encerra o longa, Yerevan, o visível, dirigido pelo armênio-canadense Atom Egoyan. Nele, Leon Cakoff, também de origem armênia, aparece sentado numa praça central de Yerevan segurando a foto de um homem que ele diz ser seu avô, executado pelos turcos há quase cem anos.
"Mundo invisível"
Leon cumpre ali uma promessa feita à mãe, de procurar naquela cidade alguém que tenha conhecido o pai dela. A situação dá origem a uma colagem de filmes e fotos que documentam o genocídio dos armênios pelos turcos otomanos e vários momentos da luta armênia pela autonomia nacional. A imbricação entre biografia e história nem sempre é convincente, mas é impossível evitar a comoção ao ouvir Cakoff pronunciar, no final do filme, palavras que poderiam resumir toda uma vida (a sua) dedicada ao cinema: “Filmes mudos, greves silenciosas, genocídio esquecido: qualquer coisa para afirmar a minha crença no poder das imagens”.

Questão de Polícia ou Questão Urbana?

POR 
LUCIO FLAVIO ALMEIDA

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Ou os que protestam são vândalos, ou o sistema político tornou-se incapaz de canalizar demandas que ninguém pode desqualificar
Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
Um clássico do anedotário político brasileiro é o modo como o governador de Minas Gerais, Milton Campos, insuspeitíssimo de ser um radical de esquerda, tratou uma greve de ferroviários no município de Conselheiro Lafayete. Os trabalhadores reivindicavam pagamento de salários atrasados e o secretário de segurança sugeria mandar a polícia. A reação de Milton Campos foi desconcertante: “Não seria melhor enviar um trem pagador?”
Em pleno 2013, a sociedade brasileira é muito mais complexa, inclusive muito mais urbanizada. Porém, diante de manifestações coletivas embasadas em candentes questões urbanas, muitos preferem enviar a tropas de choque.
A política de transportes implementada pelo Estado brasileiro desde a segunda metade dos anos 50, com prioridade quase absoluta ao setor rodoviário, especialmente o automóvel particular, chegou ao colapso. Os carros não andam, o ar fica irrespirável, o gasto de combustíveis é desmesurado. E o transporte coletivo é escasso e caro para os milhões que o utilizam.
É mais cômodo queixar-se do congestionamento ou prometer resolvê-los com medidas de curto prazo do que encarar o problema de frente. Faz muito tempo que o então governador Orestes Quércia prometeu um trem-bala que para o trecho São Paulo – Araraquara. Nada se fez e nem precisava tanto. Que tal começar por uma rede de trens (sem bala) e metrô que possibilite melhor acesso aos aeroportos de Congonhas, Cumbica e Viracopos? Por que isto é bom para Paris ou Nova York e não serve para o Rio ou Salvador?
A inexistência de recursos não é tão óbvia assim. Estes não faltaram para a construção em tempo recorde de infraestrutura (estádios inclusos) para as copas das Confederações e do Mundo. Adoro futebol, mas trocaria este espetáculo circense em dose dupla por um bom sistema de transporte coletivo. As manifestações que ocorrem nas grandes cidades brasileiras prestam uma imensa contribuição ao desnudarem esta complexa teia de problemas a incluir na agenda política brasileira. Por falar em recursos, cerca de 45% do que Estado brasileiro arrecadou em 2011 destinou-se à rolagem da dívida pública, o que faz a delícia dos rentistas. E esta dívida nunca foi auditada. Quem são os vândalos?
Estimulou-se o uso de notebooks, smartphones, tablets, sem os quais não vale a pena viver. E não se previu que isto ajudaria muitos jovens a se porem em movimento não somente para comprar o game da moda, mas para marcarem pontos de encontro, trajetos de manifestação, formas de enfrentamento com a polícia? Basta ver o que acontece no mundo lá fora.
Se nada se faz para resolver graves aspectos da questão urbana no Brasil e criminalizamos os que, coletivamente, se envolvem com isto, o problema é sério: ou os que ocupam a rua são vândalos ou o sistema político tornou-se incapaz de canalizar demandas que, em sã consciência, ninguém pode desqualificar.
A primeira hipótese é inverossímil. A segunda preocupa.

