sábado, 14 de março de 2015

flecheira.libertária.375

mulheres 
Há variadas versões para a “origem” do Dia Internacional da Mulher. Desde o incêndio em indústria têxtil de Nova York, que culminou na morte de centenas de operárias, no início do século XIX, até protestos de mulheres na Rússia no momento da eclosão da I Guerra Mundial. Nos anos 1960, militantes atualizaram a data visando animar o fogo de combates liberadores. Na década seguinte, a ONU formalizou a data como celebração das “conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres”. Antes e depois da origem e da data cívica, mulheres extraordinárias combateram o macho, a polícia, o Estado, e a política reivindicatória de direitos. Há quase um século, Emma Goldman, anarquista fichada pelo governo dos Estados Unidos como a “mulher mais perigosa da américa”, afirmou: “é certo que o movimento pelos direitos da mulher quebrou muitas cadeias, mas também forjou novas. A efetiva emancipação não surgirá das urnas de voto nem dos tribunais”. 
frequentando os direitos 
A publicidade, descolada ou caretona, voltada às mulheres independentes e às mulherzinhas, aposta na solenidade. À imperdível oportunidade de lucro, agora se soma a valorização de uma conduta socialmente responsável. A mulher está incluída no mercado como consumidora, produto, trabalhadora e/ou empreendedora. A mídia celebra as de mulheres de sucesso e expõe corpos e vidas violentados das demais como exemplos dramáticos de histórias tristes. As militantes marchadoras entoam palavras mofadas em seus protestos caquéticos. Cumprem agendas para serem visualizadas como minoria pluralista, obediente e tolerante. As oportunistas condutas machistas continuam a calar, violentar, exterminar e governar. E, de repente, aparecem repaginadas como masculinismo!!! Para coroar, mais uma conduta é criminalizada como crime hediondo. Isso é que dá querer frequentar. 
comida 
Uma rede internacional de parques de diversão inaugurou neste verão uma sede em um shopping da cidade de São Paulo. Criado no México, nos anos 1990, o Kidzania imita uma grande cidade, estimulando crianças de 4 a 14 anos a escolher sua futura profissão e a consumir fielmente determinadas marcas ali espalhadas. Em recente entrevista, o criador do empreendimento (presente em 10 países e com mais de 10 milhões de visitas) declarou: “o parque em formato de cidade é uma potente plataforma para se criar lealdade às marcas nessa sociedade de consumo”. Seguindo a premissa time is money, o Kidzania possibilita aos pais gastarem pelo shopping enquanto seus filhos aprendem, ludicamente, como administrar créditos. Pais e filhos, crentes no capitalismo e na força da grana, desfilam carnudos, rosados e ocos. Despertam a fome dos miseráveis. 
cereja no bolo 
Todos os domingos milhares de pessoas se locomovem madrugada a dentro para visitar seus parentes ou amores sequestrados pelo sistema penitenciário. Em São Paulo, a imensa rede carcerária, que se espalha também pelo interior, suga gente do Brasil inteiro. A grande maioria é composta mulheres, pretos ou quase pretos e pobres. Carregados de sacolas de comida em vasilhames transparentes ou sacos plásticos, procuram estar de acordo com as regras, estabelecidas pela polícia do Estado ou pelo PCC e similares. Desejam evitar maiores incômodos, constrangimentos e penalidades. Prontos para entrar, passam pela humilhante revista íntima, proibida pela legislação. Dizem que as visitas são necessárias para o processo de ressocialização. Com ou sem legislação a família é parte constitutiva da prisão desde o século XIX.

quinta-feira, 5 de março de 2015

hypomnemata 173

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 173, fevereiro de 2015.

