sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

do fim de um ano!

Vem do meu tempo de infância a prática de fechar para balanço. Meus pais tinham uma venda no campo (um bolicho) e, além de trabalhar duro durante o ano, todo final de ano tínhamos (os filhos) que ajudar no balanço. Aprendi a calcular e a pensar a matemática nas lides no bolicho e no moinho. Quando cheguei para a formação escolar, já havia desenvolvido uma lógica matemática que não era a mesma da escola. Isso me fez ralar muito, mas nunca aprendi nada da matemática formal. Meus cálculos seguem sempre outra lógica.
Assim, hoje, fecho para balanço! Por essas e outras, o tempo, para mim, nunca é o mesmo das cronologias formais. O tempo, em minha vida, simplesmente acontece. Literariamente acontece. Por isso, esses encerramentos de 31 de dezembro, sempre são fora de época. Acompanho todos que encerram o ano nesse dia, mas o meu, às vezes, já encerrou antes ou demorará muito para encerrar!
Já fazia quase dois anos que o meu ano não encerrava. 2009 foi um ano radicalmente rizomático em minha existência. Radical por ter provocado rupturas precisas e profundas, e rizomático, por ter espalhado no terreno da minha vida, rizomas que nunca param de se multiplicar.
Nunca a vida me doeu tanto como em 2009 e em 2010. Quase ninguém soube dessa dor, porque a dor da vida é algo que para muitos passa batido. Ninguém vê a vida sangrando. Ninguém vê a vida ardendo. Ninguém vê o galope da existência, exceto se pararmos. E eu curei isso com a vida.
Em 2009 tive uma perda irreparável. Perdi a pessoa mais importante da minha vida, de forma abrupta e sem tempo ou elementos para elaborações. Isso não significa que eu pense que nossa vida possa ficar nas mãos de outros, mas sim, que há pessoas e momentos que produzem movimentos tão importantes e bonitos em nossa vida, que, por algum tempo, acabam abrindo e ocupando um espaço absolutamente imenso e que, pela morte, ou por qualquer outra necessidade, ao partirem abruptamente, deixam tudo em aberto: a vida, a existência, o espaço e tudo o mais!
2009 teve isso e muitas outras mudanças em minha vida pessoal e profissional. Mudei da vida em apartamentos e me instalei numa casa cheia de ares e de graças. Encerrei o curso de mestrado e assumi de vez o campo teórico em que me sinto absolutamente à vontade. Fechei minha relação com algumas perspectivas clássicas e castradoras de pensar e entender a vida. Assumi o que penso sem rodeios e sem amarras. Isso me levou a reler boa parte de minha biblioteca e renovar outra grande parte... sem ponteios, sem escalas, sem ressalvas, minha cabeça está nesse movimento, trocando de estação nesse exato fim de 2010.
No primeiro dia de janeiro encerro uma idade e começo outra. O meu aniversário também acontece fora de época. Enquanto labuto com as coisas da vida, me vem essa data reconhecida em cartório e diz que tenho que pular uma casa na contagem dos anos. Até conto, mas por pura formalidade, pois queria contar as idades no tempo dos acontecimentos da vida. É bem recente, vem de 2007, o meu hábito de comemorar o aniversário como uma exaltação da vida.
Venho de um tempo duro em que tive muito pouco para dizer ou fazer. Quando pensava que poderia findar 2010 descansando das agruras de 2009 e do próprio ano que finda, eis que me vejo fecundada por uma cria que cresce em minhas entranhas existenciais para nascer logo em 2011. Não sei ao certo se seja uma cria só, nem se já não tenha nascido e eu esteja somente a cuidar de fazê-la crescer e andar, sei que é uma cria bonita, vitalizada, potencializada e cheia de alegrias... é gestada, parida e dá os primeiros passos tudo ao mesmo tempo, mas vai com passos firmes.
Rendo minha respeitosa homenagem a todas as pessoas que nesse tempo (de mais de um ano) foram importantes em minha vida e em minha existência, concedendo-me a paciência, a alegria, a parceria, a generosidade, a amizade e seriedade.
Rendo, também, minha homenagem a todas as pessoas a quem pude dedicar a intensidade de meus pensamentos, de meus sentimentos e de meu trabalho... e isso se estende a todos que por toda a transversalidade que compõe a vida contemporânea, cruzaram ou cruzam e se mantêm no percurso de minha vida.
Rendo, ainda, a minha homenagem aos caros amigos com quem tenho partilhado a minha e as suas vidas.
E, rendo homenagem, principalmente à pessoa sem a qual meu tranco estaria num outro tempo e num outro rumo, por toda a vida que a sua vida trouxe para a minha vida!
Deixo estampado nesse mosaico, o desejo de que 2011 nos traga, a todos, em todos os seus tempos, muita vida e que, assim possamos, produzir muita vida, alegria e crias!
Um grande e carinhoso abraço para todos os que já estão por aqui e para aqueles que estão chegando, assim como, para aqueles em cujas vidas eu já esteja, ou esteja chegando. Maria Luiza

