domingo, 28 de fevereiro de 2010

Brevíssimo Conto

Por ora, voltando de uma reclusão, apenas um Brevíssimo Conto:
POR UMA FLOR - Andou pelo jardim à procura do cheiro da terra molhada pelo orvalho da madrugada. Teve pressa atrás da lagartixa preguiçosa que recém acordara. Buscava, não sabia exatamente o quê, naquela manhã de ansiedade e marasmo. Queira alegria. Queria amor. Vazou o olho naquele espinho de roseira. Ficou com o olhar parado para sempre naquela flor. Mas teve dor.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Bibliografia foucaultiana

Atendendo aos pedidos de alguns colegas e amigos que estão se preparando para a discussão sobre alguns temas abordados por Foucault, estou postando informações sobre alguns livros que estão e estarão em nossa pauta de conversas e que se constituem em elementos importantes em nossa “caixa de ferramentas” foucaultiana.

Começo com Repensar A Política - DITOS E ESCRITOS, V.6 - Ed. UNIVERSITÁRIA, cuja tradução recém saída do forno agora em Janeiro/2010, constitui-se no sexto volume de Ditos e Escritos, os quais reúnem prefácios, artigos, discursos, entrevistas, seminários e ensaios de Foucault ao longo de sua vida e obra, afora todos os escritos que foram publicados em formato de livro.
A seguir, outras referências que podem ajudar a traçar um caminho de leitura e entendimento de seus conceitos, de sua obra, enfim, de seu pensamento.
As informações a seguir foram coletadas no sítio da Livraria Cultura.

Poder, Normalização e Violência (2008) - Organizador: PASSOS, IZABEL C. FRICHE - Editora: AUTENTICA
Este livro destina-se a interessados em conhecer o pensamento de Michel Foucault (e até mesmo nele se aprofundar), sejam eles professores, filósofos, literatos, psicólogos, sociólogos, artistas ou estudiosos em geral. Mais que uma mera coletânea de textos avulsos, o livro foi concebido a partir de um eixo central- apresentar um conjunto articulado de textos que ajudem a esclarecer noções difíceis, passíveis de diferentes interpretações, mas centrais no pensamento de Foucault- as noções de poder, normalização e violência.

Cartografias De Foucault (em Português) (2008) - Organizador: VEIGA-NETO, ALFREDO / SOUZA FILHO, ALIPIO DE / ALBUQUERQUE JUNIOR, DURVAL MUNIZ - Ed. AUTENTICA
Reúnem-se, aqui, as questões apresentadas e discutidas durante o IV Colóquio Internacional Michel Foucault, realizado na cidade de Natal, em 2007. Para usar a conhecida expressão de Foucault, este livro é um 'nó em uma rede'. Tomando o pensamento do filósofo como uma caixa de ferramentas, cada capítulo parte de diferentes perspectivas disciplinares e temáticas de modo a refletir tanto sobre as políticas espaciais quanto sobre os diversos espaços da política.

Figuras De Foucault (em Português) (2006) - Organizador: RAGO, MARGARETH / VEIGA-NETO, ALFREDO - Ed. AUTENTICA
Passadas duas décadas da morte de Michel Foucault, seu pensamento continua sendo referência para quem acredita na necessidade de novos rumos para a ética, de novas formas de sociabilidade, e de uma reflexão sobre os mundos público e privado, que parecem seguir caminhos perigosos na contemporaneidade. Com a publicação desta coletânea, os autores contribuem para a expansão do pensamento do filósofo e levam adiante as análises e as problematizações desenvolvidas por ele, reafirmando a atualidade de Foucault, que comemoraria 80 anos de vida neste ano.

Vocabulario De Foucault (em Português) (2009) - Organizador: CASTRO, EDGARDO / XAVIER, INGRID MULLER - Ed. AUTENTICA
Este livro é produto de um estudo destinado aos interessados em pensar com Foucault, e a partir dele. Cada verbete da obra não se refere a apenas onde, nos escritos do filósofo, aparece cada termo, mas quer, ademais, oferecer uma indicação de seus usos e contextos.

