quarta-feira, 19 de outubro de 2011

flecheira.libertária.223


zona sul 
No Rio de Janeiro, os moradores de rua não são apenas um problema do centro da cidade, dos trilhos da zona norte e do agitado bairro noturno da Lapa. Eles incomodam em Ipanema, Leblon e Copacabana: nas praias, nas marquises das lojas e embaixo dos viadutos. Lojistas contrataram detetives particulares para investigá-los e se irritaram ao constatar que alguns pedintes são tão profissionais quanto eles, com faturamento mensal mais ou menos fixo acima da média dos “trabalhadores formais”. Lojistas cobram da polícia e da prefeitura medidas que retirem da porta de suas lojas esses incômodos inquilinos, mas já apostam em segurança privada que investiga a vida desses andrajos, com detetives disfarçados de mendigos. Fica a pergunta: quantos dos que vemos nas ruas já não são detetives contratados, sicários ou polícias, disfarçados ou não?
acolhendo e entulhando 
A resposta da prefeitura é preencher os vãos de viadutos com entulhos, para torná-los menos atrativo como local de moradia, e investir em dispendiosos programas de abrigos super-equipados, para tornar o acolhimento mais desejável. Dois usuários do serviço da prefeitura se mostram satisfeitos: um identificado como homossexual, elogia a ala especialmente destinada aos que compartilham da mesma “opção sexual” que ele; outro, que se declara usuário de crack, elogia o efeito desintoxicante que o abrigo proporcionou, além das aulas profissionalizantes que “podem lhe dar um futuro”. Esses abrigos são equipamentos sociais com diversos atrativos, que vão de oficinas de formação e cursos de informática a piscinas e quadras poliesportivas, complementados com encaminhamentos para tratamentos médico-psiquiátrico de usuários de drogas. Esses andrajos seriam um incômodo ou uma contingência a ser administrada? Parece que seu potencial produtivo reside no quanto se oferece como presente e como futuro.  
a acolhida
Sabemos que em toda cidade tropeça-se nos andrajos  jogados nas ruas. Os investimentos seguem produzindo inúmeras ações e programas a serem encampados e operacionalizados por moradores, prefeitura e profissionais que acolhem o entulho humano administrável para melhorar o ambiente da cidade. Esse contingente se dispõe como alvo  e insumo de seguranças privadas e investigações. Enquanto parte dos clientes/usuários se satisfazem com os abrigos, que se apresentam como um híbrido de ala de tratamento, prisão, residência e clube, promovendo inclusão e separações modulares, outra parte está disposta aos serviços paralelos e complementares, legais e ilegais. Moradores de rua, usuários de crack e seres que perambulam pelas ruas são cada vez mais o alvo de investimentos vários, relacionados a cuidados médicos móveis e abertos, à atrativos equipamentos de abrigo e, agora, seguranças e investigações privadas. O que resta nessa variável combinação? 
polícia e direitos humanos: cena 1 
No ônibus uma pessoa lê uma entrevista com a secretária da Coordenadoria Espacial de Direitos Humanos do gabinete da presidência. A entrevista é sobre a votação da  Comissão da Verdade no Congresso, mas termina com a secretária informando sobre os diversos programas de formação em direitos humanos realizados pelas polícias de todos os estados da federação. Uma polícia mais humana e em conformidade com a constituição, diz a secretária. O ônibus para. Entram dois policiais fardados, pelas portas dianteira e traseira, com pistolas semi-automáticas engatilhadas e gritam perguntando se está tudo em ordem. As pessoas no ônibus, assustadas, dizem que está tudo bem. Os policiais escaneam o local... 
polícia e direitos humanos: cena 2