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

divulgação: DOSSIER DELEUZE - LEIBNIZ: UM MUNDO ÚNICO E RELATIVO

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
LEIBNIZ: UM MUNDO ÚNICO E RELATIVO
Por Bruno Paradis *
«Permanecemos leibnizianos já que se trata sempre de preguear, despreguear, repreguear»(1). A referêhcia a Leibniz sempre teve um lugar de destaque no trabalho filosófico de Gilles Deleuze, fundado, na realidade, sobre um profundo anticartesianismo, mas ligado sobretudo a três parâmetros filosóficos fundamentais: a possibilidade de desenvolver uma lógica do acontecimento, como pensamento rigoroso e anexato; a investigação do horizonte do virtual, como preocupação transcendental dos processos de individuação; o jogo das séries na sua relação com a «extraordinária compossibilidade»(2), como paixão das singularidades no seu devir. Mas é por uma outra linha que Deleuze aborda Leibniz na sua última obra, intitulada Le pli. E como uma nova passagem, umaredescoberta.Jáque, desta vez, seguindo o movimento que vai do mundo à sua inclusão na mônada, da mônada e seus predicados à percepção, da percepção à relação de semelhança, trata-se de se confrontar com a bem difícil questão das relações da alma e do corpo, ou seja, com as modalidades de bloqueamento e de passagem que se estabelecem entre estes dois registros distintos, registros que são igualmente tanto o do legível como o do visível. Esta confrontação terá o seu ponto culminante na análise do Vinculum substantiale, uma noção extremamente delicada de delimitar, misteriosa mesmo na opinião de Leibniz já que reenvia a Deus e ao Mistério da criação, mas uma questão que responde perfeitamente à definição do conceito: um puro indivíduo ou uma singularidade absoluta. O vinculum, ou laço substancial, é a prega da alma e do corpo, a prega que faz passar através dela todas as pregas.
Foi no texto consagrado a Michel Eoucault que Deleuze introduziu e desenvolveu o conceito de prega para descrever os processos de subjetivação como um interior do pensamento, «um interior que seria somente a prega do exterior»(3): engendrar pensar no pensamento. Mas esta introdução somente se pôde fazer na condição de mostrar que, para além do encontro efetivo com Heidegger, Foucault desenvolvia uma concepção de prega original, e que a prega do exterior ou do interior não era uma simples retomada ou variante da prega ontológica, mas que ao contrário ela trazia em si mesma uma crítica do caráter restrito, mesmo precipitado, desta última. Uma preocupação evidente está na base desta análise: subtrair Foucault a uma eventual influência de Heidegger para restabelecer a verdadeira filiação, a linha genealógica, que passa por Nietzsche(4). Um problema continuava no entanto em suspenso: determinar as condições do aparecimento do conceito de prega na cena filosófica. É aí que reencontramos a filosofia de Leibniz: um mundo em dois níveis, ou a prega da alma e do corpo. A prega é uma invenção filosófica de Leibniz.
Mas a originalidade do caminho de Gilles Deleuze em Le pli não consiste somente em seguir os ziguezagues e os vaivéns na definição que ele propõe do Barroco: «a prega que vai ao infinito». Daí o subtítulo da obra: «Leibniz e o Barroco».
O conjunto dos traços operatórios que dão ao Barroco a sua especificidade são em número de seis. São eles: a prega levada ao infinito numa espécie de emancipação sem limites, a autonomia do interior e a independência do exterior, a distinção dos dois níveis com a aspiração da alma em direção à altura e a atração da matéria para o baixo, o despreguear como extensão do ato da prega (sempre uma prega entre duas pregas), as texturas que fazem com que a matéria se torne matéria de expressão, o paradigma do tecido com suas pregas, simples ou compostas, suas bainhas, seus drapeados, mas também suas texturas e seus feltros. Se reparará que cada um destes traços não constitui menos de um dos componentes específicos do leib-nizianismo. Assim, o paradigma do tecido separa alguns estratos entre o alto e o baixo e constitui uma dedução formal susceptível de se articular com estes diferentes tipos de noção que são: os Idênticos ou as Formas absolutas, os Definíveis, os Requisitos, as Mônadas, mas também os Aglomerados(5). E, portanto, uma relação singular que se dá entre Leibniz e o Barroco e que permite a Deleuze dizer: «dá no mesmo se perguntar se Leibniz é o filósofo barroco por excelência, ou se ele forma um conceito capaz de fazer existir o Barroco nele mesmo»(6). «Mas é também um procedimento original que não engaja menos uma certa idéia da filosofia. Encontraríamos um exemplo na forma de correlacionar o conceito de harmonia preestabelecida em Leibniz e o nascimento da harmonia na época barroca» (7). Um tal procedimento define o estilo filosófico de Gilles Deleuze e o conceito que lhe permite exprimir é: a diagonal.
Já em A Imagem-Movimento e em A Imagem-Tempo, Deleuze, quando se propunha fazer uma classificação das imagens, tinha sistematicamente confrontado o cinema com Bergson e com os conceitos que ele inventou. O problema não estava em fazer do cinema um simples exemplo da filosofia bergsoniana, da mesma forma que não está em questão, no presente caso, fazer do Barroco o produto de uma simples aplicação do leibnizianismo. A lógica deste caminho parece mais ser a seguinte. Existem domínios distintos, por exemplo, a ciência, a arte, o cinema, mas também a filosofia, que se definem, cada um deles, pela produção de objetos singulares. Estes objetos são função da natureza dos materiais e das forças em ação nos respectivos domínios, e a sua produção constitui tanto investigações como experimentações no pensamento. O conceito é o produto de uma semelhante investigação ou experiência própria à filosofia: um indivíduo. Mas estes domínios ou estes campos não estão simplesmente justapostos uns aos outros, tomados em relações de exterioridade. É necessário, pelo contrário, ter em vista as diferentes formas a partir das quais o que foi elaborado num campo pode se encontrar num outro. Se distinguiriam, então, as passagens tornadas possíveis devido à própria natureza porosa das paredes que separam dois domínios distintos (as matemáticas e a física quântica); os fenômenos de captura onde o que foi elaborado num campo se encontra anexado, retomado e relançado num outro campo; as analogias (mas isto pressupõe que se produza um conceito rigoroso da analogia, isto que só é susceptível de fazer uma lógica do acontecimento, a qual não se pode desenvolver a não ser no encontro de toda a lógica da identidade ou da atribuição)(8) como declinação de esquemas (é o exemplo da harmonia que indicamos mais acima). Sobre este último ponto, pode-se considerar como essenciais as análises do «objec-tile»(9) feitas com relação à geometria projetiva de Désargues, análises tanto mais importantes já que elas esboçam os contornos de um pensamento apto a conceptualizar os propósitos das técnicas contemporâneas.
Sem deixar lugar a dúvidas, já está este conjunto de passagens e de traduções que Leibniz propõe e que colocam em questão o Barroco. «Haveria portanto uma linha barroca que passaria exatamente no caminho desta prega, e que poderia reunir arquitetos, pintores, músicos, poetas, filósofos»(10). Traçar a diagonal. Ou seguir a linha barroca através da descrição que ela nos propõe da mônada. Com efeito, esta está definida na Monadologia como sendo «sem porta nem janela». Fórmula enigmática mas que se torna singularmente expressiva se a relacionarmos com os traços dominantes da arquitetura barroca. Assim, a mônada poderá ser comparada a um gabinete de leitura, ou ainda à abadia de La Tourette de Le Corbusier, com o seu fundo obscuro, suas decorações interiores e a sua luz que não «penetra senão por orifícios tão bem pregueados que não deixam ver nada do exterior, mas iluminam ou coloram as decorações de um puro interior» (11). Nestas condições compreenderemos que se trata de dar ao Barroco o conceito que lhe permite existir; não é, portanto, questão de o limitar a um simples período histórico. É assim que, sem perder o seu rigor, o conceito de Barroco dispersa e permite pensar as obras contemporâneas em domínios tão diferentes como os da pintura, da arquitetura, da literatura e da música, de obras tais como as de Hantai, Michaux, Borges, Boulez, mas também a arte minimalista na sua forma de se mover nos intervalos, entre pintura e escultura. E se a linha parte precisamente do Barroco, é porque este se define pelo seu estilo, mesmo por sua ética. A afirmação de um mundo único e infinitamente diversificado, produto de um jogo divino, e que não cessa de jogar com as séries que o constituem , um mundo inteiro edificado à glória do pensamento que grita a sua alegria, o self-enjoyment(NT), mas também sua inquietude, mesmo a sua lassidão.
É à investigação de um tal mundo que se dedica a filosofia de Leibniz. E, segundo uma fórmula bem conhecida, este mundo é o melhor, mesmo se ele inclui o pecado de Adão ou a traição de Judas: «Resta somente esta questão, por que um tal Judas, o traidor, que não é senão possível na idéia de Deus, existe atualmente. Mas sobre esta questão não há nenhuma resposta a esperar aqui em baixo, senão que em geral se deve dizer que, uma vez que Deus achou bom que ele existisse, não obstante o pecado que ele previa, é preciso que este mal se recompense com a usura no universo, que Deus daí tirará um bem maior, e que ele achará, em suma, que este encadeamento das coisas, nas quais a existência deste pecador está compreendida, é o mais perfeito entre todos os outros possíveis»(12). Todavia, como Deleuze toma o cuidado de sublinhar, o Melhor não é o Bem, ele não é senão a conseqüência da derrota do bem (13); ele não supõe um modelo, mas implica uma seleção. Neste sentido o princípio do melhor é um grito da razão, como todos estes princípios que Leibniz não cessa de multiplicar, um grito que significa que nós assistimos a uma mutação na forma de filosofar: devemos partir do mundo, do conjunto dos acontecimentos que fazem este mundo, e em função de cada caso encontrar o princípio susceptível de lhe dar razão. É uma casuística, ao mesmo tempo que uma jurisprudência, já que a razão teológica está em crise (prenúncios de outras crises). Nestas condições, o princípio do Melhor pode ser compreendido como uma justificação da ação divina: o homem se faz advogado de Deus, e Deus criou o mundo num jogo. Rejeitando as séries divergentes em mundo incompossíveis, selecionando entre uma infinidade de mundos possíveis, Deus retém somente um, em função da sua liberdade. O melhor mundo é um mundo único e relativo, mas um mundo em dois níveis.
No nível alto temos as almas, todas diferentes; cada uma exprime o mundo de um ponto de vista singular devido a um vetor interno de concavidade; sem ação umas sobre as outras, elas tiram tudo do seu próprio fundo, um fundo feito de uma infinidade de percepções das quais somente uma parte franqueia o limiar da consciência; é o plano das mônadas como conjunto de forças primitivas. E é preciso notar com que cuidado Deleuze descreve este mundo da intimidade, com seus interiores, decorações e tapeçarias; é preciso seguir a análise da percepção, revirada pelas poeiras das micro-percepções e suspensa no caráter alucinatório das macropercepções, até ao momento em que se impõe uma dedução moral dos corpos. Obrigado à regra de convergência das séries, este plano não é menos infinitamente diversificado, espelhado, feito de pregas ao infinito. No nível baixo, nós temos a matéria orgânica e inorgânica, submetida às forças derivativas, elásticas e plásticas, que lhe dão o seu movimento curvilíneo; regido pelas leis do mecanicismo, o movimento se comunica aí de proximidade em proximidade até ao infinito e em todas as direções; é um plano feito de massas e agregados onde vetores extrínsecos de gravidade definem a posição de equilíbrio de um corpo; devemos então falar de singularidades de extremum que reenviam a eixos de coordenadas. Este plano não é menos original que o precedente uma vez que somos tomados em movimentos de fluxos perpétuos, e que as pregas da matéria são como outros tantos recursos ou máquinas. Universo do pleno.
A descrição dos regimes que caracterizam cada um destes dois níveis é de grande importância, uma vez que ela permite colocar a sua distinção real, mas ela permanece insuficiente, uma vez que deixa na sombra o que lhes permite relacionar-se um com o outro, ou seja, o que permite colocar a sua inseparabilidade. É por isso que entre as pregas da alma e o repreguear da matéria devemos fazer passar a prega do mundo. E preciso então distinguir entre a linha de inflexão de curvatura infinita, feita de pontespregas, que define o mundo como pura virtualidade, a mônada no interior da qual o mundo se atualiza, e a matéria onde ele se realiza. É sempre por relação a este terceiro, que é o mundo, que se definem o atual e o real, a alma e o corpo, e que se determina a natureza da sua relação. A estas categorias do virtual, do atual e do real devemos, contudo, juntar a do possível, uma vez que é sob esta forma que o mundo existe no entendimento de Deus antes que a sua escolha seja feita. «O mundo é uma virtualidade que se atualiza nas mônadas ou nas almas, mas também uma possibilidade que se deve realizar na matéria»(14). Duplicada pelo possível, a aproximação leibniziana do virtual se revela particularmente complexa. Complexidade que se arrisca fortemente a se transformar num verdadeiro problema se nos lembrarmos que a concepção de objectile traça as linhas gerais de um pensamento da técnica, e se nós colocarmos que esta não terá maneira de se desenvolver senão a partir de uma problemática do virtual. Sobre este ponto impõe-se uma confrontação de Leibniz e Bergson. Seja isso o que for, devemos dizer que a prega é o que se distribui em cada um dos níveis e que assegura assim,o seu relacionamento. Ou, para retomar o vocabulário de Diferença e Repetição, a prega é o diferenciante da diferença que relaciona imediatamente entre si o que ela diferencia.
A força do conceito de prega é de colocar ao mesmo tempo a distinção real e a inseparabilidade. Já que entre a alma e o corpo, uma vez colocada a distinção, não há somente convergência, ou harmonia universal, há também o conjunto destes fenômenos de movimentos de rotação do alto sobre o baixo. Daí resulta que não se pode dizer onde começa o inteligível e onde termina o sensível e que a este título não há contradição entre o princípio dos indiscerníveis e o princípio de continuidade. Este é um ponto extremamente importante do qual o vinculum substantiale nos pode dar uma idéia. Reteremos principalmente quatro aspectos: 1- o vinculum funda uma teoria do duplo pertencimento que faz com que um corpo pertença a uma alma e que almas pertençam a este corpo; 2- ele dá ao corpo a sua unidade, de forma que através do fluxo da matéria qualquer coisa permanece, idêntica; 3- ele é uma ligação primária não-localizável entre uma constante e variáveis: «a relação é exterior às variáveis, de forma que ela está fora da constante» (15); 4- ele define uma zona intermediária. A prega é o exterior; ele é esta linha infinitamente móvel, puro virtual, que, em virtude das suas torções, constitui domínios distintos, cada um com seu regime próprio (alma e corpo, legível e visível, isto é, forma de expressão e forma de conteúdo); mas ele é também o que desenha o mapa das passagens entre as regiões assim distinguidas. Com este conceito de prega, reencontramos a intuição profunda da filosofia deleuziana: descartar as vir-tualidades, descrever agenciamentos, assinalar as linhas de fratura, e traçar a diagonal que é a força da invenção, experiência do futuro como tempo do pensamento.
O mundo leibniziano é um mundo de dois níveis com rotações do alto sobre o baixo. Mas podemos facilmente imaginar um mundo ainda mais complexo, um mundo feito de uma infinidade de níveis, cada um com seu regime próprio; um mundo onde as superfícies deslizariam umas sobre as outras, numa redistribuição constante dos níveis do edifício de forma que nenhuma atribuição seria possível; um mundo onde as dependências e as rotações seriam múltiplas uma vez que os pontos de conjunção seriam sempre vetores de vetores; um mundo onde os vetores seriam elevados à potência n. Não seriam mais simplesmente os dois labirintos, o da liberdade e o do contínuo, dos quais falava Leibniz, mas antes um labirinto em camadas. Os estratos do incompossível. Habitar este mundo significa: desenvolver uma arte dos intervalos.
* Diretor de programas do Collège International de Philosophie.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» no 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
NOTA DO TRADUTOR — Em inglês no original: «Auto-deleite»
NOTAS
1. Lepli, Ed. de Minuit, p. 189.
2. Logique du sens, Ed. de Minuit, p. 135.
3. Foucault, Ed. de Minuit, p. 104.
4. Para a discussão da relação entre Michel Foucault e Heidegger, cf. Foucault, p. 115-121 e p. 137: «Se aprega e o repreguear animam não somente as concepções de Foucault, mas mesmo o seu estilo, é porque elas constituem uma arqueologia do pensamento. Talvez não nos espantemos muito que Foucault encontre Heidegger precisamente neste campo. Trata-se mais de um encontro que de uma influência, na medida em que a prega e o repreguear têm em Foucault uma origem, um uso, um destino muito diferente do que em Heidegger (...). E mais uma história nietzschiana do que heideggeriana, uma história devida a Nietzsche».
5. Le pli, p. 66.
6. Le pli, p. 47.
7: Le pli, p. 175-187: «Parece difícil permanecer insensível ao conjunto das analogias precisas entre a harmonia leibniziana e a harmonia que se tunda na mes -ma altura na música barroca», p. 186.
8. Para uma crítica da analogia nas suas relações com uma lógica da identidade, cf. Différence et Rêpêtition, p. 45- 52.
9. Le pli, p. 26.
10. Le pli, p. 48.
11. Le pli, p. 39.
12. Discours de mêtaphysique, p. 30.
13. Le pli, p. 91: «O melhor não é senão uma conseqüência. E, mesmo como conseqüência, ele decorre diretamente da derrota do Bem (salvar do Bem tudo o que possa ser salvo...)».
14. Le pli, p. 140.
15. Le pli, p. 150.
cooperação.sem.mando