Foucault - A Coragem Da Verdade (2 ed. 2008) - Tradutor: MARCIONILO, MARCOS - Organizador: GROS, FREDERIC - Editora: PARABOLA
Que coragem é essa que, para se manifestar, supõe a instância de um falar francamente? Qual é essa verdade cuja condição de possibilidade não é lógica, mas ética? Esse nó de coragem e verdade terá, sem dúvida, constituído para Foucault algo como um complexo fundamental. A coragem da verdade como grade de leitura da obra e da vida enquanto indissociáveis, enquanto aquilo que, simultaneamente, fundamenta a escrita de livros e a ação política. É isso o que os estudos aqui publicados tentam estabelecer, desdobrar. Eles fornecem várias pistas para construir a figura de Foucault como pensador comprometido com a atualidade política, de Foucault diagnosticador do presente, enfim, do Foucault que encontra em Sócrates um irmão longínquo, convicto, como ele, de que há algo de mais essencial que qualquer verdade; a exigência da verdade.
BOAS LEITURAS E DISCUSSÕES A TODOS!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Varrendo pedras

Quisera passar meus dias varrendo pedras enormes com vassouras feitas de plumas e ainda chegar ao final do dia feliz, mesmo não tendo varrido uma pedra sequer ou tendo apenas deslocado algumas. E depois, voltar pra casa para encontrar uma sopa de osso fumegando para me animar o estômago após o banho na água fria... e mais tarde, com a lamparina acesa, sentar em meu banquinho de madeira –feito um preto-velho- e contar histórias para meus filhos até a hora de deitar o corpo cansado de plumas e de pedras, e dormir o sono literário dos entes que sonharam o sonho possível da existência. Nem mais, nem menos, sem arroubos, sem vaidades, sem desnecessidades!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Michel Foucault e a Problematização da Subjetivação

Aí vai o acesso para a minha Dissertação de Mestrado:
http://cascavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_arquivos/24/TDE-2009-10-28T141810Z-2307/Publico/DIELLO,%20MARIA%20LUIZA.pdf

A Resistência

O Escritor argentino Ernesto Sabato, quando se enveredava pras beiras dos cem anos, produziu uma série de seis cartas dirigidas aos leitores, vasculhando as transformações ocorridas no correr dos tempos, no mundo e nas gentes.

O título do livro foi desenhado como RESISTÊNCIA (que é o título duma das cartas) e as cartas têm os seguintes títulos/temas:
1. “O pequeno e o grande”;
2. “Os antigos valores”;
3. “Entre o bem e o mal”;
4. “Os valores comunitários”;
5. “A resistência”; e,
6. “A decisão e a morte”.
Anotarei aqui, o intróito que ele utiliza em cada um dos textos... quem quiser e puder, corre atrás do livro que, no Brasil, foi publicado pela Companhia das Letras, em 2008... ou prende o grito, que eu faço uma cópia!
Intróito 1: “O belo consolo de encontrar em uma alma o meu mundo, de abraçar em uma imagem amiga toda a minha espécie” (F. Hölderlin).
Intróito 2: “Eu estava diante da vasta e rica terra, mas tinha olhos apenas para o mais humilde e o mais diminuto... Onde estaríamos nós, pobres homens, se não existisse a terra fiel? Que teríamos se não contássemos com essa beleza e essa bondade?” (R. Walser).
Intróito 3: “O humano do homem é dar a vida por outro homem” (E. Levinas).
Intróito 4: “Cada um de nós é culpado perante todos, por todos e por tudo” (F. Dostoievski).
Intróito 5: “São os expulsos, os proscritos, os ultrajados, os despojados de sua pátria e de seu torrão, os empurrados com brutalidade aos mais profundos abismos. É entre eles que se encontram os catecúmenos de hoje” (E. Jünger).
Intróito 6: “O morrer, essa inatingível ação que se cumpre obedecendo, ocorre para além da realidade, em outro reino” (M. Zambrano).
Ah! Antes que esqueça, um pedacinho da orelha: “Ao se aproximar dos cem anos de idade, Ernesto Sabato concebeu este livro como uma espécie de mensagem na garrafa, destinada a encontrar outros seres tão perplexos quanto ele diante da desumanização do homem em nosso tempo”!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