Após o escaneamento, os policiais identificam, entre os passageiros, um estrangeiro. Perguntam, estupidamente se ele é brasileiro; ele responde que não. Entre gritos e caras feias, o rapaz informa que não possui RNE nem passaporte, e que reside na cidade de Santos, litoral paulista. Uma pequena bolsa com celulares é encontrada embaixo do banco, ao lado do lugar onde o rapaz estava sentado. Os policiais dizem pertencer a ele e ser produto de roubo, por isso sua viagem havia acabado e ele seria conduzido à delegacia. O rapaz nega o pertencimento da bolsa e se recusa a acompanhar o policial. 
polícia e direitos humanos: cena 3 
A pessoa que lia o jornal e assistia a cena até então, intervém perguntando como o policial sabia que a bolsa era do rapaz, já que foi encontrada no chão do ônibus. O policial, irritado, diz ter recebido uma denúncia e que não era para se meter no trabalho dele. A pessoa insistiu, dizendo que para levar o rapaz à delegacia ele deveria levar todo o ônibus, que confirmaria que a bolsa não estava com ele. Outra pessoa interveio, dizendo ser estudante de direito e que poderia acompanhar, como testemunha os policiais. Não se sabe o desfecho da  cena, mas desconfia-se que o rapaz se deu muito mal, mesmo acompanhado de uma defensora da lei. 
segue o jogo
Mesmo com a secretária de Direitos Humanos confiando nos cursos que promovem uma “nova cultura policial”, pautada no respeito aos Direitos Humanos e na paz. Mesmo com pessoas que não têm medo das fardas, embora se assustem com as armas, interferindo na truculência própria dos policiais. Polícia é polícia. As cenas poderiam muito bem figurar num filme sobre a ditadura militar, desses muitos produzidos desde a chamada abertura democrática. Quem anda pela cidade, a pé, de ônibus ou de carro, sabe que seguem as suspeições, as abordagens estúpidas, as interceptações de pessoas. 
policiais educados
Os policiais, como nas cenas acima, dizem possuir educação, justificam, em voz alta, estarem fazendo seu trabalho, promovendo a segurança, protegendo o cidadão de vagabundos e aproveitadores. Uma terceira pessoa comentou, após a saída dos policiais, que ficou com pena do rapaz, pois ele lhe pareceu inocente. O chamado senso comum ainda associa periculosidade a traços físicos e procedências, enquanto a igualdade de direitos, reiterada nos cursos, dissemina que todos são suspeitos e culpados, até que se prove o contrário. A cidade está sufocantemente abarrotada de polícia. O ar, com a chuva, até que melhorou. Os bons cidadãos parecem esperar por uma chuva que caia do céu para melhorar sua polícia. Que vão para o raio que os parta! 
lombroso high tech
Filme de ficção: no futuro, as novas tecnologias acopladas a uma superinteligência são capazes de prever um crime antes que ele aconteça. Vida real: um novo aparelho está sendo desenvolvido pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA, para identificar um criminoso antes que ele cometa qualquer crime. O aparelho mede a temperatura corporal, o movimento ocular, o tom da voz – entre outros sinais vitais – cruzando-os com a etnia, a idade, o sexo e a profissão da pessoa. É o racismo de Estado reatualizado pelas novas tecnologias. Sempre existirão os alvos preferidos de controle do Estado entre os chamados vulneráveis, mas os perigos que rondam as resistências são surpreendentes e incomensuráveis. 
não deu em pizza  
No fim de semana chuvoso em São Paulo é comum ficar em casa e pedir uma pizza. Mesmo em algumas penitenciárias os detentos e detentas podem usufruir deste costume. Recentemente, num fim de semana em uma penitenciária feminina no interior do Estado, 9 presas pediram uma pizza e, aproveitando a distração da carcereira no momento de entrega da comida, deram no pé. Provavelmente o resultado desta desobediência será um maior controle e alguma restrição para as detentas que ficaram. Mas quem tem apreço pela liberdade não se contenta com a comodidade e o “direito” de algumas regalias no confinamento. A chuva na rua é mais saudável do que o mofo na prisão.

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