domingo, 29 de maio de 2011

divulgação: PRL. Luta biopolítica na sociedade pós-fordista

“A luta e intensa mobilização pela PRL se entende apenas em uma sociedade pós-fordista. Os ganhos obtidos pelo trabalho não são mais para efeito de poupança, mas sim para consumo”. A afirmação é do pesquisador e doutor em sociologia do trabalho pela Universidade Federal do Paraná – UFPR Cesar Sanson.
Eis o artigo.
A greve dos trabalhadores da planta industrial da Volkswagen em São José dos Pinhais já ultrapassa vinte dias e já é a mais longa na recente história da luta dos trabalhadores das montadoras no Paraná. Os metalúrgicos querem R$ 12 mil de Participação nos Lucros e Resultados - PLR. Eles têm como referência seus companheiros da Volvo e da Renault, que ao lado da Volkswagen compõe o parque industrial automotivo da Grande Curitiba, que ganharam respectivamente R$ 15 mil e R$ 12 mil de PRL.
A PRL seduziu a luta operária mais do que qualquer outra luta. A possibilidade de ganhar, de uma só vez, uma grande quantia de recursos atrai fortemente os trabalhadores. A PRL é vista como um atalho para o consumo rápido e instantâneo que não exige o sacrifício da poupança e o adiamento do consumo. A sociedade impele e exige o consumo imediato. Não consumir é frustrar-se. A instaneidade do consumo não dá espaço para a frustração e, ainda mais, permite a conectividade com os outros e com o meio em que se vive. Um carro, um celular, um ipad, um notebook, um tênis, amplia a sensação de pertença e eleva a auto-estima junto aos demais.
A reivindicação pela PRL se transformou em luta biopolítica. O capital investe na bios, na vida do trabalhador, procurando ativar seus recursos subjetivos/imateriais – conhecimento, comunicação e colaboração – na produção e na definição do que produzir. É a subjetividade/sociedade que determina a produção, o que produzir. Quanto mais ativada a subjetividade no trabalho, mais possibilidades e potencialidades de ganhos têm o capital, diversifição produtiva e produtividade. A produção biopolítica pode ser o diferencial para o capital num mundo globalizado e competitivo.
A produção biopolítica produz simultaneamente a luta biopolítica. O trabalhador retroalimenta sua subjetividade nos circuitos produtivos e fora dela – na sociedade de signos e símbolos a serem produzidas e adquiridas pelo consumo. Produção/subjetividade + subjetividade/ sociedade + produção/sociedade/consumo = produção de si. A PRL é uma síntese dessa equação. Subjetividade no trabalho significa mais produção, que redunda em mais ganho, que permite mais consumo, que resulta em mais subjetividade. O circuito se retroalimenta.
A luta e intensa mobilização pela PRL se entende apenas em uma sociedade pós-fordista. Os ganhos obtidos pelo trabalho não são mais para efeito de poupança, mas sim para consumo. Ainda mais: consumo de produtos não estandardizados, produtos que significam plus para a subjetividade. Erro do capital: querer explorar os trabalhadores com padrões fordistas em uma sociedade pós-fordista.
A resistência dos trabalhadores da Volkswagen em São José dos Pinhais (PR) pode ser compreendida e interpretada de duas formas: A primeira como uma luta conservadora, luta de quem ficou refém de um mecanismo, a PRL, introduzida no contexto da flexibilização das relações de trabalho em consonância com a lógica liberal hegemônica nos anos 90. Mecanismo em que o ganho está vinculado ao engajamento do “vestir a camisa da empresa”, e pelo qual, o capital dilui ganhos reais a serem incorporados nos salários em um bônus – a PLR não incide sobre os direitos e tampouco representa percentagem a ser nominalmente acrescida ao salário.
Pode, por outro lado, ser entendida como luta biopolítica. Luta de quem quer afirmar a subjetividade mesmo que orientada pelo consumo. Afirmar a subjetividade pode também ampliar a autonomia e o caráter emancipatório em relação ao capital. A mesma subjetividade que o capital quer controlar pode se voltar contra ele.