Água
            Os humanos, a flora e a fauna, assim como o planeta Terra são compostos preponderantemente de água e dela dependem.
O planeta tem água potável, não potável a ser transformada por engenharias de refinamento (a custo alto, é claro), e poluída pela industrialização moderna (a custo capitalista baixo e social alto).
         Estudos contemporâneos voltados para o desenvolvimento sustentável denunciam o mau uso das águas. Ao mesmo tempo, deslocam para os consumidores a tarefa e a responsabilidade de economizar e moldar suas condutas para o bom uso da água (que resta).
         Indicam que deverá haver esforços a serem dispendidos pelos governos, indústrias e agronegócios para o aproveitamento das águas, suas nascentes, de águas poluídas e mares.
         Envolta no emaranhado das chamadas catástrofes climáticas, a questão da água em breve se transformará em um lucro a mais para o regime da propriedade. Quem tiver renda para obtê-la e financiar novos aquedutos para captar água de rios, chuvas e talvez marinha serão agregados aos proprietários.
         O bom uso recomendável da água pelas práticas da sustentabilidade transfere ao cidadão e à sua prole o dever de compartilhar a boa gestão da água enquanto governos, financistas e industriais bebem suas águas medicinais e minerais de grife. E vão poluindo o quanto podem; afinal, desenvolvimento é preciso.
         Trata-se do regime do esforço de muitos para manter a produção de alimentos, petróleo, indústria, da fome e da sede cada vez mais melhorada na medida do possível sustentável.
         Sustentável a quem? Para quem? A resposta é óbvia: uns lucram e fazem da crise um drama para anunciarem um iminente futuro trágico. A cada pobre, miserável ou obediente cidadão que cumpre as tarefas impostas na redução de seu consumo resta ficar à disposição das justas penalizações por descumprirem as leis.
         Em breve, entre usos e reutilizações de águas podres restarão aos privilegiados os majestosos oásis como os dos inovadores emirados.
         Enquanto isso, militares e diplomatas pensam em como defender (e quem sabe tomar) o ouro azul do futuro.
Lugar comum insustentável.

purificando a água
Durante a crise da água, como vem sendo afamada, expressões do grotesco nos avizinham. A última destas expressões trata sobre o uso das “águas” da Represa Billings, em São Paulo.
O grotesco revela o disforme e o horrível, mas também o cômico e o bufo, como traços modernos da existência humana. Trabalha com as excrecências não com nojo, mas como aquilo que também nos revela mundanos, ou baixos humanos.
Assim, um poeta francês, perspicaz ao falar do mal, mesmo nas flores, em um de seus poemas cita os detritos hostis como um confuso material vomitado por Paris. De outra parte, um pouco mais otimista, outro escritor francês, ao falar dos miseráveis no século XIX, acredita que a sinceridade da imundície é capaz de agradar e repousar a alma.
De um lado ou de outro, uma tragicomédia está para ser traçada com a possibilidade de uso do vômito expelido por São Paulo, através do Rio Pinheiros, cuja descarga acontece na Billings.
Independentemente da capacidade e custos de purificação deste esgoto por meio de tratamentos químicos e físicos, não se pode ignorar o fato da cidade nos devolver aquilo que expelimos por um orifício e que pode nos retornar por outro, exatamente neste sentido inverso.
O governador mandou avisar que a água estará própria para o consumo humano, mas os especialistas ainda debatem e se contradizem sobre a viabilidade de tal empreitada.
Não se sabe ainda ao certo o grau de purificação que o esgoto da Billings pode alcançar para se tornar potável. Mas não se duvida da possibilidade dos administradores públicos venderem barro por água, como já vem sendo notado em milhões de torneiras, em especial, nas periferias da cidade.
Nestas regiões que vivem no constante rodízio, a água quando vem é podre. A maioria de seus habitantes suportam a situação como fatalidade.
Se assim for, provavelmente nossa bílis tratará de identificar as impurezas da Billings e, por função que lhe é característica, retornar em vômito, aquilo que a cidade já havia vomitado.
Este é o ruminar das aglomerações urbanas.