SEM RIMA

Aprendera com a mãe, a andar olhando para o chão.
Dizia-lhe, ela, que se olhasse para
o alto, veria poesia, e, se
olhasse para baixo, veria
respingos de poesia e moedas.
Viu, em meio ao corredor de
ônibus, a moedinha brilhando.
Correu para juntá-la, sem ver o
ônibus que não vê moedas,
nem meninos.
A moeda permaneceu imóvel,
porque não vê ônibus, nem
meninos. (Ela, a moeda, é vista).
Nunca pôde saber se o ônibus
ficara mais vivo com a vida
que cedo lhe colhera. O
capital, certamente ficara
mais vivo, pois ele vive de vidas colhidas cedo.
A moeda, mais
alguém tentaria juntar.
Viveu e morreu como a mãe.

De pais e de filhos

http://mafalda.dreamers.com/
Hoje estou pensando nessas coisas, pois venho me deparando, em meu trabalho clínico, com incontáveis situações relacionadas à questão da maternagem e da paternagem, e, também, da filhação. Há os que dirão que talvez quase tudo que nos chega à Clínica seja vindo dessa teia. Talvez. Talvez.

Culturalmente as condições de cuidado e formação da cria humana seguem uma linha de gênero que delega à mulher a responsabilidade maior nessa tarefa. É a mulher que carrega em suas entranhas o filhote. É ela que lambe, amamenta, aconchega e tudo o mais. Ao pai, a psicanálise clássica ajudou a reconhecer como o autor dos referenciais de Lei e de limites, inspirada no modelo clássico de família nuclear. Modelo fajuto e borrado pelo mundo em movimento que rompeu com uma tradição autoritária que nos era dada como herança.


E é pelas heranças que nos vêm feito ritornelo, ecoando em nossa existência, que se faz aquilo que fizeram de nós e aquilo que somos; portanto, a maternagem, a paternagem e a filiação, se fazem cruzar por essas heranças humanas... as heranças que recebemos e que escolhemos.


Quando a tradição clássica já não guia ortodoxamente nossos passos, podemos escolher muito mais, mas também corremos o risco de não termos ou não sabermos o que escolher. E parece-me que é isso que tem ocorrido com grande número das formações familiares. Cada vez aparecem-nos mais sujeitos, na Clínica, que chamo de vítimas do desenvolvimento guiado pelo exercício precário e miserável das condições de maternagem e paternagem, e que mal conseguem deambular na existência, muito menos, ensaiar passos firmes. São filhos de pais e mães cujas heranças também são precárias e miseráveis.


São muitos desses filhos extraviados humanamente e que se tornaram pais e mães, que nos vêm à Clínica procurar atendimento psicológico para os seus rebentos porque os mesmos estão brigando muito em casa, não obedecem, não querem estudar, não gostam da escola, buscaram nas drogas um alento para (des)existir, entre muitas outras coisas que resultam da precariedade humana com que são feitos os rumos de suas vidas. Essas coisas não se constroem na Clínica e sim, na existência, na vida, em meio àquilo que nos é dado herdar e escolher herdar humanamente. Como se faz isso? Talvez se trate de pensar e desenhar novos modos de vida guiados por valores outros que não os que uma tradição falida nos outorgou.

http://mafalda.dreamers.com/

Poetagens Alheias - UM RAIO DE SOL

Poetangens que anotei, mas não lembro de quem sejam: "Morava mal, em andar baixo, no meio de vários prédios. Sua janela dava para uma área interna, onde dezenas de pessoas viviam, emparedadas como ele. Raramente olhava por aquele fosso escuro. Mas naquela manhã sentia-se bem. E decidira espiar lá fora. Ia abrindo a janela quando viu, no parapeito, um raio de luz. Logo, inquieto, o raio se moveu. Entendeu: era um menino, lá em cima, fazendo sinais de espelho. Mas nem quis saber. Com um raio de sol de presente, aquele só podia ser seu dia de sorte. E foi jogar na loteria".

