domingo, 26 de fevereiro de 2012

Um controle psiquiátrico da dissidência?

Comportamento anti-autoritário, que recomenda avaliar poder antes de respeitá-lo, pode estar sendo reprimido desde a infância por diagnósticos e medicamentos questionáveis
Por Bruce E. Levine, em Alternet | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Rico GatsonO Grupo
Em minha carreira como psicólogo, falei com centenas de pessoas antes diagnosticadas por outros profissionais como portadoras de Transtorno Desafiador de Oposição (TDO), Transtorno do Déficit de Atenção / Hiperatividade (TDAH), Transtorno de Ansiedade e outras doenças psiquiátricas. Estou chocado por dois fatos: 1) quantos destes pacientes são, em essência, anti-autoritários; 2) como os profissionais que os diagnosticaram não o são.

para Vladinei Roberto Weschenfelder


para Vladinei Roberto Weschenfelder

hoje foi um dia chuvoso, mas sem goteiras em meu teto. dia denso, com acontecimentos densos. aproveitei, então, para dar conta de duas fitas densas que já tinha algum tempo que queria ver... Melancolia e Dançando no Escuro... de Lars Von Trier... Trier é um sujeito por si só muito denso e seu cinema, mais ainda. gosto muito de seus filmes, mas tenho dificuldades para dar conta da coisa, pois me provocam a sensação de falta de ar pra pensar e respirar.

trier não se preocupa em desenhar uma história com começo, meio e fim, nem com a veracidade das informações ou dos fatos... apenas busca mostrar o que lhe interessa mostrar... é agoniante acompanhar sua câmera e seu pensamento... escancara a finitude insistentemente, mas o faz de uma forma tão exata, que o pessimismo que poderia se mostrar como resultado, acaba aparecendo com um outro riscado... acaba mostrando que não resta outra coisa, senão viver e que mesmo que por um lado só reste a finitude, por outras vias e atalhos, viver é possível... os que parecem fortes, sucumbem e os que são fortes, vão até o fim, olhando a finitude no fundo de seus olhos, sem sucumbir à sua absolutez!
talvez, num outro dia, fale mais desses dois filmes... menciono-os hoje, porque passei a semana pensando muito nos descaminhos do trabalho com as políticas públicas e com o emprego público, e, no fato de um grande colega e amigo ter se exonerado de seu trabalho na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social... como em Melancolia, passamos nossos dias tentando nos convencer de que o planeta que está na rota de colisão com o planeta em que vivemos, passará bem pertinho, mas não nos destruirá... até percebermos que somos nós que temos que buscar outra rota, para não cairmos em colisão com aquilo que pode nos condenar à finitude absoluta e imediata... assim, temos que recuar e buscar outras rotas possíveis, mesmo sabendo que Melancolia pode voltar a nos ameaçar, ou vir a colidir com outros planetas; ou, como em Dançando no Escuro, passamos nossos dias a imaginarizar musicais que funcionem como ponto de fuga da realidade fria e sem sons a que o Estado e seus Denominadores Comuns nos condenam... imaginarizamos musicais a partir dos sons secos emitidos pelo sistema... inventamos musicalidades onde ouvimos somente os passos secos dos coturnos mortíferos daqueles que só sabem pisar!
Melancolia termina com o a explosão do encontro do planeta Melancolia com a Terra, seguido de um estridente silêncio, para terminar ao som de Wagner, com Tristão e Isolda que, condenados a um amor impossível, buscam uma taça cuja dose os aniquilaria, mas seu teor mortífero, por engano, foi trocado por uma poção que ampliará as potências de tal amor.
Dançando no Escuro termina com o enforcamento de Selma, já cega, que deixa a possibilidade da visão ao seu filho... Selma (Björk) é enforcada cantando "In The Musicals", cuja tradução grafo aqui:
"Por que eu amo tanto isso?
Que tipo de magia é esta?
Como eu não posso gostar disso?
É apenas outro musical
Ninguém presta atenção a isso
Se está tendo um baile
Isso é um musical
E sempre há alguém
Para me pegar
Sempre há alguém para me pegar
Sempre há alguém para me pegar
Sempre há alguém para me pegar
Quando você cair
Por que eu o amo tanto?
Que tipo de magia é essa?
Como eu não posso gostar disso ?
Você estava em um musical.
Eu não presto atenção a nada disso
Se está tendo um baile
Isso é um musical!
E você sempre estava lá
Para Me pegar
Você sempre estava lá para me pegar
Você sempre estava lá para me pegar
Você sempre estava lá para me pegar
Quando eu cair...
Eu não presto atenção a nada disso
Se você está em um baile
Isso é um musical!
E eu sempre estarei lá para pegar você
Eu sempre estarei lá para pegar você
Eu sempre estarei lá para pegar você
Eu sempre estarei lá para pegar você
Eu sempre estarei lá para pegar você
Você sempre estava lá para me pegar
E sempre há alguém
Para me pegar
Você sempre estará lá para me pegar
Você sempre estava lá para me pegar
Quando eu cair..."
seguindo a dinâmica de trier, agora faço um estridente silêncio em homenagem ao colega e amigo Vladinei Roberto Weschenfelder que nesta semana, depois de muito pelear, se exonerou de suas atividades na Secretaria de Desenvolvimento Social, da Prefeitura Municipal de Cruz Alta... e fecho este escrito com o recado de Trier ao final de Dançando no Escuro: "Dizem que é a última canção, mas eles não nos conhecem. Só será a última canção se deixarmos que seja".
Vladinei tenho a absoluta certeza de que em breve a estridência deste seu momentâneo silêncio será substituída pelos sons das novas canções que haverá de entoar! um abraço tão imenso quanto à sua grandeza e dignidade!