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

divulgação: DOSSIER DELEUZE - SIGNOS E ACONTECIMENTOS

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
SIGNOS E ACONTECIMENTOS
Entrevista realizada por Raymond Bellour* e François Ewald**
Raymond Bellour e François Ewald - Você acaba de publicar um novo livro: Le pli, Leibniz et Le Baroque. Poderia retraçar o itinerário que, de um estudo sobre Hume (Empirisme et subjectivité, 1953), o conduz hoje a Leibniz? Se seguirmos a cronologia dos seus livros, se poderia dizer que depois de uma primeira etapa consagrada a trabalhos da história da filosofia, que teria culminado com o Nietzsche (1962), você elaborou com Diferença e Repetição (1969), depois com os dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia (1972 e 1980), escritos com Félix Guattari, uma filosofia própria, cujo estilo é nada menos que universitário. Parece-nos hoje que, depois de ter escrito sobre pintura (Bacon) e sobre cinema, você retorna com uma abordagem mais clássica da filosofia. Você se reconheceria num tal caminho? É necessário reconhecera sua obra como um todo, uma unidade? Ou, ao contrário, você vê nela rupturas, transformações?
Gilles Deleuze - Três períodos, isso já estaria bem. Com efeito, eu comecei com livros de história da filosofia, mas todos os autores de que me ocupei tinham do meu ponto de vista alguma coisa em comum. E tudo isso tendia para a grande identidade Espinoza-Nietzsche.
A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. É antes como a arte do retrato em pintura. Estes são retratos mentais, conceptuais. Como em pintura, é necessário fazer parecido, mas por meios que não são semelhantes, por meios diferentes: a semelhança deve ser produzida, e não um meio de reproduzir (nos contentaríamos aí em dizer novamente o que o filósofo disse). Os filósofos trazem novos conceitos, os expõem, mas não dizem, pelo menos completamente, a quais problemas estes conceitos correspondem. Por exemplo, Hume expõe um conceito original de crença, mas não diz porque, nem como o problema do conhecimento se coloca de forma a que o conhecimento seja um modo determinável de crença. A história da filosofia deve, não redizer o que diz um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não dizia mas que, no entanto, está presente naquilo que ele diz.
A filosofia consiste sempre em inventar conceitos. Eu nunca tive preocupações no que diz respeito a um ultrapassamento da metafísica ou uma morte da filosofia. A filosofia tem uma função que permanece perfeitamente atual, criar conceitos. Ninguém o pode fazer em seu lugar. Logicamente que a filosofia sempre teve seus rivais, desde os «rivais» de Platão até o bufão de Zaratustra. Hoje é a informática, a comunicação, a promoção comercial que se apropria das palavras «conceito» e «criativo», e estes «conceituadores» constituem uma raça insolente que exprime o ato de vender como pensamento supremo capitalista, o cogito da mercadoria.
A filosofia sente-se pequena e só perante tais potências, mas se lhe acontecer de morrer, pelo menos será de rir. A filosofia não é comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva: ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária na medida em que não cessa de criar novos conceitos. A única condição é de que eles tenham uma necessidade, mas também uma estrangeiridade, e eles as têm na medida em que correspondem a verdadeiros problemas. O conceito é o que impede o pensamento de ser uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma conversa. Todo o conceito é forçosamente um paradoxo. Uma filosofia, tentamos fazê-la, Félix Guattari e eu, no Anti-Edipo e no Mille Plateaux, sobretudo no Mille Plateaux que é um livro grande e propõe muitos conceitos. Não colaboramos, fizemos um livro e depois um outro, não no sentido de uma unidade mas de um artigo indefinido. Cada um de nós tinha um passado e um trabalho precedente: ele em psiquiatria, em política, em filosofia, já rico em conceitos, e eu - com Diferença e Re-petição e Lógica do sentido. Mas não colaboramos como duas pessoas. Éramos mais como dois riachos que se juntam para fazer «um» terceiro, que éramos nós. No fim de tudo, em «Filosofia» uma das questões sempre foi: como interpretar «filo»? Uma filosofia, isto foi então para mim um segundo período que eu não teria nunca começado e conseguido sem Félix.
Em seguida, suponhamos que haja um terceiro período onde se trata para mim de pintura e de cinema, de imagens aparentes. Mas estes são os livros de filosofia. E que o conceito, penso eu, comporta duas outras dimensões, as do percepto e do afeto. E isto que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são percepções, são conjuntos de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que as experimentam. Os afetos não são sentimentos, são estes devires que desbordam o que passa por eles (ele torna-se outro). Os grandes romancistas ingleses e americanos escrevem muitas vezes por perceptos, e Kleist e Kafka, por afetos. O afeto, o percepto e o conceito são três potências inseparáveis, elas vão da arte à filosofia e inversamente. O mais difícil, evidentemente, é a música. Há um esboço de análise no Mille Plateaux: o rittornello comporta as três potências. Tentamos fazer do rittornello um dos nossos conceitos fundamentais, em relação com o território e com a terra, o pequeno e o grande rittornello. Finalmente, todos estes períodos se prolongam e se misturam, vejo-os melhor agora neste livro sobre Leibniz e sobre a Prega. Será melhor dizer o que pretendo fazer em seguida.
R.B e F.E - Não há pressa. Poderíamos, primeiro, falar sobre a sua vida? Não haverá uma relação qualquer entre bibliografia e biografia?
G.D - As vidas dos professores raramente são interessantes. Certamente existem as viagens, mas os professores pagam suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas - redondas, falar, sempre falar. Os intelectuais têm uma cultura formidável, têm opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual porque não tenho cultura disponível, nenhuma reserva. O que sei, o sei somente pelas exigências de um trabalho atual, e se aí quiser voltar alguns anos depois terei que reaprender tudo. É muito agradável não ter opinião, nem idéias sobre tal ou tal ponto. Não sofremos de incomunicação mas, ao contrário, de todas as forças que nos obrigam a nos exprimir quando não temos grande coisa a dizer. Viajar é dizer qualquer coisa noutro lugar e voltar para dizer qualquer coisa aqui. A menos que não se volte, que se fique morando por lá. Eu também não sou muito inclina-do a viajar, é preciso não mexer demais, para não assustar os devires. Fui tocado por uma frase de Toynbee: «Os nômades são os que não se mexem, eles tornam-se nômades porque se recusam a partir».
Se você me quiser aplicar os critérios de bibliografia-biografia, posso dizer que escrevi o meu primeiro livro bastante cedo, e depois mais nada durante oito anos. Sei, no entanto, o que fazia, onde e como vivia durante esses anos, mas o sei abstratamente, como se um outro me contasse as lembranças nas quais acredito, mas que verdadeira-mente não tenho. E como um buraco na minha vida, um buraco de oito anos. E isto que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas comportam, as lacunas, por vezes dramáticas e por vezes não. A maior parte das vidas comporta catalepsias ou espécies de sonambulismo sobre vários anos. E talvez nestes buracos que se faz o movi-mento, já que a questão é realmente saber como se faz o movimento, como perfurar o muro, para parar de bater com a cabeça. Talvez se trate de não mexer demais, de não falar demais: evitar os falsos movimentos, residir lá onde não há mais memória. Existe uma bela no-vela de Fitzgerald: alguém que passeia na cidade com um buraco de dez anos.
R.B e F.E - Esta crítica da palavra, você a faz notadamente sobre a televisão. Você falou sobre este assunto no prefácio que fez ao livro de Serge Dancy, Ciné-Journal. Mas, como é que o filósofo se comunica, como se deve comunicar? Os filósofos posteriores a Platão escrevem livros, exprimem-se pelo livro. Isto não mudou até os dias de hoje, onde, no entanto, vemos distinguirem-se dois tipos entre os que nomeamos ou que se nomeiam filósofos: há os que ensinam, que continuam ensinando, que ocupam uma cadeira universitária e que julgam isto importante. Há os que não ensinam, que talvez se recusem mesmo a ensinar, mas que procuram ocupar os meios de comunicação: os «novos filósofos». Parece necessário colocá-lo na primeira categoria - você fez mesmo um «trato» contra os «novos filósofos». O que é dar um curso para você? O que há neste exercício de insubstituível?
G.D - Os cursos foram toda uma parte da minha vida, eu os fiz com paixão. Isto não é de forma alguma o mesmo que conferências, porque eles implicam uma longa duração e um público relativamente constante, por vezes durante vários anos. E como um laboratório de pesquisas: faz-se cursos sobre o que se pesquisa e não sobre o que se sabe. É preciso preparar-se durante muito tempo para ter alguns minutos de inspiração. Fiquei contente em parar quando vi que era necessário preparar-se cada vez mais para ter somente uma inspiração mais dolorosa. E o futuro é sombrio uma vez que se torna cada vez mais difícil fazer pesquisa nas universidades francesas.
Os cursos são uma espécie de Sprechgesang, mais próximos da música que do teatro. Nada se opõe a que um curso seja um pouco como um concerto de rock. E necessário dizer que Vincennes (e isto continuou depois que fomos violentamente transferidos para Saint-Denis) reunia condições excepcionais. Em filosofia recusamos o princípio da «progressividade dos conhecimentos»: um mesmo curso se dirigia a estudantes de primeiro e último ano, a estudantes e a não-estudantes, a filósofos e a não-filósofos, a jovens e a velhos, e a pessoas de várias nacionalidades. Havia sempre jovens pintores ou musicistas, cineastas, arquitetos que demonstravam uma grande exigência de pensamento. Eram longas sessões, ninguém escutava tudo, mas cada um pegava aquilo de que tinha necessidade ou vontade, com o qual tinha alguma coisa para fazer, mesmo distante da sua disciplina. Houve um período de intervenções diretas, muitas vezes esquizofrênicas, depois veio a época dos cassetes, com os vigias de cassetes mas mesmo aí as intervenções se faziam de uma semana para a outra, sob forma de pequenos bilhetes, por vezes anônimos.
Nunca disse a este público o que ele foi para mim, o que ele me deu. Nada se parecia jamais a discussões, e a filosofia não tem estritamente nada a ver com uma discussão, já se tem bastante dificuldade em compreender qual o problema que alguém coloca e como o coloca, é preciso somente enriquecê-lo, variar as condições, juntar, ligar, nunca discutir. Era como uma câmara de ecos, um círculo, onde uma idéia voltava como se ela tivesse passado por vários filtros. Foi aí que compreendi a que ponto a filosofia tinha necessidade, não somente de compreensão filosófica, por conceitos, mas de uma compreensão não-filosófica, a que opera por perceptos e afetos. Ambos são necessários. A filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela dirige-se diretamente aos não-filósofos. Peguem o caso mais espantoso, Espinoza: é o filósofo absoluto e a Ética é o grande livro do conceito. Mas, ao mesmo tempo, o filósofo mais puro é aquele que se dirige estritamente a toda a gente: não importa quem pode ler a Ética, ela se deixa penetrar suficientemente por es-te vento, este fogo. Ou então Nietzsche. Aí existe, ao contrário, um excesso de saber que mata o vivo na filosofia. A compreensão nãofilosófica não é insuficiente ou provisória, ela é uma das duas metades, uma das duas ajudas.
R.B e F.E - No prefácio de Diferença e Repetição você diz: «Está chegando o tempo onde não será praticamente mais possível escrever um livro de filosofia como se tem feito desde há muito tempo». Você acrescenta que a pesquisa de novos meios de expressões filosóficas, inaugurada por Nietzsche, deve ser continuada em relação com o desenvolvimento de «certas outras artes», como o teatro ou o cinema. Você cita Borges como modelo analógico de um tratamento da história da filosofia (como o fazia já Foucault em relação à sua própria atitude na introdução de As Palavras e as Coisas). Doze anos mais tarde, você diz dos quinze ««plateux»» de Mille Plateaux: podemos quase lê-los independentemente uns dos outros, somente a conclusão deve ser lida no final, ao longo de toda a conclusão se pegariam, numa roda louca, os números dos «plateaux» que a precedem. Como que por vontade de dever assumir ao mesmo tempo a ordem e a desordem, sem cedera nenhuma. Como você vê hoje esta questão de estilo da filosofia, da arquitetura, da composição de um livro de filosofia? E, deste ponto de vista, que significa escrever a dois? Escrever a dois, eis o que é excepcional na história da filosofia, tanto mais que não se trata de um diálogo. Como, porque escrevera dois? Como vocês procederam? Que exigência tinham em vocês mesmos? Quem é então o autor destes livros? Ou será que eles têm mesmo um autor?
G.D - Os grandes filósofos são também grandes estilistas. O estilo em filosofia é o movimento do conceito. Certamente que este não existe fora das frases, mas as frases não têm outro objetivo senão lhe dar vida, uma vida independente. O estilo é uma variação na língua, uma modulação, e uma tensão de toda a linguagem para o exterior. Em filosofia é como num romance: deve-se perguntar «o que é que vai acontecer?», «o que é que se passou?», somente os personagens são conceitos, e os meios, as paisagens, são espaços-tempos. Escreve-se sempre para dar a vida, para libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo: o estilo aqui rompido das diferenças de potenciais entre as quais qualquer coisa pode passar, se passar, surgir um clarão que saia da própria linguagem, e que nos faça ver e pensar o que permaneceria na sombra à volta das palavras, estas entidades de que apenas supomos a existência. Duas coisas se opõem ao estilo: uma língua homogênea, ou ao contrário quando a heterogeneidade é tão grande que se torna indiferença, gratuidade, e que nada de preciso passa entre os pólos. Entre uma principal e uma subordinada deve haver uma tensão, uma espécie de ziguezague, mesmo e sobretudo quando a frase tem um aspecto perfeitamente correto. Há um estilo quando as palavras produzem um clarão que vai de umas às outras, mesmo muito afastadas.
A partir daí, escrever a dois não causa nenhum problema especial, pelo contrário. Haveria aí problema se fôssemos exatamente duas pessoas, cada uma tendo a sua vida própria, suas opiniões próprias, e se propondo a colaborar e a discutir com o outro. Quando eu dizia que Félix e eu éramos antes como riachos queria dizer que a individuação não é necessariamente pessoal. Não estamos completamente seguros de sermos pessoas: uma brisa, um dia, uma hora do dia, um riacho, um lugar, uma batalha, uma doença ou uma individualidade não-pessoal. Eles têm nomes próprios. Nós os chamamos de «estidades». Eles se compõem como dois ribeiros, dois riachos. São eles que se exprimem na linguagem e aí rompem as diferenças, mas é a linguagem que lhes dá uma vida própria individual, e faz acontecer alguma coisa entre eles. Fala-se como todos ao nível da opinião, e diz-se «eu», eu sou uma pessoa, como se diz «o sol nasce». Mas nós não temos certeza disso, não é certamente um bom conceito. Félix e eu, e muitas outras pessoas como nós, não nos sentimos exatamente como pessoas. Temos antes uma individualidade de acontecimentos, o que não é de maneira nenhuma uma fórmula ambiciosa, já que as estidades podem ser modestas e microscópicas. Em todos os meus livros procurei a natureza do acontecimento, é um conceito filosófico, o único capaz de destruir o verbo ser e o atributo. Escrever a dois torna-se perfeitamente normal sob este ponto de vista. E suficiente que qualquer coisa passe, uma corrente que só carrega o nome próprio. Mesmo quando se escreve só, isto acontece sempre com um outro qualquer, que nem sempre é nominável.
Na Lógica do sentido, tentei uma espécie de composição serial. Mas Mille Plateaux é mais complexo: é que plateaux não é uma metáfora, são zonas de variação contínua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma região, e se fazem sinais uns aos outros. É uma composição indiana ou genovesa. E aí, me parece, que estamos mais próximos de um estilo, ou seja, de uma politonalidade.
