domingo, 27 de abril de 2014

a.vida.na.caderneta

no dia 21 de abril de 2014 meu pai (Emílio José Diello), num golpeio lento e preciso da vida, retirou-se de si... retirou-se da vida física, mas seus versos transversam com tantos versos nas vidas de tanta gente que nem sei contar... muito da grandeza com que atravesso a vida de tantas gentes vem das coisas que com ele desaprendi ao longo da vida... meu pai foi um homem que nos condenou a nossa própria liberdade (e isso não é uma liberdade qualquer)... os referencias com que transpassava nossos viveres emergiam de seus existires silenciosos, de sua forma de não ser um exemplo para ninguém, de seu jeito simples e quieto de cruzar com precisão nossos imaginários... enfim, seu feito foi a simplicidade e seu jeito foi de não dizer por onde ou para onde deveríamos ir... cada um entendeu isso ao seu modo... mas o que é mais importante: mostrou-nos a luta feita de intensidade, precisão, força, perspicácia, sabedoria, calma, paciência, leveza, grandeza e tranquilidade... mostrou-nos a luta dos que vivem inventando a luta no correr dos seus aconteceres... nunca nos mostrou o desenho do que seja certo ou errado, mas nos ensinou, ao seu modo, a ver as coisas como elas são... e por aí cada um aprendeu a fazer o que quis e o que pôde com suas experimentações... com a vida anotada na caderneta e vivida ao compasso dos movimentos inventados e produzidos...
das heranças que meu pai me deixou, as que mais se fazem presentes são a barriga... o olhar transversado com o horizonte... as invencionices da conversa e da contação de causos... a alegria... a desimpedida poesia... a cara marota de quem inventou uma mentira bem do jeito de uma verdade... o desapego com as coisas materiais... a solidariedade... a generosidade... a experiência de bolicheira e moinheira*... a crença de que o fim nunca está próximo... e tantas outras coisas!
quando falo em experiência de bolicheira e moinheira me refiro a um modo de subjetivação... é um jeito de viver e trabalhar que passa por muitos afetos... afetos que meu pai tão bem nos ensinou... feito de uma ética inventada em sua relação com a vida e com o mundo, sempre fez reverberar na vida das gentes os tinires de suas ferramentas e, quando não as tinha, se podia inventava, mas se não podia, reconhecia sua limitação e tocava a vida... em seus fazeres políticos, transitava em vários campos dos existires da comunidade em que vivia e de muitas outras comunidades... então, nessa toada de ser bolicheiro e moinheiro, ensinou-nos a compartilhar as comidas e os saberes...
criei-me ouvindo uma expressão que diz que todo moinheiro seja ladrão e aí olho para a composição financeira e material feita por meu pai e por minha mãe, e vejo que os bens materiais que hoje fazem parte de seus viveres, são praticamente os mesmos de quando começaram a compor juntos suas vidas... e isso não é uma coisa qualquer... o bolicheiro vendia comida, aviação, perfumaria, coisas para a lida no campo, a querosene, a graxa de gado, a banha de porco, a corda, o fumo em corda (e depois veio também o fumo já picado), o chumbo, o chapéu, a pedra canforada, a noz moscada, o lacto purga, o melhoral e o fontol infantil, a terramicina, o bálsamo alemão, o fermento, a cachaça (em trago e em garrafa)... eu ainda seria capaz de reproduzir com precisão o bolicho em que vivi a minha infância... o setor dos chapéus, a farmácia (humana e veterinária), o setor dos alimentos secos, a grande geladeira comercial, as tulhas, o depósito, o balcão por trás do qual ficávamos para atender, a balança, o baleiro... e tantas outras coisas... ah! e os papeis de embrulho (nos quais fiz meus primeiros rabiscos e em que aprendi a calcular)... esses poéticos papeis em que aprendi a fazer anotações para usar depois e que dão o nome a este blog... enfim, o bolicheiro tinha que ter muito tino para prescrever o medicamento correto, para dar uma orientação bem cabida àqueles que lhe consultavam no balcão ou que lhe pediam uma palavrinha em separado, para expressar uma posição ética e política precisa sobre as coisas da vida, da comunidade e do mundo... e, além de tudo, era feito de uma generosidade e de uma solidariedade desenhada pelo desapego, garantindo a comida na casa das gentes, mesmo quando não havia dinheiro em seus bolsos... lembro de meu pai se desdobrando em mil, na negociação dos prazos de pagamento com os distribuidores, para garantir o fornecimento dos suprimentos no bolicho... isso era preciso, pois a caderneta era bastante imprecisa... nem sempre as pessoas tinham o dinheiro na data aprazada e mesmo assim, sempre se dava um jeito para garantir-lhes a boia em casa...
o bolicho já faz tempo que foi desativado, mas o moinho ainda está ativo... moinho de pedra, feito para moer e partilhar o grão, era como que um cerne da existência de meu pai... em seus últimos dias de vida, hospitalizado, em alguns momentos em que esteve "variando" (delirando) em função do agravamento de seu estado de adoecimento físico, fazia comentários e recomendações a quem estava lhe cuidando, com relação às moagens, à farinha, ao moinho, dizendo que não era para deixar faltar farinha para ninguém.
meu pai, em seus pensares e em seus fazeres, era a mais genuína expressão do que seja um político... atuante, vindo do tempo em que oficialmente só havia a arena e o mdb, foi um militante contumaz do mdb e depois do pmdb... no mais, era essencialmente um político... provocador de pensares e de fazeres na comunidade, era um protagonista estimulador de protagonismos... trasversava os seus movimentos com os movimentos de outras gentes... era de fazer acontecer e também era de acontecer... quando necessário, fazia desacontecer ou desacontecia... foi pela mão dele que participei dos primeiros movimentos pela emancipação de bom progresso e de tantos outros movimentos políticos... foi na conversa com ele que desenhei grande parte de meus pensares éticos e políticos (inclusive minha toada anárquica)...
assimassim, meu pai foi um homem que também cometeu erros e que tinha defeitos, mas em sua essência era um homem da vida, feito gente que inventa a vida todo dia... era um conversador... era e é um grande homem cujos afetos atravessam muitos existires e reverberam em muitos viveres... e é desse cerne que é feita a minha vida... uma vida que também atravessa e transversa com muitas outras vidas... taí a grandeza e a grandiosidade da vida das gentes... tá nessa coisa de que nossos sentires, nossos pensares, nossos fazeres podem reverberar na vida de tantas outras gentes que às vezes nem nos conhecem... nessa toada, ainda quero dizer que meu pai era e é um lindo!