divulgação: ABGLT critica bancada religiosa fundamentalista no Congresso

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais (ABGLT) divulgou nota oficial lamentando a decisão do governo de suspender o kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia. "Este episódio infeliz traz à tona uma tendência maléfica crescente e preocupante na sociedade brasileira. O Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890, estabeleceu a definitiva separação entre a Igreja e o Estado, tornando o Brasil um país laico e não confessional. Um princípio básico do estado republicano está sendo ameaçado pela chantagem praticada hoje contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no Congresso", diz a nota.
ABGLT
Nota Oficial da ABGLT sobre a suspensão do kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia:
A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT, por meio de suas 237 ONGs afiliadas, assim como a Articulação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, a Articulação Brasileira de Lésbicas – ABL, o Grupo E-Jovem, milhares de militantes LGBT e defensores dos direitos humanos, lamentam profundamente a decisão da Presidenta Dilma de suspender o kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia. A notícia foi recebida com perplexidade, consternação e indignação.
Apesar de entender que houve suspensão, e não cancelamento, do kit, até porque o material ainda não está disponível para uso nas escolas e aguarda a análise do Comitê de Publicações do Ministério da Educação, a ABGLT considera que sua suspensão representa um retrocesso no combate a um problema – a discriminação e a violência homofóbica – que macula a imagem do Brasil internacionalmente no que tange ao respeito aos direitos humanos.
Este episódio infeliz traz à tona uma tendência maléfica crescente e preocupante na sociedade brasileira. O Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890, estabeleceu a definitiva separação entre a Igreja e o Estado, tornando o Brasil um país laico e não confessional. Um princípio básico do estado republicano está sendo ameaçado pela chantagem praticada hoje contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no Congresso Nacional. O fundamentalismo de qualquer natureza, inclusive o religioso, é um fenômeno maligno atentatório aos princípios da democracia, um retrocesso inaceitável para os direitos humanos.
Os mesmos que queimaram os homossexuais, mulheres e crentes de outras religiões na fogueira da Inquisição na idade média estão nos ceifando no Brasil da atualidade. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, a cada dois dias uma pessoa LGBT é assassinada no Brasil por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero. É preciso que sejam tomadas medidas concretas urgentes para reverter esse quadro, que é uma vergonha internacional para o Brasil.
Uma forma essencial de fazer isso é através da educação. E por este motivo o kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia foi construído exaustivamente por especialistas, com constante acompanhamento do Ministério da Educação, e com base em dados científicos. Entre estes são os resultados de diversos estudos realizados e publicados no Brasil na última década.
A pesquisa intitulada “Juventudes e Sexualidade”, realizada pela UNESCO e publicada em 2004, foi aplicada em 241 escolas públicas e privadas em 14 capitais brasileiras. Segundo resultados da pesquisa, 39,6% dos estudantes masculinos não gostariam de ter um colega de classe homossexual, 35,2% dos pais não gostariam que seus filhos tivessem um colega de classe homossexual, e 60% dos professores afirmaram não ter conhecimento o suficiente para lidar com a questão da homossexualidade na sala de aula.
O estudo "Revelando Tramas, Descobrindo Segredos: Violência e Convivência nas Escolas", publicado em 2009 pela Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana, baseada em uma amostra de 10 mil estudantes e 1.500 professores(as) do Distrito Federal, e apontou que 63,1% dos entrevistados alegaram já ter visto pessoas que são (ou são tidas como) homossexuais sofrerem preconceito; mais da metade dos/das professores(as) afirmam já ter presenciado cenas discriminatórias contra homossexuais nas escolas; e 44,4% dos meninos e 15% das meninas afirmaram que não gostariam de ter colega homossexual na sala de aula.
A pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar” realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, e também publicada em 2009, baseou-se em uma amostra nacional de 18,5 mil alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários, e revelou que 87,3% dos entrevistados têm preconceito com relação à orientação sexual e identidade de gênero.
A Fundação Perseu Abramo publicou em 2009 a pesquisa “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil: intolerância e respeito às diferenças sexuais”, que indicou que 92% da população reconheceram que existe preconceito contra LGBT e que 28% reconheceram e declarou o próprio preconceito contra pessoas LGBT, percentual este cinco vezes maior que o preconceito contra negros e idosos, também identificado pela Fundação.
Estas e outras pesquisas comprovam indubitavelmente que a discriminação homofóbica existe na sociedade é tem um forte reflexo nas escolas. Eis a razão e a justificativa da elaboração do kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia.
Com a suspensão do kit, os jovens alunos e alunas das escolas públicas do Ensino Médio ficarão privados de acesso a informação privilegiada para a formação do caráter e da consciência de cidadania de uma nova geração.
Em resposta às críticas ao kit, informamos que o material foi analisado pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça, que faz a "classificação indicativa" (a idade recomendada para assistir a um filme ou programa de televisão). Todos os vídeos do kit tiveram classificação livre, revelando inquestionavelmente as mentiras, deturpações e distorções por parte de determinados parlamentares e líderes religiosos inescrupulosos, que além de substituírem as peças do kit por outras de teor diferente com o objetivo de mobilizar a opinião pública contrária, na semana passada afirmaram que haveria cenas de sexo explícito ou de beijos lascivos nas peças audiovisuais do kit.
O kit educativo foi avaliado pelo Conselho Federal de Psicologia, pela UNESCO e pelo UNAIDS, e teve parecer favorável das três instituições. Recebeu o apoio declarado do CEDUS – Centro de Educação Sexual, da União Nacional dos Estudantes, da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, e foi objeto de uma audiência pública promovida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, cujo parecer também foi favorável. Ainda, teve uma moção de apoio aprovada pela Conferência Nacional de Educação, da qual participaram três mil delegados e delegadas representantes de todas as regiões do país, estudantes, professores e demais profissionais da área.
Ou seja, tem-se comprovado, por diversas fontes devidamente qualificadas e respeitadas, como base em informações científicas, que o material está perfeitamente adequado para o Ensino Médio, a que se destina.
Os direitos humanos são indivisíveis e universais. Isso significa que são iguais para todas as pessoas, indiscriminadamente. Os direitos humanos de um determinado segmento da sociedade não podem, jamais, virar moeda de troca nas negociações políticas. Esperamos que a suspensão do kit não tenha acontecido por este motivo e relembramos o discurso da posse da Presidenta no qual afirmou a defesa intransigente dos direitos humanos.
Esperamos que a Presidenta Dilma mantenha o diálogo com todos os setores envolvidos neste debate e que respeite o movimento social LGBT. Da mesma forma que há parlamentares contrários à igualdade de direitos da população LGBT, há 175 nesta nova legislatura que já integraram a Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT, e que com certeza gostariam de ter a mesma oportunidade para se manifestarem em audiência com a Presidenta, o mais brevemente possível.
A Presidenta Dilma tem assinalado que seu governo está comprometido com a efetiva garantia da cidadania plena da população LGBT, por meio das ações afirmativas de seus ministérios. Na semana passada, na ocasião do Dia Internacional contra a Homofobia, a ABGLT foi recebida por 12 ministérios do Governo Dilma, onde um item comum em todas as pautas foi o cumprimento do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT. Também na semana passada, por meio de Decreto, a Presidenta convocou a 2ª Conferência Nacional LGBT. Porem, com a atitude demonstrada no dia de hoje acreditamos estar na contramão dos direitos humanos, retrocedendo nos avanços dos últimos anos. Exigimos que este governo não recue da defesa dos direitos humanos, não vacile e não sucumba diante da chantagem e do obscurantismo de uma minoria perversa de parlamentares e líderes fundamentalistas mal intencionados.
Esperamos que a Presidenta da República reconsidere sua posição de suspender o kit do projeto Escola Sem Homofobia, para restabelecer a conclusão e subsequente disponibilização do mesmo junto às escolas públicas brasileiras do ensino médio. Esperamos também que estabeleça o diálogo com técnicos e especialistas no assunto. Estamos abertos ao diálogo e esperamos que nossa disposição neste sentido seja retribuída o mais rapidamente possível, sendo recebidos em audiência pela Presidenta Dilma e pela Secretaria-Geral da Presidência da República e que a mesma reveja sua posição.
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
25 de maio de 2011
Links para os vídeos do kit educativo do projeto Escola Sem Homofobia:
encontrando bianca
probabilidade
torpedo

