quinta-feira, 30 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Legalizar o Aborto

Legalizar o Aborto - Por Túlio Vianna
Em 28 de setembro, mulheres de toda a América Latina saem às ruas para lutar por um direito que já é garantido há tempos às européias, estadunidenses e canadenses: o direito de interromper uma gravidez indesejada. É o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe.
O aborto não é crime na maioria esmagadora dos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, se uma mulher desejar interromper uma gravidez por questões socioeconômicas, poderá fazê-lo sem maiores riscos para sua saúde em um hospital, de forma plenamente legal.
No Brasil, o aborto é tratado como crime e tanto a mulher que o praticar, como quem de qualquer forma auxiliá-la, poderão ser presos. Os rigores da legislação brasileira, porém, não impedem que os abortos sejam realizados clandestinamente. A Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pela Universidade de Brasília (UNB) este ano, estimou que 1 em cada 5 mulheres brasileiras já realizaram aborto, sendo que metade delas foram internadas devido a complicações causadas pelo procedimento.
Uma pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP) constatou que, entre 1995 e 2007, a curetagem pós-aborto foi a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde (não foram levadas em conta cirurgias cardíacas, partos e pequenas intervenções que não exigem a internação do paciente). Foram 3,1 milhões de curetagens e estima-se que a maioria delas sejam decorrentes de abortos provocados.
Por que então não garantir às brasileiras o mesmo direito ao aborto já garantido às norte-americanas e europeias e evitar tantos riscos desnecessários à sua saúde?
Direito à vida - O argumento central de quem é contrário à legalização do aborto é que a vida humana surge no momento da concepção e que, a partir de então, este seria um direito a se garantir ao embrião. Claro que esta é uma concepção de cunho exclusivamente religioso.
Cientificamente, não é possível se determinar ao certo quando começa a vida humana. Nas 12 primeiras semanas de gestação (período em que o aborto é permitido, na maioria dos países onde é legalizado), o feto ainda não desenvolveu seu sistema nervoso e para considerá-lo vivo neste estágio, seria preciso rever o próprio conceito jurídico de morte. Isso porque a lei 9.434/97 permite o transplante de órgãos desde que haja morte cerebral, ainda que, eventualmente, o coração continue a bater. E, se é a morte cerebral que indica o fim da vida, é razoável entender que o início da vida humana surge com a “vida cerebral”, o que seria impossível nas primeiras 12 semanas, antes da formação do sistema nervoso do feto.
No entanto, o conceito de vida defendido pelos opositores da legalização do aborto parece ser bem mais amplo do que qualquer um que possa ser estabelecido por critérios científicos. A ponto de abarcar, inclusive, fetos sem cérebros, como se vê por algumas das teses defendidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que tramita no Supremo Tribunal Federal desde 2004 e trata da interrupção de gravidez nos casos de anencefalia do feto. Já passados 6 anos, ainda não houve tempo suficiente para que o STF concluísse o óbvio ululante: sem cérebro, não há vida humana a ser protegida, então não há crime de aborto.
Infelizmente, o debate sobre o aborto no Brasil não se faz com base em constatações científicas ou jurídicas. O aborto é discutido no Brasil com base em dogmas religiosos, como os do arcebispo de Olinda e Recife Dom José Cardoso Sobrinho, que excomungou os médicos e os parentes de uma menina de 9 anos de idade que foi estuprada por seu padrasto e precisou realizar um aborto para se livrar de uma gravidez de gêmeos que lhe causava risco de morte. Detalhe: o padrasto que estuprou a menina não foi excomungado por Sua Excelência Reverendíssima, que considerou este crime menos grave que o aborto.
É preciso entender, porém, que o Brasil é uma república laica e, portanto, não se pode admitir que qualquer religião imponha seus dogmas aos demais, muito menos por meio de criminalizações.
Questão social - A legalização do aborto é uma questão de saúde pública que atinge quase que exclusivamente as mulheres pobres, que não têm condições financeiras de arcar com o alto custo de um aborto em alguma das maternidades de luxo que realizam a cirurgia ilegalmente. Para uma mulher rica que tenha uma gravidez indesejável, a solução – ainda que ilícita – é recorrer a uma boa maternidade onde conversando com a pessoa certa e pagando o preço necessário poderá abortar com toda a infraestrutura e higiene de um bom hospital.
Ainda que não optem pelo procedimento cirúrgico, as mulheres de melhor condição socioeconômica têm um acesso muito mais amplo a informações sobre como realizar o auto-aborto de forma relativamente segura. Há vários sites internacionais dedicados a esclarecer às mulheres dos países onde o aborto ainda é proibido como utilizar medicamentos para este fim. No International Consortium for Medical Abortion , por exemplo, há informações de como usar o remédio Cytotec (Misoprostol) em conjunto com o Mifiprex (Mifepristone), de forma a tornar o procedimento um pouco mais seguro e menos doloroso.
Para a maioria das mulheres brasileiras, porém, este tipo de informação ainda não é acessível e elas acabam adquirindo o Cytotec no mercado paralelo e “aprendendo” como usá-lo com o próprio vendedor que, em geral, não possui qualquer conhecimento médico. Sem informação, utilizam o Cytotec sem qualquer outro medicamento, obrigando a uma dosagem maior, diminuindo as chances de sucesso e tornando todo o procedimento mais arriscado e doloroso. Por se tratar de um comércio ilegal, sem qualquer tipo de controle por parte da Anvisa, há ainda o sério risco de adquirir um produto falsificado.
Outra significativa parcela de mulheres pobres opta por realizar o aborto por procedimentos de curetagem ou sucção em clínicas clandestinas, sem as mínimas condições de higiene e infraestrutura. São procedimentos bastante arriscados para a vida e saúde delas e muitas acabam sendo socorridas nos hospitais do SUS, após abortos mal sucedidos. As complicações não raras vezes levam à morte, sendo o aborto a terceira causa de morte materna no Brasil, segundo pesquisa do IPAS.
Legalização - A criminalização do aborto não evita o aborto, mas tão-somente obriga a mulher a realizá-lo na clandestinidade. As ricas pagando um alto preço pelo sigilo e segurança do procedimento e as pobres relegadas à própria sorte, em um oceano de desinformação e preconceito.
O debate sobre a descriminalização do aborto não é sobre o direito ou não de a gestante abortar, mas sobre o direito ou não de a gestante ter auxílio médico para abortar. A Constituição brasileira garante em seu artigo 226, §7º, que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
O que se vê, porém, no Brasil é uma completa interferência do Estado no direito da mulher de decidir ter ou não um filho, amparado em uma interpretação religiosa do direito constitucional à vida. O axioma católico de que a vida inicia na concepção é apresentado como fundamento “jurídico” contra a legalização do aborto, no Estado laico brasileiro. É este dogma religioso o grande responsável pelo cerceamento do direito constitucional ao livre planejamento familiar.
A criminalização do aborto no Brasil coloca nossas leis ao lado da tradição legislativa de países do Oriente Médio e da África, ainda marcada por uma intensa influência religiosa, e nos distancia dos Estados laicos da Europa e da América do Norte.
Direitos fundamentais, como é o direito à liberdade de planejamento familiar, não podem ser cerceados com base na fé em dogmas religiosos. O Estado é laico e ainda que a maioria da população brasileira acredite que o aborto é um grave pecado que deve ser punido com a excomunhão, estas concepções religiosas não podem ser impostas por meio de leis que criminalizam condutas, pois a separação entre Estado e religião é uma garantia constitucional.
Os abortos acontecem e acontecerão, com ou sem a criminalização, pois nenhuma lei conseguirá constranger uma mulher a ter um filho contra sua vontade. Não é um fato que agrade à mulher que se submete a ele, ao Estado, ou a quem quer que seja. Mas acontece.
Cabe ao Estado legalizar a prática e evitar os males maiores que são consequências dos abortos realizados sem assistência médica: os danos à saúde ou mesmo a morte da mulher. Talvez esta mudança na lei não faça muita diferença para os homens ou para as mulheres ricas que não sentem na pele as consequências de sua criminalização; mas para as mulheres pobres esta seria a única lei que, de fato, poderia ser chamada de pró-vida.
Túlio Vianna é professor da Faculdade de Direito da UFMG.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Famílias e Prisões: (sobre)vivências de tratamento penal