o estado da água é o roubo pelo Estado
Cantareira pode ser tanto o “osso articulado ao úmero e ao esterno; clavícula” como um “poial para cântaros na cozinha”.
Segundo relatos dispersos, a última definição está relacionada com a terra próxima à cidade de São Paulo. Nos séculos XVII e XVIII, a região foi percorrida por tropeiros que abasteciam os cântaros de água para seguirem adiante rumo a Minas Gerais e Goiás.
Contudo, foi a partir de meados do século XIX, mais precisamente em 1863, que a mata se tornou alvo de interesse, efeito do laudo de engenheiros ingleses, encomendado pelo governo da Província, que indicou o chamado Ribeirão da Pedra Branca como o ideal para a captação de água para o abastecimento de São Paulo.
Uma década depois foi criada a “Companhia Cantareira e Esgotos” (1877) e nos últimos anos do século, sob a argumentação de ampliar o abastecimento e proteger as nascentes, o Estado desapropriou parte da área para a criação da “reserva florestal da Cantareira”.
Se, no século XIX, parte da denominada Serra da Cantareira tornou-se propriedade do Estado, no fim dos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, este território foi ampliado com a construção de diversas represas na bacia do Rio Piracicaba, formando o chamado “Sistema Cantareira”.
Em 1968, concomitantemente à criação da Operação Bandeirante (OBAN), que intensificou a perseguição, prisão, tortura e assassinato sistemático conduzido pelo Estado contra homens e mulheres identificados como subversivos, o governador Roberto de Abreu Sodré criou a COMASP (Companhia Metropolitana de Águas de São Paulo) e o chamado “Plano de Desenvolvimento Global dos Recursos Hídricos das Bacias do Alto Tietê e Cubatão”.
Cinco anos depois, por meio da Lei Estadual n.119, assinada por Laudo Natel, a fusão da COMASP com outras sete empresas resultou na criação da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).
Como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, o Sistema Cantareira fez parte da política levada a cabo pelo governo de Garrastazu Médici, garantindo o banho de parte da população de São Paulo foi garantido à custa do sangue de inúmeros resistentes à ditadura e da morte de inúmeros rios entregues à poluição.
Diante da chamada “crise hídrica”, o que ninguém comentou foi precisamente que a “crise” é a própria história da água transformada em propriedade, desde o século XIX, passando pela ditadura civil-militar, criação do Sistema Cantareira e da concessão à SABESP (renovada, em 2004, durante a democracia) dos chamados serviços públicos de saneamento básico. Em 2013, seu lucro líquido foi de 1,92 bilhões de reais.
Se, no século XIX, a água que corria pelos rios e matas se tornou propriedade do Estado, a partir do século XXI, ela também foi adquirida pela indústria, empresas privadas de saneamento e investidores em agronegócios.
Como expôs o Nu-Sol na flecheira libertária: “o que o governo não se ocupou em divulgar, até agora, é que grande parte do consumo de água (92% em países em desenvolvimento e 90% em países desenvolvidos) é de setores da indústria ou agronegócio (...). Se o racionamento for necessário, você terá que poupar de qualquer maneira. Se você se acostumar a poupar desde já – em nome do bem comum – a chance de revolta numa situação mais crítica, também são quase nulas. Essa é a matemática do (re)banho” (http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira358.pdf).
Entre 2014 e 2015, as campanhas criadas pelo Estado são menos para a garantia da água do que para perpetuar o roubo do curso de certos rios e responsabilizar os chamados consumidores pela possibilidade de falta d’água.
Deste modo, pretende-se estimular cada cidadão a se tornar um chamado “guardião das águas”, apto a monitorar e denunciar o vizinho quanto ao desperdício de água.
Certos anarquistas, como os editores do periódico A vida, em 1914, já alertavam que o roubo de riquezas como as águas, os rios, os mares, a terra, só podia se efetuar pela submissão de quem entregava a própria sobrevivência para se tornar defensor daquele mesmo responsável por sua miséria: o Estado.
O que é produzir?
— É criar uma riqueza.
O que é riqueza?
—É tudo que pode ser útil ao homem.
Então o sol é uma riqueza.
— Sim, como o ar, a água, os peixes, etc.
Mas o sol não é produzido pelo homem.
— Não. Por isso se chama uma riqueza gratuita.
Há outras riquezas gratuitas?
— O ar, a chuva, os rios, os mares.
A terra será uma riqueza gratuita?
— Deveria sê-lo, porque é a matéria natural da produção das riquezas minerais e orgânicas. Mas não é.
Porque não é?
— Porque é possuída por alguns homens em prejuízo da maioria dos homens.
Quem mantém essa propriedade particular?
— O governo, isto é, alguns homens que pretendem dirigir os outros homens.
Qual o meio de que lançam mão para tal fim?
— A lei, e para garantir a lei, o soldado.”