O preço do progresso e os dois Brasis

POR 
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

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Manifestantes interrompem obra, em protesto contra a usina de Belo Monte
Protestos foram enorme surpresa internacional. Para entendê-los, deve-se examinar as agendas interrompidas no governo Dilma – e a que se impôs
Por Boaventura de Sousa Santos
Com a eleição da Presidente Dilma Roussef, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das “economias emergentes”, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para diretor-geral da Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.
Beneficiando de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país.
Enquanto perante as recentes manifestações na Turquia foi imediata a leitura sobre as “duas Turquias”, no caso do Brasil foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”. Mas ela aí está aos olhos de todos. A dificuldade em reconhecê-la reside na própria natureza do “outro Brasil”, um Brasil furtivo a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades. A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites políticas restritas e racistas, uma narrativa que remonta à colônia e se tem reproduzido sob formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa que remonta aos últimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas especialmente na saúde e educação aos diferentes níveis da ação estatal (municipal, estadual e federal). A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo Presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena.
O que aconteceu desde que a Presidente Dilma assumiu funções foi a desaceleração ou mesmo estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as gerações mais novas. As políticas de inclusão social esgotaram-se e deixaram de corresponder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral. O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como “obstáculos ao desenvolvimento”.
A Presidente Dilma foi o termômetro desta mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de indisfarçável hostilidade aos movimentos sociais e aos povos indígenas, uma mudança drástica em relação ao seu antecessor. Lutou contra a corrupção, mas deixou para os parceiros políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico e promove uma proposta legislativa conhecida como “cura gay”. As manifestações revelam que, longe de ter sido o país que acordou, foi a Presidente quem acordou. Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a Presidente Dilma tornou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. No mesmo sentido, os prefeitos de nove capitais já decidiram baixar o preço dos transportes. É apenas um começo. Para ele ser consistente é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram. Se assim for, o Brasil estará a mostrar ao mundo que só merece a pena pagar o preço do progresso aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza criada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso.

Nota Pública do Conselho Federal de Psicologia sobre PL do Ato Médico

CFP LANÇA CAMPANHA #VetaDilma E REAGE CONTRA APROVAÇÃO DO ATO MÉDICO

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Na calada da noite de terça-feira (18/6), o Senado Federal antecipou a ordem do dia e aplicou um duro golpe nos profissionais de saúde com a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 268/2002, que dispõe sobre o exercício da Medicina, conhecido como Ato Médico. O PL foi colocado na pauta pelo presidente da Casa, Renan Calheiros, e pelo senador Romero Jucá, fruto de mais um acordo fechado com apoio da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann.
O orgulho da classe médica ao comemorar a aprovação do PL dentro do Plenário do Senado fere não somente a Psicologia, mas todo o paradigma de saúde que o Brasil conquistou na construção do Sistema Único de Saúde (SUS), fortalecendo a ideia de que a saúde é uma construção multiprofissional, que envolve várias atividades.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) se manifesta, de maneira ainda mais incisiva, por meio da campanha lançada hoje, para que a presidente Dilma Rousseff vete o artigo que atribui ao médico a função do diagnóstico nosológico e da prescrição terapêutica, áreas nas quais não possui habilitação. A autarquia vai dispor de toda sua capacidade de articulação com o governo, entidades ligadas ao tema e sociedade civil para que esse projeto não siga adiante: O Ato Médico Ata-Nos #VetaDilma VETA!