divulgação: Cadáveres e damascos


Priscila Figueiredo* dialoga com “Poesia”, filme mais recente de Lee Chang-dong e inaugura “Estética”, nova coluna em Outras Palavras
Poesia, filme de 2010 com direção e roteiro de Lee Chang-dong, não é propriamente inovador, e a sequência final é um tanto melodramática. Mas o argumento é inventivo; sua realização, digna e cuidadosa. E pode contar com uma atriz (Yun Jung-hee) esplêndida, através da qual a protagonista, Mija, já por si interessante e rica, sobe a um novo patamar de complexidade. Ela me lembrou o verso de Drummond “(…) Mas é uma flor. Ela furou o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio”. O asfalto aqui é o mais inóspito. A revelação de que a menina que acaba de se suicidar era sistematicamente estuprada por colegas de escola impregna sinistramente o barulhinho dos eletroeletrônicos, as espinhas do neto adolescente de Mija, envolvido no caso, a desordem da cozinha, o ruído dos carros. Com o céu mais azul e claro lá fora, os pais discutem o modo de ocultar a culpa dos filhos, discutem enquanto comem, bebem. O que nos alimenta deveria estar bem guardado de assuntos assim. Corpo demais na mesa, corpo vilipendiado, que as palavras se iludem de estar recobrindo. Fico pensando em antigas normas de comportamento, especialmente naquelas que faziam preceder a refeição de uma oração ou um silêncio respeitoso. Faltam medidas profiláticas em toda parte, falta recato. Os pais negociam, comem, riem e até mesmo lamentam pelo que aconteceu à menina. Mas precisam salvar os filhos. A direção da escola está com eles, não quer escândalo. Sentimos aversão. Até a polícia acha melhor não abrir investigação. Os pais dizem que a vítima gostava do assédio. Mas quem acreditará nisso?, perguntam. O que sabemos é que há um corpo boiando, que nos entra goela abaixo dos olhos quando se anuncia, num dos primeiros planos, o título do filme: Poesia. Água muito azul, que rola e se prateia, quase inclinada. A inclinação é para que melhor escorregue o corpo em nossa direção, o qual a câmera primeiro focalizava de longe, indistinto, e a correnteza veio trazendo para perto de crianças brincando, no primeiro plano, e para perto de nós. Um corpo paira, revirado, na comida, nas conversas, na gordura da cozinha, na televisão, na banheira. Sentimos náusea.
A linda avó, com seu chapéu de renda branca, suas roupas de tecidos adamascados, está sentindo o mesmo também. A atriz tem uma pele de nácar, aquela beleza cantada por séculos de poesia. Mais de uma vez se diz no filme que ela está bem vestida demais. Esse julgamento vem de um dos pais, aqueles pais estranhos, em que a consciência moral quase não pulsa mais. Ah mas naquele que primeiro a procurou há ao menos alguma noção de beleza, ele quase poderia se apaixonar pela velha moça; ele percebe como ela canta bem, como ela se veste bem –pode não parecer, diz, mas ela é pobre, isto é, ela não parece pobre pela elegância; a verdade, porém, é que não terá dinheiro para ajuntar à quantia que esperamos dar à mãe da menina.
Há coisas repulsivas nessa Coreia do Sul. Ajustes e acordos sobre cadáveres expostos… Há algo de Brasil aqui, observa-me um amigo. Mas quanta delicadeza na avozinha. Ela está aprendendo a poesia, está tentando aplicar as primeiras lições do professor: para escrever, é preciso ver. Ela apura os olhos, as asas de seu nariz regular tremulam, seus sentidos devem se alongar até o meio ambiente, e isso logo agora que a poesia como gênero, diz o mesmo professor (fora da sala de aula), está desaparecendo, logo agora que tudo começa a cheirar tão mal para Mija e lhe dão a ver a terrível imagem de um corpo boiando. Como ela se dá conta de que seu neto não vê nada e não se deixa ver!
Um porco inescrutável. Nem os animais fazem tanta sujeira, diz ela ao menino quando se levanta deixando no chão da sala uma bagunça que agora nos parece sinistra. Mas a aluna precisa escrever o que começa a distinguir. Logo agora que ela é diagnosticada com Alzheimer, que as palavras lhe faltam e os nomes mais ordinários começam a sumir da cabeça. Primeiro serão os substantivos concretos, depois os verbos, conforme a sentença médica. Justo os substantivos concretos, os que nomeiam as coisas mais disponíveis para a percepção visual! Indefectível, no entanto, Mija não abre mão de seu caderninho de anotações. Não, não é para se lembrar porque está perdendo a memória; é para por em prática um conselho do mestre. Ela anota suas impressões sobre o mundo, o meio ambiente. Aparentemente, ver é ver a paisagem. Ela tem grandes, enormes problemas, mas não perde a compostura, o esmero em se vestir; ela também não desiste do curso, ela continua. Aplica-se com zelo à poesia, abre bem os olhos, sente o vento nas folhagens, quer escrever ao menos um poema, é tarefa para o último dia de aula. Às vezes ela tem de virar o rosto – o feio, em mais de uma forma, puxa seu olhar, o invade; é preciso se desviar, é preciso fechar os olhos às vezes. Esqueci de mencionar o homem doente, vítima talvez de derrame, para quem ela trabalha. Ele curte um desejo louco por ela, um desejo que recebe expressão tortuosa, desagradável de ver: espasmos grotescos, repuxamento dos olhos, enrijecimentos. Seu corpo falha, como falha a memória de Mija. Amor, poesia –a hora deles soou, mas está fazendo água em toda parte. De repente um corpo é cuspido para dentro dos olhos. Poesia, horror. A velha cujo sorriso fascinador, cuja beleza atraia tantos olhares no passado e que bem aprendeu a arte de se compor para os outros, agora tem de prestar toda a atenção no mundo.
O extraordinário no filme talvez seja o esforço de uma estrutura delicadíssima e já evanescente para metabolizar o mais terrível. Uma sequência sintetiza esse esforço, que é do filme: Mija é incumbida pelos pais de procurar a mãe da menina e fazer a oferta de dinheiro pelo seu silêncio. Como ela, é mulher, cria com dificuldades o neto; poderá, portanto, estabelecer uma empatia com mais facilidade que os homens (as mães jamais aparecem), o assunto é mais que melindroso. É necessário agir com sutileza. A avó hesita, mas por fim aceita ir ao encontro da mulher. Não a acha em sua casa, lhe dizem que está no campo, trabalhando. O sol é forte, deve ser umas duas da tarde, há muitos abricós caídos no chão, ela pega um deles, morde com prazer, procura sentir a paisagem azul e amarela e avista a mãe. Aproxima-se, com a sua graça de sempre, falando das frutas doces, do verão; por um momento sua interlocutora sorri, fala também. Mija se despede. Os abricós, mero pretexto, tornam-se o texto principal, e ela não intervém, não lhe desvia a direção; não podia interferir na lógica interna da conversa, que tomou a forma de poesia da natureza — era pra falar de damascos, nada mais. O “verdadeiro” conteúdo pesaria naquele suave diálogo, que parece ter feito bem à mãe, a distraiu de seu trabalho, a fez rir um pouco. Com tempo e atenção espiritual, a delicada Mija saberá achar a forma adequada para um conteúdo feroz. Ou este, lentamente assimilado por uma ética e uma sensibilidade singular, fornecerá as leis próprias para a sua poesia.
Priscila Figueiredo é poeta e ensaísta. Tem graduação em alemão e português na USP, onde faz o pós-doutorado na área de Teoria Literária. É autora de Em busca do inespecífico (ed. Nankin, 2001) e Mateus (no prelo, editora Bem-te-vi).
fonte e maiores informações, em: http://www.pichonpoa.com.br/

sábado, 28 de maio de 2011

divulgação: ''As políticas sociais somente terão sucesso quando se desnaturalizar a desigualdade''