INSTITUTO DE PSICOLOGIA SOCIAL PICHON-RIVIÈRE Convida para o encontro:
Famílias e Prisões: (sobre)vivências de tratamento penal - Dia 30 de setembro das 19 h às 21 h
Será apresentada a dissertação de Mestrado em Serviço Social em que a autora buscou conhecer e analisar os modos de inserção dos familiares de apenados nos mecanismos de tratamento penal. A partir de uma aproximação com o referencial teórico do paradigma da complexidade, a análise condensa os mecanismos dialógicos e recursivos presentes no sistema social complexo que é a prisão. A pesquisa permite maior visibilidade às vivências destes familiares a partir das histórias que são descritas e analisadas, como também, uma percepção crítica quanto às dinâmicas prisionais.
A palestrante é Assistente Social Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim, Mestre em Serviço Social (PUCRS 2010), Assistente Social da Superintendência dos Serviços Penitenciários e com experiência na área de Assistência Social, Sistema Penitenciário, Gênero, Famílias, Juventude e Acesso à Justiça.
Inscrições gratuitas: 3331 7467 e contato@pichonpoa.com.br e www.pichonpoa.com.br
Miguel Tostes, 998, conj. 24, Esquina Protásio Alves - Rio Branco - Porto Alegre.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Acidentes

Esses estranhos acidentes que nos acontecem e que se alimentam de nossa distração, de nosso descuido, feito feras famintas que carecem, sempre, de uma vítima. Ocorreu-me, a mim também, uma redundância de palavras e de acidentes dentro de um só episódio: primeiro devorou-me a paz, depois quebrou-me as pernas e, por fim, levou-me a lucidez. Os acidentes ficaram mais fortes, com isso!

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Dobre sempre pela direita

Os avisos sempre foram claros e precisos: dobre sempre à direita. Vire sempre à direita. Indo ou vindo, sempre siga pela direita. Sabíamos, todos, que, se quiséssemos, poderíamos seguir pela esquerda, mesmo que, em algumas circunstâncias, nos arrebentássemos no choque com os que vinham, invariavelmente, pela direita. Oficialmente, para seguir em frente com tranquilidade, era necessário seguir pela direita, mas insistíamos em ir pela esquerda. Mas agora a esquerda também dobrou para a direita. Mão única. Via única. E agora, por onde haveremos de seguir? Por onde? Para onde?

domingo, 26 de setembro de 2010

Mais Saramago

"A vida, digamos, propõe-nos coisas. Por vezes, sentimo-nos em condições de aceitar a proposta e lançamo-nos a um trabalho. Outras vezes, não. A vida não é uma obra teatral. Numa obra teatral tudo está posto no seu lugar. Cada elemento tem sua função. A articulação dos elementos todos, para conduzir a efeitos dramáticos, está muito bem pensada. A vida não pensa. Nós vivemos no caos. O que se passa é que vivemos num espaço limitado dentro de outro espaço que escapa à nossa capacidade de apreensão" (Em: As Palavras de Saramago, Org. F. G. Aguilera).

sábado, 25 de setembro de 2010

José Saramago

"Eu não acredito que se escreva por necessidade. Necessidade é comer e beber. Alguns levam tão longe o seu papel de escritores que dizem: se não escrever, morro. As pessoas têm a tentação de tornar as coisas mais interessantes, mais românticas. Criou-se a idéia do artista torturado, que finalmente não é um ser deste mundo. Um pouco raro, muito raro. Como se o artista e o escritor fossem uma espécie de deus condenado a criar" (Em: As Palavras de Saramago, Org. Fernando Gómez Aguilera, 2010).

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Bretes e Tapumes

Hoje, recém saída de uma fita que vi no cinema - que esgotou-me até as tripas -, deparei-me com a reunião d'"As Palavras de Saramago", juntadas por Fernando Gómez Aguilera. Eu, por minha vez, também juntei as palavras já juntadas e saí trocando passos com os possíves que vivi durante o dia. Com isso, lembrei dos lugares possíveis, das pessoas possíveis, dos dias possíveis, dos sonhos possíveis que vivíamos - as gentes desta terra - há alguns ano. Tentei fazer um balanço favorável, mas isso ruiu quando me veio a lembrança de um cenário que assisti ser montado hoje pela manhã, para o anúncio dos possíveis para os dias vindouros.
O que antes se fazia em carros de som, hoje é em um suntuoso palco. O que antes se fazia em qualquer espaço em que fosse viável juntar gente, hoje se faz em locais estratégicamente escolhidos. O que antes se fazia com escassos microfones e megafones, hoje se faz com caríssimos equipamentos e tecnologias de comunicação. Mas isso é o de menos, pois penso que devemos usufruir dos benefícios desses recursos... o que não consegui engolir, foram os tapumes e os bretes... tapumes e bretes que resgatam as velhas práticas divisoras... são eles que delimitam materialmente, a separação dos possíveis de hoje... fica muito claro quem pode ficar dentro e quem deve ficar fora de suas linhas... bastou-me ver o cenário para decidir que não queria ver o restante da atuação!