sábado, 25 de fevereiro de 2012

UM MUNDO NO QUAL ACREDITAR


por PETER PÁL PELBART
Ao criticar os rumos da filosofia contemporânea, em especial um certo cogito da comunicação, Gilles Deleuze escreve, em conjunto com Félix Guattari: "Não nos falta comunicação, ao contrário, temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente". A vida filosófica de Deleuze pode ser colocada inteiramente sob o signo deste princípio: a única resistência digna ao presente é a criação. Foi o que sempre fez, com seu estilo cortante, feito de rajadas secas, análises finas ou conceitos extravagantes. Mas afinal, o que criou Deleuze?
Alguns pretenderam reduzir o sentido de sua existência, de sua obra ou de sua geração ao gesto extremo para o qual a doença o impeliu. Mas o vitalismo de Deleuze passa ao largo dessas interpretações tristes. Para o filósofo a vida sempre foi concebida como uma potência não-orgânica, força impessoal, que extrapola os limites da existência individual, das formas concretas e visíveis que a encarnam, da finitude que lhes é própria. No último texto publicado antes de seu suicídio, Deleuze escrevia: "Não se deveria conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a universal morte".
No entanto, como sempre em Deleuze, os termos ganham um sentido inusitado e, quando menos se espera, os vemos revirados do avesso. Pois mesmo esse "vitalismo", tantas vezes assumido por ele, não se refere a um domínio da natureza, nem evoca qualquer princípio animista ou espontaneísta. Todo o contrário: vida (ou desejo) como puro artifício, ser como produção, agenciamento, maquinação. Um comentador observou que essa ontologia é tão nova quanto o universo infinitamente plástico dos cyborgs e tão antiga quanto a tradição materialista em filosofia.
O pensamento de Deleuze é pluralista: desliza sempre numa multiplicidade substantiva e nos processos que nela operam. Só há processos e multiplicidade, insiste ele, de modo que a Razão, o Sujeito (ou o Objeto), o Uno, o Universal não passariam de abstrações, por mais que se tente ressuscitá-las para contrapor-se à única coisa que no capitalismo é de fato universal: o capital. É toda uma geografia mental que se vê aí questionada, e que Deleuze ajudou a subverter com sua filosofia da diferença.
Contra o tabuleiro da Representação que tem orientado o pensamento (com as figuras da Identidade e suas sombras, do Negativo e seus falsos movimentos) Deleuze propõe o jogo da Diferença. Ele fez da Diferença um conceito eminente e o elevou a uma suficiência sem precedentes. Por meio dele releu Bergson, Nietzsche e muitos outros, abrindo o caminho para a elaboração de uma ética da singularidade: não apenas colher as diferenças constituídas, sejam elas individuais ou coletivas, mas produzir novas diferenciações, fazer do homem um grande experimentador, um afirmador de modos de existência singulares. É, como disse Foucault, a "introdução a uma vida não-fascista".
Deleuze pode então distinguir os que pensam à imagem do aparelho de Estado, de suas estrias e direções, impostas pela homogeneização capitalística e seus valores conformistas, e os que pensam segundo a potência nômade, num espaço aberto, multivetorial, como nas estepes de um Oriente. Em vez do xadrez (jogo imperial), o "go" chinês. A admiração de Deleuze pelos nômades, sua relação com o deserto, o privilégio da exterioridade, da intensidade ("não se mexer demais para não espantar os devires"), a forma como passam ao largo da História parece dar razão ao tradutor japonês de "Mil Platôs": "Eis um grande livro sobre a Ásia...". Deleuze, o mais oriental dos pensadores. Já não era esta a recriminação feita a Espinosa?
Tudo isto, porém, não é uma cavalgada bárbara vinda do Oriente; as peças fazem parte da tradição do pensamento ocidental, embora submetidas a atrações e acoplamentos que já fizeram mais de um filósofo revirar-se em sua tumba. Veja-se o conceito impossível de empirismo transcendental, tão importante no sistema deleuziano, misto de Hume e Kant. O método transcendental kantiano (fiquemos no mais simples: remontar de um fato dado às condições que o tornam possível) não só é valorizado, mas também radicalizado. O projeto declarado de Deleuze consiste em "purgar o campo transcendental de toda semelhança" com o mundo do senso comum, não deixá-lo, contrariamente ao que teria feito Kant, decalcar-se sobre o empírico (por exemplo, rebater-se sobre a unidade e identidade pessoal do Eu), nem depender de princípios ainda relativamente transcendentes, porque mais amplos do que aquilo que eles realmente condicionam. Buscar a condição da experimentação real, e não da experiência possível em geral.
Ora, isto significa que a condição seja dada, constatada, ao mesmo tempo pura e vivida, construída e experimentada... A intensidade é este princípio transcendental e genético, ser do sensível, objeto da sensibilidade, que a força a ir a seu limite, transmitindo sua violência às demais faculdades (a memória, o pensamento), num "acordo discordante" no seio de um sujeito explodido.
Não há como entrar em detalhes sobre essa construção complexa. Basta ressaltar que o desafio consiste em devolver o pensamento à multiplicidade virtual que lhe dá origem: superfície imanente, intensiva, povoada de singularidades não-ligadas, que Deleuze também chamou de Inconsciente. Nesse sentido, não deve surpreender o privilégio atribuído pelo filósofo à intensidade em detrimento das representações. Reencontramos Nietzsche na vizinhança de Klossowski ou Lyotard, revirando Freud do avesso. Disto decorre uma das teses polêmicas de "O Anti-Édipo": o desejo como maquinação de fluxos e não como um teatro de representações. Desse ponto de vista, é indiferente que se esteja no reino do papai-mamãe ou no império do significante. Mais do que o encadeamento ou a estrutura, importa o acontecimento, um dos conceitos prediletos do autor.
A teoria do Acontecimento elaborado por Deleuze responde a uma exigência que ele formulou do seguinte modo: cabe à filosofia moderna sobrepujar a alternativa temporal-intemporal, ou histórico-eterno, em favor de um tempo mais profundo (ou superficial): o intempestivo. Talvez cheguemos assim, indiretamente, a uma das coordenadas mais perturbadoras do pensamento de Deleuze, embora das mais inaparentes: a concepção insólita de tempo aí pressuposta, coextensiva a seu conceito de diferença, e que em parte explica suas recusas (para dizê-lo de modo rápido e grosseiro: hegenialismos, heideggerianismos, estruturalismos ortodoxos...) Em vez de um tempo homogêneo, linear, cumulativo ou circular, emerge uma arquitetura temporal turbulenta, plissada, labiríntica, heterogênea.
O Acontecimento não está enganchado na cadeia contínua dos presentes, com sua direção única (a boa direção, o bom senso, a flecha do tempo), e sugere uma temporalidade paradoxal, atópica, incorporal, sempre passada e sempre por vir, em que a tripartição diacrônica se vê subvertida. A própria filosofia como Acontecimento: "O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica". É a assunção ativa de uma tal "ordem" que causa estranheza não só entre os historiadores da filosofia, de quem, aliás, Deleuze nutriu-se em abundância, mas também entre os cinéfilos que continuam intrigados com seus dois livros sobre cinema (afinal, o que é uma "imagem-tempo", um "lençol de passado", um tempo liberado do movimento, um "cristal do tempo?"). Para não falar nos psicanalistas, a quem a idéia de um inconsciente construtivista e a priorização dos devires em relação à história poderia soar extravagante, mas nem por isso menos sedutora ou operativa, sobretudo numa clínica das psicoses.
O mesmo vale no campo político. Ao ignorar os discursos pomposos ou lamurientos sobre o futuro da revolução na história e priorizar o devir revolucionário (único capaz de "conjugar a vergonha ou responder ao intolerável"), reabre-se uma linhagem intempestiva, uma lógica não dialética do devir, em que se talham constantemente múltiplos blocos de espaço-tempo, novas subjetividades. É o que explica por que Deleuze, ao contrário de muitos de sua geração, jamais renegou Maio de 68, nunca se interessou pelo tema de um fim da História (nem, de resto, por uma filosofia da história).
Quando perguntado pelo militante italiano Toni Negri: "Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade?", Deleuze respondeu com a mais heraclitiana e nietzschiana das inspirações: "Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele". E acrescenta, como um duende: "Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos". O que terá sido o acontecimento-Deleuze?
buscado em: cooperação.sem.mando

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Segunda Vida, de Machado de Assis


Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido: — Dá licença? é só um instante. Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa: 
— João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa. 
E, voltando à sala: 
— Pronto, disse ele; podemos continuar. 
— Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez? 