Encarar a chamada crise, portanto, é desvelar que o estado das águas é efeito direto de seu roubo pelo Estado. Não há saídas senão a invenção de outros modos de lidar com a água. Alguns anarquistas experimentam isso, são suas outras histórias até o presente.

domingo, 1 de março de 2015

flecheira.libertária.373

e a quadrilha toda grita: iê, iê, iê, viva a filha da chiquita! 
Em São Paulo, o chamado “carnaval de rua”, para além dos tradicionais foliões, foi ocupado por “militantes do empoderamento” que sugeriram alterações em algumas marchinhas compostas nas primeiras décadas do século passado. Uma militante “consciente” soltou: “imagina que legal estar no bloco das negas empoderadas em vez do bloco da nega maluca?”. A conduta embolorada pipocou cagando regra ali e acolá nos dias de carnaval, mas não acabou com a festa dos descomedidos. Quem goza o carnaval, desde a Chiquita Bacana, passando por sua filha, sabe que bom mesmo é gozar a folia em liberdade, sem se prender a bloco algum. E o melhor é gozar o ano inteiro.
boa noite seu guarda! 
Em uma noite da última semana, três mulheres foram à Cadeia Pública de Nova Mutum, no Mato Grosso. Com elas, levaram cantis cheios de uísque barato, litrões de energéticos e trajes de dominatrix adornados por coleiras bordadas com a palavra ‘polícia’. As três seduziram os carcereiros e lhes serviram doses de uísque misturado com alguma substância. Então, elas abriram as grades que dão acesso às celas internas e soltaram muitos dos encarcerados naquela prisão. A polícia deteve novamente oito presos e os carcereiros machões que tomaram esse inusitado boa noite cinderela. Não se sabe o paradeiro das garotas. Elas não se guardaram, desarmaram as armadilhas e quem sabe não saíram distribuindo bananas para os animais, iê, iê, iê...
http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira373.pdf