DIVULGAÇÃO: Um poeta debate o indispensável

Um poeta debate o indispensável - Por Antonio Martins– 20/09/2010
Se algo caracteriza a trajetória de Cuba, nos últimos cinquenta anos, é o exercício permanente da invenção. Desde que um grupo de jovens guerrilheiros derrotou, com forte apoio popular, o exército do ditador Fulgencio Baptista e assumiu o poder, em 1959, a ilha tem insistido em contradizer certezas estabelecidas. Algumas das trilhas abertas foram brilhantes. A garantia de Saúde, Educação e acesso à Cultura para todos, num país economicamente subdesenvolvido. A irreverência diante do poder imperial dos Estados Unidos, mesmo quando o “socialismo real” naufragou e parecia não haver alternativas ao capitalismo. A ação de médicos cubanos pelo mundo, enfrentando emergências e epidemias em regiões remotas e esquecidas, às quais faltava apoio da ONU – para não falar das grandes potências. Outros passos resultaram em tragédias. A deriva, nos anos 1970, para um stalinismo tardio, que perseguiu de dissidentes políticos a homossexuais. Ou a estatização completa da economia, um pouco antes, burocratizando e empobrecendo a produção, ao privá-la da criatividade e do talento típicos dos cubanos.
Anunciadas em 13 de setembro, a demissão de 500 mil servidores públicos e o estímulo à formação de cooperativas ou à iniciativa econômica pessoal, em cerca de 140 atividades econômicas, expressam, provavelmente, um novo esforço de Cuba para reinventar-se. Provocarão múltiplos desdobramentos. Destacarão o país o noticiário internacional, ao longo dos próximos meses. Estimularão os que não suportam a ousadia da ilha a insinuar que todo desafio à lógica dos mercados será castigado… Em contrapartida, obrigarão os amigos de Cuba a conhecê-la em maior profundidade – sem a segurança ilusória dos chavões e palavras-de-ordem.
Disposto a participar deste esforço, o site Outras Palavras vai iniciá-lo de modo incomum. Ao invés da análise política, a crônica histórica. No lugar de um dirigente partidário ou cientista político, um artista. Em 30 de setembro, o escritor, poeta e jornalista Félix Contreras falará, em São Paulo (com transmissão ao vivo, via internet), sobre “Cuba: Jornalismo e Literatura num país que se reinventa”. Autor de livros publicados em seu país e em diversos outros da Europa e América Latina (veja aqui alguns de seus poemas), Félix é, mais que testemunha, um personagem da revolução. Tornou-se o que é em suas asas. Mais de uma vez, foi tragado por ela. Compartilhará um pouco desta história, que nos últimos dias o frequenta mais que de costume.
Ontem (20/9), por exemplo, emocionou-se ao responder perguntas que recebeu no computador. A revista Jiribilla pedia que narrasse sua presença na primeira turma da Escola Nacional de Instrutores de Arte (ENIA), fundada em 1961. Félix lembrou-se de que a bolsa para estudar em Havana o livrou de uma existência banal. Forçado pelo padrasto a deixar os estudos, vendia frutas em Pinar del Rio (poupava gorjetas para comprar revistas ilustradas, entre elas a brasileira O Cruzeiro). Subitamente, viu-se “num ateliê renascentista, sem muros entre ballet e dança, entre teatro e vida, entre música popular e clássica, entre ‘boas’ e ‘más’ palavras, convivendo com Michelangelo, Chaplin, Marx, Martí, Cervantes, Picasso, Chekhov, Beethoven e Stravisnky”.
A abertura da revolução à cultura levou ao florescimento, nos primeiros anos, de uma imprensa profunda e sofisticada. A revista Cuba Internacional, estimulada por Fidel, circulava no país e em ambientes intelectuais do exterior (sem que soubesse mover as pedras no tabuleiro, Félix foi encarregado de frequentar os bastidores do torneio internacional de xadrez realizado em 1968 no Hotel Habana Libre, apenas para narrar a atmosfera social entre as partidas). Em 1966, doze poetas lançaram Palavra, o primeiro manifesto estético da literatura cubana e criaram a revista El Caimán (jacaré) Barbudo.
Mas este espírito de liberdade seria sacrificado pouco depois, quando pareceu acirrar-se a Guerra Fria e vieram as primeiras frustrações econômicas. A partir de 1970, o jornalismo com ambições de literatura passou a ser visto como um desvio – assim como as ideias não-alinhadas à liderança política, as opções sexuais não-ortodoxas, os cabelos compridos e as roupas muito coloridas. Félix e os doze caimaneros foram afastados primeiro da revista poética; depois, de Cuba Internacional. A repressão vinha com jeitinho cubano. O Estado oferecia a cada um dos demitidos doze folhas de cheque por ano, cada uma correspondente a um mês de salário. O poeta rebelou-se, recusou o cala-boca e passou sete anos esfregando o chão, para ganhar a vida. Foi resgatado sete anos depois, quando o Estado reviu parte dos erros (neste mesmo ano, criou-se o ministério da Cultura, entregue a um jovem escritor, Abel Prieto). Dirigiu, até 1988, o setor de imprensa da Casa das Américas. Lá, pôde ampliar a proximidade com a América Latina.
Aos 72 anos, Félix é parte das dores e delícias de Cuba. Alguém já chamou sua casa, em El Vedado, de um Consulado Brasileiro heterodoxo, que inúmeros amigos (e amigas) usam como base para seus recorridos pela capital. Participa da organização do Festival Internacional de Poesia. Em sua casa, tem acesso à internet.
Parte dos amigos emigrou; outros, morreram. Seu trabalho produz convites constantes para viajar ao exterior – que ele aceita e desfruta. Em mais de uma ocasião, uma boa companhia sugeriu que ficasse. Garante que sempre recusará: é capaz de morrer pela revolução, mas quer estar vivo para mudá-la. Contará um pouco de sua vida, tão entrelaçada com a de Cuba revolucionária, no próximo dia 30. Em seguida, passará a escrever Crônicas Cubanas, para Outras Palavras.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A prima-Vera

Essa prima-Vera é mesmo uma devassa sedutora. O dia de sua chegada nem estava perto e ela, feito uma passante desavisada, se meteu a enviar cheiros e flores antecipadas. Faz mais de um mês que ela me provoca com seus encantos. Às vezes, senta na beira da calçada e apresenta todas as suas cores. Inconsequente, transita de uma planta à outra e muitas vezes, em todas. Bem vinda, bela anarquista desregrada, no bater do nono minuto deste dia!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Marguerite Duras

"Sobre as tripas da ponte, sobre os adros do barco, sobre o mar, com o percurso do sol no céu e com o do barco, se esboça, se esboça e se destrói, com a mesma lentidão, uma escritura, ilegível e dilacerante de sombras, de arestas, de traços de luz entrecortada e refratada nos ângulos, nos triângulos de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, continuar a existir" (Apud, Guattari, Caosmose).

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Uma só dança

Uma canção, sem mais nem menos, escorreu da lua e tocou na vitrola antiga que enfeita o canto escuro da sala. Os fantasmas, desavisados e assustados, bateram o pó de suas velhas roupas e bailaram o inesperado som. Animados, logo depois, não perceberam que se enroscaram nas velhas teias de aranhas que pendiam de suas existências. Puxaram-nas atrás de si e quando a canção acabou, voltaram para seus lugares. Depararam-se  com as paredes e o teto nús, desmascarados, descortinados das teias que os protegiam. A canção não voltou a tocar.

domingo, 19 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Virgínia Kastrup: A APRENDIZAGEM INVENTIVA

Virgínia Kastrup: A APRENDIZAGEM INVENTIVA

O encontro

É importante saber reconhecer o instante do encontro com o outro. O encontro puro, sem mais, nem menos. Não se trata de reconhecer um poder dominante vindo do outro, que permita ou autorize a pensar coisas, mas sim, de reconhecer que o encontro lhe provocou a pensar ou querer coisas. Não interessa, também, quais sejam essas coisas. Interessa que o encontro tenha lhe desacomodado, mobilizado, lançado a buscar coisas... coisas que não sejam o não pensar... coisas que sejam o seu pensar... se isso seja efetivo ou de fato, é uma outra questão.

sábado, 18 de setembro de 2010

Na videolocadora

Eu estava no balcão da locadora aguardando duas fitas: O Declínio do Império Americano (para rever) e As Invasões Bárbaras (para ver) – ambas de Denys Arcand, enquanto a senhora ao meu lado examinava a capa de outra fita e perguntou à atendente se a protagonista do filme era uma drogada... a moça respondeu que não... então ela leu a sinopse e perguntou: “mas ela tenta o suicídio, né?”, a moça educada, responde que sim... a senhora, já exaltada, diz: “mas ela tenta o suicídio com uma overdose!... eu não vejo esse tipo de filme!”... decidiu que aguardaria o retorno de uma fita cujo nome não gravei. Quase a chamei de volta e sugeri que visse aquela que num outro dia peguei por desatenção: Uma Carta ao Pai. Desisti, antes que ela pudesse querer dar uma olhada na sinopse dos filmes que eu locaria... nunca se sabe o que pode sair desse tipo de cabeça! Melhor não saber!