A sereníssima República - Machado de Assis

A sereníssima República (Conferência do cônego Vargas) 
Machado de Assis

Meus senhores, 
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, - e fora ingratidão ignorá-lo, - que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas. 
Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, - e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, - por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.  

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Visoes Intempestivas sobre as Praticas de Saude

A ESFINGE SEM SEGREDO - Oscar Wilde


UMA ÁGUA FORTE 
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz, contemplando o fausto e a pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre o estranho panorama de orgulho e miséria que desfilava diante de mim, quando ouvi alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Não nos tínhamos tornado a ver desde que estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez anos, de modo que me encheu de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos cordialmente. Tínhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era tão bonito, tão comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o melhor dos sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado. Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa. Senti que não podia ser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabaláveis e acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Câmara dos Pares. De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se havia casado. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Las aguas del mar - clarice lispector


Ahí está él, el mar, la más ininteligible de las existencias no humanas. Y aquí está la mujer, de pie en la playa, el más ininteligible de los seres vivos. Como el ser humano hizo un día una pregunta sobre sí mismo, volviéndose el más ininteligible de los seres vivos. Ella y el mar.
Sólo podría haber un encuentro de sus misterios si uno se entregara al otro: la entrega de dos mundos incognoscibles hecha con la confianza con que se entregan dos comprensiones.
Ella mira el mar, es lo que puede hacer. Y su mirada está limitada por la línea del horizonte, es decir, por su incapacidad humana de ver la curvatura de la Tierra.
Son las seis de la mañana. Sólo un perro suelto vaga por la playa, un perro negro. ¿Por qué un perro resulta tan libre? Porque él es el misterio vivo que no se indaga. La mujer vacila porque va a entrar.
Su cuerpo se consuela con su propia exigüidad en relación con la vastedad del mar porque es la exigüidad del cuerpo lo que le permite mantenerse caliente y es esa exigüidad que la vuelve pobre y libre, con su parte de libertad de perro en las arenas. Ese cuerpo entrará en el ilimitado frío que sin rabia ruge en el silencio de las seis. La mujer no lo sabe, pero está realizando una hazaña. Con la playa vacía a esa hora de la mañana, ella no tiene el ejemplo de otros seres humanos que transforman la entrada en el mar en simple juego liviano de vivir. Ella está sola. El mar salado no está solo porque es salado y grande, y eso es una realización. A esa hora ella se conoce menos todavía de lo que conoce el mar. Su hazaña es, sin conocerse, entretanto, proseguir. Es fatal no conocerse, y no conocerse exige valor.
Va entrando. El agua salada está tan fría que le eriza en ritual las piernas. Pero una alegría fatal —y la alegría es una fatalidad— ya la posee, aunque todavía no se le ocurra sonreír. Por el contrario, está muy seria. El olor es de una marejada atontadora que la despierta de sus más adormecidos sueños seculares. Y ahora ella está alerta, aun sin pensar. La mujer es ahora compacta y leve y aguda; se abre camino en la gelidez que, líquida, se opone a ella, mientras la deja entrar, como en el amor, en que la oposición puede ser una petición.
El camino lento aumenta su valor secreto. Y de repente ella se deja cubrir por la primera ola. La sal, el yodo, todo líquido, la dejan por un instante ciega, escurriéndose (espantada, de pie, fertilizada).
Ahora el frío se convierte en hielo. Avanzando, ella abre el mar por el medio. Ya no precisa valor, ahora ya es antigua en el ritual. Baja la cabeza dentro del brillo del mar, y retira una cabellera que sale escurriéndose sobre los ojos salados que arden. Brinca con la mano en el agua, pausada, los cabellos al sol, casi inmediatamente endurecidos por la sal. Con la concha de las manos hace lo que siempre hace en el mar, y con la altivez de los que nunca dan explicaciones ni a ellos mismos: con la concha de las manos llenas de agua, bebe en grandes sorbos, buenos.
Era eso lo que le faltaba: el mar por dentro como el líquido espeso de un hombre. Ahora ella está toda igual a sí misma. La garganta alimentada se contrae por la sal, los ojos enrojecen por el sol, las olas suaves la golpean y retroceden, pues ella es una muralla compacta.
Se sumerge de nuevo, de nuevo bebe, más agua, ahora sin ansiedad, pues no precisa más. Ella es la amante que sabe que lo tendrá todo, otra vez. El sol se abre más y la eriza, al secarla, ella se sumerge de nuevo; está cada vez menos ansiosa y menos aguda. Ahora sabe lo que quiere. Quiere quedar de pie, parada en el mar. Así queda, pues. Como contra los costados de un navio, el agua bate, vuelve, bate. La mujer no recibe transmisiones. No precisa comunicación.
Después camina dentro del agua, de regreso a la playa. No está caminando sobre las aguas —ah, nunca haría eso después de que hace miles de años ya alguien caminara sobre las aguas—, pero nadie le puede quitar eso: caminar dentro de las aguas. A veces el mar le opone resistencia, empujándola con fuerza hacia atrás, pero entonces la proa de la mujer avanza un poco más dura y áspera.
Y ahora pisa en la arena. Sabe que está brillante de agua, y de sal, y de sol. Aunque lo olvide dentro de unos minutos, nunca podrá perder todo eso. Y sabe de algún modo oscuro que sus cabellos escurridos son de náufrago. Porque sabe que ha corrido un riesgo. Un riesgo tan antiguo como el ser humano.