flecheira.libertária.372

quem é o dono? 
Na América Latina um grupo de e-mails coordenado por El Libertario, da Venezuela, existe há mais de 15 anos como fórum pelo qual circulam informações de diferentes grupos, associações, publicações, editoras e jornais do continente. Por ele passam a diversidade das lutas, produções e experiências dos anarquistas latino-americanos. Na última semana esse fórum foi excluído da rede A-Infos, com sede na Espanha, sob a alegação de não corresponder aos “princípios” da dita rede, que alega ser classista e popular. Num momento em que os amigos da Venezuela enfrentam extremas dificuldades financeiras e uma repressão cada vez mais brutal do governo bolivariano, a conduta do A-Infos, expressa um exclusivismo nada libertário. Serão os militantes da A-Infos os donos do verdadeiro anarquismo ou apenas crentes em sua forma correta e exclusiva de praticá-lo e divulgá-lo? Como para o governo da Venezuela, o pastorado deve seguir o ideário do pastor. 
anarquia em kobane 
Kobane, norte da Síria, região de Rojava. A defesa intransigente curda contra as forças da ordem vai muito além da ação do peshmerga — que é liderado pelo presidente do Curdistão iraquiano—, responsável pela captura de Saddam Hussein e do líder da Al-Qaeda Hassan Ghul, informante principal para a Operation Nepturne Spear que matou Osama Bin Laden. Seus militantes também são combatentes governamentais contra o ISIS (Estado Islâmico —EI) e recebem apoio dos EUA. Entretanto, há dois anos uma revolução aconteceu em Rojava. Os anarquistas da Ação Revolucionária Anarquista — Devrimci Anar ist Faaliyet, ou ş DAF — introduziram relações horizontais, fomentam a proximidade entre etnias, combatem o islamismofundamentalista e compõe uma muralha humana contra o avanço do ISIS que provocou sua primeira grande derrota. Trata-se de uma resistência à flor da pele contra o Estado turco, a dissimulação do governo da Síria quanto ao EI, os interesses capitalistas, a contínua repressão aos curdos e ao ISIS. Mas acima de tudo, a invenção de uma nova forma de vida que pode reverter o nostálgico e embolorado sonho nacionalista curdo. 
10 anos... e as mortes continuam 
Há dez anos a missionária Dorothy Stang foi assassinada por pistoleiros a mando de latifundiários no Pará. A placa em sua memória colocada em 2009, encontra-se hoje crivada de balas para lembrar quem e como se manda ali. Dorothy lutava pelos assentamentos Esperança e Virola-Jatobá, reconhecidos pela União após sua morte. Mas as mortes não cessam na região. O Pará é o estado que concentra o maior número de mortes motivadas por disputas de terra, além dos desmatamentos promovidos pelo agronegócio. Pouco importa o resultado jurídico do processo sobre sua morte. Dez anos depois, lembrar a execução é não esquecer que as commodities, orgulho da balança comercial brasileira, são papéis que chegam às bolsas de valores do planeta lavados em sangue. 
baderneiros? 
No Paraná uma mobilização de professores, estudantes e funcionários públicos barrou o pacote de ajustes que seria votado essa semana na câmara estadual dos deputados. Os manifestantes questionavam as prioridades do ajuste, que cortava direitos trabalhistas de professores, como o terço de férias, mas não tocava nos aumentos e benefícios de deputados, secretários e cargos comissionados. A única reposta do governo do Paraná foi chamar os manifestantes de baderneiros e colocar a Tropa de Choque contra eles na entrada do edifício da Assembleia Legislativa. Para o governo, a ordem das coisas deve ser mantida. 
olha o ditador aí, gente!!! 
Não é de hoje que sambas-enredo são vendidos e comprados no carnaval carioca. Esse ano, no entanto, uma novidade. Uma famosa e vencedora escola de samba, que nos anos 1970 fez enredos enaltecendo a ditadura civil-militar brasileira, recebeu uma encomenda: cantar as maravilhas da Guiné Equatorial. A pequena ex-colônia espanhola na África é rica em petróleo e tem um dos povos mais miseráveis submetido a um dos ditadores mais ricos do planeta e que é freguês de empreiteiras brasileiras agenciadas por ex-presidente. Negócios à parte, esse ditador é fã do carnaval do Rio. Daí, a ideia de comprar um enredo por alguns milhões de reais. Uma pechincha para alimentar seu ego revestido de cultura africana. Na transmissão da TV, entre efeitos especiais, coreografias e mulheres siliconadas, a ditadura de lá, ecoando autoritarismos daqui, acabou normalizada entre comentaristas simpáticos e reportagens espertas. Tudo isso coroado por um samba-enredo que exaltou o negro guerreiro africano e a sua liberdade embalados pelo exotismo colonizado e politicamente correto. Eis o negro africano vendido como o guerreiro por natureza e vítima genérica adocicada pelo multiculturalismo. E, assim, o ditador virou, simplesmente, mais um patrocinador, enquanto os passistas ricamente ornamentados declaravam seu orgulho à TV e ejaculavam na passarela seu amor à obediência. Chora cavaco! 