* como em tantas outras palavras desajeitadas pelo popular trato da língua portuguesa, utilizo a literária e poética expressão "moinheiro" (às vezes, munheiro), em vez de moeiro.

sábado, 26 de abril de 2014

flecheira.libertária.335

dia do índio? 
Índios foram exterminados sistematicamente pelo Estado desde que o território chamado de Brasil foi descoberto. Em 1943, na ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas instituiu o chamado “dia do índio”. A solenidade citada em material cívico-didático distribuído pelas escolas, eventualmente, também é mote de protestos espalhados pelo país. É o rescaldo de muito sangue derramado por florestas, caatingas, gerais, em que os indígenas devem se acomodar às políticas de tolerância, desenvolvimento e demarcações de terras. O chamado dia do índio, ao contrário da efusiva designação, celebra a morte, os assujeitamentos, os confinamentos e a ameaça de desaparecimentos, sem jamais afirmar a vitalidade. 

ecologistas radicais 
Há sete anos, Eric McDavid, jovem ecologista, foi condenado a vinte anos de prisão nos Estados Unidos sob a acusação de “conspiração contra propriedade privada relacionada à indústria da carne e infraestrutura estatal”. Denunciado por uma agente do FBI infiltrada na Earth Liberation Front, McDavid foi condenado menos pela denúncia do suposto plano de sabotagem aos criatórios de peixes, ao Instituto de Genética Florestal e às torres de celular. O jovem foi julgado e encarcerado em nome da segurança do Estado e da propriedade. 

a criminalização 
O encarceramento do jovem ecologista é efeito direto das medidas preventivas de segurança do governo estadunidense, tomadas após o 11 de setembro de 2001, mesmo ano em que o FBI passou a identificar e incluir imediatamente a Animal Liberation Front e a Earth Liberation Front como associações portadoras “de ameaça terrorista”. Era um dos inícios, no século XXI, da tentativa de diluir mais uma vez práticas de sabotagem que têm por alvo a propriedade e o Estado, em exercício do terrorismo contra pessoas. 

o que se chama de ecoterrorismo 
Aproveitou-se, dessa maneira, na época, para se delinear nos EUA o que passaria a compor na linguagem penal práticas construídas como “terrorismo doméstico”. Não tardou para que, em  


2003, um grupo reacionário de reforma legal no Texas propusesse a Ata sobre Terrorismo Animal e Ecológico, e ainda que esta não viesse a vingar na ocasião, trouxe os contornos do que passaria a ser erigido como mais uma modalidade de crime, designado como “ecoterrorismo”, também ultrapassando fronteiras jurídico-políticas de um Estado específico. A construção do que se conceitua como crime é sempre uma criação histórico-política que atende aos interesses dos poderosos e mais uma vez expõe sua circunvizinhança doméstica e domesticada na continuidade do castigo que há pelo menos três séculos se atualiza pela prevenção geral. 

princípio da tirania 
E como já dizia o libertário William Godwin, no século XVIII, a prevenção é o que iguala o castigo com a suspeita, e nesta equação o que prepondera é o princípio da tirania, mesmo em meio a tantos procedimentos democráticos. 

anarchy 
Em 2011, diante da permanência de McDavid na prisão e do infindável acossamento pela polícia, ecologistas e anarquistas organizaram protestos exigindo a libertação dos chamados “eco-prisioneiros” e dos demais “anarquistas presos por longo prazo”. Articuladas para junho, as manifestações de 2014 explicitam o embate direto contra o Estado, “em defesa da terra até que todas as jaulas estejam vazias”. Desde a invenção, no século passado, do jornal “Mother Earth” e dos escritos de Emma Goldman e Alexander Berkman, entre outros, os anarquistas amalgamaram lutas imediatas contra a prisão e experiências liberadoras relacionadas à natureza. Diante destas existências libertárias, a manutenção de qualquer corpo preso é inadmissível. 

mercado superior 
Dizem que a educação é importante, que é um direito e que ela define o grau de sucesso na vida de uma pessoa. Suas instituições já foram filantrópicas, estatais, sem fins lucrativos, mas agora o que mais prospera são as empresas educacionais. Recentemente mais uma universidade foi vendida a uma sociedade anônima educacional. Ela não é a única empresa educacional listada na BM&F BOVESPA. Na era das certificações e de conformações para o mercado, educação é mais um grande negócio empresarial. 

big data 
Os especialistas da Tecnologia da Informação passaram a utilizar outro termo para se referir aos dados de cada indivíduo: big data. Não mais o caos dos bancos de dados, mas uma tecnologia em que qualquer coisa pode ser localizada e compreendida a partir de uma pergunta. O big data pretende recolher uma quantidade de dados que seria a mesma das informações disponíveis. Não se trata mais de inclusão digital, visto que, todos estão em algum banco de dados. Entretanto, diante do big data, os antigos bancos de dados tornam-se rígidos, hierarquizados e obsoletos. Agora o big data recebe informações constantemente. Desse modo, a disponibilização de dados, de alternativos e hackers, de militantes ongueiros passando por profissionais da segurança eletrônica, fortalece ainda mais o monitoramento. 

flecheira.libertária.334

facão!
Ruanda, vinte anos atrás. Em poucos dias, muitos milhares foram mortos. A maioria pertencente aos tutsis. A maioria assassinada a golpes de facão. A violência entre os hutus e os tutsis explodiu depois que o avião do presidente do país (um hutu) caiu. Os tutsis foram acusados e a matança começou... e não parou até que muitos morressem e outros milhares se refugiassem em países como o então Zaire. De imediato, especialistas começaram a teorizar sobre os “ódios étnicos e ancestrais” que seriam a causa do genocídio em Ruanda e sobre as novas e amedrontadoras selvagerias que acometeriam os recantos miseráveis, incivilizados ou irredentistas do planeta após o fim da Guerra Fria. O “choque de civilizações!”, gritou um politólogo: a crença na impossibilidade de culturas diferentes inventarem novas práticas sociais liberadas do mercado e do Estado.

racismo!
O argumento do “ódio étnico” colou em quase todo o mundo, porque ninguém sabia nada de Ruanda. Não se sabia que hutus e tutsis nunca foram “duas etnias” separadas, mas grupos dentro de um mesmo conjunto cultural e linguístico. Não se sabia que os colonizadores belgas escolheram o grupo minoritário tutsi para ser seu preposto na administração colonial baseados  em critérios econômicos (os tutsi eram pastores e os hutus, agricultores) e racistas (os belgas achavam os tutsis mais belos e esguios). Não se sabia que com a independência, nos anos 1960, os tutsis herdaram o Estado e reproduziram o modelo ensinado pelos belgas. Não se sabia que não havia nada parecido com “hostilidade ancestral”; mas a crença nos africanos selvagens não precisa de mais que meia palavra para que ocidentais entendam tudo!

governo humanitário do planeta
A ONU foi criticada porque, apesar de presente no país, não se interpôs para evitar a matança. Ao contrário, a organização limitou-se a ajudar os países ocidentais que se limitaram a repatriar os seus. Penalizando-se pela inoperância, a ONU classificou os assassinatos de “genocídio”, ativando assim o direito internacional e a memória do holocausto que impulsionou a sua própria criação em 1945. Em 1998, foi instalado um tribunal criminal específico para julgar os “crimes contra a Humanidade” que embalou o processo para a criação de um tribunal penal internacional permanente. A reação diplomático-militar e jurídico-política ao “genocídio” de Ruanda auxiliou a conformação do atual governo do planeta: tribunais penais internacionais, defesa dos direitos humanos acima da soberania dos Estados, promoção de “intervenções humanitárias”, produção de missões visando a pacificação de regiões tidas como problemáticas para a ordem econômica, política e moral mundial.

os começos vis
Boa parte do que configura as práticas morais, políticas, militares e diplomáticas do século XXI talvez tenha começado com os esquartejados de Ruanda, assim como parte significativa do século XX principiou nas insuportáveis violências da Primeira Guerra e de genocídios contra armênios, assírios, ucranianos e os colonizados africanos e asiáticos de outrora que não tiveram a sorte de que seus assassinatos tenham sido coloridos pelo selo humanitário de “genocídio”.

contra as violências, o fogo que não cessa
Em Atenas, no mesmo dia em que a Grécia voltou a operar no mercado internacional de títulos e recebeu a visita da premiê alemã, Angela Merkel, ocorreu uma ação explosiva (com um carro bomba) que destruiu um banco próximo à praça Syntagma. Ninguém foi ferido, uma ligação anônima avisou em tempo suficiente para o local ser esvaziado. Como em dezembro de 2010, quando um tribunal foi pelos ares, as autoridades gregas saíram acusando a Conspiração das Células de Fogo e grupos de esquerda radical. Até o momento ninguém reivindicou a ação. O que se pode ressaltar é a precisão da ação: foi contra um banco próximo ao parlamento grego, teve o cuidado para não ferir ninguém e deu-se no dia em que a volta ao mercado de títulos internacionais sugere uma recuperação da economia grega. Além de responder à visita de Merkel, que declarou apoio ao atual governo conservador da Nova Democracia, que possui claras ligações com os neonazistas do Aurora Dourada. O fogo grego segue ardendo.