R.B e F.E - A literatura está presente em toda a parte do seu trabalho, quase que de forma paralela à filosofia: a Apresentação de Sacher-Masoch, o pequeno livro sobre Proust (que não parou de ser enriquecido), uma grande parte da Lógica do sentido, tanto no corpo do livro (sobre Lewis Carroll) como nos anexos (sobre Klossowski, Michel Tournier, Zola), o livro sobre Kafka escrito com Guattari no prolongamento de O Anti-Edipo, um capítulo dos seus Dialogues com Claire Parnet (sobre a «superioridade da literatura anglo-americana»), fragmentos consideráveis de Mille Plateaux. A lista é longa. Mas isto não produz nada de comparável ao que fazem, em maior grau, os seus livros sobre cinema, e, em menor, a Logique de Ia sensation, ou seja, a partir do trabalho de um só pintor: ordenar, racionalizar uma forma de arte, um plano de expressão. Será que a literatura está demasiadamente próxima da filosofia, da sua expressão mesma, deforma que não pode senão acompanhar por inflexões o todo do seu movimento? Ou isto é devido a outras razões?
G.D - Não sei, não me parece que aí exista essa diferença. Eu teria sonhado com um conjunto de estudos sem título geral,Critique et Clinique. Isto não quer dizer que os grandes autores, os grandes artistas sejam doentes mesmo que sublimes, nem que se procure neles a marca de uma neurose ou de uma psicose como um segredo na sua obra, a chave da sua obra. Não são doentes, é exatamente o contrário, são médicos, bastante especiais. Por que Masoch dá o seu nome a uma perversão tão velha quanto o mundo? Não porque ele «sofra dela», mas porque ele lhe renova os sintomas, ele traça dela um quadro original fazendo do contrato o signo principal, e também ligando as condutas masoquistas à situação das minorias étnicas e ao papel das mulheres nestas minorias: o masoquismo torna-se um ato de resistência, inseparável de um sentimento das minorias. Masoch é um grande sintomatologista. Em Proust não é a memória que é explorada, são todas as espécies de signos, dos quais se torna necessário descobrir a natureza a partir do meio, o modo de emissão, a matéria, o regime. La Recherche é uma seriologia geral, uma sintomatologia dos mundos. A obra de Kafka é o diagnóstico de todas as potências diabólicas que nos esperam. Nietzsche o dizia, o artista e o filósofo são médicos da civilização. E forçoso que, se for o caso, eles não se interessem muito pela psicanálise. Há na psicanálise uma tal redução do segredo, uma tal incompreensão dos signos e dos sintomas, tudo se reduzindo ao que Lawrence chamava de «o pequeno segredo sujo».
Não é somente um caso de diagnóstico. Os signos reenviam aos modos de vida, às possibilidades de existência, são os sintomas de uma vida em jorro ou vazia. Mas o artista não pode se contentar com uma vida vazia, nem com uma vida pessoal. Não se escreve com o seu eu, sua memória ou suas doenças. No ato de escrever, há a tentativa de fazer da vida algo mais do que pessoal, de libertar a vida do que a aprisiona. O artista ou o filósofo têm muitas vezes uma saúde frágil, um organismo frágil,um equilíbrio mal assegurado, como Espinoza, Nietzsche, Lawrence. Mas não é a morte que os quebra, é antes o excesso de vida que viram, que experimentaram, que pensaram. Uma vida demasiadamente grande para eles, mas é por eles que «o signo está próximo»: o final de Zaratustra, o quinto livro da Ética. Escreve-se em função de um périplo futuro que ainda não tem linguagem. Criar não é comunicar mas resistir. Há um laço profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. E a potência de uma vida não-orgânica, aquela que ele pode captar numa linha de desenho, de escrita, de música. São estes organismos que morrem, não a vida. Não há nenhuma obra que não indique uma abertura para a vida, que não trace um caminho entre os pavimentos. Tudo o que eu escrevi era vitalista, pelo menos assim o espero, e constituía uma teoria dos signos e do acontecimento. Não creio que o problema se coloque de forma diferente na literatura e nas outras artes, simplesmente não tive ocasião de fazer para a literatura o livro que eu desejaria.
R.B e F.E - A psicanálise percorre ainda, servindo de base mais ou menos nítida, mesmo se de forma singular, Diferença e Repetição e Lógica do sentido. A partir de O Anti-Édipo, primeiro volume de Capitalismo e esquizofrenia, ela torna-se claramente o inimigo a abater. Mas, mais profundamente ainda, ela passa a ser, desde aí, a visão por excelência do que é necessário se desfazer para poder pensar qualquer coisa nova, quase que para poder pensar de novo. Como é que isto se passou? E por que O Anti- Edipo foi o primeiro grande livro filosófico da conjuntura de maio de 68, talvez o seu primeiro verdadeiro manifesto filosófico? Este livro diz claramente, e logo no início, que o futuro não está numa síntese freudomarxista qualquer. Ele liberta de Freud (de Lacan e suas estruturas), como se pode acre-ditar que os «novos filósofos» se libertarão em breve de Marx (e da Revolução). Como você entenderia isto que aparece como uma singular analogia?
G.D - É curioso, não fui eu que tirei Félix da psicanálise, foi ele que me tirou a mim. No meu estudo sobre Masoch e depois na Lógica do sentido, eu acreditava ter resultados sobre a falsa unidade sadomasoquista, ou então sobre o acontecimento, que não estavam de acordo com a psicanálise, mas que podiam se conciliar com ela. Ao contrário, Félix era e continuava a ser psicanalista, aluno de Lacan mas à maneira de um «filho» que já sabia que não havia conciliação possível. O Anti-Édipo é uma ruptura que se faz sozinha a partir de dois temas: o inconsciente não é um teatro mas uma fábrica, uma máquina de produção; o inconsciente não delira sobre o papai-mamãe, ele delira sobre as raças, as tribos, os continentes, a história e a geografia, sempre um campo social. Nós procurávamos uma concepção imanente, um uso imanente das sínteses do inconsciente, um produtivismo ou construtivismo do inconsciente. Então nos apercebemos que a psicanálise não tinha nunca compreendido o que queria dizer um artigo indefinido (uma criança...), um tornar-se (tornar-se animal, as relações com o animal), um desejo, um enunciado. O nosso último texto sobre a psicanálise é a propósito do Homem dos lobos, no Mille Plateaux. como ela é incapaz de pensar o plural ou o múltiplo, uma matilha e não um único lobo, um ossário e não um osso único.
A psicanálise nos parecia uma empresa fantástica para aprisionar o desejo em impasses, e para impedir as pessoas de dizerem o que elas tinham para dizer. Era um empreendimento contra a vida, um canto de morte, lei e castração, uma sede de transcendência, uma ordenação, uma psicologia (no sentido em que não há outra psicologia senão a do padre). Se este livro teve importância depois de 68, é com efeito porque ele rompia com as tentativas freudo-marxistas: não procurávamos distribuir nem conciliar os níveis, mas, pelo contrário, colocar sobre um mesmo plano uma produção que era ao mesmo tempo social e desejante, a partir de uma lógica dos fluxos. O delírio operava no real, não conhecíamos outro elemento que não o real, o imaginário e o simbólico pareciam-nos falsas categorias.
O Anti-Édipo era a univocidade do real, uma espécie de espinozismo do inconsciente. Ora, creio que 68 foi esta mesma descoberta. Os que tinham ódio de 68, ou que justificavam o descrédito, consideravam que era simbólico ou imaginário. Mas justamente nunca foi isso, era uma intrusão do real puro. Em todo caso, não vejo a menor analogia entre o empreendimento de O Anti-Édipo com relação a Freud e o dos «novos filósofos» com relação a Marx. Isso me espantaria. Se O Anti-Édipo pretende criticar a psicanálise, é em função de uma concepção de inconsciente que, boa ou má, ali está detalhada. Enquanto os novos filósofos, quando denunciam Marx, não fazem de modo algum uma nova análise do capital, que perde misteriosamente toda a sua existência com eles, eles denunciam as conseqüências políticas e éticas stalinistas que supõem decorrer a partir de Marx. Estão mais próximos daqueles que culpavam Freud de consequências imorais, o que não tem nada a ver com filosofia.
R.B e F.E - Você reivindica sempre a imanência: isto faz o seu pensamento parecer mais pessoal, é um pensamento sem falta e sem negação, que retira sistematicamente qualquer visão de transcendência, qualquer que seja a forma dela. Dá vontade de lhe perguntar: Isto é realmente verdadeiro, e como se torna possível? Tanto mais que, apesar desta imanência generalizada, seus conceitos permanecem sempre parciais e locais. Depois de Lógica do sentido, parece que você ficou preocupado em produzir uma bateria de conceitos em cada livro novo. Certamente que se observam migrações, recortagens. Mas, globalmente, o vocabulário dos livros sobre cinema não é o mesmo do de Logique de la sensation, que por sua vez não é o mesmo de Capitalismo e esquizofrenia etc. Como se, em lugar de se retomar para se precisar, se apurar, se complicar, se acumular em relação a eles mesmos, se assim se pode dizer, os seus conceitos devessem a cada vez formar um corpo próprio, um nível de invenção específico. Será que isto pressupõe que eles são inapropriados para qualquer retomada numa reformulação de conjunto? Ou será que se trata somente de produzir uma abertura máxima, sem prejudicar nada? E como isto se concilia com a imanência?
G.D - Montar um plano de imanência, traçar um campo de imanência, foi feito por todos os autores dos quais me ocupei (mesmo Kant quando denuncia o uso transcendente das sínteses, embora se limite à experimentação possível e não à experimentação real). O Abstrato não explica nada, deve ser ele mesmo explicado: não há universais, não há transcendência, não há Um, não há sujeito (nem objeto), não há Razão, há somente processos que podem ser de unificação, de subjetivação, de racionalização, mas nada mais. Estes processos operam em «multiplicidades» concretas, é a multiplicidade o verdadeiro elemento onde alguma coisa se passa. São as multiplicidades que povoam o campo da imanência, um pouco como as tribos povoam o deserto sem que ele deixe de ser um deserto. E o plano de imanência deve ser construído, a imanência é um construtivismo, cada multiplicidade assinalável é como uma região do plano. Todos os processos se produzem sobre um plano de imanência e numa multiplicidade assinalável: as unificações, subjetivações, racionalizações, centralizações não têm nenhum privilégio, trata-se muitas vezes de impasses ou de barreiras que impedem o crescimento da multiplicidade, o prolongamento ou o desenvolvimento das suas linhas, a produção do novo.
Quando se invoca uma transcendência, pára-se o movimento para introduzir uma interpretação no lugar de experimentar. Bellour demonstrou-o bem no caso do cinema, para o fluxo das imagens. E, com efeito, a interpretação faz-se sempre em nome de alguma coisa que é suposto faltar. A unidade, é precisamente isto que falta à multiplicidade, como o sujeito, é este que falta no acontecimento («chove»). Certamente que há fenômenos de falta, mas é em função de um abstrato, do ponto de vista de uma transcendência, que seria somente aquela de um Eu, cada vez que se está impedido de construir um plano de imanência. Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado final, mas pela qualidade do seu curso e a potência da sua continuação: assim os tornar-se animais, ou as individuações não-subjetivas. Foi neste sentido que opusemos os rizomas às árvores ou -antes os processos de arborização como sendo limites provisórios que parariam um momento o rizoma e sua transformação. Não existem universais, somente singularidades. Um conceito não é um universal, mas um conjunto de singularidades, onde cada uma se prolonga até a vizinhança da outra.
Retomemos o exemplo do rittornello como conceito: ele está em relação como território. Há rittornellos no território, e que o marcam; mas também quando se procura encontrá-lo e se tem medo da noite; e ainda quando se o deixa, «adeus, eu parto...». E já como três posições diferenciais. Mas aí é porque o rittornello exprime a tensão do território com qualquer coisa de mais profundo, que é a Terra. Seja, mas a Terra é ainda a Desterritorializada, ela é inseparável de um processo de desterritorialização que é o seu movimento aberrante. Eis aqui um conjunto de singularidades que se prolongam umas nas outras, é um conceito que reenvia como tal a um acontecimento: um lied. Um canto sobe, se aproxima e se afasta. E isto que acontece no plano da imanência: as multiplicidades o povoam, as singularidades se conectam, os processos ou os devires se desenvolvem, as intensidades sobem ou descem.
Eu concebo a filosofia como uma lógica das multiplicidades (neste aspecto me sinto próximo de Michel Serres). Criar conceitos é construir uma região do plano, juntar uma região às precedentes, explorar uma nova região, preencher a falta. O conceito é um com-posto, um conglomerado de linhas, de curvas. Se os conceitos se de-vem renovar constantemente, é exatamente porque o plano de imanência se constrói por região, tem uma construção local, de proximidade em proximidade. E por isto que eles atuam por rompantes: no Mille Plateaux cada capítulo deveria ser um tal rompante. Mas isto não quer dizer que não sejam objeto de retomadas e de sistematização. Pelo contrário, há aí uma repetição como potência do conceito: é a ligação de uma região à outra. E esta ligação é uma operação indispensável, perpétua, o mundo como uma manta de retalhos. A sua dupla impressão, de um só plano de imanência e portanto os conceitos sempre locais, é então exata. O que substitui para mim a reflexão é o construtivismo. E o que substitui a comunicação é uma espécie de expressionismo. O expressionismo em filosofia tem o seu ponto mais alto com Ezpinoza e Leibniz. Um conceito de Outro, eu pensei encontrá-lo definindo-o como não sendo nem um objeto nem um sujeito(um outro sujeito), mas a expressão de um mundo possível. Alguém que tem dor de dentes, mas também um japonês que anda na rua, experimentam mundos possíveis. E eis que falam: falam-me do Japão, e é mesmo o japonês que me fala do Japão ou então ainda ele fala japonês: a linguagem neste sentido confere uma realidade ao mundo possível enquanto possível (se eu for ao Japão, pelo contrário, não se trata mais do possível). Mesmo desta maneira bem sumária, a inclusão dos mundos possíveis no plano de imanência faz do expressionismo o complemento do construtivismo.
R.B e F.E - Mas de onde vem esta necessidade de criar conceitos novos? Haveria assim um «progresso» em filosofia? Como você definiria as suas ocupações, a sua necessidade e mesmo o seu «programa» atualmente?
G.D - Suponho que haja uma imagem de pensamento que varia muito, que tem variado muito na história. Por imagem de pensamento, não entendo o método mas algo mais profundo, sempre pressuposto, um sistema de coordenadas, de dinamismos, de orientações: o que significa pensar, «se orientar no pensamento». De qualquer forma, está-se sobre o plano da imanência, mas para aí estabelecer verticalidades, se restabelecer a si mesmo, ou, ao contrário, se estender, correr ao longo de uma linha do horizonte, empurrar o plano cada vez mais longe? E quais as verticalidades que nos dão qualquer coisa a contemplar, ou então que nos fazem refletir ou comunicar? A menos que seja necessário suprimir toda a verticalidade como transcendência, e nos deitarmos sobre a terra abraçando-a, sem olhar, sem reflexão, privados de comunicação? E temos nós ainda conosco o amigo ou estamos sós, Eu=Eu, ou somos nós amantes, ou outra coisa ainda, e quais os riscos de se trair a si mesmo, de ser traído ou de trair? Não há um momento em que é preciso desconfiar até do amigo? Que sentido dar ao «Philos» de filosofia. E o mesmo sentido em Platão e no livro de Blanchot, L' Amitié, já que se trata sempre do pensamento? Depois de Empédocles há toda uma dramaturgia do pensamento.
A imagem do pensamento é como que o pressuposto da filosofia, ela a precede, não se trata de uma compreensão não-filosófica, mas de uma compreensão pré-filosófica. Há várias pessoas para quem pensar é «discutir um pouco». Está certo que é uma imagem idiota, mas mesmo os idiotas têm uma imagem do pensamento, e é somente trazendo à luz estas imagens que se pode determinar as condições da filosofia. Então nós fazemos do pensamento a mesma imagem que Platão ou mesmo que Descartes ou Kant? A imagem não se transforma seguindo disciplinas imperiosas, que sem dúvida exprimem determinismos externos, mas ainda mais, um devir do pensamento? Podemos nós ainda pretender que procuramos o verdadeiro, nós que nos debatemos no não-sentido?