flecheira.libertária.371

verde sem rosa 
Enquanto o chamado pré-carnaval começou a agitar as ruas de São Paulo, um vereador encaminhou ofício aos governos municipal e estadual propondo a suspensão do carnaval com o argumento amenizar a chamada crise hídrica. Quem diria que uma proposta tão cinza e autoritária viria justamente de um vereador sustentável. Em nome da defesa dos recursos do planeta, o vereador expôs que, além de não gostar de carnaval, pretende disseminar autoritariamente o amargor a todos que decidem gozar os quatro dias de festa. Deste modo, não somente atualiza a madame que nos anos 1940 dizia que “a vida piora por causa do samba”, mas também escancara que verde sem rosa, ainda mais na época do carnaval, é muito sem graça. É ideia perniciosa, ou melhor, ideia de jerico. 
rua sem saída 
O carnaval não nasceu nos sambódromos, salões e outros confinamentos. O carnaval irrompeu como rescaldo do “entrudo”, festa que acontecia ao ar livre desde o século XVI até meados do XVIII. O “entrudo” foi proibido inúmeras vezes por autoridades coloniais que identificavam na associação entre escravos e a gente que circulava nas ruas um perigo a ser combatido. A partir do século XIX, com a repressão pelo Estado somada à formação de ranchos e blocos, o “entrudo” cedeu lugar à organização do carnaval, consolidado nos anos 1940, como representação de ideário nacional na ditadura de Getúlio Vargas. O carnaval nasceu da rua. Entretanto, diferente do perigo que já representou, a festa hoje celebrada por variadas mídias como “retomada das ruas” é cada vez mais marcada pela colaboração de parte dos foliões com o Estado, desde a negociação com a prefeitura dos trajetos percorridos pelos blocos até a aceitação passiva da presença da polícia.
a produção da agenda 
A polícia é o principal agente das execuções no Brasil – eis a constatação de relatórios produzidos por agências do governo e organizações internacionais que se dedicam a monitorar a violência no mundo. Nenhuma novidade. Isso todo cidadão deveria saber, mas a grande maioria ignora ou aplaude. É pouco provável que a divulgação dos dados e o “debate” promovido pela imprensa altere algo da rotinização do extermínio, extermínio localizável, pois os mesmos relatórios fornecem o “perfil das vítimas”. Registra-se: elas são preferencialmente jovens. Novamente, a maioria cala ou aplaude. A produção da agenda em torno da qual especialistas se engalfinham é efeito imediato dos monitoramentos planetários e público-privados com seus dados estatísticos e aferição de medidas. O extermínio segue, com os urubus em torno da carniça! 
a tropa dos reformadores 
Produzida a agenda, a tropa dos reformadores se apresenta para a tarefa. Cada um, ou cada grupo de interesse, se diz portador do melhor caminho para cumprir a missão ou a “questão humanitária”, designação mais recorrentemente utilizada para tal missão comum. São políticos, policiais, militantes dos direitos humanos, militantes de movimentos sociais, sociólogos, antropólogos, politólogos, historiadores, especialistas de toda sorte, secretários estaduais e federais de governo, enfim, uma infinidade de pastores laicos ou não que se dizem portadores da solução para o problema da violência (classificado como endêmico pela OMS) e para a “questão da segurança pública”. Essa tropa desfila soluções (armas?) que vão de “mudanças estruturais” ao “choque de gestão e/ou microgestão”. À esquerda ou à direta dos atuais mandatários do governo de Estado, todos estão afinadíssimos com a racionalidade neoliberal. E o extermínio segue, com os urubus em torno da carniça! 
desmilitarizar a língua! 
Em meio à tropa dos reformadores, há quem se diga à esquerda e reivindique a desmilitarização da polícia e a criação de uma força única, como polícia sem adjetivos acompanhando as recomendações da ONU. Como já indicado em hypomnemata 161 (http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=193) essa desmilitarização já está em curso e caminha ao lado da sintaxe aplicada por governos, ONGs e movimentos sociais, com suas estratégias, disputas por posição, lutas por hegemonia e públicos-alvo. Ações que em nada fazem recuar a violência e o extermínio, atributos do Estado. Dizem querer a desmilitarização com palavras velhas ou repaginadas que só fortalecem o que criticam. Como disse certa vez um compositor anarquista, para avançar em algo novo é preciso, antes de mais nada, desmilitarizar a própria linguagem. 
acabar com a cantilena assassina 
Fortaleza, capital do Ceará, já tem mais homicídios que Maceió. Segundo a polícia, a causa são disputas do narcotráfico. Bairros miseráveis, com jovens negros igualmente miseráveis. O novo secretário de segurança, polícia federal e gaúcho como o secretário do Rio de Janeiro, diz que ações no sudeste empurram o tráfico para o nordeste. Ele defende mais efetivos e mais equipamentos. Afirma que em São Paulo a existência do PCC extingue a competição e diminui a violência. A repressão assassina e seletiva não visa acabar com tráfico, mas prender e matar jovens pretos e pobres e, no limite, produzir os chamados "crimes organizados" que se articulem com polícia e Estado em ilegalismos lucrativos e manejáveis. De São Paulo pro Rio pra Maceió pra Fortaleza... A cantilena é sempre a mesma.