Entrevista especial com Ana Maria Colling
“A democracia não pode ser alcançada sem a participação e a inclusão das mulheres”, defende a socióloga Ana Maria Colling, em entrevista à IHU On-Line. Segundo ela, apesar de as mulheres terem conquistado alguns direitos ao longo da história, como a participação política, a cidadania das brasileiras ainda é “contraditória e paradoxal” e a desigualdade de gênero continua sendo o principal impedimento para a democracia. “Democratizar a democracia pressupõe, no Brasil e nos demais países, incluir as mulheres, não como um tema, mas em todos os âmbitos da sociedade. As políticas sociais somente terão sucesso quando se desnaturalizar a desigualdade”, reitera.
Na entrevista que segue, concedida por e-mail, Ana destaca ainda que, a exemplo da Carta Cidadã de 1988, as leis igualitárias para homens e mulheres existem e não permite nenhum tipo de discriminação. No entanto, ressalta, a violência de gênero persiste e é, hoje, o maior desafio posto às políticas sociais. “A violência contra a mulher, expressão da radical desigualdade entre os sexos teima em se permanecer”, complementa.
Ana Maria Colling é graduada em Estudos Sociais e Geografia pela Unijui, mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com a tese A construção da cidadania da mulher brasileira. Igualdade e diferença (2000). Atualmente é professora do Unilasalle, onde leciona no curso de História e no mestrado em Educação.
A Ana Maria Colling participou do 5º Seminário de Políticas Sociais, realizado do dia 12-05-2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se deu, ao longo da história do Brasil, a construção da cidadania da mulher brasileira? Já se conquistou, no país, um discernimento do papel político da mulher na sociedade?
Ana Maria Colling – A cidadania da mulher brasileira foi uma conquista, ainda não alcançada totalmente, contraditória e paradoxal. Ao mesmo tempo em que ela conquistava o direito ao voto universal (cidadania política), uma “doação“ de Getúlio Vargas, ela se mantinha como relativamente incapaz através do Código Civil Brasileiro. Chamo a atenção para a “doação” de Getúlio Vargas já que a reivindicação ao voto era uma batalha travada arduamente pelas mulheres brasileiras e de todo o Ocidente. Getúlio ignora esta histórica luta e instaura o voto feminino em 1932 através do Código Eleitoral que, ao justificar esta concessão, anuncia que, se o Brasil quiser ser moderno como os demais países, deve conceder o voto às mulheres. Modernização igual à construção de pontes, estradas etc. Daí o paradoxo: cidadãs maiores através da Constituição e incapazes através do Código Civil de 1916 (Esta incapacidade relativa dura até a instituição do Estatuto da Mulher Casada de 1962.)
IHU On-Line – Como vê o planejamento das políticas sociais no Brasil no que tange às mulheres e aos seus direitos? Que política é mais eficaz neste sentido?
Ana Maria Colling – Vivemos no caso do Brasil e de muitos países um problema de tempo, mentalidades e cultura. No campo das políticas públicas e também das políticas sociais têm-se tomado iniciativas visando diminuir as desigualdades de gênero. Se o acesso à educação e aos diversos empregos foi também uma árdua luta, assim como o voto, isto foi conquistado. Mas a violência contra a mulher, expressão da radical desigualdade entre os sexos, teima em permanecer. A discussão sobre a desigualdade e a discriminação é um avanço porque elas estão introjetadas profundamente na cultura e nas mentalidades. As leis igualitárias se chocam contra esta muralha construída durante séculos que é a menoridade feminina.
IHU On-Line – Em que medida as políticas sociais brasileiras garantem a democratização da cidadania para as mulheres?
Ana Maria Colling – As Nações Unidas destacaram, em cinco de maio do corrente ano, a necessidade de promover a participação das mulheres na tomada de decisões, observando que a democracia e a igualdade de gênero são interligadas e se reforçam mutuamente. Destaca o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, que a desigualdade de gênero continua sendo um grande impedimento para a democracia. Faço coro às palavras de Ban Ki-moon e de Helen Clark, administradora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, quando afirmam que a democracia não pode ser alcançada sem a participação e a inclusão das mulheres. Este depoimento dos dirigentes da ONU demonstram que a questão de gênero atravessa fronteiras e não é um privilégio de classe, raça, etnia ou geração. A desigualdade de gênero é uma chaga mundial que precisa ser combatida com todas as forças. Democratizar a democracia pressupõe, no Brasil e nos demais países, incluir as mulheres, não como um tema, mas em todos os âmbitos da sociedade. As políticas sociais somente terão sucesso quando se desnaturalizar a desigualdade.
IHU On-Line – Quais os maiores dilemas e desafios das políticas sociais brasileiras, principalmente as que se referem às mulheres?
Ana Maria Colling - Acabar com a violência contra as mulheres é o maior desafio. As leis igualitárias existem – olhemos a Carta Cidadã de 1988 que não permite nenhum tipo de discriminação e a Lei Maria da Penha, que tenta punir os assassinos e agressores, mas a violência continua. Diariamente na mídia nacional nos deparamos com assassinatos de mulheres. Na maioria das vezes, ex-esposa, ex-noiva ou ex-namorada. A violência resiste a toda a normativa legal. É um caso de saúde pública e um entrave à democracia e ao desenvolvimento.
IHU On-Line – Como a questão de gênero perpassa a questão social e política no contexto brasileiro na instituição das políticas sociais?
Ana Maria Colling – É preciso que o Brasil discuta e saiba o que é a questão de gênero. Gênero nada mais é do que a construção social e cultural dos sexos. O sexo biológico é dado e o gênero é construído. E esta diferença entre os sexos foi historicamente hierarquizada quando se desqualificou um dos pares – o feminino. Se não discutirmos, especialmente nas escolas, a questão de gênero (lugar privilegiado de marcação sexual) muito tempo irá levar para acabar com a discriminação. Não é por ser mulher que se tem uma visão igualitária entre os sexos. Se fosse assim, tudo estaria resolvido. Mulheres parem meninos e meninas, mulheres são atendentes de creches, as escolas dos anos iniciais são comandadas por mulheres e ainda assim o preconceito continua. O que fazer quando a maternidade, única diferença entre os sexos, ainda é um signo de desigualdade? Na conquista e manutenção de empregos, educação, cidadania enfim. Especialmente a educação poderá transformar a relação entre homens e mulheres em relações de efetiva igualdade.
IHU On-Line – Qual sua expectativa em relação ao governo da presidenta eleita, Dilma Rousseff? Que avanços vislumbra nas políticas sociais para mulheres?
Ana Maria Colling – Tenho uma imensa esperança que o governo da presidenta Dilma, mulher inteligente, sagaz, igualitária, faça a diferença. Muitas políticas públicas já estão implementadas e muitas ainda deverão ser efetivadas para erradicar de direito e de fato a desigualdade e a discriminação contra as mulheres.
Como fazer que os direitos humanos englobem todos os humanos – humanas e humanos? Como romper o ciclo de cidadania somente masculina inaugurada pelos franceses após a Revolução de 1789? Esta revolução elaborou a Declaração Universal dos Cidadãos e cortou a cabeça de Olympe de Gouges, que escreveu uma Declaração dos Direitos da Cidadã por não sentir as mulheres incluídas na Declaração dos Direitos do Cidadão.
Decapitam Olympe acusando-a de cometer dois pecados: querer ser um homem de Estado e ter traído a natureza de seu sexo. Se Olympe é decapitada em 1793, as acusações de seus carrascos ainda ecoam como atuais. Querer ser um homem de estado é assumir os lugares até então masculinos, como a política, a escrita. Trair a natureza de seu sexo, é trair a natureza muito bem construída para as mulheres, encarcerada no privado, somente sendo mãe e esposa.
O documento da ONU de 5 de maio nos mostra a triste estatística: menos de 10% dos países têm mulheres como chefes de Estado ou de governo. Menos de 30% de países atingiram a meta de 30% de mulheres nos parlamentos nacionais.
Pensar políticas sociais para mulheres, em minha visão, é não encarar que a igualdade já está estabelecida. Muito se avançou nos últimos anos, mas muito ainda está por ser feito. A desconstrução do masculino e do feminino – abrir o discurso para ver como se construíram os gêneros –, o trabalho, o estudo, os papéis sociais, as naturezas, as essências, etc., e o posterior empoderamento de quem foi desqualificado é fundamental. Gosto de lembrar do sociólogo Pierre Bourdieu, quando e em um pequeno texto sobre mulheres e história ele nos mostra que é impossível uma história de mulheres porque elas têm uma visão dominada que não vê a si própria. É preciso descolonizar o feminino, diz ele. Descolonizar as mulheres é desconstruir os discursos elaborado sobre elas, tão eficazes que elas também o assumiram, depois reconstruir em bases igualitárias, empoderando-as. A desnaturalização dos discursos das práticas sobre e contra as mulheres é tarefa essencial.

divulgação: Sucesso no YouTube, professora sonha alto

Sucesso no YouTube, professora sonha alto
por: Fernanda Bassette - O Estado de S.Paulo
Um discurso lúcido e consistente, que durou pouco mais de oito minutos, foi o suficiente para que a professora Amanda Gurgel de Freitas, de 29 anos, saísse do anonimato para colocar a educação em destaque no País, por meio de um vídeo que virou hit no YouTube. Professora de língua portuguesa, Amanda falou sobre os percalços da profissão na comissão de educação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte no início do mês.
O que os mais de meio milhão de internautas que já acessaram o vídeo não sabem é que a professora de fala firme e articulada está afastada da sala de aula desde 2008 por conta de uma depressão. Solteira e sem filhos, hoje ela exerce cargos administrativos na biblioteca e na sala de informática das escolas de Natal em que deveria lecionar.
Ainda em tratamento, Amanda diz que pretende voltar à sala de aula "não porque é apaixonante, mas porque não é tão simples estar em cargos de adaptação".
Amanda tinha 17 anos quando decidiu ser professora. "Queria ser como a Claudina", diz, referindo-se à professora de espanhol que conheceu quando fazia cursinho preparatório para o vestibular. "Além do conteúdo, era muito alto astral e reunia todas as características que uma professora precisa: era simpática e atenciosa."
A jovem estudante, que ficou órfã aos 4 anos, cursou o ensino fundamental na rede pública e o ensino médio em escola particular. Fez cursinho porque queria uma vaga no curso de Letras em uma universidade pública. E conseguiu. Passou primeiro na Universidade Estadual de Feira de Santana, onde estudou durante um ano, e prestou vestibular de novo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, onde concluiu o curso. "Me mudei para Natal para morar com minha irmã."
À época, Amanda estudava de manhã e trabalhava à tarde e à noite. No segundo ano de faculdade, conseguiu uma bolsa para lecionar num cursinho preparatório para alunos carentes. "Foi lá que ganhei experiência em sala de aula."
Aprovada em concurso nas redes municipal e estadual, passou a dar aulas nos ensinos fundamental e médio. O esgotamento físico e mental em classe fizeram Amanda adoecer. Segundo ela, há uma pressão dos governos em cima dos professores que estão afastados para saber se eles realmente estão com problemas de saúde. "E, agora que estou bem melhor, sinto que tenho de voltar."
Militância. Ainda na faculdade, Amanda se envolveu com o movimento estudantil e, desde então, passou a se mobilizar para defender os interesses da categoria. Participa das reuniões do sindicato e, em 2010, decidiu se filiar ao PSTU. "Nos conhecemos há 10 anos, ela sempre foi combativa", diz a amiga Vanessa Amélia Azevedo dos Santos. Apesar da repercussão, Amanda diz não ter pretensão política - sua meta é conquistar a presidência do sindicato dos professores do Rio Grande do Norte (vaga que ela já disputou duas vezes).
Amanda diz ter consciência de que sua fama é passageira e quer aproveitar o momento "para estar a serviço dos professores". "Sinto que é uma missão. Se eu conseguir mobilizar a categoria na internet e nas ruas para pressionar o governo, talvez eu tenha plantado uma semente que poderá, um dia, render frutos inéditos."

fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110521/not_imp722025,0.php

divulgação: Reprodução assistida. A clínica como espaço de normatização social

Entrevista especial com Marlene Tamanini
As dimensões físicas, psicológicas, políticas e culturais da reprodução assistida no Brasil e no mundo são analisadas pela professora Marlene Tamanini na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. A maternidade em laboratório tem crescido muito nos últimos anos. Questões relacionadas a este tema são discutidas pela professora. Desta forma, quando começou a estudar o assunto, uma das suas principais preocupações era entender os sentidos de paternidade, de maternidade e de filiação. Explica que o "contexto da maternidade em laboratório está trazendo uma insistência bastante profunda na ideia de que uma mulher só é feliz se for mãe. O laboratório constrói um lugar para essa mulher a partir dos óvulos, dos espermatozoides, da infinidade de materiais que circulam nesse espaço”.
A entrevista foi feita em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT.
Marlene Tamanini é bacharel em Ciências Políticas e Sociais na Escola de Sociologia Política (ESP/SP). É especialista em Metodologia de Pesquisa Gênero Sexualidade e Saúde pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fez mestrado em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado, pela mesma universidade, no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas com um período na Centre National de la Recherche Scientifique. É pós-doutora pela Universitat de Barcelona. Atualmente, é professora na Universidade Federal do Paraná. É autora de Reprodução assistida e gênero: o olhar das ciências humanas (Florianópolis: UFSC, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que aspectos influenciaram a escolha desse tema de pesquisa?
Marlene Tamanini – Comecei com a tese de doutorado defendida em 2003. Quanto tive que definir um tema de tese, frente aos processos que começavam naquele momento, percebi que esse assunto ainda era muito incipiente no Brasil. Recém havia começado a aparecer na mídia e alguns poucos textos publicados no país sobre a temática. Além disso, tinha a necessidade de compreender melhor por que os casais faziam essa busca por meio de tecnologias, já que frequentemente se ouvia a pergunta: “Por que não adotar?”, ou mesmo: “Por que não ficam sem filho?”. Na época, não eram muito frequentes as clínicas também. Em Florianópolis havia uma clínica que fazia bastante procedimentos, mas era uma única e, normalmente, as pessoas iam para Curitiba, onde moro hoje, ou para São Paulo, e alegavam a necessidade de filhos do próprio sangue.
Na minha história pessoal, o caminho foi um pouco do contexto do aparecimento do tema, das pessoas com quem eu trabalhava dentro de uma reflexão do referencial analítico dos estudos de gênero. Como se tratava de um doutorado interdisciplinar, eu também buscava construir uma problemática de pesquisa que me oferecesse interface com várias áreas do conhecimento e que permitissem uma abordagem interdisciplinar frente às teorias feministas, aos campos da Antropologia, da Sociologia da Reprodução, da Bioética, da Sociologia da Família e, sobretudo, as minhas preocupações em entender os sentidos de paternidade, de maternidade e de filiação.
IHU On-Line – Quais os principais aspectos que envolvem a maternidade e a reprodução global?
Marlene Tamanini – Primeiro, considero que o tema da maternidade é bastante político. Garantias de direitos às mulheres mães e ao cuidado dos filhos entram no caminho do Estado e nas garantias de recursos e estratégias sociais de intervenção nas relações estabelecidas. Além disso, o contexto da maternidade em laboratório está trazendo uma insistência bastante profunda na ideia de que uma mulher só é feliz se for mãe. O laboratório constrói um lugar para essa mulher a partir dos óvulos, dos espermatozoides, da infinidade de materiais que circulam nesse espaço. O interesse por trás disso está vinculado ao controlar, medicalizar e intervir nos corpos e/ou utilizá-los para fins políticos, demográficos, sanitários, higienistas e morais como se fez ao longo de muitos anos.
Cultura da maternidade
No caso da reprodução assistida, essa maternidade se vincula, primeiramente, à vontade de intervenção com uma atitude cultural humana, que busca recuperar a condição de doença de infertilidade. A partir dessa ciência feita na época do Positivismo passou-se a dar um valor muito importante ao útero e visibilidade do óvulo. Então, constitui-se todo um saber médico sobre a questão da infertilidade. Hoje, a maternidade, em quase todos os campos, não só no Brasil, vem associada às práticas biopolíticas e bioeconômicas dos corpos. E aí existem estudos que mostram como as mulheres se constituem hoje doadoras não só de óvulos e de úteros, como também de tecidos vinculados às células-tronco e que são utilizadas para indústrias, para a prática de cosméticos. O volume de embriões humanos que se produz nesses centros de reprodução assistida é bastante importante porque circula em mercados de destaque, bem como em mercados não reconhecidos oficialmente.
"Hoje o material reprodutivo que ela usava para ser mãe é utilizado para muitas outras práticas mercadológicas"
Muito material humano é produzido por mulheres a partir dessa ideia de que ela é mãe, mas essa célula que é a retirada do corpo dela pode ser disponibilizada para outros usos. O cordão umbilical também, é um material importante que sai dos corpos femininos. Então, existe uma rede de trabalho vinculada a ideia de uma mulher que antes tinha as condições de ser mãe a partir do seu corpo e hoje o material reprodutivo que ela usava para ser mãe é utilizado para muitas outras práticas mercadológicas. São operações transnacionais de apoio a pesquisas bioeconômicas, cujo valor econômico de fato nós desconhecemos. Mas sabemos que já está implementada nessas redes de mercado e que são bastante rentáveis em termos bioeconômicos.
Redes de maternidade
Outra característica da maternidade, hoje, também são as complexas e desconhecidas redes de valorização dessas atividades em tarefas que ampliam o conceito de mercado. Por exemplo: o trabalho transnacional feminino em termos de. Aí caímos em um dilema moral, de prostituição ou de redes de mulheres que são colocadas em faxinas, em trabalhos menos valorizados, que também não é pequeno. E essas dinâmicas se ampliam ainda mais quando nós pensamos o setor de serviços, educação, as redes de cuidados. Normalmente, essas dinâmicas migratórias estão muito vinculadas ao cuidado de crianças, ao cuidado de idosos, ao cuidado da casa, que é uma dimensão importante do ato de maternar e que, enquanto esse maternar não for politizado, nós não conseguimos entender o que, de fato, é essa maternidade presente no mundo hoje.
IHU On-Line – Como a ideia de “ser mãe” está presente na reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Do ponto de vista da reprodução assistida, há uma insistência bastante grande na ideia de que, primeiro, uma mulher precisa ser feliz se for mãe. Segundo, é importante que ela seja mãe numa situação de conjugalidade estável e, especialmente, numa situação de conjugalidade de perspectiva heteronormativa, de heterossexualidade. Isso eu sinto que é mais forte no Brasil. Em Barcelona, na Espanha, onde estive em 2010 durante o pós-doutorado, está reconhecido legalmente a possibilidade de as mulheres solteiras adentrarem com um pedido de processos de intervenção para a construção de embrião com um doador de sêmem para terem um filho. No Brasil se faz isto; mas não é algo que se faz com tanta tranquilidade e com tanta frequência porque também se pensa que o ideal de família, onde uma criança deve nascer, deve ser formado por pai e mãe.
E aí nós temos também uma dificuldade bastante grande para imaginar a família que não é hétero, que é formada somente por um gênero: só homens ou só mulheres. No caso da Espanha, a maternidade entre casais homossexuais femininos, mulher mãe numa relação de conjugalidade homo foi considerada pela lei foi aprovada. Uma das razões pelas quais foi aprovada é que o valor da maternidade é bastante importante, na região que estudei da Catalunha, e se diz que duas mulheres, duas mães nunca são demais na vida de uma criança. E a mãe que gera, no caso a mãe uterina, tem uma visibilidade importante porque o útero cresce e as pessoas reconhecem que ela, afinal de contas, é agora feminina. E a outra mulher da relação de conjugalidade, normalmente entra com a doação dos seus próprios óvulos, fazendo com que se constitua essa gravidez. E, assim, ela vai ter que construir sua relação com a maternidade ao longo da relação com a criança e publicizando para os outros que ela é mãe porque cuida. Porque, ainda que ela não vá ter o útero participando para dar visibilidade ao corpo dela “grávido”, vai participar geneticamente e depois com a construção pública que ela fizer desse ato.
"Duas mães nunca são demais na vida de uma criança"