JEAN HYPPOLITE, LÓGICA E EXISTÊNCIA - gilles deleuze


2
(segundo texto de A Ilha Deserta e Outros Textos)
JEAN HYPPOLITE, LÓGICA E EXISTÊNCIA DL
[1954] 
Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito NT conservava tudo de Hegel e o comentava. A intenção deste novo livro é muito diferente. Hyppolite questiona a Lógica, a Fenomenologia e a Enciclopédia a partir de uma idéia precisa e sobre um ponto preciso. A filosofia deve ser ontologia, não pode ser outra coisa; mas não há ontologia da essência, só há ontologia do sentido. Aí está, parece, o tema desse livro essencial, cujo próprio estilo é de uma grande potência. Que a filosofia seja uma ontologia significará, primeiramente, que ela não é antropologia.
A antropologia quer ser um discurso sobre o homem. Como tal, ela supõe o discurso empírico do homem, no qual estão separados aquele que fala e aquilo de que ele fala. A reflexão está de um lado e, de outro, está o ser. O conhecimento, assim compreendido, é um movimento que não é um movimento da coisa, permanecendo, pois, fora do objeto. Portanto, o conhecimento é uma potência de abstrair, e a reflexão é uma reflexão exterior e formal. Desse modo, o empirismo remete a um formalismo, assim como o formalismo remete a um empirismo. “A [19] consciência empírica é uma consciência que se dirige ao ser preexistente e relega a reflexão à subjetividade”. A subjetividade será tratada, pois, como um fato, e a antropologia se constituirá como a ciência desse fato. Que a subjetividade, com Kant, devenha um direito, nada muda no essencial. “A consciência crítica é uma consciência que reflete o si do conhecimento, mas que relega o ser à coisa em si”. É certo que Kant se eleva à identidade sintética do sujeito e do objeto, mas somente de um objeto relativo ao sujeito: essa própria identidade é a síntese da imaginação, não é posta no ser. Kant ultrapassa o psicológico e o empírico, mas permanecendo no antropológico. Enquanto a determinação for apenas subjetiva, não saímos da antropologia. Se é preciso sair dela, como faze-lo? As duas questões são apenas uma: o meio de sair dela é também a necessidade de sair dela. Que o pensamento se ponha como pressuposto, Kant o viu admiravelmente: ele se põe, porque ele se pensa e se reflete, e ele se põe como pressuposto porque o todo dos objetos o supõe como aquilo que torna possível um conhecimento. Assim, em Kant, o pensamento e a coisa são idênticos, mas o que é idêntico ao pensamento é somente uma coisa relativa, não a coisa enquanto ser, em si mesma. Para Hegel, portanto, trata-se de elevar-se à verdadeira identidade da posição e do pressuposto, isto é, ao Absoluto. Na Fenomenologia, o livro mostra-nos que a diferença geral do ser e da reflexão, do em-si e do para-si, da verdade e da certeza, desenvolve-se nos momentos concretos de uma dialética, cujo próprio movimento consiste em suprimir essa diferença ou somente conserva-la como aparência necessária. Nesse sentido, a Fenomenologia parte da reflexão humana para mostrar que tal reflexão e sua seqüência conduzem ao saber absoluto que elas pressupõem. Trata-se, precisamente, como diz Hyppolite, de “reduzir” o antropológico, de “resgatar a hipoteca” de um saber cuja fonte é alóctone. Mas não é somente no final ou no início que o saber absoluto é. Já se encontra em todos os momentos: uma figura da consciência é, de uma outra maneira, um momento do conceito; a diferença exterior entre a reflexão e o ser é, de uma outra maneira, a diferença interna do próprio Ser, vale dizer [20], é o Ser idêntico à diferença, à mediação. “Uma vez que a diferença da consciência é retornada ao si, esses momentos apresentam-se, então, como conceitos determinados e como seu movimento orgânico fundado em si mesmo”.
Dir-se-á que há “orgulho” tomar-se por Deus, dar-se o saber absoluto. Mas é preciso compreender o que é o ser em relação ao dado. O Ser, segundo Hyppolite, não é a essência, mas o sentido. Dizer que basta este mundo-aqui não é somente dizer que ele nos basta, mas que ele basta a si e que ele remete ao ser, não como à essência para além da aparência, não como a um segundo mundo, que seria o Inteligível, mas como ao sentido deste mundo-aqui. Já encontramos esta substituição da essência pelo sentido em Platão, sem dúvida, quando ele mostra que o próprio segundo mundo é o tema de uma dialética que faz dele o sentido deste mundo-aqui, não um outro mundo. Mas o grande agente da substituição é ainda Kant, porque a crítica troca a possibilidade formal pela possibilidade transcendental, o ser do possível pela possibilidade do ser, a identidade lógica pela identidade sintética da recognição, o ser da lógica pela logicidade do ser – em suma, a essência pelo sentido. Que não haja segundo mundo é, assim, de acordo com Hyppolite, a grande proposição da Lógica hegeliana, porque ela é a razão de transformar a metafísica em lógica e, ao mesmo tempo, em lógica do sentido. Que não haja além-mundo significa que não há um além do mundo (porque o Ser é somente o sentido), significa que não há no mundo um além-mundo do pensamento (porque no pensamento é o ser que se pensa), significa, enfim, que não há no próprio pensamento um além da linguagem. O livro de Hyppolite é uma reflexão sobre as condições de um discurso absoluto; os capítulos sobre o inefável e sobre a poesia são essenciais a esse respeito. As pessoas que tagarelam são as mesmas que acreditam no inefável. Porque o Ser é o sentido, o verdadeiro saber não é o saber de um Outro, nem de outra coisa. De certa maneira, o saber absoluto é o mais próximo, o mais simples, ele está aí. “Nada há para se ver atrás da cortina” ou, como diz Hyppolite, “o segredo é que não há segredo”.
Vê-se, então, qual é a dificuldade, aquela que o autor assinala fortemente: se a ontologia é uma ontologia do sentido e não da [21] essência, se não há segundo mundo, como pode o saber absoluto distinguir-se ainda do saber empírico? Não recaímos na simples antropologia que tínhamos criticado? É preciso que o saber absoluto compreenda todo o saber empírico e nada compreenda além disso, pois nada distinto dele há para ser compreendido, e, contudo, é preciso, ao mesmo tempo, que ele compreenda sua diferença radical relativamente ao saber empírico. A idéia de Hyppolite é a seguinte: o essencialismo, apesar das aparências, não era o que nos protegia do empirismo e nos permitia ultrapassa-lo. Na visão da essência, a reflexão não é menos exterior do que no empirismo ou na pura crítica. O empirismo punha a determinação como puramente subjetiva; o essencialismo vai tão-somente ao fundo dessa limitação ao opor as determinações entre si e estas ao Absoluto. Estão ambos do mesmo lado. A ontologia do sentido, ao contrário, é o Pensamento total que só conhece a si em suas determinações, que são momentos da forma. No empírico e no absoluto há o mesmo ser e o mesmo pensamento; mas a diferença empírica, externa, entre o pensamento e o ser, cede lugar à diferença idêntica ao Ser, à diferença interna do Ser que se pensa. Por isso, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, mas só se distingue deste ao negar, também, o saber da essência indiferente. Portanto, na lógica, ao contrário do que ocorre no empírico, não se tem, de um lado, o que eu digo e, de outro, o sentido daquilo que digo – sendo a persecução de um pelo outro a dialética da Fenomenologia. Meu discurso é logicamente ou propriamente filosófico, ao contrário, quando digo o sentido daquilo que digo, e quando, deste modo, o Ser se diz. Um tal discurso, estilo particular da filosofia, só pode ser circular. É de se notar, a esse respeito, as páginas de Hyppolite sobre o problema do começo em filosofia, problema que não é apenas lógico, mas pedagógico.
Hyppolite ergue-se, portanto, contra toda interpretação antropológica ou humanista de Hegel. O saber absoluto não é uma reflexão do homem, mas uma reflexão do Absoluto no homem. O Absoluto não é um segundo mundo e, todavia, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, assim como a filosofia distingue-se de toda antropologia. [22]. Sobre isso, entretanto, se devemos considerar como decisiva a distinção feita por Hyppolite entre a Lógica e a Fenomenologia, a filosofia da história não teria com a Lógica uma relação mais ambígua? Hyppolite diz: como sentido, o Absoluto é devir; mas, como não se trata, sem dúvida, de um devir histórico, (histórico designando aqui algo totalmente distinto da simples característica de um fato), qual é a relação do devir da Lógica com a história? A relação entre a ontologia e o homem empírico está perfeitamente determinada, mas não a relação entre a ontologia e o homem histórico. E quando Hyppolite sugere que é preciso reintroduzir a própria finitude no Absoluto, não corremos o risco de um retorno ao antropologismo, sob nova forma? A conclusão de Hyppolite permanece aberta: ela cria o caminho de uma ontologia. Mas gostaríamos de indicar que a fonte da dificuldade já se encontrava, talvez, na própria Lógica. Se a filosofia tem uma significação, ela o tem somente por ser uma ontologia, e uma ontologia do sentido, o que se pode reconhecer justamente a partir de Hyppolite. O que se tem no empírico e no absoluto é o mesmo ser e é o mesmo pensamento; mas a diferença entre o pensamento e o ser é ultrapassada no absoluto pela posição do Ser idêntico à diferença, ser que, como tal, se pensa e se reflete no homem. Esta identidade absoluta do ser e da diferença chama-se sentido. Porém, em tudo isso há um ponto no qual Hyppolite mostra-se completamente hegeliano: o Ser só pode ser idêntico à diferença na medida em que a diferença seja levada ao absoluto, ou seja, à contradição. A diferença especulativa é o Ser que se contradiz. A coisa se contradiz porque, distinguindo-se de tudo aquilo que não é, ela encontra seu ser nessa própria diferença; ela só se reflete refletindo-se no outro, pois o outro é seu outro. É este o tema que Hyppolite desenvolve ao analisar os três momentos da Lógica: o ser, a essência e o conceito. Hegel criticava em Platão e em Leibniz o não terem ido até a contradição, de terem permanecido, um, na simples alteridade e, o outro, na pura diferença. Isto supõe, pelo menos, que não só os momentos da Fenomenologia e os momentos da Lógica não são momentos no mesmo sentido, mas supõe também que há duas maneiras, a
fenomenológica e a lógica, de se [23] contradizer. De acordo com este tão rico livro de Hyppolite, poder-se-ia perguntar o seguinte: não se poderia fazer uma ontologia da diferença que não tivesse de ir até a contradição, justamente porque a contradição seria menos e não mais do que a diferença? A contradição não é somente o aspecto fenomênico e antropológico da diferença? Hyppolite diz que uma ontologia da pura diferença nos restituiria a uma reflexão puramente exterior e formal e, afinal de contas, se revelaria ontologia da essência. Entretanto, a mesma questão poderia ser levantada de outro modo: é a mesma coisa dizer que o Ser se exprime e dizer que ele se contradiz? Se é verdade que a segunda e a terceira parte do livro de Hyppolite fundam uma teoria da contradição no Ser, na qual a própria contradição é o absoluto da diferença, em troca disso, na primeira parte (teoria da linguagem) e em todo o livro (alusões ao esquecimento, à reminiscência, ao sentido perdido), não estaria Hyppolite fundando uma teoria da expressão, na qual a diferença é a própria expressão e, a contradição, seu aspecto apenas fenomênico?
. . .
Tradução de