É a imagem do pensamento que guia a criação dos conceitos. Ela é como um grito, enquanto que os conceitos são cantos. À questão: Existe um progresso em filosofia? torna-se necessário responder um pouco como Robbe-Grillet para o romance: não há nenhuma razão para fazer filosofia como Platão a fez, não porque ultrapassamos Platão, mas, ao contrário, porque Platão não é ultrapassável e não há nenhum interesse em recomeçar o que ele fez para sempre. Só temos uma alternativa: ou a história da filosofia ou enxertar Platão em problemas que não são mais platônicos.
Este estudo das imagens da poesia, se chamaria noologia, seriam os prolegômenos da filosofia. E o verdadeiro objeto de Diferença e Repetição, a natureza dos postulados na imagem do pensamento. E estive obcecado por esta questão na Lógica do sentido, onde a altura, a profundidade e a superfície são coordenadas do pensamento; retomo-a em Proust e os signos, uma vez que Proust opõe toda a potência dos signos à imagem grega e depois nós a reencontramos, com Félix, em Mille Plateaux, porque o rizoma é a imagem do pensamento que se estende sob a das árvores. Nesta questão não temos um modelo, nem mesmo um guia, mas um referente, um cruzamento a operar sem cessar: é o estado dos conhecimentos sobre o cérebro.
Há uma relação privilegiada da filosofia com a neurologia, vêmo-lo nos associacionistas, em Schopenhauer ou Bergson. O que nos inspira hoje não são os computadores, é a microbiologia do cérebro: este apresenta-se como um rizoma, grama em vez de uma árvore, an uncertain system(N.T) com mecanismos probabilitários, semialeatórios, quânticos. Não se trata de pensarmos a partir do conhecimento que temos do cérebro, mas de um pensamento totalmente novo marcado no cérebro das suturas desconhecidas, que o torce, o dobra ou o fende. Milagre de Michaux a este respeito. Novas conexões, novas freagens, novas sinapses, é o que a filosofia mobiliza criando conceitos, mas é também toda uma imagem onde a biologia do cérebro descobre com os seus meios próprios a semelhança material objetiva ou os materiais de potência.
O que me interessa no cinema é que o écran possa ser um cérebro, como no cinema de Resnais ou de Syberberg. O cinema não procede unicamente com encadeamentos por cortes racionais, mas com desencadeamentos sobre cortes irracionais: não é a mesma imagem do pensamento. O que havia de interessante no início dos vídeos era a impressão que alguns davam de operar por conexões e hiatos que não eram mais os da véspera, mas também não os do sonho nem mesmo do pesadelo. Um instante, e eles afloraram qualquer coisa que estava no pensamento. E tudo o que quero dizer: uma imagem secreta do pensamento inspira pelos seus desenvolvimentos, bifurcações e mutações a necessidade constante de criar novos conceitos, não em função de um determinismo externo mas em função de um devir que leva consigo os próprios problemas.
R.B e EE - O seu livro anterior era consagrado a Foucault. Tratava-se de história da filosofia? Por que Foucault? Quais as relações que as suas duas filosofias têm uma com a outra? Já em Foucault você introduziu a noção de prega. Existe uma relação Foucault-Leibniz?
G.D - Foucault é um grande filósofo, e também um espantoso estilista. Ele recortou de outra forma o saber e o poder e encontrou entre eles relações específicas. Com ele a filosofia tomou um sentido novo. Depois ele introduziu o processo de subjetivação como terceira dimensão dos «dispositivos», como terceiro termo distinto que recoloca os saberes e remaneja os poderes: ele abre assim toda uma teoria e uma história dos modos de existência, a subjetivação grega, as subjetivações cristãs... seu método repudia os universais e descobre os processos sempre singulares que se produzem nas multiplicidades. O que mais me influenciou foi a sua teoria do enunciado, porque ela implica uma concepção da linguagem como conjunto heterogêneo em desequilíbrio, e permite pensar a formação de novos tipos de enunciados em todos os domínios. A importância de sua obra «literária», de crítica literária e artística, só irá aparecer quando os artigos forem reunidos; um texto como La Vie des hommes infiâmes é uma obra-prima de comicidade e de beleza, existindo em Foucault qualquer coisa que está muito próxima de Tchekhov.
O livro que eu fiz não é de história da filosofia, é um livro que eu gostaria de ter feito com ele, com a idéia que eu tinha dele e a minha admiração por ele. Se este livro pudesse ter tido um valor poético, teria sido o que os poetas chamam de «túmulo». As minhas diferenças são muito secundárias: o que ele chamava de dispositivo, e que Félix e eu chamamos de agenciamento, não tem as mesmas coordenadas, já que ele constituía seqüências históricas originais enquanto que nós damos mais importância aos componentes geográficos, territorialidades e movimentos de desterritorialização. Nós sempre gostamos de uma história universal, o que ele detestava. Mas para mim era uma confirmação indispensável poder seguir o que ele fazia. Ele foi muitas vezes mal compreendido, o que não o aborrecia mas o perturbava. Ele dava medo, que é o mesmo que dizer que ele impedia somente pela sua existência a impudicícia dos imbecis. Foucault preenchia a função da filosofia definida por Nietzsche, «aborrecer a estupidez». Nele o pensamento é como que um mergulho que sempre traz alguma coisa à luz. E um pensamento que é feito de pregas, e de repente se solta como uma mola. No entanto não creio que Leibniz tenha tido uma influência particular sobre ele. Mas uma frase de Leibniz assenta-lhe particularmente bem: «Eu me acreditava chegando ao porto, e me encontrava atirado em pleno mar». Os pensa-dores como Foucault atuam por crises, espasmos, há neles qualquer coisa de sísmico.
A última via aberta por Foucault é extremamente rica: os processos de subjetivação não têm nada a ver com a «vida privada», mas designam a operação pela qual os indivíduos ou as comunidades se constituem como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos, que passam a dar lugar a novos saberes e no-vos poderes. E por isso que a subjetivação vem em terceiro, sempre em «destacado», numa espécie de prega, repregueamento ou pregueamento. Foucault assinala nos gregos o primeiro movimento de subjetivação, pelo menos no Ocidente, quando o homem libertado supõe que deve ser «mestre de si mesmo» se quiser ser capaz de comandar os outros. Mas as subjetivações são muito diversas, e daí o interesse de Foucault pelo cristianismo: este seria atravessado por alguns processos individuais (anacoretas) ou coletivos (ordens, comunidades), sem falar das heresias e das estruturas, e a regra não seria mais o controle de si. Talvez seja mesmo preciso dizer que, em muitas formações sociais, não são os mestres, mas antes os excluídos da sociedade que constituem os lugares de subjetivação: por exemplo, o escravo libertado que se queixe de ter perdido todo o status social na ordem estabelecida, e que estará na origem de novos poderes. O lamento tem uma grande importância não só poética, mas histórica e social, porque ele exprime um movimento, de subjetivação («Pobre de mim...»): há toda uma subjetivação elegíaca. O sujeito nasce nas lamentações tanto quanto na exaltação. Foucault estava fascinado pelos movimentos de subjetivação que se desenham hoje nas nossas sociedades: quais são os processos modernos que estão produzindo a subjetividade? Então, quando se fala de um retorno ao sujeito em Foucault, é porque não se está vendo de forma alguma o problema que ele coloca. Aí, também, não vale a pena discutir.
R.B e F.E - Com efeito, vêem-se bem em O Anti-Édipo pedaços da história universal, com a distinção das sociedades codificadas, dos estados sobrecodificantes, e do capitalismo que descodifica os fluxos. Depois, no Mille Plateaux, você retoma este tema e introduz uma oposição das máquinas de guerra nômades e dos Estados sedentários: você propõe uma «nomadologia». Mas será que existem posições políticas daí decorrentes? Você fez parte do G.I.P.(NT) com Foucault, você apoiou a candidatura de Coluche; você tomou posição a favor da Palestina. Mas depois de 68 você parece mais «silencioso», muito mais que Guattari. Você ficou afastado do movimento dos direitos humanos, da filosofia do Estado de direito. Isto é por escolha, reticências, decepção? Não há um papel do filósofo na cidade?
G.D - Se trata de reconstituir transcendências ou universais, de restabelecer um sujeito de reflexão portador de direitos, ou de instaurar uma intersubjetividade de comunicação, não se trata de uma grande invenção filosófica. Querem fundar um «consenso», mas o consenso é uma regra ideal que não tem nada a ver com a filosofia. Dir-se-ia uma filosofia-promoção, muitas vezes dirigida contra a U.R.S.S. Ewald mostrou como os direitos do homem não se contentavam com um sujeito de direito, mas colocavam problemas jurídicos bastante interessantes. E, em muitos casos, os Estados que espezinham os direitos do homem são uma espécie de excrescências ou dependências daqueles que deles reclamam, que se diriam duas funções complementares.
Não se pode pensar o Estado senão em relação com aquilo que o ultrapassa, o mercado mundial único, e com aquilo que ele ultra-passa, as minorias, os devires, as «pessoas». E o dinheiro que reina naquilo que o ultrapassa, é ele que comunica, e o que nos falta atual-mente não é certamente uma crítica ao marxismo, é uma teoria moderna do dinheiro que fosse tão boa quanto a de Marx e que a prolongasse (os banqueiros estariam mais aptos a fornecer elementos que os economistas, se bem que o economista Bernard Schmitt tenha avançado neste domínio). E, naquilo que ele ultrapassa, são os devires que escapam ao controle, as minorias que não cessam de ressuscitar e de levantar a cabeça. Os devires não são de forma alguma a mesma coisa que a história: mesmo estrutural, a história pensa geralmente em termos de passado, presente e futuro. Dizem-nos que as revoluções acabam mal, que o seu futuro engendra monstros: é uma velha idéia, não se esperava Stalin, e era verdadeiro de Napoleão, de Cromwell. Quando se diz que as revoluções têm um mau futuro, ainda nada se disse sobre o devir revolucionário das pessoas. Se os nômades nos interessaram tanto foi porque eles são um devir, e não fazem parte da história: eles estão excluídos dela, mas se metamorfoseiam para reaparecer em qualquer lugar sob formas inesperadas nas linhas de fuga do campo social. Esta é mesmo uma de nossas diferenças com Foucault: para ele o campo social era atravessado por estratégias, para nós ele foge por todo lado. Maio de 68 foi um devir fazendo uma irrupção na história, e é por isto que a história o compreendeu tão mal, e a sociedade histórica tão mal o assimilou.
Falam-nos do futuro da Europa, da necessidade de colocar de acordo os bancos, as seguradoras, as empresas, as polícias, consenso, consenso, mas, os devires das pessoas, a Europa prepara-nos estranhos devires como novos 68? O que é que as pessoas vão se tornar? E uma questão cheia de surpresas, que não é a do futuro, mas a do atual ou intempestivo. Os palestinos são o intempestivo do Oriente Médio, que levam ao ponto mais alto a questão do território. Nos Estados de não-direito, o que conta é a natureza dos processos de libertação, forçosamente nômades. E nos Estados de direito, não são os direitos adquiridos e codificados, mas tudo o que causa atualmente problema para o direito e pelos quais o adquirido se arrisca sempre a ser colocado em questão. Não nos faltam tais problemas, atualmente o código civil tende a rebentar por todos os lados e o código penal conhece uma crise igual à das prisões. O que é criador de direito não são os códigos ou as declarações, mas a jurisprudência. A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, prolongamento de singularidades. Certamente que tudo isto pode levar a tomadas de posição caso tenha-se algo a dizer. Mas hoje não é suficiente «tomar posição», mesmo concretamente. Seria preciso um mínimo de controle sobre os meios de expressão. Senão, voltamos rapidamente a encontrar-nos na televisão respondendo a questões idiotas, ou num face a face, num costa a costa, «discutindo um pouco». Participar então na produção da emissão? É difícil, é um ofício, nós não somos mesmo mais os clientes da televisão, os seus verdadeiros clientes são os anunciantes, os famosos liberais. Não seria divertido se os filósofos fossem financiadores, que eles estivessem cheios de máscaras sobre suas roupas, mas talvez isto já esteja feito. Fala-se de uma demissão dos intelectuais, mas como se exprimiriam eles com meios universais que são uma ofensa a todo o Pensamento? Eu creio que a filosofia não tem falta de público nem de propagação, mas é como um estado clandestino do pensamento, um estado nômade. A única comunicação que poderíamos desejar, como perfeitamente adaptada ao mundo moderno, é o modelo de Adorno, a garrafa lançada ao mar, ou o modelo nietzschiano, a flecha lançada por um pensador e apanhada por outro.
R.B e F.E - Le pli, consagrado a Leibniz (mesmo se o seu nome só vem em subtítulo e com um tema: «Leibniz e o barroco»), parece reatar com uma longa série dos seus livros consagrados às figuras de filósofos: Kant, Bergson, Nietzsche, Espinoza. E, no entanto, sente-se bem que é muito mais um livro de que um livro sobre. Ou antes que é, de uma forma espantosa, os dois ao mesmo tempo, sobre Leibniz e o todo do seu pensamento, mais do que nunca inteiramente presente. Como você sente esta coincidência? Dir-se-ia que este livro reintegra, por cumplicidade com os conceitos de Leibniz, séries de conceitos vindos de outros livros seus, reunindo um pouco todos os dados de uma forma muito leve, para produzir um novo dado de caráter mais global.
G.D - Leibniz é fascinante porque talvez nenhum outro filósofo tenha criado mais do que ele. São noções extremamente bizarras aparentemente, quase loucas. A sua unidade parece abstrata, do tipo «o predicado está no sujeito», somente o predicado não é um atributo, é um acontecimento, e o sujeito não é um sujeito, é um invólucro. Há aí, no entanto, uma unidade concreta do conceito, uma operação ou uma construção que se reproduz neste plano, a Prega, as pregas da terra, as pregas do organismo, as pregas na alma. Tudo se pregueia, se despregueia, se repregueia em Leibniz,apercebemo-nos das pregas, e o mundo é pregueado em cada alma que despregueia tal ou tal região conforme a ordem do espaço e do tempo (harmonia). Rapidamente, pode-se pensar a situação não-filosófica a que Leibniz nos remete como uma capela barroca «sem porta nem janela» onde tudo é interior, ou como uma música barroca que extrai a harmonia da melodia. É o Barroco que eleva a prega ao infinito, vemo-lo nos quadros de Greco, nas esculturas de Bernin, e que nos abre uma compreensão não-filosófica por perceptos e afetos.
Este livro e para mim ao mesmo tempo uma recapitulação e um seguimento. E necessário seguir Leibniz ao mesmo tempo nos seus grandes discípulos filósofos (é sem dúvida o filósofo que teve mais discípulos criadores), mas também nos artistas que dele razem eco mesmo sem saberem, Mallarmé, Proust, Michaux, Hantaí, Boulez, todos os que elaboram um mundo de pregas e despregueados. Tudo isto é um cruzamento, uma conexão múltipla. A prega está longe de ter hoje esgotado todas as suas potências, é um bom conceito filosófico. Eu fiz este livro nesse sentido, e ele me deixou livre para o que eu queria naquele momento. Queria fazer um livro sobre o que é filosofia? com a condição que fosse breve. E também Guattari e eu queríamos retomar o nosso trabalho comum, uma espécie de filosofia da Natureza, no momento em que toda a diferença se atenua entre a natureza e o artifício.Tais projetos bastam a uma velhice feliz.
* Escritor e jornalista francês
** Professor e escritor francês, jornalista de «Magazine Litteraire»
Artigo extraído da revista “Magazine Littéraire”, no 257, set./1988.
Tradução do francês por Ana Sacchetti
NOTAS DO TRADUTOR
(1) Em inglês no texto original: «um sistema incerto»
(2) G.I.P. -Groupe d'ê Information sur les Prisons (Grupo de Informação sobre as Prisões)
cooperação.sem.mando