Vindo do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana

Venho, como muitas pessoas do Brasil todo, do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, que aconteceu de 13 a 16 de setembro de 2010 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Voltei, no correr da noite, a passos lentos, desses quatro dias de muitas falas, problematizações, discussões e reorganização dos pensamentos, ou reafirmação, em muitos momentos.
Reconheço que, em alguns momentos, tive um prazer detidamente pessoal em estar lá, por vários aspectos... um deles se refere ao fato de que, tendo sido uma apaixonada leitora de Foucault, ao desenvolver o trabalho de pesquisa para a elaboração de minha Dissertação de Mestrado em Filosofia, tive que me levar a um reencontro com o autor e colocar-lhe sob o foco da racionalidade inventiva, sendo que para isso foi muito importante a leitura de alguns pesquisadores de seu pensamento e de sua obra.
Frédéric Gros foi o mais importante deles, por duas de suas telas das quais me utilizei: o texto Situação do Curso - que é um adendo feito pelo organizador da edição dos cursos de Foucault no Collège de France, para contextualizar o Curso e dar um contorno à sua publicação -, do Curso A Hermenêutica do Sujeito; assim como, do livro também organizado por ele, abordando a questão da parrhesia, ou da coragem da verdade (tema dos últimos cursos de Foucault). E ele esteve no Simpósio falando sobre Foucault e o Direito dos Governados.
Francisco Ortega foi outro que me alumiou os caminhos de minha empreitada, com o seu Amizade e Estética da Existência em Foucault, e que no Simpósio falou sobre A Biopolítica e a Normalização dos Sujeitos, distendendo diante de nossos olhos, as teias que o mesmo tece nos teares de sua prática de pesquisa e de atuação profissional.
Ainda falo do Alfredo Veiga-Neto, que logo reencontrarei em outras searas, e que falou sobre O Biopoder e Dispositivos de Normalização. Com a leitura de Veiga-Neto, pude me desapaixonar me apaixonando novamente por Foucault... e não se trata de vulgar passionalidade, mas de reconhecimento do lugar de um pensamento na forma de ver e entender o mundo!
E houve a presença de tantos outros que nos foram muito importantes nesses quatro dias de trabalhos, sendo que falarei dos mesmos aos poucos.
Não posso deixar de falar da generosidade da UNISINOS em organizar tal evento e publicizar de forma imediata o material produzido para o mesmo!
A seguir, postarei os caminhos virtuais do Blog do Instituto Humanitas Unisinos: http://unisinos.br/blog/ihu/
Da Revista On-Line do IHU, cujo número mais recente é dedicado ao Simpósio: http://unisinos.br/blog/ihu/category/revista-ihu-on-line/
Da publicação dos textos do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, entre aqui: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_publicacoes&Itemid=20&task=categorias&id=15, e Faça download dos textos (arquivo .zip).

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Ricos, decadentes e malvados