sábado, 12 de abril de 2014

Em Gilberto Freyre, Brasil como presente da comida

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Por que “Casa-Grande & Senzala” ajuda a compreender, também, papel da alimentação no desenho dos dramas e encantos do país
Por Raul Lody, colaborador do site Malagueta | Imagem: Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro (1927)
O livro germinal de Gilberto Freyre, que em Dezembro de 2013 completa 80 anos da sua primeira edição, tem a virtude de ser sensível diante da complexidade das suas grandes questões sobre um Nordeste fundado no açúcar. Gilberto se propõe a revelar “o seu” Nordeste ao leitor. Um Nordeste orientalizado a partir das matrizes lusas com os seus encontros com a China, Índia,
casagrandejorgesabino2Japão; e nas tradições moçárabes e judaicas.
Um nordeste da Zona da Mata de Pernambuco. Sim, Pernambuco como um foco possível e preferencial de Gilberto. O livro Casa-Grande & Senzala é também um depoimento vivencial de Gilberto, que mistura endoetnografias nos cenários do Recife.
Assim, ele traz leituras e experiências familiares; também dá interpretações sentimentais; e ainda busca os sinais de uma região orientada pelo patriarcado que nasce na cana sacarina.
É uma obra para muitas interpretações, para ser revisitada apontando-se para as cozinhas como experiências formais da identidade do brasileiro. Por ser um livro de vocação sensorial, sugiro ler algumas páginas ao sabor de um bolo de massa de mandioca, ou bebendo um boa cachaça, para que se possa assim ter um encontro hedonista ao gosto de Gilberto.
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Ele se revela hedonista quando traz de Ruth Benedict os seus conceitos de “apolíneo” e de “dionisíaco”. São encontros desejáveis e necessários ao tema açúcar, um tema nem sempre tão “doce”.
Entender ainda que Gilberto tem suas preocupações literárias e estéticas com Casa-Grande & Senzala. Ele relata ambientes, festas, indumentárias, comidas, processos culinários, rituais de comensalidade. Gilberto tem um olhar iconográfico dominante, e recorre ao desenho e a pintura como processo de criação e de representação cultural.
Estes imaginários estão nos textos, e pode-se dizer que Casa-Grande & Senzala é um livro “cinematográfico”. E com este desejo visual, Gilberto mostra o melhor deste livro.
Tudo acontece em contexto ecológico, na Mata Atlântica e nos canaviais, temas que mais tarde são aprofundados no livro Nordeste. Esta sociedade do século XIX, exemplar em Casa-Grande & Senzala, é ampliada também em Sobrados e Mocambos, com um olhar mais urbano sobre a civilização que nasce do açúcar.
Casa-Grande & Senzala mostra as histórias das “casas” e das pessoas que vivem nestas casas.casagrandejorgesabino1 Relata religiosidade, maneiras de fazer a comida, escolher os ingredientes; as muitas receitas de um Portugal já globalizado com as “grandes navegações” que aproximaram o Oriente do Ocidente. Esta obra mostra as festas, os rituais do plantio e da colheita da cana sacarina; os encontros de portugueses africanizados pelo Magreb, de povos nativos, de milhares de africanos da Costa, que revelam novos gostos e interpretações de sabores que se espalham pelas cozinhas, pelas mesas, num Brasil à boca.
Gilberto quer apresentar um lugar possível do “trópico”. Mostrar uma civilização onde o poder formal está no mando masculino. Contudo, este poder está também nas cozinhas, territórios consagrados ao mando feminino. Cozinhas na “Casa-Grande”, lugar onde as relações sociais são formalizadas na intimidade de espaços geradores de comidas, de um poder que se projeta no ato da alimentação.
Gilberto revela os rituais das alimentações, inclusive dos “santos”, que são íntimos nestas relações sociais já à brasileira. O Menino Deus, para adoração e para o convívio com as crianças da “casa”, torna-se tão próximo que parece estar também se lambuzando de geleia de araçá.
Outros doces são marcantes e, em especial, os “bolos”, tema que fundamenta o seu livro Açúcar, também dos anos 1930. Gilberto mostra o doce como um preparo feminino, marcado pela mulher lusa como uma atividade especial, pois o doce tem um preparo que vai muito além do açúcar. É um preparo de memórias ancestrais da história colonial lusa.
O termo “doce” valoriza e qualifica aspectos sociais como, por exemplo, “você é um doce”; “te dou um doce”; tudo mostra o açúcar como formador de laços sociais, e isso também é retratado em Casa-Grande & Senzala.
As referências dos sabores, a nova forma para se construir o paladar, o reconhecimento do que é o gosto gostoso, daquilo que chega de Portugal com os “gostos do mundo”, e se misturam com este Brasil de mandioca, de peixes, de milho, de pimentas frescas, e de muitos outros produtos da “terra”, produtos nativos.
Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, expõe uma sociedade que se revela à mesa. É assim que ele quer interpretar o brasileiro: “a partir da comida”. Casa-Grande & Senzalaé uma construção formal de análise que está na tese Social life an Brazil in the middlle of the 19th Century para o título de Master Artium ou Master of Arts, Columbia University, 1922.
Com certeza, em Gilberto, estão todos os sentimentos do gourmet, do antropólogo e do artista, todos reunidos na sua maneira pessoal de gostar do Recife.
Comida de matriz africana em Casa-Grande & Senzala
Na busca de uma “unidade”  na formação colonial  marcada pela cana sacarina  no Nordeste, Gilberto recorre às bases étnicas, mantendo o pensamento dominante à época ( anos 1930) sobre a trilogia: europeu, africano e indígena.
Gilberto em Casa-Grande & Senzala expõe o que é europeu com ênfase no que é lusitano e ibérico; e ao que é “nativo”, indígena.  Já aquilo  que é africano assume um destaque intencional,  e ganha na obra um desejo de  maior aprofundamento.
O autor olha para as relações da África magrebina e a sua civilização afro-islâmica na península  ibérica  atuando na formação das cozinhas da Espanha e de Portugal.  Mostra o africano em condição escrava, e destaca os papéis sociais da mulher africana, entre eles, o de fazer comida, e vender nos “ganhos”,  e nas “quitandas”. Está na mulher o amplo repertório de sabedoria culinária e de memória cultural.  A mulher como yá bassê ( básè, em Yorubá, significa assistente de cozinha) é  a responsável pela cozinha sagrada dos terreiros da tradição Nagô, e assim  mantém  as receitas de uso religioso.
Gilberto destaca a ação civilizadora da mulher africana nas casas dos engenhos, nos ofícios das cozinhas,  na mistura das receitas de Portugal com os ingredientes da “terra” , e com os acréscimos que chegam das memórias africanas. São novos gostos, gostos  em construção, gostos brasileiros.
Ele olha para a cozinha no contexto  das relações interafricanas, dos  africanos em condição escrava, da crueldade da vida na plantation dos engenhos de se fazer açúcar, sem mergulhar numa “cordialidade” idealizada.
Embora o Nordeste seja exemplificado e aprofundado em Pernambuco, Gilberto mostra a Bahia como um território de força e de expressão africana, e ainda cita o Maranhão e o Rio de Janeiro. Porém está em Pernambuco o foco e a experiência etnográfica de Gilberto, que se inclui como um viajante da sua própria cidade, o Recife.