Desde o início de sua tramitação, o CFP e diversas categorias da saúde pública no Brasil se mobilizaram pela não aprovação da matéria, que interfere no exercício de outras profissões da saúde. As ações mais recentes incluem um pedido, realizado em 13 de junho pelo Fórum dos Conselhos das Profissões da Área da Saúde (FCPAS), em reunião com o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, sobre a reforma do artigo 4º – o qual estabelece que as competências privativas da atividade médica sejam limitadas à sua área de atuação, a fim de evitar a insegurança jurídica para as demais atividades de saúde.
É importante frisar que não há posicionamento contrário à regulamentação da Medicina. Os médicos podem e devem trabalhar para que a sociedade reconheça as competências específicas destes profissionais. No entanto, isto não pode ser feito em detrimento de qualquer outra profissão na área da saúde.
O PL pretende tornar privativo da classe médica todos os procedimentos de diagnóstico sobre doenças, indicação de tratamento e a realização de procedimentos invasivos e, ainda, a possibilidade de atestar as condições de saúde, desconsiderando a trajetória das demais profissões que constituem o cenário da saúde pública na ótica do SUS.
Igualmente, torna privativa do médico a chefia de serviços, indicando uma hierarquização que não corresponde aos princípios do trabalho multiprofissional que precisa ser construído na saúde. O PL coloca em evidência o interesse corporativista por reserva de mercado. Haja vista que teve origem na Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.627/2001, cujo texto elucida o tema.
O Ato Médico, além de prejudicar a autonomia de cada profissão, impede a organização de especialidades multiprofissionais em saúde. Milhões de usuários sabem os benefícios do SUS e reconhecem o valor de todos os profissionais no cotidiano das unidades de saúde. Hoje, uma série de políticas públicas de saúde, como Saúde Mental, Atenção Básica e outras oferecidas à população, contam com profissionais de várias áreas trabalhando de forma integrada e articulada. As equipes multidisciplinares definem em conjunto o diagnóstico e o tratamento, somando suas diversas visões de saúde e de doença para chegar à melhor intervenção. Os usuários não podem ser penalizados desta forma, perdendo esta possibilidade.
Desde que o Projeto de Lei do Ato Médico foi apresentado pela primeira vez no Senado Federal, em 2002, o CFP luta e se mobiliza para que o dispositivo não seja aprovado da forma como está, uma vez que restringe a atuação dos outros profissionais da área e cria uma hierarquização em detrimento da multidisciplinaridade consagrada pelo SUS.
Ao longo deste período, em conjunto com os Conselhos Regionais e outros conselhos da saúde, participou de inúmeras manifestações. Esse cenário constitui uma atuação histórica, destacada na defesa de temas de interesse coletivo e não corporativistas na área da saúde, como é o caso do PL do Ato Médico.
O CFP sempre esteve à frente das manifestações contra a aprovação desse Projeto de Lei, e permanecerá. Já reuniu milhares de pessoas em atos realizados, em conjunto com outras profissões da saúde, em diversas cidades e capitais brasileiras, promovidos constantemente desde 2004. As entidades da Psicologia continuarão em vigília e mobilizado os diversos atores para que o PL do Ato Médico seja vetado pela líder do Poder Executivo.
Vamos apelar para que a sanção da presidente Dilma Rousseff priorize o consenso das profissões da área da saúde, garantindo a regulamentação da medicina, a autonomia das demais profissões de saúde e, principalmente, a existência do SUS.
 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA