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Poetagens Alheias - UM SONHO

Das Poetangens de Clarice Lispector: UM SONHO - "Foi um sonho tão forte que acreditei nele por minutos como uma realidade. Sonhei que aquele dia era Ano Novo. E quando abri os olhos cheguei a dizer: Feliz Ano Novo! Não entendo sonho. Mas este me pareceu um profundo desejo de mudança de vida. Não precisa ser feliz sequer. Basta ano novo. E é tão difícil mudar. Às vezes escorre sangue”.

Ainda sobre o gato-preto

Duas coisas ainda sobre o gato-preto:


Uma: Há um conto de Edgar Allan Poe, chamado O gato preto e se não me falha a vaga memória, está em Histórias Extraordinárias, em que ele narra os desenrolares da relação do personagem principal com seu gato preto, cujos efeitos, embalados pela culpa e pela superstição, depositam no gato absolutos poderes.


Duas: O gato preto ganhou estatuto de maldição na Idade Média. Cria-se, ainda, que fossem bruxas ou feiticeiras disfarçadas. Dizem que toda bruxa tem a companhia de um gato preto... lembro dessas coisas lidas em algum livro da literatura infanto-juvenil e gostei mais dessa última versão!

POETAGENS ALHEIAS

Já faz algum tempo que perdi a mania de guardar recortes de jornais. Chegou ao ponto em que ficavam os humanos morando em casa, ou dávamos todo o espaço aos recortes de jornais. Já fiz várias triagens e aos poucos me desfaço das coisas que já se tornaram desnecessárias. As que ainda não ganharam o estatuto de desnecessárias, mas já não detém mais a condição de absolutamente necessárias, ganharam o lugar do porão pra residir no tempo de trânsito para um outro estatuto. Mas alguns recortes ainda ocupam a pasta das poeticidades e de tempo em tempo lhes passos os olhares dos olhos, numa confusa sensação que me faz lembrar Borges: “O tempo é a substância da qual sou feito./ O tempo é um rio que me leva,/ mas eu sou o rio;/ é um tigre que me despedaça,/ mas eu sou o tigre;/ é um fogo que me consome,/ mas eu sou o fogo”. Nessas olhaduras, reencontrei uns escritos do Fernando Bonassi, dos quais muito gosto, e aí vai um deles:
“ESCREVER – Você acorda e toma o café que puder. Você nem precisa sentar. Você pega um papel, uma caneta (que não precisa apontar) e então escreve. Primeiro você escreve contra Deus. Depois escreve contra a família. E, desse mesmo jeito, escreve contra os homens. Você pode escrever com um copo de veneno ou com uma injeção de ânimo, não importa, mas você escreve. Você também escreve porque você escreve e não há maior razão que essa. Você escreve amassando o pão do diabo, vendo as notas sumirem da carteira e levando pé no rabo. Ainda assim, você escreve. Escreve quando vale a pena e quando vale nada. Quando faltam as palavras você escreve. Você escreve uma do lado da outra. Com muita verdade. Especialmente quando escreve o inventado”.

Palavras vindas nas patas de um gato-preto

Estou em crise. Acho que tem um gato preto morando aqui em casa. Um gato-preto.



Durante muitos anos da minha vida morei em apartamento e desde o ano passado, moro numa casa. Meu sonho-bobo era de ter uma casa com fundos, porão e sótão. Por ora, consegui só uma casinha com fundos e um arremedo de porão, mas já dá pra fantasiar!


Não gosto de ter bichos presos ou domesticados em casa... acho que os bichos têm a vida deles e não devem ficar aprisionados às nossas necessidades.


Gosto das surpresas que os bichos me provocam todos os dias. Nos “fundos” (acho essa designação muito poética) aqui de casa há muito verde. Há um limoeiro. Uma laranjeira. Duas ramas de parreira. Um pessegueiro. Duas imensas roseiras. Uma touceira de uma planta bonita e que nunca lembro o nome. Afora todas as outras plantas de menor porte que fui plantando aos poucos.


É um território ocupado pelos pássaros e pelas borboletas... pombas, sabiás, joão-de-barro, corruíras, bem-te-vi, canários, pardais e outros mais, sem contar os beija-flores, sobre os quais falarei noutro escrito. Dia desses uma corruíra teve filhotes e num momento de descuido um gato da vizinhança os comeu! As pombas conseguem se virar melhor com os gatos, sem serem degustadas por eles!