Luiz B. L. Orlandi



DL Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol. CXLIV, nº 7-9, julho-setembro de 1954, pp 457-460. Logique et existence foi publicada em 1953 pela PUF. Jean Hyppolite (1907-1968), filósofo, especialista em Hegel, era professor de Deleuze no liceu Louis-le-Grand em curso preparatório para a Escola Normal Superior; vindo a ser professor na Sorbonne, dirigiu em seguida (com Georges Canguilhem) o Diploma de Estudos Superiores que Deleuze consagrou a Hume; a dissertação foi publicada pela PUF com o título Empirisme et subjectivité, em 1953, na coleção “Epiméthée”, dirigida por Hyppolite. Em entrevistas, Deleuze evoca reiteradamente sua admiração de estudante por Hyppolite, ao qual, aliás, Empirismo e subjetividade foi dedicado. Para além da homenagem, essa obra é o primeiro texto em que Deleuze formula explicitamente a hipótese de uma “ontologia da pura diferença”, que constituirá, como se sabe, uma das teses essenciais de Diferença e repetição.
NT Jean Hyppolite, Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1946.
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B de Beber - abecedário de deleuze


CP: Vamos passar para o B.
CP: B é um pouco particular, é sobre a bebida. Você bebeu e parou de beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o que era beber? Tinha prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras. Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há equivalente com a comida. Há gulosos, há pessoas... comer sempre me desagradou, não é para mim, mas a bebida é uma questão... Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que quer dizer questão de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras, porque eles sempre dizem: “Eu controlo, paro de beber quando quiser”. Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer. Tenho lembranças bem claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no último copo. O que isto quer dizer? É um pouco como a fórmula de Péguy, que é tão bela: não é a última ninféia que repete a primeira, é a primeira ninféia que repete todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã, se for um alcoólatra da manhã, há todos os gêneros, se for um alcoólatra da manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último copo. Não é o primeiro    , o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte: ele avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode agüentar, sem desabar... Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o último copo e todos os outros serão a sua maneira de passar, e de atingir esse último. E o que quer dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele dia. É o último que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte, porque, se ele for até o último que excede seu poder, é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não procura o último copo, procura o penúltimo copo. Não o último, pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o último antes do recomeço no dia seguinte. O alcoólatra é aquele que diz e não pára de dizer: vamos... é o que se ouve nos bares, é tão divertida a companhia de alcoólatras, a gente não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o último, e o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz: paro hoje para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára de beber totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux disse tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não estão tão separados. Há um momento em que isso se torna perigoso demais, porque, aí também é uma crista, como quando eu dizia "a crista entre a linguagem e o silêncio", ou a linguagem e a animalidade, é uma crista, é um estreito desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício. Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é... ele pára. Eu tenho menos mérito, porque parei de beber por razões de respiração, de saúde, etc., mas é evidente que se deve parar ou se privar disso. A única justificação possível é se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter se drogado, bebido muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, você diz: quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a vida. Aí há a questão dos escritores de que se gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... um dos que mais admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência da vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potência da vida.
GD: O álcool não o fará sentir...
CP: ... que havia uma potência da vida forte demais para eles, e que só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool para eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem razão, que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se bebesse. Então se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores franceses que confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há algo que faz parte da escrita...
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita. Não sei se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de visão, de vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma questão... De maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem, não é esta a concepção francesa da literatura, mas note, houve também muitos alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita dificuldade, os que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua queda pela bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em um apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
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flecheira.libertária.235