Isso nos países tem conjugações legais diferentes. Não é todo lugar que funciona assim, uma vez que cada país foi construindo sua forma de entendimento legal sobre esse tipo de prática. No caso dos homens, pensando na Espanha, eles não tiveram o direito reconhecido de paternidade pela lei, quando estão em conjugalidade homossexual, porque é proibido o aluguel do útero, como é proibido no Brasil. Aqui existe hoje uma resolução que saiu em 2010 segundo a qual uma mulher pode gestar para outra mulher desde que ela seja aparentada com a mãe, quer dizer, com a mulher do casal, ou um casal pode ter um filho e a mãe da mulher da relação de cônjuges, ou a irmã, ou alguém aparentado até segundo grau gerar para eles.
Barriga de aluguel
O que o Brasil faz, nesse caso, é a barriga de substituição, que também vai acabar por constituir uma rede de mulheres bastante importante nesse caso brasileiro de parentesco, vinculado à mãe. Em 2004, em Belo Horizonte, uma sogra gerou uma criança no seu útero com o óvulo da esposa do filho. São arranjos que a sociedade vai construindo.
Quando penso a maternidade, estou tentando ampliar esse conceito. Imagino-a nos diferentes contextos e em diferentes interfaces. Percebo essa rede de materiais reprodutivos vinculada a ideia de colaboração na construção de um filho para outra pessoa; ela tem uma mesma ordem simbólica. Hoje, o número de transferências embrionárias é feito em mulheres com mais de 35 anos de idade. Geralmente, isso está imbricado em razões sociodemográficas. Nós esperamos mais tempo para decidir a respeito de se seremos mães ou não. Aí temos mais um espaço para a entrada da reprodução assistida, que é o único caminho para essas mulheres, e isso significa uma demanda por tecnologia da reprodução que tende a aumentar, como ocorre nos países europeus.
IHU On-Line – Quais as dimensões físicas que podem ser destacadas num contexto de busca pela reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Se nós fôssemos falar do ponto de vista médico, será a infertilidade constatada a partir de exames. Não têm muitas coisas para discutir quanto à dimensão física. É pensar a idade num sentido cronológico que, então, ganha uma dimensão física, depois que passa dos 35 anos, pois aí nós temos uma queda acentuada da possibilidade de óvulos. O resultado é que vai precisar de intervenção de alguma maneira – ou de hormônios ou de acompanhamento de ciclos de ovulação através de hormônios ou o uso da tecnologia.
Para o homem o problema é a baixa produtividade de espermatozoide e isso é provocado por vários problemas e que só podem ser constatados clinicamente. Essa ideia da infertilidade é construída a partir da ausência de gametas, e isso é uma dimensão física importante. A leitura biomédica sobre a idade das mulheres está sendo feita a partir da ideia do útero e do ovário reprodutor. Ocorre que a idade cronológica não é a única forma de pensar a idade de uma mulher. A sua idade depende muito mais do seu contexto, das questões ambientais. Por exemplo, um médico me disse uma vez, numa entrevista em Barcelona, que uma mulher de 20 anos que fuma tem um ovário de 40 anos. Aí entra a relação com o meio ambiente, a relação com o uso de álcool, de fumo e de estilo de vida para a constituição de uma fertilidade ou de uma infertilidade, da possibilidade de imaginar um ovário ou um útero adequado. No caso do homem, esses fatores também são muito importantes: a relação com o meio, o nível de estresse, a condição do uso de drogas e alimentação têm sido apontados como um fatores importantes, hoje, em relação à infertilidade.
IHU On-Line – Quais são as dimensões clínicas e o ponto de vista biomédico?
Marlene Tamanini – O médico, quando olha o processo de infertilidade, está pensando na ciência biomédica. Agora ele pode dizer: “Que bom, tem um campo em expansão, têm muitas tecnologias surgindo, tem a entrada de novos profissionais e novas redes de especialidade”. Do ponto de vista clínico, já não se pode falar mais de '‘o médico’' intervindo na reprodução assistida, porque ele já não é o único profissional do campo. Tem um processo de atividades administrativas e de técnicos de laboratórios que também está se constituindo e alargando esse olhar.
Outro aspecto importante é que o gerenciamento dessas atividades, na maioria das clínicas que passei em Barcelona, são majoritariamente femininas. Então, eu acabei por concluir que a reprodução assistida está crescendo sempre mais na direção do feminino para a intervenção, para a ação, assim como o gerenciamento, o estabelecimento de protocolos e dos valores nesse quadro.
Por outro lado, os médicos têm que conhecer, numa razão de complementaridade, quais são as melhores técnicas. Esse diálogo é intenso e existe uma implicação de decisões entre essas especialidades, o que faz com que a clínica se amplie para muitos outros campos. Isso muda totalmente a relação com a clínica; possibilita que ela passe a interferir e oferecer condições para as pessoas decidirem coisas diferentes sobre a sua idade reprodutiva e também interferir nas decisões, com o poder escolher ser mãe mais tarde. Gosto de pensar também a clínica como um espaço de normatização social. Isto porque, à medida que essa reprodução assistida se expande, você começa a compartilhar uma outra representação de mundo.
IHU On-Line – Como fica a construção da feminilidade e da masculinidade, quando a questão é a reprodução assistida?
Marlene Tamanini – Vamos pensar a partir da ideia de paternidade para pensar a masculinidade. No caso da reprodução assistida, quando o companheiro da mulher está numa relação heterossexual, o primeiro aspecto que vai aparecer é a dimensão física. Ele vai formar uma consciência sobre a própria infertilidade, o que não é fácil para o homem, porque normalmente quem está em tratamento, em processo de infertilidade, é a mulher. Pelas médias dos estudos que fazemos, percebemos que a mulher normalmente já está em tratamento há 5 ou 6 anos, quando o companheiro é chamado para um simples espermograma.
A clínica também tem dificuldade. O médico, o psicólogo, a enfermeira têm dificuldade de diminuir esse processo. Ainda que exista tecnologia hoje para usar, buscar o gameta através de cirurgia, os médicos têm que trabalhar com a ideia de que o homem possui muita dificuldade para aceitar que é infértil. Embora estatisticamente eles apresentem uma infertilidade bastante alta, os homens têm dificuldade de aceitar essa condição.
Quando você coloca que o homem precisa se tratar, insere na situação uma crise bastante importante. Isto porque nas representações modelares não são as únicas, mas as que foram tomadas hegemonicamente. Dizer a um homem que é infértil soa como chamá-lo de impotente. O homem confunde infertilidade com impotência. Ele passa a viver a experiência da incapacidade reprodutiva vinculada a um imaginário, que é social e cultural, de impotência sexual. Entrar com o seu corpo para um processo de tratamento não é expor a infertilidade para ele, mas sim expor a impotência. Claro que estou falando de um homem numa perspectiva mais tradicional, de um modelo de masculinidade que se chama, em vários estudos, de hegemônica.
Outra questão que precisa ser pensada, no caso da masculinidade, é a dimensão social. A infertilidade masculina só ganhou visibilidade recentemente. Ela era silenciada na história, tanto pela biomedicina quanto pela sociedade. A biomedicina não tinha tecnologia para tratar o homem antes da injeção intracitoplasmática de espermatozoide. Então, mantinha-se em silêncio e o homem também ficava numa relação de ostracismo, separado por falha. Ele era considerado não participante, porque as mulheres buscavam o tratamento, buscavam os filhos, cuidam dos filhos, apareciam em público com os filhos e eles não.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios enfrentados pelos casais homossexuais?
Marlene Tamanini – Pensando a Espanha e países que aprovaram a reprodução assistida para casais homossexuais femininos, as mulheres vêm enfrentando menos desafios, porque elas têm o útero, e ele ainda é a base sobre a qual se faz uma gestação. As mulheres têm a possibilidade que a companheira que não entra com o útero doe o óvulo, elas buscam facilmente o sêmen em um banco. Não existem impedimentos legais para elas fazerem isto em muitos países, como na Espanha, por exemplo.
No Brasil, estamos lutando para reconhecer a Lei da Conjugalidade Homossexual, e então nós vamos ter que pensar como vai se realizar a prática da reprodução assistida. Nós temos hoje vários casos de mulheres que fizeram inseminação artificial com doador anônimo e que tiveram seus filhos e estão os criando. A reprodução assistida é percebida no Brasil nas descrições legais como prioritariamente para casais héteros. Porém, não diz nada oficialmente proibindo a inseminação ou fertilização in vitro para casais de mulheres e homens homossexuais. No caso, as mulheres têm como fazer, mas os homens. não. Eles não têm útero; possuem dois espermatozoides e não podem, com a nova resolução, ter um útero aparentado, porque foi definido a gravidez em substituição pelo útero de referência a mulher do casal. Portanto, eles não são mulheres. Eles não tem a irmã, eles não podem, eles não têm ninguém que possa oferecer o útero para eles. Ficou inviabilizado todo este processo.