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

divulgação: DOSSIER DELEUZE - Apresentação

Estou postando as partes iniciais, o Sumário e a Apresentação do Dossier Deleuze, organizado por Carlos Enrique de Escobar. No decorrer do tempo postarei os textos.
DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR
Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar
HÓLON EDITORIAL
1991
Depois de uma primeira etapa consagrada a trabalhos da história da filosofia, que teria culminado com o Nietzsche (1962), Gilles Deleuze elaborou com Diferença e Repetição (1969) — e depois com os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia (1972 e 1980), escritos com Félix Guattari — uma filosofia própria. E, após escrever sobre pintura e sobre cinema, retorna com uma abordagem mais clássica da filosofia — porque, para ele, a filosofia tem uma função que permanece perfeitamente atual: criar conceitos. Para Gilles Deleuze o que interessa é o conceito (que comporta duas outras dimensões, as do percepto e do afeto), e não as imagens. Os perceptos não são as percepções, mas conjuntos de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que as experimentam; e os afetos não são sentimentos, mas esses devires que desbordam o que passa por eles. A filosofia tem necessidade não somente de compreensão filosófica, por conceitos, mas de uma compreensão não--filosófica, a que opera por perceptos e afetos. Ambos são necessários. A filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela se dirige diretamente aos não-filósofos. Um grande filósofo é aquele que convence seus leitores a levar doravante uma vida filosófica. Gilles Deleuze os convence. Não é necessário que todos tenham êxito nisso; é suficiente que todos que o leiam percebam que tal vida está doravante aberta. A importância de Gilles Deleuze, como a de todo filósofo autêntico, consiste em que, à diferença da maior parte dos filósofos de hoje, ele não encontra, onde quer que vá, nada que seja da ordem da ideologia. Gilles Deleuze segue um método. Ele introduziu na filosofia, ou retomou nela explicando-os, um certo número de conceitos que não tinham aí nem esse lugar nem essa duração, ou que os tinham sob outra forma e segundo outra lógica. Gilles Deleuze via na filosofia francesa do pós-guerra uma escolástica comentadora da história da filosofia, com suas escolas, suas leituras, suas imitações, que se formaria à volta da fenomenologia e, em seguida, do estruturalismo. Como sair da história da filosofia', como caminhar fora dela e inventar novas questões? É esta procura de uma outra imagem do pensamento' que Gilles Deleuze perseguirá em toda sua obra — através de uma fabulosa colagem de saberes, de escrita, de pintura, de cinema e de política. Talvez seja esta a questão do seu idioma, do seu tornar-se singular: "O propósito não é responder às questões — é sair delas”. O que acontece com os escritos de Gilles Deleuze é uma mudança de perspectiva na leitura dos grandes filósofos do passado, produzindo novas e diferentes visões em relação à história da filosofia, analisando filosoficamente as artes plásticas, o cinema e a literatura, criando um pensamento próprio, fora do sistema estabelecido, e trabalhando em conjunto com outras áreas do conhecimento. Para Gilles Deleuze a filosofia não tem a obrigação de buscar os modelos em-si, mas tem a função de inventar e produzir conceitos, onde arte, filosofia e vida se afirmam num mesmo mundo como expressão vital.
SUMARIO
Apresentação, 7
Signos e acontecimentos - Entrevista realizada por Raymond Bellour e François Ewald, 9
Leibniz: um mundo único e relativo - Bruno Paradis, 31
A vida filosófica - François Regnault, 40
O último curso? - Giorgio Passerone, 52
Lógica do sentido, ética do acontecimento - John Rajchman, 56
Pensar em Espinoza - Pierre Macherey, 62
Deleuze e Nietzsche ou o inverso... Marc B. Delaunay, 69
A fissura do pensamento - Jacob Rogozinski, 73
Foucault, Deleuze: um diálogo fecundo e ininterrupto - François Ewald, 79
I - Anti-Edipo: uma introdução à vida não-fascista - Michel Foucault, 81
II - Foucault, historiador do presente - Gilles Deleuze, 85
A esquizo-análise - François Ewald, 89
O plissado barroco da pintura - Christine Buci-Glucksmann, 93
Um filósofo no cinema - Reda Bensmaia, 98
Deleuze no mundo - H. Tomlinson e R. Galeta, G. Passerone, K. Uno, D. Polan, 104
Mil platôs não formam uma montanha...Debate com G. Deleuze, C. Descamps, Didier Eribon e Robert Maggiori, 115
Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia de Kant - G. Deleuze, 127
Instintos e instituições - G. Deleuze, 134
Um dia o século será deleuziano - Murilo Mendes e Léa M. Guimarães, 138
Alguns dos motivos deleuzianos - Carlos Henrique de Escobar, 144
Notas Biográficas, 174
Bibliografia (Org. Dominique Séglard), 175
APRESENTAÇÃO
Dossier Deleuze continua a coleção Dossier, onde Dossier Foucault (editado em 1984) foi o livro de abertura. Esgotado há algum tempo, pensamos hoje em reeditá-lo. Nosso propósito é o mesmo. Isto é, ampliar o estudo da filosofia francesa contemporânea e torná-la, não um modelo a ser simplesmente imitado, mas um estímulo complexo e diversificado que deve ser pensado.
Os filósofos franceses e os filósofos europeus não existiram ou existem para serem copiados. No Brasil (com seu espírito colonial e sem tradição cultural e filosófica) alguns destes filósofos foram imitados e, inclusive, «imitados fisicamente». Veja-se o caso dos lacanianos do Rio de Janeiro que se vestiram e se vestem como «Lacan» (quando vivo) e o caso não muito recente de um grupo de deleuzianos também no Rio que tem tentado fazer o mesmo. Se o motivo é ingênuo e pueril ou se é torpe (isto é, uma tentativa de «aparelhar» estes filósofos num propósito de lucros materiais ou de luta pelo poder intelectual local), pouco importa. O que para nós é mobilizador nesta infeliz atitude concerne ao prejuízo intelectual daí resultante, já que de resto brasileiros e franceses têm rido com esta história. Veja-se, por exemplo, a esterilidade destes deleuzianos em publicações, reflexões próprias e originalidade de idéias. A mesma esterilidade pode-se observar entre os lacanianos locais, mas de forma inversa. Este grupo é pródigo em publicações, no entanto estas publicações escondem com dificuldade seu caráter promocional em torno de um dos seus representantes, ou são então divulgações absolutamente comprometedoras do lacanismo no Brasil.
Ao nosso ver, a originalidade filosófica é uma exigência irrecusável visto que jamais em filosofia se trata de verdade ou lei. A «filosofia é criação de conceitos» e tem muito pouco a ver com professores e copiadores, como diz Deleuze (vide a Entrevista que abre o Dossier). Ainda que ao nosso ver a época da «volta a Marx», ou «volta a Freud» ou «volta» a não importa quem tenha se esgotado, cabe as-sumir a tarefa dupla em filosofia, dos estudos e publicações sérias em torno das grandes filosofias e da elaboração singular e original de pensamentos.
As publicações, e por princípio, em nossos trabalhos editoriais têm, então, duas diretrizes: divulgar com seriedade filosofias e depoimentos no universo dos motivos trágicos e assegurar a publicação (e meios de debate) a pensamentos originais entre nós.
por: Carlos Henrique de Escobar
cooperação.sem.mando

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

espinhenta-vida

não suportou mais nenhuma das inverdades do mundo. comia pouco. e o pouco lhe excedia. sentia muito. e o muito lhe matava. então passou a sentir pouco. um dia, houve, em que não pôde mais comer ou sentir. nem nada. então passou a viver de água pouca e de uma leve brisa. em dia de temporal, era como se o mundo acabasse. sentir, então, era como que tivesse caído sobre um porco-espinho. ou um cactus.

alheias poetagens

Viver era um equivoco./ o medo tinha forma obscura e pouca luz./ talvez por isso/ ele era estranho com as portas./ gostava mesmo era de andar na noite/ sempre com a lua debaixo do braço./ no bolso, três estrelas/ ainda frescas pelo fim da tarde/ e uma flor amassada/ entre os dedos de ontem./ a noite tinha coisas esquisitas/ como aquele homem que diziam/ virava bicho/ o que uivava/ o que colhia lâmpadas/ e garimpava o lixo./ o que virava chuva/ mais tarde tempestade./ o que matava moscas./ o que era vidro/ no que tinha medo de copos./ o devorador de palavras/ o de navalha no bolso/ junto do outro na dúvida./ o que lia os olhos/ como se fosse o mago/ o magro que mostrava os ossos/ o velho que virava mocó/ quando falava/ o que não falava nada e ria/ o que vendia flor na carne/ o que vendia bíblia./ o imóvel./ o que movia a mobília/ para que a manhã fosse outra./ o que pescava/ caranguejo e ostras. E o mar mudo/ era um menino/ observando o tempo/ a areia/ e os homens (Emmanuel Marinho).