Em outras obras, o sociólgo destaca as comidas do terreiro Obá Ogunté, Seita Africana Obá Omim, do Recife, em Água Fria, e localiza o importante babalorixá Adão Costa. Relata experiências gastronômicas neste terreiro de Xangô da tradição Nagô, tido como o mais antigo do Recife.
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Gilberto valoriza [e certamente gosta] as comidas afrodescendentes, e assim chama  esses  acervos culinários de “manjar africano”.  Informa sobre o uso de folhas nos processos culinários africanos, e nesta verdadeira fusion, unem-se tecnologias de embalar e de produzir comida a partir de modelos milenares americanos dos “tamales”, com receitas que expõem uma cozinha de matriz africana onde se notabilizam o acaçá, o abará, e outras comidas embaladas em folha de bananeira.
Casa-Grande & Senzala detalha a feitura do acaçá, uma comida de milho branco, milho de mungunzá; uma massa cozida sem temperos para acompanhar vatapá, caruru de quiabos, peixes no dendê. Destaca assim os processos culinários com o uso da “pedra”, do pilão lítico, para processar o milho e o feijão,  bases do acaçá e do abará.
Na Bahia se valoriza a “pedra do acarajé”, que é o pilão, pois se considera que ele dá a melhor textura para as massas do acarajé, do abará e do acaçá. Nestas comidas estão as assinaturas das “baianas”, notabilizando o acarajé mais crocante, o abará melhor recheado; são comidas autorais de tabuleiro.
As comidas de “tabuleiro”, hoje identificadas pelos: acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante; e também pela “passarinha”, estão nas ruas, praças, adros, no caso da cidade do São Salvador. Permanecem os imaginários dos ganhos. É um ofício, que hoje, na grande Salvador, reúne mais de três mil “baianas  e baianos de acarajé” .
Gilberto traz, em Casa-Grande & Senzala, os “bolos de tabuleiro”, certamente  criando  categorias para os bolos. Pois os bolos identificam um lugar especial da doçaria pernambucana.  Receitas dos conventos de Portugal, outras da confeitaria popular, e outras das comidas de rua que se encontra com a mandioca, e outros ingredientes da “terra”.
No Recife, em carrinhos de madeira, ainda hoje são vendidos bolos e biscoitos,  próximos em forma e  gosto das suas fontes portuguesas. Tortas enroladas que remetem as tortas do Azeitão (Portugal), bolos verdadeiramente ancestrais; base do tão querido “bolo de rolo”, na verdade “torta de rolo”.
Ainda, tão do gosto e do cotidiano das mesas do Nordeste,  estão as receitas de cuscuz. Tradição da África mediterrânea, da África magrebina, que ganha interpretações  com a farinha de milho, com a massa da mandioca , com o leite de coco, e com muitos outros acréscimos nas receitas.
Gilberto tem o desejo de marcar os territórios dessas matrizes do continente africano; ora afro-islâmica, ora das “Costas” – ocidental, austral, oriental –, e assim busca mostrar, preferencialmente pela comida, essas chegadas e  essas formas de civilizar o Brasil.
Sabores ibéricos em Casa-Grande & Senzala
Gilberto valoriza uma ancestralidade de sabores decorrentes da península ibérica, e assim louva Portugal com todos os sabores reunidos de um povo globalizado pelas grandes navegações.
Tudo está em um Portugal ibérico com territórios africanizados pelo Magreb afro-islâmicos. Do norte da África chegaram também civilizações do Mediterrâneo, a civilização da “oliva”, do “vinho”, do “queijo”. Pelas rotas das especiarias, Portugal retoma as rotas romanas que o levam para o Oriente, para a África das costas do Atlântico e do Índico; e ainda amplia as suas relações, e comércio, nas Américas e o no Caribe.
Com todos estes elementos de civilizações do Ocidente e do Oriente, chegam novas construções de sabores, de técnicas culinárias, de objetos de cozinha e de serviço à mesa; e receitas, muitas dos cardápios do cotidiano, e outras das festas, festas religiosas, essencialmente católicas.
Embora de um rico acervo de ingredientes, de receitas, de um Portugal de além-mar, Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, aponta para questões econômicas, e os diferentes processos sociais que fazem parte da alimentação no Brasil colônia, e diz:  “Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII, XVIII. Nas cidades péssima e escassa.”
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Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, quer mostrar o Nordeste do século XIX sob o regime patriarcal que foi fundado no açúcar da cana sacarina, e uma análise da civilização ibérica no trópico. Assim, escolhe a comida para interpretar essa compreensão colonial. Mostra, com outro olhar, a “idealizada” contribuição holandesa na cozinha regional, e diz sobre o “brote”, um tipo de biscoito enquanto, talvez, uma possível “permanência” dos batavos em Pernambuco. Pois nestes momentos da “Maurícia”, passava-se fome no Recife, os soldados batavos caçavam inclusive ratos para comer.
Gilberto assim louva a farinha de mandioca e tudo que chega dela, e diz: “o próprio feijão já é luxo”. A maioria dos produtos da tradição alimentar ibérica: azeite de oliva, azeitona, vinho, farinha de trigo, e queijo chegavam de Portugal. Ainda, Gilberto diz que os cardápios mais comuns do cotidiano, da subsistência, estavam baseados na farinha de mandioca e no charque. Os desenhos das mesas repletas de comidas, num cenário de prataria, de sedas, de festas magníficas, estão, na maioria, em leituras ingênuas sobre estes processos econômicos e culturais sobre a comida possível no nordeste do Brasil colônia.
Contudo, Gilberto que exibir as mesas de celebrações, mesas com montes de açúcar, para indicar o poder do senhor de engenho. Sem dúvida, o açúcar é o orientador e formalizador das relações sociais. É também com o açúcar vêm as antigas receitas dos mosteiros de Portugal, que são realizadas e reinventadas nestes contextos da mandioca e das suas muitas possibilidades culinárias . Com a colonização, as referências das culturas de Portugal estão no idioma e na comida. Comida formada a partir de receitas moçárabes, de base muçulmana, como mostra Arte da Cozinha (1692) de Domingos Rodrigues: carneiro mourisco, galinha mourisca, entre outros. Também há a comida dos mosteiros medievais. Espaços consagrados as “regras” de alimentação e do “jejum”, uma orientação para a falta de comida, uma santificação para os períodos de comida rara, mesmo em Portugal.
Bolo do AzeitãoAssim, os cardápios e as receitas especiais, que se juntam às tradições populares e as “cozinhas” sofisticadas dos moçárabes na península ibérica, vão construindo uma “cozinha” de formação tropical, e que recorre também aos imaginários medievais dos conventos e mosteiros. Ordem dos Agostinhos, dos Beneditinos, das Carmelitas, dos Jesuítas, entre outras.
Sabores “santos” que chegam às receitas de: morangos no vinagre, caldo de acelgas, bispos, leite frito, natas imaculadas, frango no vinho da missa, arroz com leite, entre muitas, muitas outras receitas conventuais. E alguns doces: amorzinhos de noviça, argola de abadessa, barrigas de freira, fatias celestiais, queijinhos do céu. E alguns exemplos que trazem os “pontos do açúcar”: de pasta, de fio, de cabelo, de pérola, do assoprado, de espadana, de rebuçado …
Filhoses da Ilha Terceira AzoresTudo traz os encontros e as criações, pois, “navegar” e principalmente comer é preciso. Invenções nas cozinhas e descobertas à mesa.