Como a terra aqui é úmida e fornida pelos detritos orgânicos que lhe ofereço, é um território também de minhocas, onde os pássaros catam o alimento.


Na noite passada ouvi barulhos dentro de casa. Pensei que fosse um rato. Ao iniciar o dia, percebi que algum bicho havia entrado por uma janela que mantenho sempre aberta. Tentou subir na geladeira, mas despencou com tudo o que encontrou pelo caminho. Remexeu a lixeira. Pensei: fui invadida por um gato! Ao dar meia volta na cozinha, dei de cara com ele, olhando-me com uma fixidez quase humana, seguro, impositivo, quase dono do território. Assustei-lhe para que fosse pra fora. Foi, mas voltou em disparada, se aninhou em algum canto da casa e dali saiu bem mais tarde, quando, por algum outro susto, saiu em disparada. Pensei que tivesse tomado seu rumo. Mais tarde, mexendo nas plantas, deparei-me com o dito dormindo recostado atrás da touceira da planta de que não lembro o nome e desde aquele momento estou inquieta... que fazer se o gato escolheu o mesmo território que eu pra viver? Mas com o passar do tempo a coisa vai piorando, porque já comecei ter devaneios de que possa ser uma gata que tenha se aninhado ali pra ter filhotes e no meu imaginário os filhotes já tomam conta do território também.


O único pensamento que me acalma é o fato de ser um gato-preto. Respeito tudo o que é tratado como rejeite pelas convenções e pelas crenças. Respeito número 13. Respeito os que são jogados à margem da existência. Respeito os restos. Respeito o lixo. Respeito muitos outros rejeites. E respeito gato-preto também, mas agora que há um morando aqui em casa, não sei o que fazer com isso. Penso em consultar os horóscopos, pois deve ser prenúncio de alguma coisa. Vai saber?!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

ACORRENTADOS: CRACK, PRA PENSAR!

Começo este escrito com umas poeticidades de Paulo Mendes Campos, de uma escrito que talvez já seja por demais conhecido, mas que expressa um pouco do que quero dizer. O título é “Acorrentados” e diz o seguinte: “Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre;
quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: meu pai só gostava desta cadeira;
quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona;
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças;
quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata;
quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;
todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre” (In: O Anjo Bêbado - Editora Sabiá).
Começo assim, com esse texto que trama a poética das palavras com a poética da existência, pensando numa condição que desde o início da epidemia do crack tem sido comum em muitas famílias de usuários dessa droga, que é de, no limiar entre o vazio da existência e o vazio produzido pelo efeito do crack, acorrentar seus filhos para mantê-los separados, apartados, afastados do mundo e da droga! Acorrenta-se o corpo para domar o vazio da existência. E sobre isso, remeto-me também à pergunta que uma colega de trabalho me fez um dia desses: “acorrentar um filho para mantê-lo afastado das drogas não se constitui em maus-tratos?” Talvez essa seja uma questão teórica, jurídica e humana que se lança aos nossos olhos. Quem não conhece o desespero de um familiar com a condição flutuante de um usuário de crack, jamais entenderá esse ato.
Gostaria, também, de inverter um pouco o lema da campanha “CRACK, NEM PENSAR!”. Mesmo que eu seja uma combativa histórica à atuação e aos efeitos da mídia dominante na vida cotidiana da sociedade, reconheço também que a construção proposta pelas mídias alternativas contempla um trabalho de médio e longo prazo que visa a uma transformação de mundo, enquanto a mídia dominante chega em nossas cabeças e em nossas vidas todos os dias, em todas as horas e em todos os momentos, amparadas pelo poderio que acoplaram em seus veículos.
Dizer: crack, nem pensar!, significa, além da evitação dessa droga, também, a possibilidade de não pensar sobre o que nos trouxe até ela e nem o que simboliza no mundo contemporâneo!
O crack aponta um novo modo de subjetivação contemporâneo. O usuário de crack é absolutamente diferente do usuário das demais drogas. E fica radicalmente distante do romântico usuário da maconha lá dos anos 70.
Trabalho no atendimento clínico especializado, no Serviço de Saúde Mental da rede pública de saúde, do município de Cruz Alta e quase todos os dias nos chegam casos de usuários de crack, cujas famílias antes de demandarem atendimento, pedem socorro! Nesses pedidos de socorro surge sempre a informação de que o caso do filho seria “aquele” que foi divulgado pela mídia por ter sido acorrentado! Acredita-se que o filho foi o único, mas isso é absolutamente comum acontecer: acorrenta-se para mantê-lo com o pé no chão, do contrário, o grande vazio da existência o arrasta e o faz flutuar ao infinito, como se fosse um balão de gás!
Nenhum estado psicopatológico que se me apresentou até hoje foi tão absoluto e radical como o do usuário de crack! O usuário das outras drogas transitam por muitas questões existenciais, mas o do crack se depara com essa coisa radical que afeta e dissemina as subjetividades contemporâneas: o vazio absoluto, a miséria humana e existencial, a pobreza afetiva e emocional! Profissionalmente e familiarmente, resta-nos pouco a fazer quando o barco já vai em alto mar... a quem não consegue chegar ao próximo porto, resta jogar-se ao mar e salgar a vida com sua água!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Explicando um pouco das coisas do Blog