terça-feira, 18 de junho de 2013

flecheira.libertária.299

vai passar... 
As manifestações de rua animadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), e logo engrossada por uma multiplicidade de gentes e de forças, alvo de incontáveis comentários, exercícios opinativos e clamores por adesão acendem uma chama que pode se desdobrar em interessantes mudanças: as ruas da cidade não podem servir apenas aos carros e a polícia não é dona e/ou sua zeladora. Talvez algo esteja para acontecer contra os gemidos e alaridos por vida segura e ordeira: para além dos 20 centavos. Quem consegue ficar na cidade sem viver contrariado? 
violência 
Os murmúrios que ressoam a legitimidade das reivindicações e se queixam da violência e do vandalismo não são exclusivos de prefeitos, governadores e chefes de polícia. A legitimidade também é bradada entre os argumentos de vários integrantes do MPL, e de fato, nem todos que participam, participaram e participarão das manifestações são favoráveis às depredações. É preciso olhar para os alvos atingidos e abandonar a saída fácil que consiste em identificar certos jovens como arruaceiros infiltrados. Quebraram, especialmente, na terça-feira (11/6), entradas de bancos, vitrines shopping centers e postos policiais. Quebraram o que lhes é, era e será insuportável e ponto. Quebraram a manobra jornalística que pretendia confundir pacifismo com passividade. 
polícia é violência 
O movimento que organizou os atos contra o aumento da passagem de ônibus reivindica o direito à cidade, ao ir e vir liberal e pede, incansavelmente, por mais Estado. Este mix foi capaz de cutucar as posições mais conservadoras babando e berrando: vândalos, baderneiros, vagabundos. E exigiram que a polícia exercitasse seu dever de descer o cacete para protegê-las. Assim, a polícia se alimentou mais uma vez dos "motivos justos” para defender o patrimônio público, principalmente o privado, e defender a sociedade. Os tolinhos achavam e acham que o legítimo Estado Democrático de Direito dispensa a polícia e que só existem 
canalhas com fardas? 
classe média 
Certos intelectuais dizem que a classe média é quase nada. Os moderados e “neutros” comentaristas midiáticos salpicam suas “análises” sobre o movimento dos jovens nas ruas delatando-os como inconsequentes e radicais classes médias. A classe média serve para filosofar, pedir para bater e apanhar. No capitalismo democrático ou não, ela é a grande escudeira da burguesia e a utopia confortável dos miseráveis. Em suma, tenta-se desqualificar as manifestações atuais dizendo que se trata de um movimento animado por jovens de classe média que nunca pegaram ônibus. Comentários desse tipo, e a própria diversidade na composição do movimento, explicitam a mediana visão teórica e política dessa gente esclarecida e “neutra”. Por ora, o MPL insinuou a purulência nos partidos, sindicatos, intelectuais orgânicos, representações, lideranças, neoliberalismo, e no etc e tal. Quem esteve nas manifestações lá viu quase tudo que mostra a falência de antigas e repaginadas crenças políticas. O que está por vir são respostas ainda não formuladas. 
cadê? 
Antes do estouro em torno das manifestações contra o aumento da passagem, a Av. Paulista havia se tornado passarela de enfadonhas, morosas e ordeiras marchas. Enredados em financiamentos de ONGs internacionais, flertes e relações com partidos políticos do vira-vira governo, e escorados em lutas legalistas por direitos e punições, eles pouparam suas vidinhas e seus corpinhos. Suas omissões disseram quanto são negociantes de bandeiras específicas e reféns de suas particularidades. Escancararam seus limpinhos currais eleitorais de minorias numéricas e atestaram depender da grana que alimenta sua luta.minorias Mesmo reunindo estudantes secundaristas e universitários, transeuntes, ativistas, curiosos, gente a fim de se divertir e toda sorte de motivação que totalizou mais ou