flecheira.libertária.370

notícias de ano novo (?) 
O Estado Islâmico avança, decapita, fortalece seu califado e exige indenizações no Oriente Médio. O Boko Haram sequestra, escraviza mulheres e mata na Nigéria. A Al-Qaeda do Iêmen reivindica os assassinatos dos criadores do semanário Charlie Hebdo e de pessoas num supermercado judaico em Paris. O terror transterritorial se amplia e amplifica. A esquerda repaginada volta ao governo da Grécia, depois de acordo com a direita com preocupações sociais. Governos da Venezuela e Estados Unidos aprovam medida relativa ao uso de balas letais em manifestações como atitude humanitária. Pelo Rio de Janeiro proliferam “balas perdidas” surpreendendo cidadãos pelas ruas e casas, como se de fato houvesse um disparo aleatório. E se enfia goela abaixo as toneladas de informações sobre fiscalizações de corrupções. Dizem que a solução não está mais na austeridade econômica, mas em investimentos de infraestrutura. Afinal, os Estados Unidos saíram da crise e o governo brasileiro ajustou seu ministro da Fazenda empossando um engenheiro. Em São Paulo, chove e falta água. No Brasil se constroem hidrelétricas e falta eletricidade... O transporte ficou mais caro, como era de se esperar, e a contestação está mais morna. 
bom rapaz, direitinho... 
Na Europa e nos EUA o medo tem muitos corpos. Um deles está no pavor dos convertidos: rapazes brancos, de famílias cristãs ou laicas que se decidiram pelo islamismo radical. Eles são mais assustadores do que os muitos jovens muçulmanos de procedência africana e asiática que vivem em guetos, periferias, banlieus. Estes sempre foram tidos como perigosos por serem imigrantes, pobres, pretos ou quase pretos. A presença do branco converso e radicalizado ativa demandas por mais controles e punições. Os perdedores radicais de pele branca e cidadania de primeiro mundo explicitam os medos e acionam paranoias. 
matar em nome de... 
Os jovens convertidos ao fundamentalismo transterritorial desprezam o consumismo, os costumes, as liberdades, a democracia liberal e todo o conjunto dos chamados valores ocidentais. Renegam suas pátrias de origem em nome de outra que consideram mais justa, pura, divina. Decidem matar em nome de Alá, do Profeta, da Al-Qaeda, do Estado Islâmico. Querem ser soldados. Se não desertassem de seus países, seriam convocados como soldados, em nome da democracia e das liberdades individuais, para ascontinuadas intervenções diplomático-militares ocidentais no Oriente Médio. Oferecem seus corpos e vontades a servir. Abraçam obediências e se dispõem a morrer em nome da transcendência. 
nova política (?) 
Nas eleições gregas, a vitória do Syriza, coalizão partidária de trotskistas e ecologistas, criada em 2004, reacendeu as esperanças em um sistema político colapsado e desacreditado. Há quem diga que eles são a expressão institucional das mobilizações de rua que agitam o país desde 2006. Assim como o Podemos espanhol, a chamada nova esquerda radical que disputa as eleições cumpre seu velho papel: salvar a crença no sistema de representação e seguir investindo no Estado como campo de racionalização das lutas e categoria do entendimento. A América do Sul viveu esse roteiro idílico na aurora deste século com o nome de Socialismo do século XXI. Resta saber se na Grécia eles serão eficazes em apagar o fogo das ruas. 
antipolítica 