grécia em chamas: alerta!
Há dois dias, diversas cidades na Grécia seguem em greve geral com uma grande manifestação de rua convocada para o domingo, 12 de fevereiro. Enquanto o governo buscava acordo, com soluções fiscais e empréstimos, junto à União Europeia e o FMI, a repressão aos rebeldes se intensificou. As notícias informam que leis municipais de limpeza urbana foram ativadas para prender jovens anarquistas que espalham cartazes pelos muros. Da mesma maneira, o partido comunista e os dirigentes sindicais avançam contra o que classificam de irresponsabilidade dos jovens anarquistas, que, por sua vez, reiteram que o alvo não são as medidas do governo, mas o governo; não é a UE ou o Euro, mas o capitalismo. Com gritos de “Abaixo a Ditadura e seu regime! Revolução ou submissão, capitalismo ou liberdade!”, os anarquistas, que foram os primeiros na Grécia a se levantarem contra o governo e os tratados da UE, desde 2006, correm o risco de mais uma vez servirem de aríete para os negócios dos dirigentes políticos de esquerda e de direita.  
happy birthday? 
As mesmas ruas do Cairo que irradiaram os protestos denominados por intelectuais e mídias internacionais como “primavera árabe” e que derrubaram o ditador Hosni Mubarak, acomodam-se sob ceticismo atroz. Desde fevereiro de 2011 mais de doze mil pessoas que participaram dos embates na Praça Tahir foram julgadas e outros tantos, sobretudo jovens, mortos e assassinados. Jornais de oposição ao antigo governo seguem censurados sob a atual Junta Militar que dirige o país e muitas vezes permutam sua sobrevivência negociando editoriais com o exército egípcio. Diante da letárgica comemoração de aniversário de tais acontecimentos ocorridos em 2011, e que despertaram, no ano passado, desde jovens acampados, militantes entusiastas das mobilizações por redes sociais até articulistas da revista Time, constata-se que da luta pela libertação de um governo pode emergir uma nova prisão. 
profanação com segurança 1 
O carnaval é a histórica festa profana que restitui o santificado. Por quatro dias abrem-se as comportas da regulação para transgressões que depois apaziguarão os humanos sob os céus do sagrado. Vale: amor de carnaval, mudar de gênero, soltar o sexo, beber e se intoxicar, cantar pelas ruas, debochar dos políticos e das sentinelas das doutrinas; vestir-se de fantasias, mascarar-se, desnudar-se, cobiçar e ser cobiçada(o), delirar, sonhar, desfilar, ser rei e burguês; se for trabalhador, que esteja revestido de muito brilho e plumas, seja destaque e passista de escola de samba pelos sambódromos, marche pelo enredo ou faça parte da ópera popular, pule atrás do trio elétrico, entre e saia dos blocos de rua. Cantar, dançar junto com deuses profanos aceitáveis por quatro dias. Depois, cinzas.
profanação com segurança 2 
Fevereiro de 2012: polícias ameaçam a segurança do carnaval com greve por melhores salários. Epa! Que notícia é essa? Como o carnaval pode estar ameaçado por falta de policiamento? Ops! Então não é nem mais carnaval! As autoridades marcam presença nas negociações e as greves devem acabar para celebrarem um acordo para que a população local e a de turistas  brinquem com segurança. Ih, até o Diabo que é abençoado por Deus, como relembra a marchinha conhecida, só baixa com proteção policial? Carnaval virou mesmo um negócio, uma profanação normalizada, um pega-pega planejado, uma festa com promoter. Então não há mais profanação, só choubis com suas celebridades, pirações previsíveis e lararás redundantes.
polícia é polícia
Pouco importam a um libertário as disputas partidárias em torno das ações repressivas dos governos estatuais liderados pelo partido x ou y. Tampouco as comoções que se pretendem inquestionáveis em nome da compaixão pelas vítimas também. É intolerável avançar armado, contra crianças, mulheres e homens; é próprio da covardia de quem se encontra na posição de autoridade no momento. Agora, ouvir policiais militares choramingando contra repressões injustas e acossamento de suas mulheres e filhos, lembra o ditado (que nem sempre são inadequados): spray de pimenta nos olhos dos outros é refresco. Segurança e propriedade seguem sagrados, como manda o figurino das revoluções burguesas. Estado é Estado e polícia é polícia!
mais energético 
Na semana passada aconteceu em São Paulo o maior evento de tecnologia do planeta, a Campus Party. Em uma mistura de acampamento, palestras, competições e  lan house jovens ficaram conectados à internet, durante uma semana, para desfrutarem da conexão veloz de incríveis 20 Gigabytes. A feira, apesar de ter começado na Espanha em 1997, circula todo ano por Brasil, Colômbia, Venezuela, Chile e Argentina. Prefeituras, governos, empresas de telefonia móvel e fixa, empresas de software, hardware e jogos, além de bancos, patrocinam o evento interessados em descobrir o jovem que poderá desenvolver um algoritmo e ser o novo empregado bem sucedido no Vale do Silício. Ali, não se trata mais de inclusão digital da América Latina, mas de investimento no mais competitivo e arrojado jovem que poderá render bilhões em um futuro próximo. Entre as latinhas de energéticos, pizzas e refrigerantes, um jovem orgulhoso com o seu computador diz: “nós somos o futuro".