Dieta perigosa para o planeta

Pesquisa sueca revela: aumento do consumo de carne e laticínios pode ter efeitos devastadores sobre clima. Mudança de hábitos alimentares deveria começar rapidamente
Por Taís González
O Painel Intergovernamental da Mudança do Clima (IPCC) afirma ser imperativo evitar que a temperatura da terra eleve-se em mais de 2ºC, em relação aos níveis pré-industriais. Para tanto, instituições como o Programa da ONU para Meio Ambiente (PNUMA) já haviam alertado para a necessidade de reduzir o consumo de proteínas animais. Agora, cientistas da Universidade de Tecnologia Chalmers, na Suécia, deram caráter preciso a esta recomendação. Um estudo recente realizado por eles calcula que, caso não haja mudanças na estrutura de produção e consumo dos alimentos humanos, as emissões de gases do efeito-estufa provenientes da pecuária (óxido nitroso e metano) podem dobrar, até 2070. Ela passará das 7,1 gigatoneladas, registradas em 2000, para 13 gigatoneladas, em 2070.
Os números importam muito. De acordo com a pesquisa, a criação de animais é responsável por 25 a 30% dos gases de efeito-estufa produzidos pela atividade do ser humano. Significa que, para alcançar a meta de limitar o aquecimento global em 2ºC e evitar as piores consequências das mudanças climáticas, não basta reduzir a queima de combustíveis fósseis.
“A mudança de dieta exite um longo tempo. Já deveríamos estar pensando em como tornar nossa alimentação menos perigosa para o clima”, afirmou Fredrik Hedenus, um dos autores do estudo. O cientista acredita que uma dieta vegana pode reduzir até 95% dos gases de efeito-estufa procedentes da alimentação (aqui, em sueco). Hedenus defende o imposto sobre o carbono para o setor pecuário, mas admite que esta é uma ação complexa. “O problema fundamental que temos hoje é que a pecuária não paga pelos seus custos climáticos. No entanto, é difícil taxar as emissões do setor, já que essas emissões consistem principalmente do metano dos estômagos do gado e do óxido nitroso dos campos.”

flecheira.libertária.333

lâmina na merencória
No pátio do Museu da Cultura, espaço aberto no interior da PUC-SP, um anarquista expôs, na conversa “50 anos do golpe militar no Brasil”, a cumplicidade silenciosa da massa abúlica com o golpe civil-militar de 1964. Para além de escancarar as violências do Estado durante a ditadura, alertou ainda para a urgência em abolir as torturas no presente, em delegacias, prisões, Fundação CASA, pelas quebradas, vielas. Cortou o ar afirmando a vitalidade dos embates libertários contra o Estado e sua infindável produção de violências. Diante da presença de jovens estudantes, a lua brilhou sob o pátio do Museu da Cultura, lâmina na merencória. 
a pop star engajada da semana e os machos de plantão
No dia 27 de março, uma pesquisa do IPEA sobre violência contra a mulher, causou alvoroço por publicar dados que mostravam que 65% das pessoas achavam que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Logo uma jornalista começou uma campanha amplamente compartilhada nas redes sociais. Intitulada “eu não mereço ser estuprada”, a movimentação teve adesão imediata de diversas celebridades e inclusive da presidenta. Essa semana o IPEA lançou uma errata mostrando que o número real se referia a 26%, não 65%. A agitadora da campanha declarou que ficou “feliz” com o erro, afinal, segundo ela, a situação não é assim tão ruim. Para além da satisfação da pop-star engajada da semana, a mera existência de uma pessoa sequer que consinta com a violência sobre o corpo das mulheres já é inadmissível. A mentalidade de macho, ao contrário do que sustentou a campanha, não é uma questão estatística.
buraco negro? 
Para além desta merda, quase não se comentou a nota técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, publicada no mesmo dia, que mostrava que mais de 70% das violências sexuais acontecem contra crianças e jovens. Há vinte anos várias pesquisas confirmam essa porcentagem inalterada. Nada se diz sobre isso, mesmo porque os praticantes são na maioria os parentes. 
espionagem protocolar
No mês de confraternização dos 25 anos da rede, o criador da World Wide Web publicou no site da Fundação WWW um comunicado em favor da aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil. O marco postula que as operadoras podem armazenar dados de usuários por um ano, e sites podem armazenar por seis meses. Os sites devem retirar qualquer conteúdo que a Justiça determinar, bem como ceder qualquer dado. Portanto, o controle sobre usuários permanece. Pouco se comenta que certa horizontalização da internet está apenas em seu acesso e que sua estrutura é altamente hierarquizada a partir de provedores nos EUA que centralizam a totalidade de dados. Agora o governo brasileiro terá acesso seletivo a eles. O novo acordo internacional de controle da espionagem da internet, defendido pelo Brasil após a polêmica da bisbilhotada de Obama nos emails de mandatários aqui e acolá, não visa espionar menos, mas fazer com que outros que não só os EUA possam espionar geral. Somado aos protocolos que regem a internet, mais protocolos são redigidos em nome do acesso e dos dados de cada usuário. Não há internet sem troca de dados, nem internet sem a expansão de monitoramentos. 
miséria up to date
Nas escolas de classe média pra cima de grandes cidades do Brasil, para além de tablets que vêm substituindo cadernos, já são bastante comuns também os aplicativos que permitem aos pais monitorar a vida de seus filhos através da ferramenta “dedo duro”. Também é possível que avaliem as notas de seus filhos diariamente, bem como atrasos, faltas e até mesmo se o transporte escolar trafega dentro da velocidade permitida. As agendas pessoais organizadas pela escola podem ser acompanhadas minuto a minuto, fortalecendo e compactuando uma relação entre pais e escola que produz medo e dá continuidade ao regime dos castigos. Fica clara a pressão cada vez maior exercida sobre crianças que, investidas de capital humano devem aprender, desde cedo, a obedecer e a calcular riscos. Repaginada por certa high tecnology, simultânea aos controles na escola, a obsessão por segurança torna a velhaca autoridade dos pais em conduta up to date, explicitando a miséria do nosso tempo. Não tardará chegar nas escolas de classe média pra baixo.

hypomnemata 165

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 165, março de 2014.