Antes mesmo do anúncio da vitória do Syriza, as associações anarquistas, centros sociais de bairro e grupos autonomistas gregos deram um recado ao governo da nova esquerda radical: “Bem vindos à nova Grécia! Nos vemos nas ruas!”. Há anos trabalhadores, estudantes, desempregados e imigrantes vivem experiências de democracia direta, autogestão de recursos e proteção dos imigrantes contra os grupos neonazistas. Não estão dispostos a trocar isso por uma esperança governamental. Não querem ser o contrapeso regulatório ao governo. Anunciam que fazem outra coisa e não almejam um encantado “outro mundo possível”. Não se contentam com a profanação que precede o reestabelecimento da ordem. 
a velha questão social 
No início do século XX, diante das mobilizações de rua dos anarquistas contra a carestia de vida, um governador paulista declarou que a questão social se trata a patas de cavalo. No começo deste ano, após o anúncio do aumento das tarifas de ônibus e metrô, as mobilizações que levaram 30 mil pessoas às ruas obtiveram uma única resposta do governo e da prefeitura de São Paulo: o deslocamento de um contingente de até 1000 policiais que se esforçaram em “envelopar” as manifestações e, invariavelmente, as dispersavam com bombas de gás e balas de borracha. No entanto, diferente de 2013, o discurso da minoria de vândalos já estava sedimentado. E ainda que jornalistas e outros manifestantes tenham ficado gravemente feridos, a violência policial tirou gradualmente as pessoas da rua. A política do governo foi clara e simples: descer o cacete até eles cansarem de apanhar e dar bônus com passe estudantil restrito. 
não esqueçam os 23 
No final do ano passado um mandato de prisão foi expedido contra 23 ativistas do Rio de Janeiro acusados de associação criminosa e outras ações relacionadas aos protestos que começaram em junho de 2013 e seguiram contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014. Três deles estão presos, duas foragidas e 18 respondem ao processo em liberdade. De 2013 para cá se produziu uma quantidade infinita de avaliações e reflexões sobre as jornadas de junho. Mas até agora poucas foram as vozes que apoiaram os 23. Menos ainda são as que notam nesta situação, somada à condenação do morador de rua, Rafael Braga Vieira, o óbvio: todo preso é um preso político! A curiosidade histórica é que a principal testemunha de acusação, que sustenta o caráter não político do processo, o delegado Alessandro, da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), possui o mesmo sobrenome do responsável pelo massacre da Comuna de Paris, em 1871: Thiers. Todo preso é um preso político. 
as águas vão rolar 
Diante da “crise hídrica”, o governo do estado de São Paulo anunciou medidas como o reaproveitamento da água da represa Billings, desconto na cobrança das contas para diminuir o consumo, criação de comitê anticrise. Contudo, nenhuma das medidas foi tão eficaz quanto a própria disposição de determinadas pessoas a se tornar o “guardião das águas”. Por meio da publicidade do governo veiculada desde a televisão até redes sociais, diversos condomínios adotaram tal slogan. Em matéria divulgada por um jornal de grande circulação, a moradora de um edifício argumentou que é preciso fiscalizar nos vizinhos desde o número de descargas até o tempo do banho. “Os vizinhos têm de se policiar uns aos outros”, concluiu. Nada surpreendente: em nome da consciência e/ou vida amarga, prolifera a polícia. Mais de 90% da água gasta no Brasil é consumida e sequestrada por indústrias, agronegócios e a deficiência na infraestrutura construída pelo Estado. Entretanto, às vésperas do carnaval, diante de tantos cordatos, é bom lembrar que quem goza a vida em liberdade não se deixa agarrar pela polícia, seja ela de farda ou não. Como o refrão da marchinha, diante de tanta polícia é ainda mais gostoso cantar: “ninguém me agarra/ ninguém me agarra”.