menos 20 mil pessoas, os preocupados com as formas e os preços do deslocamento na cidade formaram uma minoria potente. As matérias de jornal e de televisão pretendem opor os chamados transtornos causados pela vontade vigorosa dos manifestantes às supostas necessidades de trabalhadores serviçais e gente humilde assujeitada que “precisa ganhar a vida”. A democracia favorece os alertas de minorias que rompem com o silêncio, a modorra e a rotina. Espera-se que a maioria numérica, como sempre, siga ordeira trabalhando até morrer. Que os manifestantes não se iludam querendo despertar a consciência da população, porque o rebanho sempre esteve e está do lado da ordem e junto com a polícia! Que não se esqueçam que a qualquer momento suas lideranças serão chamadas a negociar com as autoridades ou chamarão as autoridades para negociar. 
coragem! 
As estimativas falaram de 5 mil pessoas no dia 11/6 e 20 mil pessoas no dia 13/6. A impressa divulgou que milhares de policiais estiveram envolvidos na repressão. Diante disso: abandonem as sinceridades hippies de entregar flores para policiais, e inventem novos desrespeitos e desprezos à instituição e à farda! Coragem! Porém, se você pensa que se trata de uma polícia despreparada e incapaz de agir numa democracia, não esqueça que a polícia serve para cuidar, vigiar, monitorar, espionar, reprimir, torturar e matar. Polícia é polícia! Viver livre nas ruas da cidade não depende de polícia preparada, mas de sua abolição! 
polícia e seus itinerários 
A polícia é inaceitável. A polícia é um dos abomináveis em nossa existência. Diante dela, cotidianamente, há o passe reto, o pare quieto, as mãos para trás, os corpos imóveis no chão, a revista, as subordinações e os subornos, as detenções e os espancamentos, os tiros mortais e morais, os corpos perfurados, as asfixias, os choques, a pimenta que destempera, a tortura, a prisão. Co-ti-di-a-na-men-te... 
viva!
A polícia não é um efeito colateral do cuidado, da prevenção, da proteção e da segurança. Ela é a expressão e tradução literal das práticas de governo, dissimuladas até mesmo como “arma de efeito moral”. Diante da perenidade de sua existência em cada um, jamais haverá livres passagens. Um viva de saúde aos jovens que foram para cima da polícia, que bateram nela de frente, que destroçaram suas casinhas denominadas de postos comunitários, que dela se esquivaram e não foram pegos e os que se mobilizaram para soltar tantos outros. 
17 de junho 
100 mil nas ruas de São Paulo, sem violências policial: resultado de acordo do MPL com as autoridades. Itinerários cumpridos sob a vigilância da polícia e de cada um sobre todos. Compareceram apartidários, partidários e antipartidários. Por todos os lados cartazes contra corrupção, hashtags, bandeiras do Brasil vestindo os corpos, tudo em favor de um Brasil melhor. Máscaras do Anonymous sobre os rostos, caras pintadas, narizes de palhaços. Depois de concentrados rumaram por três trajetos diferentes. Tudo acabou em paz! Exceto pela invasão do Palácio do Governo!!!!! 
17 de junho no brasil 
Reprise do 13 de junho em São Paulo com seus particulares eventos repressivos... 
depois de 17 de junho no brasil 
Reprise de São Paulo? 
o que virá? 
O MPL pressionou os governos estadual e municipal e contou com o Ministério Público que propôs suspender o aumento de 20 centavos por 45 dias. As autoridades executivas rejeitaram. Novas negociações serão agendadas com pauta única: revogação do aumento da tarifa. Entre palavras de ordem exigindo transparência e fim da corrupção, postagens em blogs, tweeter, instagram e facebook, certa simpatia pela polícia, a reiterada ausência de lideranças e uma anunciada ampliação das reivindicações para as áreas de saúde e educação, tudo marcha para uma solução ordeira até um novo inesperado. Enquanto isso resta nos ouvidos o som vigoroso do VAI TOMAR NO CU: Haddad, Alckmin, Dilma, Datena, Jabor, helicópteros... 