Alguns já me perguntaram sobre algumas coisas do Blog, mas ainda não fiz sua descrição, tendo colocado apenas algumas coisas em meu perfil, portanto, agora respondo algumas coisas, algumas enviadas por email e outras pessoalmente, tentando explicar um pouco do Blog.



Uma das coisas: o motivo do caminho virtual se apresentar com “outras compotas”. Como já pincelei num dos escritos, faço aqui, compotas com as palavras, idéias, pensaduras, imagens e outras coisas que me aparecem nas colheitas cotidianas e que podem servir a novos pensamentos em momentos de entre safras. Isto posto, antes eu fazia minhas compotas em outras formas e agora, arrisco neste Blog, que qualquer um pode ler e participar... sendo assim, outras compotas!


Outra das coisas: também já está dito nos escritos, tendo me criado no cotidiano de um bolicho, desde muito pequena meus rabiscos foram feitos nos papéis de embrulho e é uma das coisas que nunca abandonei. Hoje tenho várias pastas com meus papéis guardados. Já aprendi a pensar e escrever diretamente no computador –uma coisa muito difícil pra quem sempre usou o lápis pra escrever e pensar-, mas a planta baixa dos projetos de escritos, ainda é feita com o lápis e o papel... e confesso que agora dei pra escrever com lápis de desenho, assim tenho a sensação de que no escrevinhar das palavras, desenho também as idéias e suas imagens. Ainda uso lápis de caspinteiro, papel de embrulho e caderneta.


Ainda outras das coisas: o motivo dessa fotografia aí, estampar o Blog cujo título é Papéis de Embrulho: Bueno! Essa é uma fotografia que fiz no ano de 2007 e da qual gosto muito. Falarei um pouco desse lugar: fica a uns 500 metros da casa em que nasci. Lá pelos idos da década de 70, nos meus primeiros anos de vida, já andava a passos largos o delírio do chamado “desenvolvimento” propiciado pela tecnologia e pela devastação capitalística. Nesse compasso, foi realizado o asfaltamento das estradas da região noroeste -e de todo o resto, é claro- e esse lago que aparece na fotografia era então apenas um terreno por sob cuja superfície encontrava-se imenso rochedo. Esse rochedo foi utilizado para o asfaltamento, deixando ali uma imensa cratera de mais ou menos três hectares, onde, há alguns anos, foi colocada uma taipa e transformada no lago, que é um dos meus lugares preferidos para pescar.


A fotografia foi feita num momento de volteio do sol e toda a margem reproduz o seu exato reflexo na água. É o Eu e o seu duplo que se juntam na exata torção da dobra que se produz entre a margem que faz a contenção da água e desta que lhe devolve o seu retrato, a sua imagem... me parece uma relação de amor... junta-se a imagem do que é, com a imagem de seu reflexo e parece ser um só!