Ler conteúdo completo em: http://www.outraspalavras.net/?p=1850
Ricos, decadentes e malvados - Por Antonio Martins e Pep Valenzuela
Em silêncio, porém rapidamente, alguns dos símbolos de civilização e prosperidade que tornavam o “primeiro mundo” orgulhoso e cobiçado estão se desfazendo. Na Europa rica, antigo reduto do “Estado de bem-estar social”, fala-se em adiar a aposentadoria em toda a parte — na Holanda, para depois dos 70 anos… Questiona-se o seguro-desemprego. Eliminam-se serviços de assistência sofisticados (como a renda dos portadores de deficiência e doentes acamados, na Espanha). Coloca-se em xeque conquistas políticas marcantes (como a autonomia regional italiana, ameaçada por cortes dramáticos no orçamento locais). As ilusões de afluência de alguns países dissipam-se: na Irlanda, o PIB despencará 10%, este ano. Os imigrantes retornam (especialmente à América Latina), tornando as sociedades menos diversas. Nos Estados Unidos, dezenas de cidades (entre elas, Philadelphia, Fresno e Colorado Springs) estão desligando parte da iluminação de rua. Por falta de recursos para mantê-las, estradas de asfalto são reduzidas a cascalho. A demissão em massa de professores e a reversão de programas educacionais, obrigam Estados (o caso mais drástico é o Havaí) a reduzir o ano escolar.
Na Europa, embora o desmonte houvesse se esboçado alguns meses antes, seu estopim foi a quebra da Grécia, em maio — e a Alemanha foi o protagonista decisivo. A partir de janeiro, os compradores de títulos públicos gregos passaram a exigir taxas de juros cada vez mais altas para renovar suas aplicações, ou simplesmente migraram para outros papéis. A moeda atacada era o euro, adotado por Atenas desde 2000; devido à pouca importância relativa da economia grega, a sangria poderia ter sido debelada com facilidade, em seu nascedouro, pela União Europeia (UE). Porém, o bloco permaneceu dividido e paralisado. A chanceler alemã, Angela Merkel, comandou o grupo de governantes contrários ao socorro. Argumentou que os gregos viviam acima de suas possibilidades e era preciso forçá-los à disciplina.
A falta de ação alastrou o incêndio. No final de abril, a espiral de juros e a dificuldade de rolar a dívida já atingiam Espanha e Portugal. Especulava-se sobre outros países na fila e temia-se uma crise sistêmica nos circuitos de crédito, semelhante à deflagrada em setembro de 2008, com a quebra do banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers. Berlim só flexibilizou sua posição em 10 de maio, após os sobressaltos de uma “sexta-feira negra” nos mercados financeiros. Mas exigiu contrapartidas ultura-draconianas, até então inéditas na Europa.
A Alemanha comandou, política e financeiramente, a formação de um Fundo Europeu de Estabilização. Ele colocará 500 bilhões de euros à disposição dos Tesouros ameaçados pela especulação. No entanto, os países que precisarem recorrer aos recursos estarão obrigados a se submeter, também, ao FMI (que aportará mais € 250 bilhões) e às suas conhecidas condições. O arranjo instaurou um clima de pânico e deflagrou a adoção de “ajustes fiscais” em todo o Velho Mundo (veja, nos boxes, a situação dos principais países atingidos). Como ocorrera em crises anteriores, na América Latina, Sudeste da Ásia e Leste Europeu, as principais medidas foram adotadas sumariamente, sem nenhum debate real entre as sociedades ou mesmo nos Parlamentos. Dominada pelo centro-direita e direita, a maior parte dos governos e legislativos não hesitou em agir contra os serviços públicos e direitos sociais. Mas os social-democratas (no poder na Espanha, Portual e Grécia) tampouco resistiram.
O choque foi agravado porque medidas de austeridade foram adotadas inclusive por países europeus que vivem situação financeira muito confortável. O parlamento francês prepara-se para elevar em dois anos a idade mínima para aposentadoria. A própria Alemanha, que tem superávit comercial superior a € 150 bilhões ao ano e cujo Tesouro capta recursos pagando juros reais em torno de zero, cortou 10 mil postos no serviço público. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, prevaleciam posições de idêntico sentido. Em junho, o Senado recusou-se a prolongar medidas de apoio aos desempregados decretadas em 2008, embora os índices de desocupação sejam os maiores desde 1930. Obama conformou-se e aderiu ao discurso de “austeridade”. No mesmo mês, o G-20 reuniu-se em Toronto e decidiu (mais uma vez sob liderança da emblemática Ângela Merkel) recomendar a redução dos déficits públicos “ao menos pela metade”, até 2013. O norte-americano Paul Krugman, Nobel de Economia (2008), considerou tal decisão “escandalosa, já que a economia mundial está muito longe da recuperação” — e não será possível reativá-la sem ação dos Estados.
II. Para que um conjunto tão vasto de medidas impopulares seja possível, um dogma tem sido ressuscitado: o da suposta ineficiência dos serviços públicos. Alardeia-se que os Estados estão gastando mais do que arrecadam. Mas se omitem os motivos. O gráfico abaixo, elaborado pela revista The Economist a partir de estatísticas oficiais referentes ao G-7, mostra que o endividamento estatal oscila, em última instância, ao sabor de decisões políticas. Ou seja, seu aumento ou diminuição são comandados pela sociedade, não por lógicas econômicas imutáveis.
De 1950 a 1973, quando prevaleceram políticas de apoio ativo ao desenvolvimento e ao bem-estar social, que exigiam forte investimento público, as dívidas… diminuíram constantemente. Caíram de mais de 110% do PIB (o esforço exigido pela II guerra atolou os Tesouros de débitos) para 30%. Os Estados souberam usar o elenco de mecanismos de que dispõem para reduzi-las. Já entre 1974 e 2008, foram hegemônicas as ideias que pregavam o “Estado mínimo”, a confiança na alegada virtuosidade dos mercados e, portanto, os cortes de gastos. Nessa fase, contraditoriamente, o endividamento público… cresceu sem parar — até chegar a quase 90% do PIB do G-7. Novamente, o fator decisivo foi a ação dos Estados — então, fortemente comprometidos em transferir riqueza aos mais ricos, a pretexto de “estimular os investidores”.
A seção mais impressionante da curva é a que se refere ao período que vai de 2008 a 2012 (inclui previsões). A trajetória da dívida pública entra em ascensão vertical. Bastam quatro anos para que seu percentual passe a 120% do PIB. É natural: trata-se justamente da fase que corresponde à crise financeira global. Nela, os Estados dispenderam rios de dinheiro para evitar que se repetisse uma depressão dramática como a dos anos 1930. Uma das ações mais onerosas foi o resgate das instituições financeiras que estavam à beira do abismo devido à sua própria irresponsabilidade — e que ameaçavam levar consigo o conjunto das economias.
III. Mas há algo além de ideologia, por trás da ofensiva contra os direitos sociais e serviços públicos. Ela é uma revanche das elites; uma tentativa de deixar para trás as sérias derrotas econômicas e políticas sofridas nos dois primeiros anos de crise. Do ponto de vista financeiro, a manobra é clara. Nos anos anteriores ao grande terremoto financeiro de 2008, grandes bancos internacionais fizeram aplicações de cerca de 2,5 trilhões de euros na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. As garantias oferecidas pela União Europeia e FMI protegem estes recursos contra um eventual calote. Em 5 de agosto a revista britânica The Economist informava que os balanços trimestrais de algumas das maiores instituições financeiras europeias (como o HSBC inglês e o BNP francês) voltavam a registrar lucros expressivos. A causa principal, reconhecia o semanário, é a redução expressiva (40%, no caso do HSBC) das perdas provocadas por empréstimos de risco — em grande medida assumidos pelos Estados.
Além disso, destaca o filipino Walden Bello, da ONG asiática Focus on the Global South, o requentamento do discurso que alardeia a “ineficiência” dos Estados ajuda a remendar a imagem do mundo financeiro, seus grandes executivos e políticos que o apoiam. No auge da crise, a opinião pública revoltou-se contra estes personagens, ao tomar conhecimento de suas práticas de cassino, fraudes costumeiras e salários nababescos. Fenômenos políticos de enorme repercussão, como a eleição de Barack Obama nos EUA, foram possíveis em grande medida graças a esta repulsa. Nos últimos meses, porém, ela tem sido mitigada pelo surgimento de um novo vilão — o governante supostamente perdulário, que a mídia ajuda a demonizar.
A revanche das elites assusta por seu grau de hipocrisia e egoísmo, considera Paul Krugman. Ele ressalta que, em nome do combate ao déficit público, uma maioria de parlamentares norte-americanos, dos dois grandes partidos, está disposta a aprovar qualquer corte de despesas — inclusive as que atingem os serviços de infra-estrutura, os mais pobres e os desempregados. O plano de auxílio-desemprego suplementar, recentemente rejeitado pelo Legislativo, foi considerado “inviável” por custar 77 bilhões de dólares. Mas os mesmos congressistas que o derrubaram rejeitam terminantemente rever as isenções fiscais em favor adotadas durante o governo Bush — embora elas beneficiem apenas os 1% mais ricos da população custem 1,3 trilhão de dólares ao Tesouro. Para Krugman, o que está em curso agora é uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentração de renda vivido entre 1973 e 2010. No período, “a renda de 90% das famílias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, enquanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda” e “a diferença entre os salários dos executivos-chefes das grandes corporações e o rendimento mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes”.
IV. A que futuro a Europa — e, de forma mais ampla, o antigo “primeiro mundo” — estão sujeitos, se prosperar a revanche das elites? Do ponto de vista social, é fácil enxergar. Além de reduzirem o déficit do Estado concentrando riqueza, os “ajustes fiscais” têm, do ponto de vista da economia internacional, o objetivo de aumentar a competitividade dos países que os promovem. O pensamento ortodoxo prega que, ao se tornarem mais “baratos” para as empresas (salários mais baixos, impostos sobre o capital reduzidos), os países atraem investimentos, produzem e exportam mais. Mas se a mesma receita é seguida por muitas economias simultaneamente, a redução de custos de cada um é neutralizada pelas dos demais. Produz-se o que o economista Randal Wray, da Universidade de Missouri, chamou de uma “corrida para o abismo”, na qual “vence quem for o maior perdedor”. Na Europa, tem frisado Krugman, esta disputa bizarra é agravada pelo ajuste fiscal da Alemanha. País de maior produtividade e enorme saldo comercial frente a seus vizinhos, ela precisaria, em favor da coesão e equilíbrios europeus, elevar seu consumo. Ao reduzi-lo, “vai prejudicar a recuperação da zona do euro, que terá mais dificuldades para exportar”.
Mas Krugman empenha-se em debater as medidas recentes também do ponto de vista da teoria econômica. Cada vez mais pessimista, ele diz temer, em seus artigos para o New York Times, que o egoísmo das elites seja destrutivo a ponto de provocar algo semelhante à Longa Depressão iniciada em 1873 — ou, ao menos, uma estagnação duradoura.
Num cenário de crise global ainda não superada, diz ele, os governos deveriam ter coragem de afirmar que o Estado precisa “ampliar enormemente o gasto público, e produzir déficits orçamentários maiores, para provocar uma recuperação robusta”. Quando ela se realizar, será fácil reduzir a divida. Mas se ela não se produzir, o setor público e a sociedade permanecerão no pântano — e as redução estatística da despesa pública consolará apenas os tolos.
V. A investida elitista encontra resistências. Conforme mostram os boxes de nossa matéria, na maior parte dos países europeus que iniciaram processos de “ajuste fiscal”, houve protestos e paralisações. Na Grécia, eles se transformaram em autêntica revolta popular. Na Itália, manifestações coordenadas em diversas cidades reuniram 1 milhão de pessoas. Em Portugal, a mobilização repercutiu no parlamento e ajudou a constituir uma frente de oposição às medidas que reúne, além dos três partidos mais à esquerda, dissidentes de centro e centro-direita. Entre os trabalhadores, o setor que mais se mobilizou foi o funcionalismo público — o mais imediatamente atingido pelos cortes de serviços, reduções de salários e ataque aos direitos previdenciários.
Mas estas ações não foram suficientes, até o momento, para evitar retrocessos. Há uma razão objetiva para tanto, já vivida no Brasil. Os “ajustes fiscais” decretados em sequência a crises financeiras assemelham-se à versão política das guerras-relâmpagos. Os pacotes de medidas são apresentados e votados em poucos dias e sob ameaças. Os governantes afirmam que a rejeição das propostas dissolverá o país — e são apoiados pela mídia.
Além disso, é possível que as debilidades das lutas revelem insuficiências mais estratégicas da esquerda. Em quase todos os casos, os protestos enfatizam a resistência, o não. Diante de uma crise, como em face de um incêndio, não basta apontar os que foram negligentes, ou denunciar os que ganharão com a tragédia. É preciso propor uma saída, um sim. E falta visivelmente, aos movimentos que saem às ruas ou paralisam o trabalho, uma alternativa.
VI. Embora ainda não tenham ganhado as passeatas, alternativas inovadoras estão despontando de alguns pensadores e centros de pesquisa ligados aos movimentos sociais. Sediado em Washington, o Center for Economic and Political Research tem produzido estudos de caso importantes, em geral ligados a países europeus. Um deles, recente, é assinado por Mike Weisbrot. Intitulado “Alternativas à austeridade fiscal na Espanha”, dedica-se à análise dos planos adotados no primeiro semestre pelo governo Zapatero. Considera os cortes de despesas públicas “desastrosos, além de desnecessários. Frisa que ajudarão a elevar o desemprego de 8,5% para 20% da população economicamente ativa.
Mas não param na denúncia: oferecem uma alternativa. Sugerem que o Banco Central Europeu aja como o Fed norte-americano e compre títulos da dívida da Espanha até um limite de 4% do PIB. Na Europa, isso teria um efeito político maior: mostraria que sim, há liberdade; não, as sociedades não precisam se conformar com o corte de direitos.
Num outro artigo, publicado pelo Le Monde Diplomatique francês, James Kenneth Galbraith vai além. Não pensa num caso específico, mas na Europa como um todo. Mas ao invés de reduzir direitos em toda parte, como se faz agora, quer nivelá-los por cima. Não basta, crê Galbraith, recompor o Estado de bem-estar social do pós-guerra. Para enfrentar a ofensiva das elites, é preciso ir além das fronteiras nacionais, construindo “um regime fiscal integrado, um banco central dedicado à prosperidade econômica e um setor financeiro que não cause danos”.
Filho do lendário John Galbraith, James quer chegar a tanto pela trilha de uma igualdade ainda não imaginada sequer pela esquerda. Sugere unificar os regimes de aposentadoria (a partir dos mais completos, “a fim de que os trabalhadores de Portugal, Grécia ou Espanha beneficiem-se das normas em vigor nos países mais avançados”), “um salário mínimo decente parta todos os assalariados da União, e um Banco Europeu de Investimentos para financiar a criação de universidades transnacionais e garantir ensino de qualidade de norte a sul”.
Os custos seriam suportáveis? Galbraith responde que sim, desde que haja, adaptada à época que vivemos, vontade política equivalente à que permitiu o surgimento do Estado de bem-estar social. “Certamente, as reformas implicariam impostos mais pesados. Mas eles afetariam mais os ricos nos países pobres que os pobres nos países ricos”.
VII. Do ponto de vista das lutas sociais, a Europa é hoje um continente difícil. Uma ampla parcela da população, envelhecida, vê as conquistas sociais mais como privilégios que como direitos. A integração com os imigrantes é problemática — muito mais que nos próprios Estados Unidos. A formulação de propostas como a de Galbraith é um enorme alento, mas seria ilusório esperar que elas se concretizem no curto prazo.
Talvez um outro aspecto mereça, por ora, ser mais celebrado. Depois de cinco séculos, o Velho Continente — e, por extensão, o antigo “primeiro mundo” — perderam grande parte da capacidade exportar suas políticas para todo o planeta. Esta tendência perdurou até um passado muito recente. Ainda na década de 1980, o chamado “consenso de Washington” espalhou-se como rastro de pólvora — especialmente na América Latina –, pouco depois de formulado e proposto.
Agora, o mundo vive uma espécie de insubordinação silenciosa das periferias. Embora sem conflito, seguem-se na Ásia, na América do Sul e mesmo em certos países da África, outras políticas. Ainda que discreta, há certa distribuição de riquezas. No plano internacional, não se aceita mais a suposta superioridade do “Ocidente” branco. Sua supremacia é cada vez mais questionada — concreta e simbolicamente — inclusive no terreno decisivo das finanças.
Em curioso sinal dos tempos, os chineses avançaram, no início de agosto, num território antes vedado: o das agências de classificação de risco, que estabelecem “conceitos” para o crédito dos países. No dia 3, o diário londrino Financial Times ouviu Guan Zhianzong, responsável pela recém criada Dagong Global Credit Rate. Sem meias palavras, o entrevistado afirmou: “As agências de ranqueamento ocidentais são politizadas e altamente ideológicas. Não seguem padrões objetivos”.
A alfinetada tinha respaldo oficial e endereço certo. Horas depois, a agência de notícias Xinhua, de Beijing, publicava um comentário entusiasmado, saudando “o passo importante de quebrar o monopólio ocidental de agências de risco, das quais a China foi vítima por longo período”. Na matéria do Financial Times, o próprio Zhianzong frisou que, segundo os critérios de sua companhia, os Estados Unidos — um dos centros da revanche das elites — “estão insolventes e arriscam-se à bancarrota, na condição de nação puramente devedora”.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Deleuzeanas