domingo, 26 de dezembro de 2010

divulgação: I - TEMPO DOS ANJOS - 5 - O ANJO DE SWEDENBORG

Escrito de Peter Pál Pelbart, em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993.
I - TEMPO DOS ANJOS - 5 - O ANJO DE SWEDENBORG
Na última página do imenso romance de Robert Musil, O homem sem qualidades, o anti-herói de nome Ulrich apanha da estante um livro e lê uma surpreendente descrição acerca dos anjos. O autor deste curioso texto sobre os anjos é Swedenborg, um visionário e místico sueco do século XVIII, célebre em sua época como cientista e teósofo, respeitado por Kant e Goethe, e fundador de uma seita que ainda hoje tem seguidores nos Estados Unidos. Swedenborg fez uma descrição tão minuciosa e segura da topografia do Céu e da natureza dos anjos que se tem a impressão, como diz Musil, que o autor está a nos descrever Estocolmo e seus habitantes (Robert Musil, O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1989, p.859). O que diz Swedenborg de tão intrigante? Que os anjos, ao contrário dos homens, não conhecem as determinações do tempo, isto é, os dias, os meses, os anos. Tampouco conhecem a dimensão do amanhã, do ontem, do hoje. Quando nos ouvem falar em tempos, os anjos que nos acompanham (pois os anjos sempre acompanham os homens) entendem estados. Nós, homens, pensamos a partir do tempo, eles, anjos, pensam a partir dos estados, e vivem exclusivamente modificações de estados. Claro, também no Céu, como na Terra, os fenómenos se sucedem uns aos outros, porém com esta diferença crucial: os anjos não têm a menor opção de tempo e espaço. No seu mundo, que não é natural, porém espiritual, os movimentos acontecem mediante modificações de estado, e não através de deslocamentos espaciais. Para um anjo não existem distâncias a serem transpostas. O próprio Swedenborg relata uma experiência pessoal sua, a de ter sido alçado por Deus à esfera celeste e à consciência dos anjos, sendo conduzido por Ele através dos reinos do Céu até os astros do Universo, sem que o seu corpo se tivesse sequer movimentado. É dessa maneira que os anjos se movem. Por exemplo, se sentem desejo por alguém, imediatamente lhe ficam visíveis, pois se colocam através deste desejo em seu estado. Se sentem repulsa, logo se afastam, pois se afastam do seu estado. Da mesma forma, se vão de um paradeiro a outro em meio a um jardim ou um átrio, chegam mais depressa caso anseiem por isso, chegam mais devagar quando o anseio é menor.
Hoje podemos considerar extravagante a angelologia de Swedenborg, mas é inegável o interesse que oferecem esses anjos, seres que não conhecem o tempo nem o espaço, que só conhecem estados, que vivenciam apenas modificações de estado (Klossowski chamaria a isto de intensidades), que não sabem o que é um dia, nem um dia depois do outro, nem um amanhã, nem a eternidade de um tempo infinito, apenas a eternidade de um estado infinito. Anjos um pouco psicóticos: alheios à história, à sucessão cronológica, ao encadeamento temporal, à continuidade individual, sujeitos a transformações bruscas, deslocamentos repentinos, mudanças de estado inusitadas. Não nos deveria surpreender o fato de que Karl Jaspers tenha utilizado também estas descrições de angelologia sueca para formular seu diagnóstico psiquiátrico sobre Swedenborg, colocando-o lado a lado de outros três génios loucos, Van Gogh, Holderlin e Strindberg (Karl Jaspers, Stríndberg et Van Gogh, Swedenborg-Holderlin, Étude Psychiatrique Comparative, Paris, Minuit, 1953).
Mas como são diferentes, estes anjos vistos por Swedenborg daqueles outros, filmados por Wim Wenders! Os que Wenders retrata em Asas do Desejo flutuando sobre Berlim banham-se na tediosa mesmice de uma eternidade vazia, testemunhas inefáveis do grande e metafísico bocejo divino. Ora, os anjos de Swedenborg, ao contrário, nada têm de entediados ou repetitivos. Talvez porque não estejam apenas observando o mundo; estão constantemente tornando-se outra coisa, sempre metidos em devir-alguma-coisa, em devir-algum-estado, em devir-algumestado-de-alguém-ou-de-alguma-coisa. Não são anjos metafísicos, especulativos, olheiros, eternitários. Não são anjos-filósofos, mas anjos crianças. Vivem as oscilações, os bruscos afastamentos e aproximações, as intensidades, uma disritmia, uma cronoilógica, descontinuidades, intempestividades, estados: devires bem próximos da loucura. Será isso que os torna tão deleuzeanos? Anjos deleuzeanos avant Ia lettre ...
Somos muito diferentes, nós, desses anjos de Swedenborg. Nós temos os minutos, as horas, a divisibilidade do tempo, sua calculabilidade, esta homogeneidade que alguns chamam de científica; temos os dias, os meses, as estações do ano, a sucessão do tempo, sua linearidade e continuidade, seu acúmulo, esta progressão que alguns chamam de histórica.
Ora, é precisamente Deleuze quem nos alerta para a diferença entre história e devir. Ou seja, para usar a terminologia de Swedenborg, Deleuze estaria sugerindo que é preciso pensar a diferença entre o tempo ou a continuidade do tempo, próprio dos homens, por um lado, e estados e modificações de estado, próprio dos anjos, por outro. Não creio estar exagerando ao dizer que a obra inteira de Deleuze, mas também — e talvez principalmente — a de Deleuze-Guattari consistiu num esforço incansável e generoso de espraiar essa distinção entre história e devir para além do domínio exclusivamente filosófico (ainda que sua explicitação nestes termos tenha sido tardia), fazendo-a incidir no campo da clínica, da estética, da política, da existência. Mas para que isso acontecesse era preciso que essa operação fosse também eminentemente filosófica. Pois a história corresponde a uma certa concepção do tempo, o devir a outra. Para diferenciá-los, é necessário poder trabalhar com duas concepções distintas do tempo, duas abordagens diferenciadas da temporalização. Está implícito, nesta operação, o abandono de uma certa concepção corrente do tempo, e sua subversão. A subversão de um conceito de tempo não é um luxo especulativo, mas uma espécie de necessidade, de urgência conceituai, que acompanha qualquer cirurgia subjetiva, histórica, cósmica. Mas deixemos falar um autor que definiu com precisão a relevância política de uma subversão na ideia do tempo, — o discreto estudioso de Walter Benjamin, Giorgio Agamben. Escreve ele: "A toda concepção de história está associada uma certa experiência do tempo, que lhe é inerente, que a condiciona e que se trata, precisamente, de revelar. Do mesmo modo, toda cultura é primeiramente uma certa experiência do tempo, e não há cultura nova sem transformação dessa experiência. Por isso, o primeiro objetivo de uma verdadeira revolução jamais é de "mudar o mundo", pura e simplesmente, mas também, e sobretudo, de "mudar o tempo". O pensamento político moderno, que concentrou sua atenção na história, não elaborou uma concepção de tempo correspondente. Mesmo o materialismo histórico omitiu-se, até o presente momento, de elaborar uma concepção de tempo que fosse à altura de sua concepção da história. Esta omissão, sem que ele desconfiasse, obrigou-o a recorrer a uma concepção do tempo que domina a cultura desde há séculos; de modo que coexistem nele uma concepção revolucionária da história e uma experiência tradicional do tempo. A representação vulgar do tempo, a de um continuum pontual e homogéneo, acabou desbotando o conceito marxista de história", conclui Agambe (Giorgio Agamben , Enfance et hisloire, Paris, Payot, 1989, p. 114). Embora o messianismo histórico de Benjamin cruze da forma mais surpreendente as subversões deleuzeanas, não é o momento aqui de seguir a análise de Agamben, de resto preciosa.
O que significa então a subversão na ideia de tempo que permita operar a diferença entre história e devir? Recorde-se o que aconteceu nas ruas brasileiras a respeito do impeachment do presidente Fernando Collor. Um chamamento desastroso do primeiro mandatário para que o povo saísse às ruas em sua defesa com as cores verde-amarela, fez com que o negro tomasse conta das cidades. Jamais se viu tantas mocinhas gorduchas virando esbeltas, a pele rugosa tornando-se diáfana, a rua tomando um aspecto luxuoso, graças a uma única cor: o preto. Pareciam todos preparados para a mais elegante noitada. Ao mesmo tempo, os que foram surpreendidos pela passeata improvisaram um utensílio preto qualquer, trapo, malha, chinelo, bolsa, e os brandiram na mão como se fossem punhais. Na falta de outra coisa, o limpador de pára-brisa funcionando já bastava, pois era preto. Os jovens pintaram o rosto com tinta preta e branca, às vezes com faixas verdes e amarelas; as mais estranhas maquiagens davam a impressão de que se estava sobre um palco gigante, numa encenação monstruosa —o grande teatro cívico.Mas também todos os negrófilos se achegaram, punks das mais diversas seitas, com suas correntes, alfinetes, bótons, cabelos espetados ou carecas provocativas; anarquistas de todo tipo, igualmente alguns originalmente enlutados, para não falar nos sóbrios que sempre se escondem por trás do preto, sabe-se lá por quê, talvez para virarem um pouco invisíveis. E aos gritos, hinos, risos, danças, o carnavalesco debochado contagiou com uma graça juvenil uma multidão indignada. Mas não há como dizer que estava-se apenas protestando contra Collor. Criou-se ali uma dramaturgia política específica, um figurino inédito, uma coreografia particular, um ritual incomum, que fazia ressoar a elegância e o luto, a extravagância e a morbidez, a máscara e o corpo, o teatro e a vida, a tinta dos índios, a bandeira brasileira, o negro da alma, a lama tupiniquim. Uma produção coletiva que em nenhum momento hesitaríamos em classificar de rigorosamente estética, e cuja atmosfera era a da improvisação da arte, do gesto intempestivo que inventa uma nova composição com a rua, com as cores, com os corpos, com a cidade. Ali, por essas poucas horas, nessa irrupção criativa, cada qual fez de seu corpo uma obra de arte, um estandarte, cada um fez do seu rosto uma superfície de inscrição (para o lema Fora Collor) ou uma máscara; cada pessoa se transfigurou, assumiu um estado. Cada um embarcou em algum devir-negro, devir-índio, devir-punk, devir-saltimbanco, devir-mago, devir-noite.
Paralelamente, de algum modo a massa negra e debochada enganchou-se com todos os carnavais da história, com a indignação de todos os driblados e engabelados de todos os tempos, mas também com todos os enterros soturnos, bailes noturnos, concertos metaleiros, com todos os negros túneis da história.
Ou seja, criou-se ali um espaço-tempo inédito (pois nunca o Brasil havia assistido a algo semelhante), porém um espaço-tempo com uma ressonância imemorial (todos os carnavais da história, o luto de todos os homens por todas as mortes de todos os séculos..)- Talvez seja o mais difícil de compreender, o inédito e ao mesmo tempo o imemorial, este instantâneo desenganchado de qualquer inserção encadeada no tempo e ao mesmo tempo o ancestral ilocalizado. Engendra-se aí uma espécie de temporalidade não localizada, não localizável, não deduzível ou desdobrável a partir do que precede (por isso mesmo não previsível, não programável, não dialetizável, não historicizável) — um tempo sem lugar, sem topos, a-tópico, utópico. É nesses momentos intempestivos que a suspensão da continuidade temporal vem interromper a mansa ou conflituosa sequência dos dias e noites. É nesses instantes de grande ou pequeno desvio que algo escapa à história, perturba a história, conturba a história. Um acontecimento atravessou feito um raio as ruas do Brasil, uma transformação de estados tomou conta das gentes, uma afirmação extemporânea disrompeu nossa tradição de contínua barbaridade política. Claro, no dia seguinte o Brasil não era mais o mesmo; pouco depois o Supremo Tribunal Federal aprovava o rito de impeachment proposto pela Câmara, o Congresso votou contra Collor, as instituições incorporaram e deglutiram rapidamente esta modificação, a História do Brasil teve alterado o seu curso. O acontecimento recaiu na história. No entanto, por um instante ele esteve acima da história, alçado numa autosuficiência, num autoposicionamento imanente que extrapolava
em muito tudo o que o poderia explicar ou situar, pois o que se forjou ali nas ruas não foi apenas a preparação do impedimento jurídico de um corrupto, mas a invenção de uma cena nova, embora imemorial, no repertório humano, esta dos corpos embandeirados numa soturna alegria tirando a história dos trilhos, exercendo a prática da interrupção (ou aceleração brusquíssima) do tempo, inventando uma festa sem tempos, uma festa de estados. Com isso, o Brasil, como os anjos de Swedenborg, simplesmente deixou de viver um dia depois do outro.
Não são sempre ruidosos os devires, assim como não são necessariamente espetaculares as interrupções temporais, bem como nem sempre são visíveis os acontecimentos. Muito pelo contrário, não raro são discretos, silenciosos, um pouco sem começo nem fim, no interstício das visibilidades, nos tempos mortos, nos buracos de uma vida, na iminência prolongada de uma espera ou lentidão. Seja como for, sempre fica a pergunta de como se articulam esses acontecimentos, devires, interrupções, com o curso da história, dessa história visível, formulável, com seus contornos definidos, suas progressões, seu sentido. Numa das mais belas questões feitas a Deleuze, o ex-terrorista italiano exilado na França, Toni Negri, especialista em Espinosa, faz o seguinte comentário (dirige-se diretamente a Deleuze): "Você sentiu os acontecimentos de 68 como o triunfo do Intempestivo, a realização da contra-efetuação. Já nos anos que antecederam 68, (...) o político é reconquistado por você como possibilidade, acontecimento, singularidade. Há curto-circuitos que abrem o presente para o futuro. E que modificam, portanto, as instituições." E aí vem a pergunta: "Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade"? (Gilles Deleuze, Conversações, op. cit.).
