sexta-feira, 25 de março de 2016

Pontos nodais para uma interpretação dos dilemas do cotidiano cruzaltense

Ando faxinando meus escritos pra rever a vida que me trouxe e me manteve em Cruz Alta já por quase 20 anos... lembro que, numa ocasião estive aqui antes de concluir minha graduação em Psicologia e, entrando na cidade, disse à minha companheira da época: “esta é a última cidade em que moraria” (e sempre conto isso mostrando não um certo desprezo, mas sim, para compor os tempos e percursos de minha vida)... buenas! A última! Em que moraria!... o quê será que isso poderia estar significando à época? E hoje?
Naquele tempo, “forasteiro” ainda era tratado com muito desprezo... para minha sorte, eu própria nunca estive atrelada a esse pensamento que determina posses aos territórios... penso que somos cidadãos do mundo e ponto! Em qualquer lugar em que estivermos, estaremos em nosso lugar, visto que essa seja uma questão subjetiva, antes de ser geográfica!
Quando cheguei para trabalhar aqui, conhecia quase nada da história e da realidade da comunidade... e vivi, aqui, um dos tempos mais bonitos de pesquisamentos que já tive em minha vida... posso dizer que nos 18 anos em que estive nesta que é a última cidade em que eu moraria, fiz das minhas territorialidades e de minhas desterritorializações, um lugar bom para se viver... aqui inventei afetos; teci e tessi relações; transversei meus versos com os versos de tanta gente que nem sei contar; produzi filhos; plantei jardins; semeei, cultivei e colhi amores; granjeei desafetos (dos quais, não me envergonho... há tipos e tais e coisas que tenho orgulho em não receber em meus pelegos)... aqui, foi uma boa escolha para ser a “última cidade em que eu moraria”... nas próximas cidades, não quero mais morar... só quero viver... morar dá muito trabalho e já não tenho mais tempo pra isso!
No mais, resgatei dum escrito longo e pretensioso, um trecho que está sempre presente em meu imaginário, quando penso em Cruz Alta... é um escrito que hoje eu escreveria doutras formas e com outros referenciais teóricos, mas sendo de 1999, me serviu para re-olhar algumas questões...  eis aí, o escrito cujo pretensioso título original era "Pontos nodais para uma interpretação dos dilemas do cotidiano cruzaltense":

O desenvolvimento deste trabalho constitui-se pela perspectiva de ensaiar sobre questões pontuais da história e da situação cruz-altense contemporânea, e perpassa – não somente pela especificidade do âmbito estudado, mas também pela necessidade de que se desenvolva uma percepção contextual da situação estudada – a pesquisa sobre a história do município de Cruz Alta, sua constituição, sua formação, sua cultura e os elementos que perfazem esses aspectos.
A pesquisa envolve coleta de dados registrados em documentos formais e informais arquivados na Biblioteca Pública Municipal e na Prefeitura Municipal; observação e registro de fatos e incidentes que acontecem ou que se repetem na história do município, e o destaque às questões que permeiam as queixas, as discussões e as intervenções cotidianas no município; já, a elaboração do texto, no momento, não ganhará uma sustentação teórica bibliográfica, aspecto este que deverá ser desenvolvido doravante.
O referenciamento de interpretação teórica da leitura que se faz a partir das informações pesquisadas contempla o indivíduo, a instituição e a sociedade pela via da sua constituição, no que se refere aos aspectos específicos, históricos e encadeantes de sua formação, sendo que, apesar de que se trabalhe aqui com informações históricas, devemos destacar que a abordagem se dá sobre os aspectos imaginários da constituição histórica do município, o que não implica, necessariamente, considerar a objetividade de sua linearidade e factualidade.
A tentativa de delineamento e compreensão sobre qual seja a formação cultural de Cruz Alta esbarra na indefinição, o que deixa-nos a questão: qual é o retrato,  qual é a formação cultural de Cruz Alta?
Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão, constrói a metáfora de um povo que foi sem nunca ter sido, ou seja, é um povo sem gênese, que vive a apocalípse de seu próprio fim traçado nas letras ardentes da literatura; Macondo, o povoado romanceado por Márquez, possibilita-nos traçar um retrato do que seja um povo cujos sonhos, desejos e paixões morrem logo ali onde parece que vai brotar o novo... mas não brota, porque ainda não existe, e Márquez inicia assim seu texto “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”.