...1964-2014, aquém e além de ½ século
ditadura, os baixos começos
Uma ditadura é sempre uma ditadura. Sua sustentação não se reduz a um regime político, tampouco a ditadura como acontecimento se origina com a tomada de poder de Estado.
Seus baixos começos são inúmeros. E o golpe de 1964 que demarcou o início da ditadura civil-militar no Brasil configurou o exercício do terrorismo de Estado.
Não seria preciso esperar pelo AI1, AI2, AI3, AI4, AI5... Uma ditadura se situa menos como estado de exceção jurídico-política e mais como a lógica de existência histórico-política do próprio Estado, levada a seu ápice, obviamente, desejada pelos governados.
Ela não prescinde da forja de seu direito próprio alicerçado na abertura da caça a subversivos, delações perpetradas por alcaguetes de toda ordem, por ordeiros cidadãos, sequestro de homens, mulheres, jovens, crianças e bebês, porões conhecidos e recônditos da tortura, incontáveis sumidouros que existem na forma que cada pequeno ditador se governa.
ditadura: o açougue da tortura
Gente some à luz do dia ou na calada da noite.
Corpos são atirados ao mar, ao rio, às valas, aos sumidouros.
Meninos e meninas são levados a cubículos imundos para assistirem seus pais e suas mães serem triturados por carniceiros torturadores.
Crianças são recolhidas em celas e as mais velhas vibram pela simples migalha de não terem sido separadas da irmã mais nova, ainda bebê, e orgulhosas contam que arranjavam um jeito de dormirem junto a ela temerosos de que sumissem com ela.
Um menino apenas lembra baixinho. Um dia levaram meu pai. Nunca mais o vi.
Uma menina é levada até a presença da mãe, após uma sessão de tortura, e não a reconhece. Anos depois ela dirá: “aquela não era a minha mãe, era apenas uma massa de carne ensanguentada com os dentes arrancados”.
Mulheres são alvos dos torturadores que também as seviciam sexualmente. Muitas delas depois de torturadas e encaminhadas a hospitais, por vezes são corpos para perversões sexuais de enfermeiros.
tribunal: o açougue da formalidade
Os anos passaram e urge saber e expor o nome de cada torturador.
Mas que isto não se confunda com o coro de combate à impunidade e recriação do tribunal, seja ele qual for.
Ele apenas dispõe a mesma moral no açougue das formalidades sob a norma do exercício regular do procedimento asséptico, atravessado, também, por torturas declaradas ou recônditas.
Nele, cada um é dissolvido em uma abstração genérica da regra fixa e geral que resguarda a garantia dos seletivos privilégios particulares, no jogo inerente tanto ao direito especial da ditadura quanto ao direito universal do Estado democrático de direito.
O tribunal refaz o itinerário inverso e complementar das abjetas apropriações da vida, conservado sob a lógica do juízo, da qual o regime do castigo não abre mão.
Um tribunal é sempre um tribunal.
a ciência da tortura, baixos começos
Militares de alta patente, co-artífices do golpe, antes do apoio decisivo à deposição do governo em 1964, ocuparam cargos na polícia desde a era Vargas, onde se sofisticaram nas técnicas de tortura; entraram e saíram de delegacias, reorganizaram instituições policiais, articularam-se com polícias estrangeiras para aperfeiçoar material técnico e humano.
Os EUA no pós II Guerra Mundial iniciaram a execução de programas de treinamento de polícias de países menos desenvolvidos voltados a coibir a expansão do comunismo.
Esses programas se espalharam a partir dos anos 1950 e inúmeros militares e policiais do Brasil viajaram aos EUA para frequentar cursos de novas técnicas de interrogatório e treinamento de tortura, assim como para compra de material.
O aperfeiçoamento da tortura no Brasil adveio de sua aplicação em ‘bandidos pés descalços’ no decorrer dos anos 1950, pois a chamada criminalidade comum era vista, também, como fator de perigosa instabilidade social que poderia abrir as portas para o crescimento da esquerda se não fosse combatida com rigor.
No esteio das infindáveis reformas policiais complementares à formação de grupos de polícia especial engendrou-se ainda na década de 1950 o Esquadrão da Morte, em referência direta ao alto índice de cadáveres de miseráveis abandonados em estradas, em geral assassinados depois de sessões de torturas.
Com a ditadura civil-militar se intensificou, também, a prática no padrão dos ‘esquadrões da morte’, não como arbítrio, mas como técnica policial e de governo elaborada para triturar resistências, quaisquer que fossem, viessem de onde viessem, assim como o Brasil tornou-se o grande exportador de técnicas científicas de tortura para as ditaduras na América do Sul.
O “saudável terror” do século XIX  na expressão utilizada por um chefe de polícia para conter revoltas de escravos  sofisticou-se com a tecnologia de poder e de governo do século XX.
Policiais e agentes da lei espancando até a morte ou sumindo com pessoas estavam ali desde sempre, servindo ao Estado, proprietários, industriais, banqueiros na defesa da vida acovardada dos cordatos e ordeiros governados.
abolir a ciência da tortura
A continuidade das torturas, do litoral ao interior do Brasil, escancara o ranço da ditadura civil-militar que insiste em sobreviver no presente. “Tortura-se respaldado na autoridade (seja de pai, policial, professor) e na ciência. Numa democracia ou numa ditadura, a tortura é parte constitutiva das tecnologias de poder; produz verdades que as sustentam” (http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=20).

A tortura não irrompeu com o golpe de 1964, pelo contrário. Este achatamento da vida faz parte da história do território identificado como Brasil, no extermínio dos índios, na escravidão dos negros, na perseguição a anarquistas, na polícia estadonovista contra quem desafinou no coro dos contentes, nos esquadrões da morte... no cotidiano das delegacias e prisões.

Entretanto, foi a partir desse momento, março/abril de 1964, que pouco a pouco a tortura se tornou prática comum e oficial.

Seguiram-se ao SNI (Serviço Nacional de Inteligência) – criado em junho de 1964 – outras siglas macabras como CIE (Centro de Informações do Exército), CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), dedicadas, em nome da segurança, a prender, torturar e assassinar sistematicamente homens e mulheres identificados como terroristas ou subversivos.

Em 1968, na cidade de São Paulo, surgiu, com o auxílio de financiamento empresarial, a OBAN (Operação Bandeirante), que na década seguinte tornou-se o DOI/CODI-SP, matadouro oficial chefiado pelo delegado Sergio Paranhos Fleury.

Disseminado em várias regiões do país, o modelo de organização do DOI/CODI-SP integrou e tornou mais eficiente a repressão torturadora do terrorismo de Estado.

Diziam que salvariam a democracia dos comunistas. Que os brasileiros patriotas desejavam capitalismo e democracia. Que a ditadura reporia a institucionalidade. Que, em suma, o Estado se defendia do perigo comunista!

E tudo isso nada mais é do que a essência do próprio Estado de direito.

O alto investimento na propaganda do “milagre brasileiro” auxiliou, nos anos 1970, o fortalecimento dos grupos paramilitares que passaram a atuar coadunados com o aparelho repressivo construído após o golpe, assassinando moradores nas periferias do Brasil afora, conformando um “programa de genocídio”, como bem situou o artista Hélio Oiticica ao se referir ao assassinato, nesta década, de quase todos os seus amigos do morro da Mangueira.

Como declarou Cecília Coimbra, “a tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nossa inteligência” (Depoimento de Cecília Coimbra à Comissão da Verdade: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/depoimento-de-cecilia-maria-boucas-coimbra-as-comissoes-nacional-e-estadual-da-verdade/).

Em plena democracia, o silêncio sorridente de parte dos cidadãos diante do “desaparecimento” de Amarildo, da recente execução de Claudia Silva Ferreira, dos urros de dor dos corpos submetidos às violências da prisão, expõe a sobrevivência de práticas que se institucionalizaram antes, durante e depois da ditadura civil-militar.

É preciso, portanto, reverter os embates tradicionais contra a tortura e os escrachos que se restringem a um acerto de contas histórico.

A luta contra a ditadura, a tortura, o governo dos obedientes militantes e conformistas é também uma luta contra o Estado.
pelo fulgor da vida
No romance Os cúmplices, o escritor libertário Roberto Freire explicitou, precisamente, que o consentimento de grande parte da população com o golpe civil-militar foi o que sustentou mais tarde a infindável máquina de violências do Estado.

Preso em 1965, torturado com “telefones” que resultaram no deslocamento da retina de um de seus olhos, Freire conta no livro que no dia 1º de abril de 1964 saiu caminhando pelas ruas de São Paulo. Pediu um táxi. No trajeto, perguntou ao motorista: “E, agora, como será nossa vida com esse golpe militar?”. “Igual”, responde o chofer. Diante da insistência de que os militares iriam acabar com “nossa liberdade”, ouve como resposta, “que liberdade, cara? Preciso é de dinheiro”.

Entre 1964 e 1968, irromperam os jornais O LibertárioDealbar e O Protesto. Não foram supervisionados por censores como a grande mídia, simplesmente foram fechados. Nada de palavra livre, somente as gerenciadas.