divulgação: Revoltas jovens começam a contagiar Europa

Multidões tomam as praças da Espanha, exigem direitos sociais e alertam: não falta “democracia real” apenas nos países árabes…
Por Pep Valenzuela, correspondente de Outras Palavras em Barcelona
Barcelona, 18 de maio de 2011. Estamos nos preparando para pegar o metrô em direção à praça Catalunha, centro nevrálgico da cidade. Recebemos por “sms” e Facebook, mensagens que pedem apoio aos jovens acampados na praça há duas noites. Também estão ocupadas a Puerta del Sol, no centro de Madri, e espaços em dezenas de outras cidades espanholas.
Na iminência de eleições locais e autonômicas (equivalente às estaduais, no Brasil), domingo próximo, milhares de pessoas exigem democracia real ya e gritam para os partidos do stablishment, principalmente PSOE e PP: “vocês não nos representam”, “não há pão como para comer tanto chorizo (um tipo de salame e, ao mesmo tempo, gíria para corrupto)”. Defendem também os direitos sociais e protestam contra os cortes nos orçamentos públicos, especialmente de saúde e educação. Tudo indica que os protestos não vão parar por enquanto. O movimento, muito plural e diverso, com marcante presença de jovens, espontâneo, pacífico, espelha-se nos protestos por democracia e direitos nos países do Oriente Médio, e contra a crise econômica, na Islândia.
No fim de semana passado, foram convocadas dois protestos. O primeiro, no sábado, em Barcelona, articulado por uma plataforma de dezenas de entidades, em conjunto com os sindicatos. O segundo, no domingo, em várias capitais de província espanholas, chamado pela coalizão que depois propôs realizar os acampamentos montados até agora. Na capital da Catalunha, havia mais de 50 mil pessoas. Pode ter sido a volta por cima, após anos de desmobilização diante das políticas dos governos espanhol e catalão – que seguem à risca as exigências da União Europeia e FMI. As passeatas de domingo, tiveram surpreendente participação.
Em seguida, exatamente como aconteceu na Praça Tahrir (Cairo), várias delas transformaram-se em acampamentos. O mais numeroso está armado em Madri, onde se concentraram, já no primeiro momento, em torno dos 10 mil manifestantes. Ninguém sabe nem imagina até onde pode chegar a nova forma de manifestação. Mas há algo muito destacado. O questionamento das formas atuais de democracia já assumiu a condição de tema principal. As palavras de ordem ganham adesão crescente e apoio popular. Os primeiros a serem pegos de surpresa foram, certamente, os próprios protagonistas das ações.
Nas circunstâncias e contexto, não há como não lembrar os protestos e manifestações que também marcaram as eleições legislativas do ano de 2004 depois das bombas na principal estação de trens de Madri. Naquela época, levaram ao governo espanhol, pela primeira vez, um candidato pouco cotado: José Luis Rodríguez Zapatero, desde então primeiro-ministro.
Além de acontecer no período eleitoral, a mobilização é marcada pelo espontaneidade e pela utilização maciçã das redes sociais, como meio principal de comunicação. A terceira característica comum é o protesto contra a que poderíamos chamar de “política oficial”, identificada como corrupta e antidemocrata. Uma das palavras de ordem dos jovens é: “parece democracia, mas não é”. Mais um traço comum: o protagonismo de novas gerações, que na maioria dos casos não tiveram experiências de militância política, social e ou sindical “clássica” – e que ou as rejeitam, ou simplesmente as desconhecem e desconsideram.
Longe dos programas políticos dos candidatos às eleições, as prioridades na lista do movimento são valores, dignidade e vergonha na cara – simples assim. Não adiantam discursos nem justificativas pois, acreditam os manifestantes, não pode haver pessoas sem direitos, sem presente e – pior – sem futuro. Há aqui mais um ruído: os políticos espanhois e catalão não se cansam de “alertar” que as gerações futuras viverão pior que seus pais. Esses jovens simplesmente não aceitam.
Mesmo que seu futuro seja incerto, o movimento e protestos colocam em evidência, no mínimo, que não vai ser fácil cremar o estado do bem-estar social no altar dos mercados financeiros internacionais – ao contrário do que pensam a Comissão Europeia e o FMI. Mas além dessa resistência, coloca-se, ainda que em estado latente, uma proposta alternativa de política, economia e sociedade. Um outro mundo é possível e, quem sabe, passeia pelos acampamentos nas praças do Estado espanhol.

domingo, 22 de maio de 2011

divulgação: livro SILÊNCIOS TANGÍVEIS

SILÊNCIOS TANGÍVEIS. Corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos de abandono
Sobre o livro:
Toda a experiência de pensamento se inscreve num gesto impossível. Este livro tem o seu acontecimento originário: uma imagem fotográfica que se fende nos corpos em deslocação de uma humanidade em trânsito. Numa cartografia surreal, homens, mulheres e crianças sobrevivem contemporaneamente em espaços de abandono – campos de refugiados, espaços de deslocação, campos de retenção – nos quais a linguagem é suturada ao mutismo do corpo que se dobra sobre si mesmo, caindo num silêncio sem infância.
Em situações de violência extrema, na propagação de fronteiras jurídico-administrativas marcadas por uma política de migração e de controlo das populações, o «deslocado» é a enunciação de um corpo singular transformado numa identidade biopolítica que imobiliza o tempo e esteriliza o espaço. Todavia, a sua existência confronta-nos com um movimento onde se fende o território linear da narrativa histórica. Apesar do gesto de dar a morte em vida, próprio do poder biopolítico, os «deslocados » resistem num corpo-acontecimento. No seu corpo singular, a força excessiva da vida rebenta violentamente. Como uma inquietante estranheza. Considerando a tensão intrínseca presente no conceito de biopolítica, perspectivado por Michel Foucault – entre um poder sobre a vida e um poder da vida –, neste livro procura-se pensar a figura desses corpos-impossíveis, através de fragmentos de um sentido a-vir nos quais se desenha um pensamento onde as relações entre o acontecimento, a memória e o testemunho abrem a possibilidade de questionar o sentido da resistência. Mas como testemunhar um acontecimento sem tradução? Desde o interior de um movimento de contaminação entre a política e a estética, o pensamento enraíza-se no silêncio de um corpo que resiste.
Sobre o autor:
Eugénia Vilela é docente no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se doutorou em Filosofia, e Investigadora Responsável do Grupo de Investigação "Estética, Política e Artes" do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. Autora de conferências e artigos no âmbito da Filosofia e das Artes, publicou, entre outros textos em obras colectivas, o livro Do Corpo Equívoco.
Procurando pensar o espaço político contemporâneo a partir de diferentes configurações do gesto de criação em situações de violência extrema, a sua investigação decorre do pensamento de filósofos e artistas que contribuíram para uma transfiguração da noção de espaço e tempo históricos. O que supõe a abertura a formas singulares de pensamento que permitam conceber a relação entre a história, a memória, o esquecimento e o testemunho. Esse movimento de pensamento, realizado a partir da consideração dos espaços de excepção na contemporaneidade, apresenta e articula como suas figuras principais as noções de corpo, silêncio, resistência, acontecimento, narração e imagem.
SILÊNCIOS TANGÍVEIS. Corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos de abandono Autor: Eugénia Vilela
Editora: Edições Afrontamento
Aesthetics, Politics and Art - Research Group - Edição: 2010 - Colecção: Biblioteca de Filosofia - ISBN: 978-972-36-0963-9 - N.º págs.: 596