flecheira.libertária.298

da vida e da arte 
A arte sempre foi perigosa. Platão o disse e a censurou. Contudo, a arte é o tanto de indomesticável de todas as gentes. O antropólogo Claude-Lévi-Strauss afirmou que depois de terminada a vida humana em nosso planeta restará apenas os vestígios da arte. É com arte que se questiona a transcendentalidade da política e dos costumes. É com a plasticidade artística da crítica que cada um de nós é capaz de fazer sua vida uma obra de arte. Toda a política se renova pela arte que escancara o insuportável e o ingovernável. Se uma arte não nos é palatável devemos olhar para nós mesmos e notarmos como nos deixamos apanhar pela retórica, esta arte dos domesticadores, cujo limite é matar. Mas por mais que se tente matar a arte, a vida de cada um a faz reviver. As belezas da arte apolínea e as surpresas da arte dionisíaca sempre inventaram suas formas pela conjugação destas duas artes. Se a transcendentalidade da arte sempre esteve relacionada à religião, são também várias as maneiras artísticas de fazer arte, diversos são os artistas e os arteiros. Não se processa judicialmente um artista, não se policia um artista. Dele devemos reter a tradução crítica de nossa mixórdia. 
se liga, moçada!
No fim de semana que passou, aconteceu em São Paulo mais uma “Marcha da Maconha”. Centenas de pessoas, amparadas numa decisão do Superior Tribunal Federal, marcharam ordeiramente, circundadas por centenas de policiais. Baseados acesos e câmeras da polícia filmando todo mundo. Nas faixas e camisetas, palavras de ordem orientadas pelo lema dessa vez: “Proibição mata: legalize a vida”. O que provoca repulsa e indignação da moçada é a violência intolerável da guerra às drogas, da punição ampliada, das internações compulsórias e a hipocrisia de uma sociedade dopada que não suporta os estados alterados de consciência liberados de prescrições médicas. 
se liga! 
Acontece que as marchas autorizadas pela polícia e as propostas de lei falam a mesma gramática punitiva e autoritária de quem proíbe, prende, violenta e mata: partilham da mesma lógica da solução universal para experiências que são únicas, pessoais, intransferíveis. Por isso, a força subversiva que contesta antigos hábitos fica, de novo, capturada na universalidade da lei. A vida com drogas deve ser experimentada e não encarcerada em leis penais. O incomensurável de estar vivo não cabe em código algum.
istambul 
Os protestos que tomaram as ruas na capital da Turquia trazem uma motivação interessante: a substituição de um parque, que é frequentado por jovens, estudantes e reconhecido como local de reunião de grupos que combatem o governo, por um Shopping Center, uma suntuosa mesquita e um memorial à força militar do Império Turco-Otomano. Comentaristas dizem que o presidente da Turquia, no governo há 12 anos pelo partido Justiça e Desenvolvimento quer, com essa reforma urbanística, mostrar possibilidade de convivência entre islamismo e liberalismo. Acusaram os manifestantes de conservadores e soltaram a polícia que já fez mortes e dezenas de feridos. Interessa registrar que os jovens turcos enfrentam a polícia por discordarem do projeto de cidade que o governo quer que eles vivam. 
são paulo 
Na semana passada a Avenida Paulista foi palco, novamente, de uma batalha entre polícia e manifestantes. Estes protestavam contra o aumento da tarifa de ônibus e reivindicavam a gratuidade do serviço municipal. Oito pessoas foram presas, duas permanecem detidas, uma por não ter dinheiro para pagar a fiança e outra porque incitar incêndio é “crime inafiançável”. Anos atrás, os protestos contra tarifa de ônibus eram usados por partidos para fazer pressão contra seus adversários. Hoje, com o partido do governo federal na prefeitura municipal, pedem calma aos manifestantes e concordam com ações policiais legítimas. Uma coisa segue como sempre: quem não tem dinheiro não sai de casa e continua preso. 
o estado sustentável 
O primeiro astronauta brasileiro, nomeado embaixador da boa vontade da agência da ONU para o desenvolvimento industrial, apresentou na semana passada uma proposta para fazer de Roraima o primeiro ecoestado do planeta. Segundo a proposta, o estado brasileiro que se encontra na floresta amazônica será revestido por metodologias e projetos já certificados pela ONU em várias ecocidades do mundo, integrados em um grande programa de desenvolvimento sustentável. O que diferencia o ecoestado é justamente o emprego da sustentabilidade como programa de investimento voltado para incluir, por diversos motivos, o que ainda está fora dos fluxos planetários de produção de riqueza.
sem extermínios e devastação? 
Para o astronauta, Roraima é "o local ideal" para a implantação do projeto, devido ao seu estágio de desenvolvimento que permite uma reorientação para a sustentabilidade somado ao número reduzido de cidades e seu potencial para o agronegócio. Porém, deixou de mencionar outros atrativos. Quase metade do  seu território é de propriedade do próprio Estado de Roraima e da União. Na outra metade estão áreas de preservação e terras indígenas, dentre elas uma das maiores do país, a Raposa Terra do Sol. É conhecido que seu território possui grandes reservas de minérios, alguns deles muito raros. "Reservas" nunca colocaram  entraves para os investimentos capitalistas, para as quais os Estados modernos conseguiram encontrar soluções políticas além do extermínio e a devastação. Talvez os ecoestados venham atender a esta urgência, 
tendo na sustentabilidade o seu programa ecopolítico mais bem elaborado. 