DEVIR [devenir] - "Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambian¬tes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente es¬túpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimi¬lação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos." (D, 8)
Fonte: O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, de François Zourabichvili

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Deleuzeanas

DESTERRITORIALIZAÇÃO (E TERRITÓRIO) - [deterritorialisation (et territoire))
"A função de desterritorialização: D é o movimento pelo qual 'se' deixa o território." (MP, 634)
"O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, e a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras; elas supõem, antes de tudo, uma expressividade que faz território. É de fato nesse sentido que o território, e as fun¬ções que aí se exercem, são produtos da territorialização. A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou componentes de meios tornados qualitativos." (MP, 388)
Fonte: O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, de François Zourabichvili

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Deleuzeanas

CRISTAL DE TEMPO (OU DE INCONSCIENTE) - [Cristal de temps (ou d'inconscient)]
"A imagem-cristal pode ter muitos elementos distintos, sua irredutibilidade consistindo na unidade indivisível de uma imagem atual e de 'sua' imagem virtual." (IT,105)
"No li¬mite, o imaginário é uma imagem virtual que se afixa no objeto real e, inversamente, para constituir um cristal de inconsciente. Não basta que o objeto real, a paisagem real, evoque imagens semelhantes ou vizinhas; e preciso que ele extraia sua própria imagem virtual, ao mesmo tempo em que esta, como paisagem imaginária, se engaja no real se¬guindo um circuito onde cada um dos dois termos perse¬gue o outro, intercambia-se com o outro. A 'visão' é feita desse dobramento ou desdobramento, essa coalescência. É nos cristais do inconsciente que se vêem as trajetórias da libido." (CC, 83)
"O que constitui a imagem-cristal é a ope¬ração mais fundamental do tempo: uma vez que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mes¬mo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada ins¬tante em presente e passado, que diferem um do outro em natureza, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas das quais uma se lança para o futuro e a outra cai no passado. É preciso que o tempo se cinda em dois jatos dessimétricos, um dos quais faz passar todo o presente, e outro conserva todo o passa¬do. O tempo consiste nessa cisão, é ela, é ele que se vê no cristal." (IT, 108-9)
Fonte: O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, de François Zourabichvili