Queria ser mais suave em minha escrita, mas meu olhar estrangeiro impede que suavize o contorno do retrato que vejo, desta bela Cruz Alta que está tão viva em nosso cotidiano, mas, ao mesmo tempo está tão longe em nosso imaginário, tão longe que aqui ainda temos baile de gala; escolha de rainhas e princesas; reconhecimento pelo que se parece ser e não pelo que se é; simulacros de um imperialismo morto e enterrado, cujos fantasmas ainda perambulam em nosso meio;... e “o estrangeiro toma tudo como mitologia, como emblema. Reintroduz imaginação e linguagem onde tudo era vazio e mutismo. Para ele estes personagens e histórias ainda são capazes de mobilizar” (Peixoto, 1988).
Um povo que ainda vive seu passado é porque que não consegue resgatar imaginariamente os elementos que perfazem sua história, e sem resgatar a história toda tentativa de iniciar alguma coisa será apenas um recomeço sem ponto de âncora... por isso, ao pensar Cruz Alta, relembro Cem Anos de Solidão! Podemos relembrar, também, o livro Cruz das Almas, de Edson Amâncio, que é um retrato literário de uma Cidade que doloridamente tenta reconstruir as lembranças que portam o teor de sua história... doloridamente, porque nunca desejamos reencontrar aquilo que está por sob as cicatrizes que recalcam um ferimento que já marcou sua intensidade em nossa vida!
Por essas e outras, ao aludir ao Tempo e ao Vento de Érico, que há 50 anos disfarçava Cruz Alta nas entrelinhas de seu romance, podemos pensar então que, assim como Cruz das Almas, Cruz Alta não existe, pois é uma criação literária de Érico Veríssimo, em que ele próprio, escritor, é personagem dissimulada de sua escrita e de sua crítica... e atualmente homenageamos Érico de forma contida, constrangida, porque sabemos que aqui ele não teve seu espaço assim como todos aqueles que quiseram mexer nos porões da história.
E, por falar em porões, Cruz Alta, talvez por sua geografia regular, conta pouquíssimos porões em sua arquitetura habitacional antiga... mas conta muitos sobrados... poucos sótãos... ora, o que esta cidade faz com seus guardados antigos, aqueles que os melhores porões acumulam junto com o pó da história? O que nossas crianças terão para contar de uma história calcada na superfície? Ou os porões ainda estão por serem cavados? Ou teremos nosso cotidiano transformado em história viva para que se faça do turismo uma forma de se ver que ainda não conseguimos construir nada além do que está posto?
O encantamento provocado por esta terra de marechais, generais, e tudo mais... e tão carente de sustentação, sem rima que rime com o estranhamento de que somos tomados cotidianamente diante as figuras que compõe a cena desta polis controversa que vive sua crise como se logo ali adiante viesse a ocorrer um milagre salvador e evita-dor do dorido que é ver a própria cara sangrando para se pagar o preço da covardia calcada há anos nas entrelinhas do tempo... esse é o encantamento de que somos tomados quando nos deparamos com o estranho presente ali onde o familiar está dissimulado com suas vestes mais óbvias, as vestes do primitivo, as vestes do primário, as vestes de tudo que se repete nos dilemas do cotidiano cruz-altense... e aquilo que se repete/que faz repetição é o que faz sinal do que ainda está por ser elaborado... e parece-nos que por aqui há muito o que ser elaborado, desconstituído, azucrinado!
Márquez, Érico, Amâncio e muitos outros construíram uma metáfora literária da história, da história em crise... nós, por aqui, a vivemos... e “a cultura em crise faz apelo a suas criaturas mais sublimes para encontrar uma saída” (Peixoto, 1988).
Encontramos informações de que não foi deixado nenhum documento ou registro da instalação provisória ou definitiva de povoamento em Cruz Alta, sendo que as primeiras pessoas que aqui chegaram, eram quase todas analfabetas.
Há quatro lendas que, imaginariamente, sustentam uma teia – não tão clara – do que seja a história de Cruz Alta; há versões e variações dos temas básicos das referidas lendas, sem que isso mude suas essências, mudando apenas os significantes que sustentam as diferentes interpretações. Vejamos então:
- A lenda da Fundação de Cruz Alta retrata um elemento importante no que se refere ao fator assistencialista presente na cultura da cidade, marcado pelo registro inicial da menina abandonada pelo pai, que encontra aconchego e alimento na fera que é domada pela menina com sua ingenuidade e fragilidade.