Já em 1964, o anarquista Pietro Ferrua cria, ao lado de uma jovem pesquisadora no Rio de Janeiro, uma "Liga dos Direitos Humanos". Não para celebrar e promover o vazio e a universalidade de valores, mas como um meio para produzir contatos internacionais capazes de evitar que pessoas fossem mutiladas e assassinadas pelo Estado, usando o que hoje serve para promover benfeitores e reformadores como tática para combater o Estado e suas violências.

Combateu-se os guerrilheiros urbanos ou rurais que saíram em contestações radicais alertando contra a ditadura, o capitalismo, a encenação parlamentar, a exploração... Só houve terrorismo civil depois de instalado o terrorismo de Estado.

Na ditadura civil-militar, no governo de Garrastazu Médici, em 1972, integrantes do grupo de teatro anarquista The Living Theatre foram presos no DOPS de Belo Horizonte e, depois, expulsos do país.

Ao chegarem a Nova York, apresentaram pelas ruas da cidade Seven Meditations on political sado-masochism.

Exibiram o sexo torturado do corpo de um jovem revolucionário arruinado pela ditadura, escancarando o apoio dos EUA à ditadura civil-militar do Brasil, a conivência de parte da população brasileira com as violências do Estado e, por fim, o que chamaram de horror produzido pela política.

Depois de intensa repressão, a partir da invenção do jornal O Inimigo do Rei, em 1977, os libertários voltaram a se articular, animados pelas experiências liberadoras contra o Estado, para além de acomodações e negociações políticas de abertura política.

Com O Inimigo do Rei, o combate à ditadura retornou revigorado e exigiu, diante das transações pela anistia, a libertação imediata de todos os presos brasileiros.

Diante da ciência da tortura, do Estado, os anarquistas resistiram à ditadura civil-militar escrevendo cartas para vários cantos do planeta, ensaios, romances, jornais, apresentações, escrevendo a própria existência.

Estas vidas que vibram pouco são comentadas nos eventos solenes oficiais e off-oficiais de memória e combate ao autoritarismo vigente durante a ditadura civil-militar.

Entretanto, elas estão aí em livros, anotações, cadernos, dissertações e teses, na memória que se atualiza, pelas ruas e pelos cantos, na pele de jovens que fazem do presente das batalhas um fulgor.

Superbactérias: os riscos de uma crise global


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Salmonella, bactéria que provoca infecções gástricas
Banalização do uso de antibióticos e impasses na pesquisa de fármacos suscitam espectro de epidemias incontroláveis. Há alternativas, mas é preciso agir já
Por Martin Khor | Tradução: Gabriela Leite
Um número crescente de doenças tem sido afetado pela resistência, um fenômeno que se dá quando as bactérias não podem ser mortas, mesmo quando distintos medicamentos são ministrados a alguns pacientes, que sucumbem. Isso gera a perspectiva sombria de um futuro em que os antibióticos já não funcionam e muitos de nós, ou de nossos filhos, não vão mais resistir a doenças como tuberculose, cólera, formas mortais de desinteria e germes contraídos durante cirurgias.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) vai discutir o tema em maio, em sua assembleia anual de ministros da saúde. A agende inclui o debate de um plano global de ação contra a resistência microbiana. Em momentos anteriores, houve diversas resoluções a respeito, mas pouca ação. Este ano, pode ser diferente, porque países como o Reino Unido estão convencidos de que anos de inatividade tornaram o problema cada vez mais grave.
Chatham House, uma organização internacional sediada no Reino Unido, foi local de duas reuniões recentes a respeito: uma em outubro e outra no mês passado (co-organizada pelo Geneva Graduate Institute). Ambas foram presididas pela Diretora Geral da Saúde da Inglaterra, a professora Dame Sally Davies, que transformou a resistência a antibióticos em uma campanha emergente. Em um livro recente, The Drugs Don’t Work (“Os remédios não funcionam”), ela revelou que seu relatório anual sobre saúde focou-se, em 2012, em doenças infecciosas.
“Nossas descobertas são simples: estamos perdendo a batalha contra doenças infecciosas. As bactérias estão reagindo e tornando-se resistentes à medicina moderna. Para resumir: os remédios não funcionam.” Davies lembrou que os antibióticos adicionaram em média vinte anos à expectativa de vida dos seres humanos e que, por mais de setenta anos, eles nos permitiram sobreviver a infecções e cirurgias que ameaçavam nossa vida. Contudo, “a verdade é que temos abusado deles como pacientes, médicos, viajantes e em nossa comida”, diz ela em seu livro.
Davies prossegue: “Nenhuma classe de antibióticos foi descoberta nos últimos 26 anos e os micróbios estão contra-atacando. Em poucas décadas, poderemos começar a morrer por cirurgias mais comuns e por doenças que hoje podem ser tratadas facilmente.”
Nas duas reuniões da Chatham House, às quais compareci, diferentes aspectos da crise e das possíveis ações foram discutidas. Em uma das sessões, fiz um sumário das ações necessárias, incluindo:
> Mais pesquisa científica sobre como a resistência é causada e se espalha, incluindo a emergência de genes resistentes a antibióticos como no caso do NDM-1 [cuja ação é explicada mais adiante].
> Pesquisas em todos os países para determinar os níveis da resistência a atibióticos e bactérias que causam várias doenças.
> Diretrizes e regulações de saúde em todos os países para orientar os médicos sobre quando (e quando não) prescrever antibióticos.
> Regulamentações para indústrias de drogas sobre marketing ético de seus remédios, para evitar que promoções de venda dirigidas a médicos ou ao público levem a um uso elevado e desnecessário.
> Educar o público a usar antibióticos apropriadamente, incluindo informações sobre quando eles não devem ser usados.
> Banir o uso de antibióticos na alimentação animal (com o propósito de obter crescimento acelerado). Restringir o uso em animais apenas para doenças de risco.
> Promover o desenvolvimento de novos antibióticos e criar mecanismos (inclusive financeiras) que não tornem as novas drogas propriedade exclusiva das indústrias farmacêuticas.
> Assegurar que pessoas pobres também tenham acesso aos novos remédios.
Quanto ao primeiro ponto, um fato novo e alarmante foi a descoberta de um gene, conhecido como NDM-1, que tem a habilidade de alterar a bactéria e fazê-la altamente resistente a qualquer droga conhecida.
Em 2010, só se localizou a presença do gene NDM-1 (detectado em 2006) em dois tipos de bactérias — E. coli e pneumonia Klebsiella. Mas descobriu-se que este gene pode facilmente saltar de uma espécie de bactéria para o outro. Em maio de 2011, cientistas da Universidade de Cardiff (Reino Unido), que fizeram os primeiros relatos sobre a existência da NDM-1, descobriram que este gene se espalhou para vinte espécies de bactérias.
Também em maio de 2011, houve um surto de uma doença mortal, causada por uma nova cepa da bactéria E. coli, que matou mais de vinte pessoas e afetou outras duas mil na Alemanha. Apesar de a E. coli “normal” produzir doenças suaves de estômago, este novo tipo causa diarreia com sangue e dores de estômago severas. Em casos mais sérios, atinge as células sanguíneas e os rins.
A tubercolose é outra doença que esta retornando de forma agravada. Em 2011, a Organização Mundial de Saúde (OMS) descobriu que meio milhão de novos casos no mundo eram do tipo resistente a múltiplas drogas (MDR-TB), significando que não poderiam ser tratados pela maior parte dos remédios. Além disso, em torno de 9% das tuberculoses resistentes a drogas múltiplas também têm resistência a duas outras classes de remédios. São conhecidas como tuberculoses extensivamente resistente a drogas (XDR-TB). Pacientes com XDR-TB não podem ser tratados com sucesso.
Pesquisadores também descobriram que, no sudeste da Ásia, cepas de malária estão se tornando resistentes a tratamentos. Em 2012, a diretora-geral da OMS, Margaret Chan alertou que todos os antibióticos já produzidos até hoje estão correndo risco de tornarem-se inúteis.
Assembleia Mundial de Saúde, convocada para o próximo mês é uma oportunidade que não pode ser perdida para finalmente lançar um plano de ação global para resolver esta crise.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