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Deleuzeanas

CORPO SEM ÓRGÃOS (CSO) [corps sans organes (CsO)] - "Para além do organismo, mas tambem como limite do cor¬po vivido, ha o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem orgaos. 'O corpo e o corpo Ele e dnico E nao precisa de orgaos O corpo nunca é um organismo.' Os organismos são os inimigos do corpo. O corpo sem órgãos opoe-se menos aos órgãos do que a essa organização de orgaos cha¬mada organismo. E um corpo intenso, intensivo. E percor¬rido por uma onda que traça no corpo niveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo nao tem portanto orgaos, mas limiares ou níveis." (FB-LS, 33)
Fonte: O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, de François Zourabichvili

domingo, 12 de setembro de 2010

Cicatriz

O ferimento aberto, sangrava e doia. Lavou, limpou o corte e encorajou-se a largar o medicamento que o faria arder ao ponto de tirar-lhe o domínio de si. Mas fez. Durante algum tempo, mal pode andar. Depois foi passando a dor, foi fechando o corte e aos poucos nem lembrava mais da cicatriz. Fechou-se na sola do seu pé e ficou pra sempre sob seus passos.

sábado, 11 de setembro de 2010

Aconteceu

Nossos passos se encontraram como se fossem os traços das linhas da vida, que ditam a existência das pessoas. Andávamos um ao lado do outro, mas a sensação era de fossemos somente um. Não uma simbiose, do tipo de ter que ficar junto, grudado. Éramos simplesmente o mesmo. Pensávamos as mesmas coisas. Ríamos o mesmo riso. Achávamos as mesmas graças. Olhávamos para as mesmas coisas. Tínhamos quase os mesmos livros, discos, móveis e outras coisas. Nossas casas se pareciam e parte de nós próprios escorria pelas paredes e encobria o chão, parecendo tapetes feitos com os fios de nossas vidas. Tudo isso e, ao mesmo tempo, éramos dois. Distintos. Demorou tempo para nos reconhecermos distintos e necessitarmos um da presença do outro. Deu-se quando entendemos que não nos bastávamos um sem o outro. Foi por pura exatidão e não por desesperada necessidade.

Repeat

Chegou de mansinho e capturou minha existência. Se fez de anjo e abençoou minha vida. Se fez de lago e devolveu minha imagem refletida em sua face. Fazia-me acreditar, todos os dias, que seus quereres fossem os mesmos, ou muito parecidos com os meus. Duvidava de toda poeira que via grudada em meu passos, mas mesmo assim, devolvia-me a confiança de que poderia tocar a vida junto com sua vida e que seu braço sempre estaria ali. Colocou em crise, todos as minhas certezas, mas me fazia crer que estaria na terceira margem do rio, esperando que o meu barco atracasse. Para ver seu rosto, eu olhava para o alto. Para aconchegar minhas fragilidades, eu me largava em seu abraço. Para descansar minha cabeça fervente, a recostava em seu peito. Um dia, encontrei no horizonte, somente um bilhete sem explicações que dizia apenas: “De start. Aperte o play. A vida segue!”. Eu, que não era provida de teclado, fiquei travada na última tecla dos seus comandos: repeat!

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Opa!

Opa!
        Opa!
               Opa!
                      Opa!
                             Opa!
                             Naquele dia, não li os horóscopos.
                             Opa!
                      Opa!
               Opa!
        Opa!
Opa!
Mas a vida aconteceu!
Opa!
       Opa!
              Opa!
                     Opa!
                            Opa!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

DIVULGAÇÃO: lançamento de livros

Prezados Colegas: Segue, em anexo, o convite para o lançamento —dia 15/setembro, às 17:30 horas— dos livros Foucault e a crítica da verdade (César Candiotto) e Merleau-Ponty & a Educação (Marina Marcondes Machado), ambos pela Editora Autêntica.
Esse lançamento faz parte das atividades do XI Simpósio IHU O (des)governo biopolítico da vida humana, na UNISINOS. Informações completas sobre esse importante evento estão no site: http://www.unisinos.br/eventos/des_governobiopolitico/
Atenciosamente, Alfredo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Abandono

As mãos travaram. Os braços endureceram. As pernas tornaram-se meros veículos de locomoção. Ainda ria, como todo mundo ri, mas nunca mais sorriu, principalmente aquele sorriso bonito feito de uma felicidade sem medida. Aos poucos foi tocando cada coisa em que portasse a sua presença. Fechava os olhos e tocava, de leve, cada coisa. Esperava a sua voz no outro lado da linha, como um bálsamo para tamanha dor. Depois, percebeu que a voz fazia doer mais. Os dias ficaram por muito tempo sem cor, até que um dia percebeu que o sol latejava ao seu redor, mas não conseguia abrir suas janelas para deixá-lo entrar. Olhava ao seu redor, olhava pra trás, tentando entender de onde haviam lhe arrancado e onde é que tinha sido largado, mas não conseguia entender nada. Sentou quieto, num canto, esperando que uma lufada de vento o ajudasse a respirar. Foi quando viu, jogado perto da porta, um saco velho e sujo, com alguns pequenos buracos puídos pelo tempo e a boca fortemente amarrada. Olhou para o saco e teve um sentimento de familiaridade. Aproximou-se e percebeu que algo se mexia dentro do saco. Foi quando ouviu o seu próprio gemido. Com as mãos travadas e os braços endurecidos, lá de dentro do saco, entendeu que necessitava de ajuda para desamarrar sua vida. Pediu socorro e ninguém lhe ouviu. Foi morrendo aos poucos, sem nunca poder dizer a ninguém como é que fora amarrado dentro daquele saco sujo.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Rapidamente: O Solista

Dia desses, fui à videolocadora buscar três filmes que necessitava ver e, quando já me dirigia ao balcão de saída, meus olhos cruzaram com o filme “Uma carta ao pai”... como estou lendo alguns artigos relacionados ao Kafka, pensei: bá, que sorte encontrar esse filme... juntei-o aos demais, sem ler sua sinopse... quando cheguei em casa, foi o primeiro que coloquei pra rodar... comecei achando os atores um tanto estranhos e logo achei as falas mais estranhas, então detive-me na capa e vim a saber que não tinha nada a ver com Kafka, mas sim, com a publicidade do ideário mais conservador que existe... até com papo de “se guardar virgem” (tanto homem, quanto mulher) para o “casamento”. .. mas, mesmo com sofreguidão, vi a fita o final, só pelo exercício crítico.
Mas afora essa grande furada, vi um filme que há tempos estava em meus planos: “O Solista”, que é baseado na história do músico Nathaniel Ayers, esquizofrênico, que descompensou quando estudava numa escola de artes de Nova York, a Juilliard.
No filme, ele aparece depois que Steve Lopez - um jornalista cuja coluna no Los Angeles Times é muito lida – sofre um acidente bobo enquanto pedalava e, em seu retorno, sai à cata de um assunto que mantenha alimentadas as estranhas de seus ávidos leitores... o bobo acidente o recoloca de frente com sua própria vida.
Lopez encontra-se numa praça e é atravessado pelo som do instrumento tocado por Ayres. Aproxima-se aos poucos e, também, aos poucos, vai se aproximando de si próprio, enquanto conta, em sua coluna, a história do músico-prodígio e de sua relação com o mundo e com a rua.
Chega um dia em que olhamos para trás e não enxergamos nada, então na tentativa de nos salvarmos do nada que pode estar pela frente, nos agarramos à primeira prancha que encontramos abandonada na praia. Você olha, olha, olha e custa a acreditar que as coisas que moram dentro de suas tripas, façam parte do que você é. Era assim que Lopez encontrava-se. Um tanto desligado de si e dos outros, trabalha bastante e com afinco, fazendo aquilo que lhe dá um lugar de reconhecimento, ao mesmo tempo em que não consegue se comunicar com o filho e mal se comunica com a companheira de quem gosta, mas da qual se separou.
Na verdade são duas histórias que se encontram e, em vez de ganhar com isso, o filme acaba perdendo, pois não mergulha em nenhum dos territórios, mas mesmo assim, faz emergir questões muito interessantes... uma delas, é o fato de que, Lopez, tentando se desenterrar de sua própria existência, vai escavando terreno ao redor da existência de Ayres, tentando ajudá-lo, também, a se desenterrar. É claro que o jornalista demora em entender o mundo e a vida do músico, visto estar o tempo todo imbuído da intenção de moldá-lo aos referenciais desenhados por existências pré-moldadas... acha que ele deva ser medicado... acha que ele deve morar num apartamento e não na rua... acha que ele deve aceitar todas as “oportunidades” que lhe oferecem, como sendo a saída para sua vida... acha que ele deve ser grato aos lugares que o sistema lhe concede... e por aí vai.
No mais, afora a palhinha que a mídia dominante tira a partir da relação dos dois, remetendo a questão à situação dos moradores de rua de Los Angeles, é um filme bonito e que mostra o efeito que a existência de uma pessoa pode fazer sobre a de outra, ao se entrecruzarem, assim como, a responsabilidade que temos quando nos permitimos adentrar a vida de alguém com a releitura dos arquivos de nossa própria vida!