O que é um dispositivo? - Gilles Deleuze

A filosofia de Foucault apresenta-se freqüentemente como uma análise de dispositivos concretos. Mas o que é um dispositivo?1 É antes de mais nada um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras. Cada linha é quebrada, submetida a variações de direção, bifurcante e engalhada, submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos em posição são como vetores ou tensores. Assim as três grandes instâncias que Foucault distinguirá sucessivamente, Saber, Poder e Subjetividade, não têm de maneira alguma contornos fixos, mas são correntes de variáveis em luta umas com as outras. É sempre numa crise que Foucault descobre uma nova dimensão, uma nova linha. Os grandes pensadores são um pouco sísmicos, eles não evoluem mas procedem por crises e por abalos. Pensar em termos de linhas móveis, é a operação de Herman Melville, e havia linhas de pesca, linhas de submersão, perigosas, até mesmo mortais. Há linhas de sedimentação, disse Foucault, mas há linhas de "ruptura", de "fratura". Separar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é desenhar um mapa, cartografar, medir a passos terras desconhecidas, e é isso que ele chama de "trabalho sobre o terreno". É necessário instalar-se sobre as próprias linhas, que não se limitam a compor um dispositivo, mas que o atravessam e o arrastam, do norte ao sul, do leste ao oeste ou em diagonal.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O OLHAR DE UM CEGO - Em tempos de Direitos Humanos*