Agora é essa fotografia que estampa a entrada do Blog e mais adiante pode ser outra, pois não sou afeita à essas ditaduras de regularidades que os marqueteiros apregoam para a fixidez alienada de imagens. O que me interessa é exatamente as desregularidades, as descontinuidades e os movimentos que aí se produzem.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Ciscos de Poesia

Ciscos de Poesia

Penso que a taquara interpreta o som do vento e quando já não verdejam mais em suas touceiras, ribomba o som cristalino de sua alma seca. Pendurei-as no costado aqui de casa e sempre que o vento as procura, fazem os acordes de sua melodia.

Sempre achei que para alcançarmos algum estado de decência humana teríamos que conseguir a capacidade de transformar a realidade em literatura. Em ficção da existência. A realidade é uma loucura que nos atravessa as entranhas e estrebucha o viver.

Não sou escritora. Sou apenas uma escrevinhadeira, tradutora de existências. Meus primeiros escritos foram feitos em papéis de embrulho... Gosto de escrever de um lado só da folha/ na sua frente/ o verso fica em branco para poder dar lugar à prosa: ao que nunca é dito! Mas como escrever somente na frente da folha do blog? Talvez o seu verso esteja em cada um que lê!

Eu sei dizer muito pouco das coisas do mundo e do mundo! Escrevo com lápis de carpinteiro, porque risco na madeira dura o talhe de minhas palavras! Mas sei dizer muito da existência, porque nessa viajo há quase quarenta anos! Ela é dura comigo... e eu, dura com ela!

Na primavera, saio no meio da noite, com as luzes apagadas, para espreitar o cheiro da laranjeira-em-flor; flagro-a no exato momento em que exala de si o cheiro que lhe convém... queria ter essa sua destreza!

Talvez a vida seja isso: uma taquara que dá sentido ao vento. A realidade que nos cruz a mansidão. Uma folha sem verso. Um grafite que desenha nossas idéias. Uma flor/ um cheiro ciscado no sentimento de cada um.

Fórum Social Mundial 2010

Neste ano, de 25 a 29 de janeiro aconteceu a 10ª Edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre.

O Fórum teve sua primeira edição em 2001, como contraponto ao Fórum Econômico de Davos. Passou, progressivamente, de contraponto a espaço de discussão do mundo que aí está e que atravessa nossas existências com a transfusão cotidiana em nossas veias, do sangue capitalístico que teima em sustentar o pensamento único e a lógica do mercado.

Com o lema inicial de UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL, chega a 2010 com um adendo, expressando que UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL E NECESSÁRIO.

Neste aniversário, gestou-se um importante processo de avaliação que deu a ver a necessidade de dar um rumo para as discussões e formulações geradas a partir do Fórum, definindo-se se queremos melhorar o capitalismo, ou se assumimos o desafio de construir esse outro mundo que é possível e que, por ora, se apresenta na urgência de sua necessidade, mesmo sem ainda sabermos exatamente qual seja. E a essas duas vias, soma-se ainda a voz de muitos que entendem que muito mais do que espaços de discussão, o Fórum deve ser muito mais propositivo... desconhecendo, talvez, que toda construção propositiva passa necessariamente pela contínua e permanente discussão.

A quem interessar possa, aí vai o endereço pro FSM: http://fsm10.procempa.com.br/wordpress/

Parindo o Blog

Não sou muito afeita aos descaminhos da internet, mas me proponho, sem muitas pretensões, arriscar andar neste espaço de dizer as coisas, ouvir outras e entrecruzar pensamentos que se atravessam ou mesmo, que andem paralelos. No correr do tempo, prometo ir melhorando e aprendendo a manusear o espaço.
Devo dizer que este é um projeto que há tempos ocupa uns rabiscos em minhas gavetas, mas que acabou ficando sempre para depois, portanto, agora que faço seu parto, irei, aos poucos, postando coisas que meus lápis já escreveram em outros tempos e, concomitantemente, vou trazendo as coisas que forem emergindo e tomando forma.
O que pode ir aparecendo não tem formatação rígida... pode ser filosofia, poesia, psicologia, literatura, música, outras artes, ou simplesmente a vida que ruge dentro ou fora das existências! Enfim, o que interessa é pensar, escrever e conversar!