E em nome do quê se construiu a capela e se plantou a Cruz Alta; em nome do pai morto ou da filha viva? Que lugar é esse “Mui Leal Cidade do Divino Espírito Santo da Cruz Alta”? E qual é a conotação cultural conferida à Cruz?
- A lenda de Anahy, que traz a moça queimada viva por defender a sua terra, transformando-se na flor da corticeira.
- A lenda da Lagoa do Cemitério, que apresenta uma criança/filho assassinado e não reconhecido pela família, o que resultou na maldição de que todo filho desta terra, para prosperar e se tornar famoso, teria que deixar Cruz Alta e passar a viver em outras paragens.
- E a lenda da Panelinha, que retrata a desconfiança/descrédito para com a possibilidade de Cruz Alta sustentar um espaço/lugar àqueles que vem de fora, tendo que lançar mão da magia da água da fonte para reter aqui aqueles que lhe interessam.
Que lugar/cidade é essa, cuja instauração se deu em lugar outro que não aqui? A cidade foi planteada fora daqui.
A extensão de nossa pesquisa aos primórdios da criação/instauração do município de Cruz Alta tem sua pertinência marcada pela necessidade de que se pense sobre a situação presente/atual que é, sem dúvida, resultado de um processo histórico instaurado e desencadeado ao longo do tempo, a partir de fatos efetivos e de mitos que norteiam imaginariamente a estruturação/ o encadeamento simbólico de situações e questões que acontecem e se repetem, podendo gerar a mobilização e também a desmobilização pessoal ou coletiva num determinado contexto; desta forma, pensar a cultura, requer pensar as instâncias nas quais está inserida e as quais permeia, bem como a efetividade interativa de tais instâncias; diante isso o que temos da fundação de Cruz Alta? O desbravamento e povoamento de uma terra nova pelos europeus, cuja distribuição e exploração é coordenada pelos jesuítas; a morte de Arabela logo após o parto; uma filha (Joana Jacy) que fica com o pai; um ser frágil (João Rodrigues da Cruz ) que morre de susto/ de medo; uma filha acolhida e protegida por uma fera (Ao) temida; uma cruz que é plantada no local onde foi encontrado o pai morto e a filha viva – um local outro que não o povoado já existente; uma capela que é erguida junto à cruz em nome do mesmo fato que a instaurou; um nome que por si diz muito “ Mui Leal Cidade do Divino Espírito Santo da Cruz Alta”, cuja denominação aceita muitas metáforas, entre elas Aldeia do Divino, Capital do Trigo, Aldeia dos Tupiniquins, Rainha da Serra, entre outros, e cujo local de fundação que abriga efetivamente a cruz do ato, chama-se Encruzilhada da Cruz Alta, nome este que foi substituído por forasteiros que trabalhavam no serviço ferroviário lotado na Estação Benjamin Nott, que passou a designar o local.
O que é que a religiosidade/misticismo fluente/latente em Cruz Alta está mascarando? Porque é que “aqui nada dá certo”, ou “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”? O que é que tanto se insiste em “proteger” aqui em Cruz Alta? O que é que sustenta a crença na “praga de madrinha”? Porque é que em Cruz Alta a maçonaria, que tem atuação tão forte, se empenha em promover “a fraternidade, igualdade, a paz e a harmonia” sem mobilizar o seu outro aspecto originário que é de construção? Porque há um apontamento constante e generalizado de que Cruz Alta não cresce? Porque é tão forte o discurso de que se faz alguma coisa e se dá certo, dá, senão parte-se para outra tentativa? O que é que determina o discurso e a efetividade do fato de que Cruz Alta seja a “terra do já foi “ ou “terra do já era” em alusão à instauração de empreendimentos e posterior desarticulação/extinção dos mesmos? Porque há tantas campanhas, talvez não de conscientização mas de indução à valorização e ao prestígio de Cruz Alta? No que se constitui a permanente preocupação em defender o “Poder Público” e o “Executivo”?
A concepção aparente de administração pública, ao longo de diferentes gestões, em Cruz Alta, perpassa a perspectiva de “beneficiar” e agradar a população e a comunidade, diante esse aspecto, em que dimensão poderíamos situar a perspectiva de administração da cidade/do município, que contemple a articulação e o desenvolvimento social, econômico e político, considerando que o que sustenta basicamente a prática da Administração Municipal – e de suas adjacências – seja a perspectiva de fazer uma gestão melhor e diferente das anteriores, o que é efetivado não através da modificação/revisão das formas existentes ou criação de novas formas de trabalho e atuação, mas através de ações e projetos que irão ampliar o que já está instaurado.