domingo, 5 de setembro de 2010

Viver

Cobrei das sementes que plantei, o que haviam feito de suas vidas. Elas, incomodadas, mostraram seus históricos. Algumas, simplesmente nasceram, viveram e morreram; não quiseram outras coisas além disso. Outras nasceram, desejaram, produziram frutos; não saberiam existir sem isso. Outras, ainda, simplesmente ficaram plantadas, em terrenos estéreis, sem condições de irem além disso. E houve aquelas que somente murcharam e secaram.
Cobrei das flores que reguei com água ou com meu olhar, que frutos haviam produzido. Elas, estupefatas, fitaram meus olhos com pesar, como que sentindo pena de minha ignorância sobre a vida das flores. Apenas silenciaram. Mas houve as que fizeram enorme alvoroço; já jaziam insepultas, na calçada fria, algumas ainda em cores vivas e outras murchadas pela falta de cor. Estas tentaram apontar para as coisas que deixaram antes de quedar ao solo.
Cobrei dos frutos que fomentei, a que serviram com suas existências. Eles, já autônomos, orientaram que eu olhasse com maior atenção. Não tinham que responder.

sábado, 4 de setembro de 2010

Pano para qual bandeira?

Desavisada. Desatenta. Desconectada. Saio para as andanças do dia e, logo na esquina, deparo-me com um ou outro carro que cruza e que porta um adesivo: “Nossa bandeira é Cruz Alta”. Pensei: espocou algum movimento de que não estou sabendo?
Lembrei, com isso, de algumas coisas que sempre marcam um certo bairrismo ou uma tentativa de dicotomização entre o local e o exterior. Há alguns anos, era comum os atores do cenário político formal, utilizarem o argumento de que fulano ou beltrano não poderia almejar espaços de poder na comunidade, se nem sequer havia nascido aqui. Circulava nesse discurso, um certo xenofobismo ao forasteiro, ao estranho, ao nômade, ao sujeito que não prende, necessariamente, as suas raízes, no solo conhecido da razão triunfante da tradição-conservadora-ultrapassada.
Lembrei, também, de algumas tentativas de fazer aflorar no discurso, alguns movimentos que devem, antes de qualquer coisa, aflorar nos desejos. Por exemplo: um concurso que escolheu a frase que deveria conduzir essa máquina de fazer movimento... “quem faz Cruz Alta, somos nós”. É uma frase que ainda circula em documentos oficiais e em outros quetais. Se ela produziu o movimento que se esperava, mal sabemos e não quero me deter nisso, aqui.
O que gostaria de falar, um pouco mais, é sobre esse movimento – que vim a saber mais tarde, tratar-se de um movimento – que propõe que se vote em candidatos provenientes do município, que buscam vaga na Assembléia Legislativa e na Câmara dos Deputados.
Fica-nos a impressão de que se trata de uma eleição para escolha de vereadores, pois prega o voto em candidatos locais para que os mesmos representem os interesses locais... e a condição universal da representatividade? Um candidato eleito representa os eleitores em sua totalidade e não apenas aqueles de suas comunidades de origem ou que os elegeram.
Essas concepções impedem, exatamente, que se promova o local, visto que prega que o que interessa, seja a representatividade e não importa de que campo ela venha. Cria-se, assim, um clientelismo vulgar e miserável, sem capacidade crítica.
Doutra banda, não podemos esquecer que há uma avaliação muito criteriosa que devemos fazer e que, afora a crítica aos rumos que os campos ideológicos tomaram, aponta exatamente para os aspectos ideológicos, visto que não se trata de eleger um representante local ou regional, mas sim, aquele que atue a partir de uma visão de mundo compatível com nossos ideais e com as coisas que acreditamos ser melhor para a coletividade... por exemplo: candidatos do campo de direita, comumente representam os interesses monopolizantes, excludentes, capitalísticos, etc, das elites dominantes; já, os candidatos do campo de esquerda, apesar de atravessados pela cultura dominante do capitalismo, deveriam representar os interesses dos explorados, excluídos, oprimidos e que queiram e busquem um mundo diferente desse que o capitalismo fundeou no mundo. Cabe sublinhar que os interesses de um campo não casam com os de outro, ao contrário, se excluem.
Soe dizer, também, que não se trata de mantermos a escolha de representantes focada no clientelismo eleitoreiro das emendas parlamentares que propiciam recursos para os municípios e para os estados. Inclusive se aventou, há algum tempo, buscar viabilizar aqui na comunidade de Cruz Alta, essa prática nefasta de decisão sobre as finalidades dos recursos orçamentários públicos. Se há alguém que pode decidir sobre o orçamento público, é exatamente o povo que pode fazê-lo.
Enfim, parece-me que quem olha somente para a própria bandeira, não hasteia a bandeira do coletivo... para esta, é necessário muito mais pano!

Pela fechadura

Todos os dias, 8 ou 9 da manhã, a visita chegava, batia de leve em sua porta, espiava pra ver se havia algo novo no ambiente e seguia o seu dia. Em dias de maior ansiedade, voltava várias vezes ao dia. Não sabia exatamente o motivo de sua vinda. Se era pra exercer seu controle ou para verificar se fora acrescido algo que pudesse lhe agradar. Acostumou com aquilo. Um dia, encorajou-se e deixou um bilhete na porta: "quando vier, use sua chave, antes que suas passagens pela fechadura estraguem seu segredo". Ainda demorou alguns dias, mas o tilintar das chaves prenunciou a abertura da porta.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ponto

Decidir viver
é sempre mais difícil.
Largar os fardos,
que a alfândega da vida
nos entrega logo
na saída
do cais.
É muito difícil.

Decidir não-viver,
não é,
propriamente,
uma decisão.
Basta-estar.

Decidir morrer,
é sempre
mais simples.
Basta não querer saber
de fardo algum.

E colocar o ponto.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

antonin artaud

"Nós ainda não nascemos.
Ainda não estamos no mundo.
Ainda não existe mundo.
As coisas ainda não se fizeram.
A razão de ser não foi achada..."

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

olho-lente

A lente ajustou o foco
do seu olhar tosco.
Clareou o cenário.
Desembaralhou as letras.
Seus olhos, só por eles,
já lhe serviam pra muito pouco.
Talvez, ainda pudesse usá-los
para pensar.