Prolongar na história o esplendor do acontecimento — a fórmula é belíssima. E a resposta de Deleuze não é menos magnífica: "os processos de subjetivação, isto é, as diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as coletividades se constituem como sujeitos, só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. [São] novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar." Ora, se eles não se explicam pelo os que precede, é porque não estão encadeados, dialetizados, é porque obedecem a uma lógica outra da ruptura, que nada tem a ver com contradição, e sim com uma linha de fuga, uma invenção intempestiva, a criação inusitada, com aquilo que faz fugir a história e seus contornos. E a conclusão de Deleuze dá a essa ideia um desfecho inesperado: "Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos."
Como prolongar o esplendor do acontecimento na história, como prolongar o devir na história? pergunta Negri. Deleuze responde: criando outros acontecimentos, outros devires. E especifica: criar acontecimentos é engendrar novos espaçostempos.
Diante de uma ideia assim enigmática, cabe-nos pacientar o pensamento. Para observar, primeiramente, que seria impossível engendrar novos espaços-tempos se nos mantivéssemos presos a uma representação vulgar, uniforme, homogénea, abstraia, linear, do tempo, numa cidade também vista como apenas um não-lugar de circulação, espaço vazio e homogéneo, geométrico. Pois de que modo se quer pensar novos espaçostempos
se vemos constantemente um homem sem qualidades circulando num espaço sem qualidades em meio a um tempo sem qualidades? O homem qualquer, num instante qualquer, num lugar qualquer — eis o melancólico niilismo que certos cineastas souberam retratar tão bem, que nós vivemos com uma complacência tão morna, que suportamos tão tolamente como se fora um destino inelutável.
Em face disso, corno engendrar novos espaços-tempo, senão operando no mais fundo do tempo esta intervenção tão prática, pragmática, de liberar os estados de dentro dos tempos, de reencontrar no mais fundo da alma do "homem qualquer" um anjo de Swedenborg asfixiado...? É preciso acrescentar que quem contempla esta cena com compaixão quase divina é o anjo de Wenders? A eternidade vazia observa o devir saltando de dentro da história...
Os gregos já entendiam que ao lado de Chronos — esse tempo da medida, que fixa coisas e pessoas, que desenvolve uma forma e determina um sujeito, que constitui um 'tempo pulsado' (que é o mais conhecido por nós, pois se assemelha à concepção vulgar ou histórica que temos do tempo) —, há um outro tempo, que eles chamam de Aion, que é um tempo sem medida, tempo indefinido, que não cessa de dividir-se quando chega, sempre já ali (o imemorial) e ainda não-ali (o inédito), sempre cedo demais e tarde demais, o tempo do "algo vai suceder" e simultaneamente o "algo acabou de acontecer", esse tempo dojorrar do tempo, bifurcado, tempo não métrico, não pulsado, feito de pura velocidade, tempo flutuante que vemos na psicose, na poesia, no sonho, nas catástrofes, em alguns videoclips, nas grandes e micro-rupturas, coletivas ou individuais; tempo do devir, diríamos, se não soubéssemos, já a esta altura, que o devir não é o tempo, nem o tempo irregular, nem mesmo o tempo efémero contraposto a uma suposta eternidade, nem a finitude travestida e castração, porém outra coisa, algo como a produção de velocidades e lentidões...
Por comodidade e hábito dizemos ainda "tempo", embora já saibamos que este tempo não é mais cronológico, e não está referido a um movimento centrado, com suas invariantes (ponto de gravidade, pontos privilegiados por onde passa o móvel, ponto de fixidez em relação ao qual ele se move). Aqui, ao contrário, as aberrações do movimento ganham independência em relação aos invariantes, e temos um tempo não cronológico, mas crónico, que produz movimentos descentrados, com anomalias, aberrações nada acidentais porque constitutivas, essenciais. A este tempo liberado de sua subordinação ao movimento centrado, Deleuze deu, em certa ocasião, o nome de tempo puro, mas que é também o devir na sua inocência sem centro, na sua potência de produção do falso, do desajuste, das metamorfoses, da confluência de universos ou tempos incompossíveis. Deleuze fez uma linda análise da passagem de um regime cronológico para um regime crónico no cinema, através dos cristais de tempo, indicando algumas das mutações do pensamento em que isso implica (Gilles Deleuze, A imagem-tempo, op. cit. Estes temas estão desenvolvidos também em Mille Plateaux, juntamente com Cuattari, Paris, Minuit, 1980, sobretudo no capítulo "Devenir-intense, devenir-animal, devenir imperceptible", bem como num escrito mais antigo de Deleuze, intitulado "Do Aion", capítulo de Lógica do sentido, trad. Luís Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1982).
De qualquer modo, se é esta a subversão temporal implícita na ideia de devir, já é possível ao menos entender por que, embora aquilo que o devir produz recaia sempre na história, e possa assim formar um passado suscetível de ser lembrado e reativado, o devir mesmo nunca provém da história. O devir é trans-histórico, sub-histórico, supra-histórico, espacial, geográfico, intensivo, não está preso a coordenadas prévias de um pulsar do tempo, por isso é ele quem cria suas coordenadas (por exemplo a de um tempo flutuante, tempo não pulsante, tempo crónico), produzindo aberrações, desequilíbrios, conjunção de incompossíveis... Para usar termos mais consagrados e às vezes até banalizados, produzindo a diferença, o novo.
Se à luz disso tudo retomamos a distinção entre história e devir, ganha densidade o dito de Foucault, segundo o qual a história não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir. Ela não nos dá nossa identidade, mas na distância que tomamos dela liberamos nossa diferença. A história, diz Deleuze no mesmo sentido, é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história. Sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a questão toda, acrescenta Deleuze, é saber, investigar, onde aparecem os germes de um novo modo de existência, comunitário ou individual. Experimentação de algo que escapa à história, eis uma fórmula que poderia soar enigmática caso não fosse colocada sob esse prisma temporal desenvolvido acima. O que escapa à história não é o eterno, mas o que Nietzsche chamou de intempestivo ou inatual, Foucault de atual, Deleuze de devir, ou acontecimento. Pouco importam os nomes, o que interessa é que é nesse nível que se engendra o nascente. É sempre a partir de uma linha de fuga, que é portanto também uma linha de fuga temporal, na medida em que rompe uma temporalidade e faz fugir a história, que se instaura um acontecimento, um novo espaço-tempo.
A criação de novos espaços-tempos, distantes deste espaçotempo homogéneo que nos é oferecido pelas laminações da tecnociência, das tecnocidades, das tecnosubjetividades, e que se dá sempre a partir do intempestivo, das linhas de fuga ativas, pode ocorrer numa passeata, num grupo psicoterápico ou expressivo, num laboratório científico, na página em branco que enfrenta um poeta insone, num mocó de meninos de rua, na percepção alterada de um drogadito, num surto, num filme, numa batalha, numa brisa, num ritual, numa paixão, numa crise económica... E no entanto, quando tudo isso é submetido às formas mais codificadas de informação, às formas mais serializadas do mercado, às formas mais universalizantes de subjetivação capitalística, nós o perdemos de vista, nós o tornamos equivalente, nós o submetemos a um mesmo modo homogeneizante de temporalização-espacialização, com o que o reterritorializamos.
Foi uma das maiores contribuições de Deleuze-Guattari, esta arte fina de detectar, por debaixo desta homogeneização generalizada, os espaços-tempos distintos, percebê-los, diferenciá-los, cultivá-los. O que significa também produzi-los. Eis quatro exemplos tomados ao acaso. Um tríptico de Bacon, diz Deleuze, é um imenso espaço-tempo que reúne todas as coisas mas introduz entre elas as distâncias de um Saara, os séculos de um Aion (Gilles Deleuze, Francis Bacon, Logique de Ia sensation. Paris, Ed. de Ia Différence, 1981, p. 56). Cada variedade de cobre recenseada na Suméria é uma hecceidade de espaço-tempo; o jogo chinês go, com suas estratégias de distribuição das peças num espaço aberto, num movimento perpétuo sem direções preestabelecidas, e portanto em tudo contraposto ao xadrez e suas regras imperiais, instaura um outro espaço-tempo, diz Mille Plateaux. O desejo investindo na percepção, como ocorre com as drogas, é um outro espaço-tempo (Gilles Deleuze, "Duas questões" in SaúdeLoucura 3, António Lancetti (org.), São Paulo, Hucitec, 1992). Poderíamos multiplicar indefinidamente estes exemplos.
Caberia acrescentar que esta questão da criação de espaçostempos diferenciados é da maior importância na clínica institucional. Os trabalhadores de saúde mental, no trato com os psicóticos, por exemplo, estão constantemente confrontados com anjos de Swedenborg, com devires. A tentação é levá-los de volta ao tempo da história. Simultaneamente, nas suas intervenções analíticas estão sempre provocando aberrações temporais, que desembocam na criação de novos espaços-tempos.
E qual é o segredo da criação de novos espaços-tempos, numa instituição ou fora dela? Há razões para supor que isso passe pelo ritornelo. Sucintamente, trata-se do seguinte. O ritornelo é essa ritmação expressiva que encadeia melodicamente componentes heterogéneos, e assim constitui um território existencial, um universo. O ritornelo age sobre o que o rodeia, ao mesmo tempo em que extrai daí vibrações, decomposições, transformações. Nesse sentido o ritornelo, dizem Deleuze-Guattari, é um prisma, é "um cristal de espaço-tempo". Como então criar, numa instituição, vários ritornelos, vários cristais de espaço-tempo, para que proliferem os espaços-tempos? Não será esta a arte do tratamento barroco de uma instituição, à qual se referiu Guattari em seu último livro Caosmose?
Que o ritornelo seja esta esponja que absorve, compõe e ritma componentes diversos, entende-se. Mas a surpresa filosofica vem quando Deleuze-Guattari postulam que "o ritornelo fabrica o tempo". "Não existe o tempo apriori, mas o ritornelo é a forma a priori do tempo, que fabrica a cada vez tempos diferentes" (Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux, op. cit., p. 430-1). Talvez aí esteja uma das ideias mais radicais a respeito do tempo contidas neste livro: o ritornelo como o a priori, mas a priori que necessariamente é histórico, geográfico, territorial, natal, espacial etc. Os desdobramentos desse escândalo teórico são muitos e mereceriam um estudo à parte.
Por ora, basta-nos ilustrar parte destas reflexões com um depoimento do carnavalistajoãozinho Trinta. Convidado pelos lacanianos para uma conversa e indagado sobre que ideia se fazia do Brasil, respondeu: "Não será o Brasil um coração por onde vai passar tudo? Eu vou ser mais claro. A civilização chinesa: tudo ali é chinês. Por quê? Porque a civilização chinesa se fez num tempo e num espaço chineses, eles nem sabiam que existiam outros lugares. O Japão, a mesma coisa. A civilização grega se fez no tempo e no espaço gregos. E todas as outras civilizações, a europeia... Aí, de repente, a nossa civilização é um tempo e um espaço cósmicos, no sentido de que hoje, sobre nós, aqui no Brasil, se despeja tudo. Nós estamos num tempo e num espaço abertos."22 Joãozinho Trinta, Psicanálise Beija-flor.Joãozinho Trinta e os analistas do Colégio, Rio de Janeiro, Aoutra, 1985, p. 20). Essa citação merece ser deixada como se deixa um presente, sem comentários.
Podemos concluir que a produção de um novo espaço-tempo não pode ser remetida para um radical e escatológico porvir além do tempo. A revolução, se ainda se quiser utilizar este termo, não está lá longe, no fim da história, no topo do tempo. Daí o desprezo de Deleuze pelo "futuro da revolução". O que importa é a imanência do devir revolucionário das pessoas, que são essas transformações de estado, essas criações de espaçostempos, esses acontecimentos que nos liberam de nossa história, de nossa mesmice, de nossa identitária continuidade. Mas também de nossa estrutura eternitária, ou da fragmentária instantaneidade sem espessura que caracteriza este nosso regime tecnocientífico.
O "devir revolucionário das pessoas" tal como foi exposto acima, inspirado em Deleuze, está trançado ao tempo da história, mas não se confunde com ela. Sua virtualidade está estendida aí, no meio da história, na sua superfície, como que alçada numa suspensão sempre incerta, inesperada, oferecida. Exige, para ser atualizada e explorada, uma ininterrupta desobstrução, para que tanto no plano individual de uma subjetividade como no plano coletivo, os colapsos temporais tragam o acontecimento, os devires pulem da história e se multipliquem, os espaços-tempos heterogéneos proliferem. E isto para que atinjam o esplendor que lhes permita alterar o curso da história, mas sobretudo inventar para nós novas formas de viver, de subjeti-var-nos, de insubordinar-nos, afirmando assim nosso próprio e demiúrgico esplendor.
Outubro/1992
cooperação.sem.mando