flecheira.libertária.297

revisões 
Desde 1976, as versões da legislação penal sobre drogas oscilam segundo os efeitos dos impactos repressivos e midiáticos relativos à amenização sazonal da penalização aos usuários das classes médias e altas. Estabeleceu-se a distinção entre usuário e traficante. A atribuição da culpabilidade de um e outro reside na disposição moral dos tribunais. A cada revisão, contando a de 2006 e a atual, em andamento no senado, o julgamento prévio do uso de drogas como pernicioso à segurança e à saúde públicas e a condenação ao tráfico permanecem inalterados. A seletividade penal condena arbitrariamente os usuários pobres como traficantes. Antes de cada revisão da legislação penal as mídias não cansaram de escancarar a superlotação de presídios para jovens e adultos relacionados ao chamado tráfico de drogas, colaborando para a renovação e reforma da mesma história cíclica. 
governamentalidade 
O circuito se refaz com projetos para a construção de mais prisões, propostas de variações de penas alternativas e medidas sócio-educativas, condenação prioritária da droga em uso mais evidente, sugestões de ampliações policiais e programas de saúde e segurança, favorecimento ao desenvolvimento da indústria de armamentos, propostas de ações de combate contínuo a sedes conhecidas do tráfico em periferias e suas conexões irreversíveis com as prisões, aumento de chacinas policiais e de gangues e/ou das chamadas facções... A governamentalidade das drogas volta-se sempre às medidas higienistas, para as quais colaboram ONGs, Institutos, Igrejas, políticos, movimentos sociais, gente interessada em garantir o exercício da boa cidadania. E o ciclo se refaz até o próximo ponto de estrangulamento. O que parece mudar é sempre revestido pelo que deve permanecer constante. 
vício e virtude 
Cientistas e religiosos, cada um ao seu modo, e por vezes, associados, apresentam relatórios e propostas que reiteram a condenação ao tráfico e a salvação do viciado. A este se superpõem os juízos da virtude. Sobre eles recaem renovados dispositivos morais capazes de fazer funcionar a continuidade do Estado, de cada governo e do próprio tráfico. A covardia maior reside em condenar à prisão ou à morte imediata certos usuários que funcionam como agentes de distribuição da mercadoria. A grande covardia desta moral está em sua aversão em abolir o tráfico. Ao fazê-lo, deixaria a cada um o uso que conviesse. Afinal, ninguém é capaz de acabar com a infelicidade, o desejo de sua morte, a desistência da vida numa sociedade desigual e assimétrica como a capitalista. engodos Um tanto de coragem para acabar com o tráfico é urgente. Todas as medidas antiproibicionistas devem ser saudadas e a legislação deve ser mais uma vez reformada para que possamos derrubar muros e seguir mais livres. Dentre elas, a principal deve ser a que acabe com a seletividade penal voltada para pobres. Isso requer coragem dos tribunais para exercitar sua prepotente vontade com o mínimo de justiça. Mas isso é uma falaciosa utopia. Sem a seletividade penal não há direito penal, polícia, justiça e cidadãos de bem. Igrejas e comunidades científicas dependem e fortalecem a mesma moral. Homens e mulheres comuns também estão governados por esta moral, assim como traficantes e grande parte dos usuários. 
as abelhas 
As abelhas produzem o mel de onde os gregos extraíram a delícia da ambrosia, citada por vários estudiosos como a primeira droga conhecida do ocidente, jamais proibida pelos fundadores da cultura europeia que governou o planeta. As abelhas são operárias de uma abelha-rainha que mata o zangão após ser fecundada. Não precisamos ser como as abelhas. Dispomos de seu mel; não o transformemos em fel. Livremo-nos do julgamento moral que produz equiparações com a natureza. Inventemos um direito ao prazer que prescinde de julgamentos e poder centralizado! 
empresa de encarceramentos 
O Coronel Comandante da Polícia Militar de São Paulo celebra novas políticas de bonificação para policiais, anunciadas recentemente pelo governo do estado. Em suas palavras, “essa estratégia da Secretaria de Segurança Pública vai ao encontro dos interesses da nossa empresa chamada Polícia Militar”. Espelhadas no programa de tolerância zero, as bonificações por produtividade policial, condicionadas à diminuição dos índices de criminalidade, obedecem a uma racionalidade neoliberal para o funcionamento do quadro jurídico do Estado, segundo uma lógica econômica concorrencial. A produtividade de delegacias-empresas é, assim, associada ao número de capturas e detenções em suas jurisdições. Seus efeitos seletivos são o aumento do amontoado de corpos depositados nos estabelecimentos prisionais depois de estarem socados nos corrós de delegacias. 
disputa de interesses e morte 
Na última semana, o assassinato de um terena durante operação de reintegração de posse de uma fazenda no Mato Grosso do Sul ganhou as páginas dos jornais durante dois ou três dias. A notícia foi veiculada como um escândalo, a presidente se disse chocada. Qual é a novidade? Desta vez, o tiro fatal parece ter sido disparado pela polícia do Estado, mas quantos já tombaram por covardes tiros pelas costas, na calada da noite, efetuados por outros policiais: os capangas e jagunços a serviço dos fazendeiros? E quem ainda não percebeu que o Estado e sua violência legítima servem também aos mesmos interesses? 
morte na disputa de interesses
Enquanto isso, grupos de ruralistas afirmam que o assassinato noticiado é uma tragédia provocada por entidades indigenistas que incitam a violência dos povos indígenas. Alegam que ela é utilizada como via de disputa ideológica. No entanto, alguns indígenas mostram que sua disposição para a luta passa ao largo de engalfinhamentos institucionais. 
luta e afirmação da existência 
Para os terena, o que está em jogo na luta pelas terras é mais do que uma simples disputa territorial: trata-se da possibilidade de sua existência. Lutando por sua vida, não reconhecem fronteiras territoriais e tampouco os sentinelas (funcionários públicos e/ou particulares) que as guardam. E não se amedrontam diante da demonstração de força destes canalhas que, não raro, custa a vida de algum dos seus. Ainda que não seja novidade, é preciso estar atento a cada vez que um indígena é morto para que o vigor de sua luta, que atenta contra o Estado, não seja esquecido.