flecheira.libertária.332

31 de março, 50 anos
O golpe civil-militar armado desde a renúncia de Jânio Quadros foi levado adiante em março de 1964 em nome da preservação da democracia e prenunciava a ditadura. As interpretações laudatórias enfatizam deturpações e perversões. Produzem ornamentos. Querelas à parte, o que ainda surpreende foi o silêncio amedrontado da massa na hora, no dia e nos anos seguintes. Equivocadas ou inequívocas contestações armadas, ficaram escondidas pelo milagre, os ilegalismos ganharam estatuto de legalidade, os empresários continuaram lucrando, os políticos vestindo a indumentária que melhor agradasse os golpistas e vários corpos torturados desapareceram. Ficou o silêncio medroso da massa obediente que foi trabalhar e voltou silente para casa nos sempre abarrotados transportes públicos insuficientes. A massa abúlica e covarde é a glória do golpe e da ditadura. É a sua procissão de coniventes mortos-vivos.
dezembro 1964
A ditadura civil-militar decreta que crianças e jovens são problemas de segurança nacional. Arma um complexo institucional para capturar, internar e educar crianças e jovens no programa bio-psico-social. Reforma as velhas prisões e os internatos estatais. Em sua modernidade extemporânea, reitera a tortura e os espancamentos dissimulados ou não em valores de formação moral. Depois da ditadura, as mesmas prisões continuam lotadas pelo que há de favorável e contrário no Estatuto da Criança e do Adolescente. A Febem travestiu-se de Fundação CASA. Na democracia ou na ditadura educam-se crianças e jovens com base no castigo familiar, escolar e governamental, com muita violência, para punir e matar. Se é necessário dar um basta na escandalosa tortura de presos políticos no passado, é também urgente interceptar o anonimato contínuo que preserva os torturadores dos presos comuns, sejam eles jovens ou adultos encarcerados ou somente inominados corpos desaparecidos. 
junho 2013 em diante
A democracia da massa abúlica e covarde investe em lei antiterrorismo, prescreve como se deve contestar e teme que sejamos mal vistos nos noticiários da Copa do Mundo por não nos apresentarmos como recomenda o teatro das representações dirigido por democratas e empreendedores estadunidenses e europeus. A miséria transita desgovernada pelas ruas. Esse contingente de moradores de rua, temporariamente, pode ser calado com uma marmita e um crack, assim como, famélico e insubordinado, atravessar os cordões da ordem de benfeitores e policiais. Em tempo: nas últimas manifestações em São Paulo há mais policiaisque contestadores. O protesto está sendo docilizado e reconduzindo os desfiles da massa abúlica e covarde pelas ruas e avenidas em clamor por migalhas do Estado.
a violência que não tem fim
Noticia-se que, recentemente, não há mais confrontos entre policiais e manifestantes; que não há mais nenhuma pessoa ferida ou detida; que a polícia não é violenta. Entretanto, quem esteve presente na manifestação do último dia 27 de março constatou como os policiais continuam xingando, provocando e ameaçando os manifestantes. Incomodados com os cânticos, a vontade estampada em cada policial era a de espancar cada um dos manifestantes. Não o fizeram porque, obedientes às ordens de seus superiores e receosos do destemor dos que lá estavam, tiveram que se conter. Os manifestantes também não deram o que eles queriam. Não temer a polícia é reiterar que a violência é própria de quem veste a farda. 
arregos e arreglos
O complexo de favelas da Maré, no Rio, foi ocupado pelo exército e pela marinha. É ano de Copa e, com isso, o caminho dos gringos do aeroporto internacional até Ipanema e Copacabana estará “pacificado”. É ano de eleição e o governador quer eleger seu vice. É ano de Copa e eleição e o governo federal não quer manifestação, tiroteio, gringo assaltado, policial morto, favelado protestando. Tudo tem que funcionar para o mercado do voto, da vitrine internacional, dos negócios e negociatas na Wonder City.
aplicar o modelão
A operação na Maré foi uma réplica daquela que ocupou o Alemão em 2010. O primeiro batalhão a entrar foi, novamente, o que já esteve várias vezes no Haiti, invadindo favelas por lá. Assim como no Haiti, a ocupação visa integrar populações ao mercado, aos serviços públicos privados, à democracia formal. Assim como no Haiti, a “missão de pacificação” tem data formal para acabar, mas a promessa explícita de ficar por tempo indeterminado. Depois vêm as ONGs de fora e as da comunidade, patrocinadas por corporações multinacionais com seu marketing sustentável. No Haiti ou aqui, o governo de populações e negócios se modula, se testa, se espraia.
felicidade geral da nação?
A ocupação militar no Rio conta com o alívio geral de gente do morro e do asfalto, da FIFA e dos muitos negócios que inflacionam a cidade. Alívio com a presença do exército, alívio com a militarização intensificada da polícia, alívio com os blindados da marinha e helicópteros da aeronáutica. Alívios na semana dos cinquenta anos do golpe civil-militar que aliviou tanta gente que assentiu com a repressão, a tortura, o autoritarismo em nome da segurança, da moral, da ordem. Os blindados voltam às ruas na semana do aniversário do golpe, revestidos agora de dispositivos democráticos e constitucionais dirigidos para o mesmo propósito: garantir a lei e a ordem. De quem? De muitos?
on fire! 
A especulação imobiliária em Nova York varre a cidade, formando guetos. Seja na ilha de Manhattan ou nas demais áreas do Brooklyn e Queens, a força da grana impele para longe, quem não está para o rentável jogo do mercado. Em 2013, o The Living Theatre, grupo anarquista de teatro, criado por Julian Beck e Judith Malina em 1947, fechou suas portas. Judith Malina, atriz, escritora, amante e anarquista, como costuma se apresentar, mesmo obrigada a morar do outro lado do rio Hudson, estreou esta semana a nova peça do The Living Theatre, “No place to hide”. Entre jovens, amigos e pessoas interessadas em viver outra NYC, off, off, off Brodway, Judith celebrou a continuidade de uma existência inquietante, em que a saúde de suas ideias e o jeito livre de tocar na vida, extrapola e combate o que o mercado dita. Judith continua on fire pelas ruas e cabeças de New York. 
uma anarquista 
É sempre bom lembrar. Malina foi presa no Brasil, em 1971, na cidade de Ouro Preto, com o The Living Theatre. Antes de ser expulsa do país no ano seguinte, perguntou às mulheres com quem dividiu a cela do DOPS em Belo Horizonte: o que podemos fazer por vocês? A partir da experiência na prisão, em 1972, montou com o The Living Theatre uma das primeiras apresentações públicas que expuseram a prática da tortura pela ditadura civil-militar brasileira. A apresentação pelas ruas de NYC da chamada “Seven Meditations on political sado-masochism” expunha, a partir das torturas sobre o corpo de um revolucionário, a omissão de parte da população brasileira e o apoio dos Estados Unidos às violências abomináveis praticadas pelo Estado ao sul da América. Passados quarenta anos, Malina segue adiante, escancarando seu fogo libertário, agitando as ruas no planeta.