Não lembro exatamente o que foi da fala da então Deputada Maria do Rosário, no dia 26. 11. 2000, em sua palestra de lançamento do Relatório Azul 98/99, no Seminário Municipal Sobre Violência, que fez com que elaborasse este título O olhar de um cego, anotei-o, mas não anotei a referência que o suscitou... mas como a escrita advém sempre de qualquer lugar possível e dos restos que guardamos para depois, faço disso esta escrevinhação.
             Ferreira Gullar pergunta: “Se eu não olhasse, se eu não tivesse do mundo a apreensão pelo olhar, só o apreendesse pelo tato, pelos ouvidos, pelo olfato, pelo gosto, se eu não apreendesse assim, que noção eu teria por exemplo da manhã? O que seria a manhã, o amanhecer, o dia, o entardecer, a noite? Que visão teria eu dessa realidade, se eu não apreendesse o mundo pelo olhar? A textura, a corporeidade das coisas, dos objetos, é diferente se eu apenas os tocar com os dedos. Mas quando eu olho, a riqueza que a minha percepção recebe do olhar é uma coisa incomparável com relação à que os outros sentidos me permitem apreender”... se o cego faz da integração dos demais sentidos, que não o olhar, para ver o mundo e o vê... o que podemos fazer então da visão que temos formada por todos os sentidos?!
Lamentavelmente, o Relatório Azul veio, ao longo de sua existência, ficando cada vez maior; e cada vez maior, porque cada vez se constata mais atos e situações que ferem os direitos humanos, não apenas os direitos enquanto formalidade constituída, mas os direitos do indivíduo enquanto possibilidade efetiva de produção e efetivação das condições de cidadania; de produção, porque cidadania não é uma coisa que alguém possa nos dar, não é somente uma Constituição que garantirá, com direitos alinhavados juridicamente; cidadania é uma coisa que se produz, também, a partir do descontentamento que temos com a forma como o mundo está, e não através dum Estado assistencialista, paternalista e provedor.
            Perguntemo-nos, juntamente com Bertaso, que é Professor na UNICRUZ, quando o mesmo indaga “a quem o Estado, enquanto ordem normativa legítima de organização do poder social, está servindo?”, a quem afinal está servindo o sujeito contemporâneo, enquanto pretenso cidadão que entende a condição de cidadania como restrita às pessoas bem situados economicamente? Qual é a dimensão da implicação desse pretenso cidadão com as condições básicas de vida e de politização da coletividade?
              Somos o cego que sente “na pele” as dificuldades geradas pela atual conjuntura econômica social e política; que aguça o ouvido diante o grito e o murmúrio; que marca muitas de suas experiência pelo registro olfativo; que degusta gostos e palavras; mas que está impedido de enxergar; o cego, pela limitação física; nós, pela limitação política que temos com relação ao mundo em que vivemos, pois como diz João Ubaldo Ribeiro “A política não é uma coisa distinta de nós. É a condução de nossa própria existência coletiva, com reflexos imediatos sobre nossa existência individual, nossa prosperidade ou pobreza, nossa educação ou falta de educação, nossa felicidade ou infelicidade.”; dependemos, então, da integração de nossos sentidos para que possamos “ver” o que há para além do olhar que podemos ter; ou de saber “ler” –não apenas as letras, mas também o que se encontra para além das letras-, como narra-nos Saramago, ao falar do momento em que seu personagem Ricardo Reis, ido do Brasil a Portugal, depara-se com a morte de Fernando Pessoa e, ao visitar o cemitério tece elucubrações sobre a organização do mesmo, tal qual uma cidade fosse: “Passou Ricardo Reis adiante o jazigo que procurava, nenhuma voz o chamou, Pst, é aqui, e ainda há quem insista em afirmar que os mortos falam, ai deles se não tiverem uma matrícula, um nome na pedra, um número como as portas dos vivos, só para que saibamos encontrá-los valeu o trabalho de nos ensinarem a ler, imagine-se um analfabeto dos muitos que temos, era preciso trazê-lo, dizer-lhe com a nossa voz, é aqui, porventura nos olharia desconfiado, se estaríamos a enganá-lo, se por erro nosso, ou malícia, vai orar a Montecchio sendo Capuletto, a Mendes sendo Gonçalves”.     
            E, por analfabetismo humano e político, muitas vezes à beira do caminho deixamos todos aqueles sonhos que um dia nos disseram que para sempre perseguiremos... o sonho de ser alguma coisa/ de ser alguém quando crescer; o sonho de ter uma letra mais bonita; de saber fazer poesia; de conseguir escrever um texto com introdução/desenvolvimento/conclusão, como nos ensinaram, incansavelmente, nossas professoras de português; o sonho de conhecer um daqueles cientistas de que nos falavam os professores... um daqueles que, no imaginário de nossa infância, faziam o mundo acontecer porque renunciavam a tudo para passar o tempo a decifrar os segredos do mundo!
           Sempre nos ensinaram que abandonamos alguns sonhos para inventar outros, para podermos viver, para buscarmos a promessa do encontro sempre adiado daquilo que possa nos sustentar... esquecemos, um pouco, as misérias do mundo, porque estamos lidando com nossas próprias misérias, isso se torna maior que a nossa capacidade de ver o mundo... deixamos pra viver depois, porque hoje estamos esperando o porvir e sabemos produzir o devir!
            E queremos ser humanos quando os humanos demonstram tudo o que pode vir de um humano... queremos explicar porque as pessoas não podem ser feitas todas da mesma fôrma... queremos fazer poesia quando o mundo cai e ficamos, ainda, tentando segurar... e cantamos alguma canção enquanto disfarçamos a alegria de ter encontrado alguma coisa que procurávamos muito... nos apaixonamos pelas pessoas as mais incertas! Inventamos formas de poder/ inventamos formas de ver a vida, criamos recheio para a nossa existência e, muitas vezes, esquecemos que há muitas outras existências a serem consideradas.
            Seguimos formas assépticas de viver a vida... alimentação saudável e na hora certa... mínimo de oito horas diárias de sono, com quarto arejado e cama confortável... roupas confortáveis... banhos diários... exercícios físicos regulares... trabalhar  num lugar que nos garanta as condições, pelo menos mínimas, para o exercício profissional, com salário regular e justo, com ambiente saudável e construtivo!
Somos assépticos e fascistas... não queremos saber da diversidade... não queremos saber daqueles que vivem a vida de forma diversa da nossa... queremos levar nossos assépticos cães (empedigrados) a cagar nos canteiros das praças e nos gramados dos vizinhos, mas não queremos que cães vadios dos nômades caguem em nossas calçadas e em nossos gramados... queremos repousar nossas cansadas bundas em lugares em que bundas vadias e nômades não tenham repousado seu ócio... queremos ter uma praça só nossa, que não seja pública (de todo e qualquer um)... queremos andar nossos passos em caminhos que não tenham sido palmilhados por insanas e nômades existências!
            Somos assépticos/ de uma assepsia burguesa surpreendente até que nos damos por achados, em meio ao meio/ ao eixo de nosso trabalho asséptico, lidando com um mundo completamente diferente do nosso; um mundo que a academia não nos avisou que encontraríamos; um mundo de pessoas que não têm o que comer, nem hora, nem dia para fazê-lo; um mundo de pessoas que não têm onde dormir, e quando têm... não queremos nem imaginar como seja... e das roupas, nem se fale... muitas vezes são roupas de marca, dessas marcadas por campanhas do agasalho realizadas por pessoas que acham que amontoar seres humanos num ginásio seja um fato de dar inveja; um mundo de pessoas que já não veem diferença em estar ou não banhado e que fazem exercícios físicos regulares porque andar é o mais comum quando já não temos nada para deixar à beira do caminho; um mundo onde a maioria das pessoas não têm trabalho e o nosso próprio trabalho é precário diante a dimensão da precariedade do mundo daqueles que não têm trabalho... um mundo que o capitalismo não avisou que ia produzir, para além do munda daqueles que estão muito bem incluídos no gordo ideário dominante!
             E quando ainda queremos sonhar algum sonho, nem que seja para deixar à beira do caminho, deparamo-nos com a crueza da vida de cada um... como de uma senhora que, morando sozinha, fechada em sua casa, já alucinando depois de passar vários dias sem comer, expelindo todos os produtos que seu corpo ainda conseguia produzir, escamando a pele envelhecida e desidratada, sem banho, com seus olhos remelentos, com sua urina ressequida em sua roupa sem marca e suja... aquela senhora, que não estava conseguindo articular suas idéias, pede um tempinho a mais para organizar seu pensamento e diz que necessita de um companheiro... não um companheiro para fazer “aquilo”, mas para poder espantar a solidão, para poder acordar cedo, conversar e ter alguém com quem pudesse “fazer planos”... já dizia alguém que morremos um pouco quando perdemos a capacidade de sonhar... mas podemos viver um pouco se tivermos lugar em nossos sonhos para aqueles que ainda sonham e também para os que não vivem de sonhos, mas do hoje que se apresenta... nem que seja para fazer planos ou para encher nossos caminhos de sonhos que nos levam a outros sonhos e à vida!
            Sonhos como o de Dona Edith, uma senhora de 66 anos que contava-me empolgada que voltou a estudar, que não encontrou seu histórico escolar e então está fazendo seus estudos desde a primeira série e que quer continuar estudando para encontrar um emprego, pois está aposentada e seus rendimentos são muito baixos, e também tem poucas ocupações, sempre foi dona-de-casa, agora cuida de seu pequeno apartamento, freqüenta um grupo de terceira idade e está estudando para conseguir um emprego ... e tem colega tão ou mais velhos que ela, estudando também! Talvez ela pudesse simplesmente querer curtir sua velhice precoce, mas em seu imaginário é um emprego que pode lhe fazer movimentar a vida... que o seja!
            Percebemos então que muita gente já entendeu que política não é o mero exercício eleitoreiro, mas que é, sim, a atuação de cada um de nós, em todos os nossos dias, em todas as horas, em todas as nossas ações... e damo-nos conta de que essa cidade está fervendo, está pipocando porque as pessoas estão aprendendo a exercitar a difícil ação de fazer política ativa e não a política alienante da passividade, da espera quatrianual por alguém que dê uma cesta básica, a tampa de uma panela por vir, o sapato de um par incerto, por alguém que diga que tudo o que foi feito nos quatro anos anteriores não vale nada e que o que vale seja a promessa estéril do ideal pessoal.
            Não é das verdades e mentiras, dos feitos e não feitos de cada candidato eleito que queremos saber, mas sim do lugar que cada cidadão está tendo na vida da cidade, de qual seja a promessa de vida em seu coração; não é da cobrança de ações de um Estado inócuo, assistencialista e provedor, que queremos saber!
            Queremos saber daqueles que sabem que passamos anos e anos acreditando nas caveiras de burro enterradas e que agora podemos falar disso, porque as pessoas podem passar uma vida emudecidas mas no momento em que conseguirem falar uma vez, jamais deixarão de fazê-lo! Queremos saber daqueles que sabem falar a fala do coletivo (em toda a sua diversidade), e não daqueles que acreditam que podem nos dizer o que e quando devemos falar!
            Queremos saber das Donas Edith que ainda acreditam na vida; das que querem aprender a escrever e ler; das que ainda sonham; das que já desistiram e necessitam de que alguém lhes toque lá no fundinho onde escondem as esperanças apagadas; das que querem que seus esforços, por mais insignificantes que possam parecer, façam parte da vida da cidade; das que não têm e-mail e que querem poder ler as cartas que recebem e escrever outras de volta; das que não têm emprego e que querem trabalhar; das que não têm comida, mas que querem comer sempre e não somente no período eleitoral; das que não se prestam à prostituição eleitoral; das que têm e das que não têm voz!
             E como dizia o velho Marx as abelhas constróem colmeias tão perfeitas que poderiam envergonhar a mais de um mestre-de-obras. Mas o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha porque, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro"... a política vem de dentro das gentes... o pensar e o fazer de cada um diz daquilo que somos no imenso mundo que é bem maior do que as coisas que cabem em nossa pequena história!
* Este é um escrito produzido em tempos idos... talvez 1999 ou 2000... e que retomo, revisando-o, pela pertinência de algumas questões que têm nos ocupado cá por estas plagas.