quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os antiproibicionistas estão chegando, estão chegando os antiproibicionistas


Se acharem tosco quando a festa política da Marcha da Maconha tomar as ruas, pensem que, assim como na capoeira, muitas vezes pode parecer que estamos só jogando. Mas vão achando que não tem luta aí…
Por Júlio Delmanto *
Se você mora ou esteve em São Paulo entre maio e julho deste ano, certamente teve de se posicionar diante da Marcha da Maconha. Proibida em 2008, 2009, 2010 e 2011, a manifestação enfrentou bombas, balas de borracha e censura até conseguir pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a julgar o óbvio e decidir pela livre expressão frente à acusação de apologia ao crime. Finalmente liberada para ganhar as ruas de cara limpa, o chamado movimento antiproibicionista, que em suas diferentes facetas e tendências questiona a proibição da maconha e, em alguns casos, de outras drogas, já garantiu seu espaço na sociedade e tem agora novos desafios.
No livro Cinismo e falência da crítica, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle defende que vivemos uma nova etapa do capitalismo, na qual a Ordem não necessita mais maquiar sua injustiças para se manter. A mentira dá lugar ao cinismo, num ordenamento que ri de si mesmo, que pode transformar em mercadoria inclusive sua crítica, como o pensador francês Guy Debord já salientava desde os anos 1960. Em lugar do “eles não sabem o que fazem, mas fazem”, formulado por Karl Marx, vigoraria agora o “eles sabem o que fazem, e mesmo assim fazem”.
No caso disso que genérica e imprecisamente se chama de “drogas” — diferentes substâncias, lícitas e ilícitas, com diferentes histórias, efeitos e culturas de uso — não poderia ser diferente. Segundo estudo de 2005 do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), ligado à Universidade Federal de São Paulo, quase um quarto dos brasileiros adultos declara já ter utilizado ao menos uma vez na vida alguma substância ilícita. Ou seja, é óbvio que a proibição não inibe o consumo, que é tão difundido socialmente como sempre foi. É a vitória da sociedade frente ao Estado, por mais cínico que ele seja, como bem apontou Luiz Eduardo Soares em entrevista ao Coletivo DAR.
Além de não inibir o consumo, a proibição de algumas drogas impede educação e informação de qualidade, dificulta o acesso a tratamento público no caso do uso abusivo (que é minoritário, ou alguém acha que um quarto dos adultos brasileiros é dependente?) e ainda traz em si uma série de efeitos danosos: violência do crime e do Estado, criminalização da pobreza e encarceramento em massa, corrupção em todos os poderes, tolhimento da pesquisa científica, intervenção militar sobre territórios desejados, grandes lucros à indústria farmacêutica e armamentista. Tudo em nome de uma cínica defesa da saúde pública — matar para defender a saúde?
Proibido proibir o diálogo
Articulado na negativa do proibicionismo, o movimento antiproibicionista parte deste NÃO a fim de dialogar com a sociedade na busca de alternativas pautadas pelo respeito ao livre decidir sobre o próprio corpo, pelos direitos humanos e pela minimização dos danos sociais causados pelas drogas, lícitas e ilícitas. Movimento heterogêneo, que traz desde os que defendem somente o uso medicinal de maconha aos que acreditam na regulamentação de todas as drogas, o antiproibicionismo se vê diante primordialmente do desafio de buscar a mudança desta mentalidade moralista e conservadora que não só povoa praticamente 100% do Congresso brasileiro como também parte considerável de nossa sociedade.
“Eu sou maconheiro, com muito orgulho, com muito amor”, gritavam na Avenida Paulista, a plenos pulmões, jovens e mesmo idosos no dia 2 de julho, data da primeira Marcha da Maconha ocorrida em São Paulo sem ter sido proibida. Para alguns, pode parecer tosco, “despolitizado”. E, de fato, não há motivo para se orgulhar de uma conduta, que deveria ser tão natural como tocar guitarra ou jogar futebol. Assim como deveria ser natural, normal — e não motivo de orgulho — ser negro, ser homossexual, ser mulher.
Mas (ainda) não é. Onde há repressão há revolta e é em reação às opressões que nasce o orgulho de ser negro, de ser homossexual, de ser mulher, de ser maconheiro. Ou vemos por aí alguém cantando “eu toco guitarra, com muito orgulho, com muito amor”? “Eu jogo uma bola, com muito orgulho, com muito amor”? São apenas condutas, normais, uns gostam, outros não, uns exageram, esquecem de outras atividades ou da família, se machucam, brigam, puxa-que-chato-é-a-vida. A defesa do antiproibicionismo não é a do “liberou geral”, mas a de outras formas de controle social destas substâncias que não sejam da esfera penal nem da médica — para além do enfoque repressivo.
Durante a escravidão tentaram proibir a capoeira, e aí sim é que ela se tornou ainda mais instrumento de resistência do povo preto. Com as outras opressões não é diferente: tentem nos confinar em guetos que faremos arma do que somos e dos que une. E sem perder a ternura, o humor. Assim, se acharem tosco quando a festa política do antiproibicionismo novamente tomar as ruas, pensem que, assim como na capoeira, muitas vezes pode parecer que estamos só jogando. Mas vão achando que não tem luta aí…
São essas reflexões que tomarão conta deste espaço no Outras Palavras a partir de hoje. Drogas e seus aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. Proibicionismo e antiproibicionismo, jogo e luta. E vamos ver no que dá.
(*) Júlio Delmanto é jornalista e mestrando em História Social. Atua no Coletivo DAR e na Marcha da Maconha-SP

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