divulgação: Olgária Matos entre Direitos, Desejos e Utopia

Entrevistada pelo projeto Revoluções, filósofa vê em 1968 o momento em que a ideia de transformação social começou a mudar
Recomeça esta semana, em São Paulo, uma experiência político-estética de rara atualidade. No instante em que ressurgem, no mundo árabe, os grandes movimentos de transformação social promovidos pela multidão, o projeto Revoluções debate conceitualmente esta forma de mudar o mundo. Iniciado em abril, ele desdobra-se, agora, em três novas atividades: o seminário Revoluções: uma política do sensível (20 e 21/5); a abertura de uma exposição de fotos organizada por Henrique Xavier, a partir de trabalho de Michel Löwy (21/5); e a instigante oficina Mídia e Revolução: culturas de vanguarda (22 e 24/5).
Muito mais que uma série de eventos, Revoluções – um projeto que Outras Palavras ajudou a conceber – é um convite a refletir. Por isso, produz, em certos momentos, diálogos e entrevistas, disponíveis em seu site. Autora, entre muitas outras obras, de As barricadas do desejo, sobre o Maio de 1968 francês, a filósofa Olgária Matos é uma participantes ativa destes momentos.
O texto abaixo traz a síntese de uma destas conversas, mantida com a equipe de organizadores do seminário. No diálogo, ela falou sobre 1968 – abordando, em especial, seu papel na criação de novos projetos superação do capitalismo (que afloram mais intensamente hoje). Também abordou o sentido e atualidade da noção de direitos humanos, as armadilhas da libertação do corpo conjugada com aprisionamento do espírito e (com viés um tanto conservador…) as redes sociais e o mundo virtual. Ao final, expressou, a respeito da noção de Utopia, uma visão que vale a pena conhecer e discutir.
Projeto Revoluções: Por vezes, seus ensaios refletem as inquietações de uma geração que vivenciou e produziu uma transformação no modo de vida, com novas expectativas no campo do trabalho, da sexualidade ou na comunicação de ideias e ideais. Vivendo as “barricadas do desejo” das lutas de 1968, em que medida aquela pode se sentir representada pela atual luta pelos direitos humanos?
Olgária Matos: – O ano de 1968 foi emblemático por ter procedido à crítica das abstrações conceituais como a luta de classes, a dialética materialista, golpe de Estado como formas de emancipação, colocando no centro da questão o indivíduo.
Não mais o revolucionário profissional e obsessivo, investido da missão histórica de liberar toda a humanidade, pois nenhuma classe social fala pelo universal. Nesse sentido, a luta pelos direitos humanos hoje amplia a noção de direito que passa a abranger as questões subjetivas, além da luta contra todos os tipos de preconceito, sejam religiosos, de classe, de sexo ou gênero, de condições físicas e intelectuais.
Toda essa luta tem o sentido de suavizar as relações entre as pessoas, criando as condições do exercício do respeito, da confiança. Também a percepção da violência não só restrita às questões políticas traz para o debate os direitos dos animais e os da natureza, antes fora do debate institucional.
Projeto Revoluções: A história dos direitos humanos confunde-se com modificações de comportamentos nas relações culturais. Podemos reconhecer aqui o avanço da luta das mulheres, apoiada neste instrumento. De outro modo, há quem afirme que os direitos humanos são um instrumento de manipulação cultural, com valores originados numa cultura burguesa e europeia. Qual a sua posição sobre este paradoxo?
Olgária Matos: A ideia de direitos universais é parte da tradição da filosofia antiga — grega e estoica. Lembre-se que os cínicos, no século IV a.C., contestavam as fronteiras entre os povos que, segundo eles, criavam as rivalidades e as guerras, elaborando as primeiras reflexões sobre o cosmopolitismo. Na sequência, a visão cristã desenvolve a ideia de igualdade radical em dignidade, “todos somos irmãos” ou então, como o poeta John Donne escreveu no século XVII: “todos nós somos páginas de um mesmo livro espalhadas pelo mundo.”
Isto é, foi a luta pela igualdade universal abstrata – burguesa — que facultou a possibilidade de luta pelo direito à diferença, e não o contrário.
Projeto Revoluções: Um dos aspectos levantados por nosso curso remete diretamente aos conflitos de constituições culturais, sobretudo aquele entre a marca subjetiva do desejo e a composição de um todo social, com leis universalmente reconhecidas – em outras palavras, a cisão entre indivíduo e sociedade. Esta cisão colocaria em xeque um dos projetos mais antigos da vida social, isto é, a felicidade universalizada, ou ele amplia o campo de demandas e sua extensão?
Olgária Matos: Por sua natureza, a lei é “abstrata”, “impessoal”, e assim tem sua função reguladora da vida social. Como não poderia existir justiça “em si” – universal e abstrata – há sempre um além da lei que diz respeito aos “sentimentos morais”, a um “tato moral” – como o sentimento do pudor – que escapa à legislação.
Esse quantum afetivo é o que cabe ao magistrado prover para que a mais-valia afetiva do que está em jogo na lei possa efetivamente ser considerada. A felicidade é uma palavra indeterminada, mas que tem sentido crítico, uma vez que ela é o que obscuramente guia todas as ações que de uma maneira ou outra buscam o prazer. O pensamento antigo definiu a filosofia como a busca da justa vida e do bem viver que hoje, segundo Adorno, é uma “ciência esquecida”. Quer dizer, a aptidão para a felicidade é algo que se aprende, não se herda, ela exige toda uma educação. Os gregos, por exemplo, encontravam na scholé – no tempo liberado dos constrangimentos da autoconservação – a razão essencial da vida, pois viver nada mais é do que uma determinada maneira de nos utilizarmos do tempo finito que nos foi concedido. Os “cuidados de si” faziam parte do conhecimento da natureza e de nossa natureza, a fim de alcançarmos a “tranquilidade da alma”, uma das figuras da felicidade.
Mas se os gregos valorizavam a prudência, a moderação, a contenção das paixões – que nos fazem infelizes porque nunca determinam exatamente o que desejam – a modernidade valoriza o excesso, o descomedimento que para os antigos era sinônimo de perdição, de extravio, de infelicidade.
E, no mundo contemporâneo, a monotonia e o tédio se instalam no vazio deixado pelo desaparecimento da ideia de “autoconhecimento”’ e autoaprimoramento, e se abandonou para as coisas externas a possibilidade de ser feliz. Substituiu-se o “ser” pelo “ter”, o mercado ocupando o lugar de sucedâneo à busca da felicidade e a posse de bens materiais. Daí o vazio de tudo e a pobreza do mundo interior, atestada pela massificação do uso de drogas, obesidade mórbida, esportes radicais e demais mecanismos de colocar no exterior o que é do domínio subjetivo incontornável.
Projeto Revoluções: Das experiências culturais da segunda metade do século passado, é possível ressaltar um novo olhar sobre o corpo – não mais formado e preparado para as funções sociais “tradicionais” (basicamente, reproduzir e produzir), mas um espaço novo e aberto para a fruição de suas potencialidades. Entretanto, numa sociedade do espetáculo, em que os corpos devem se apresentar como “belos e saudáveis”, há quem afirme que as conquistas de liberdade foram deturpadas ou perdidas. Onde podemos localizar esta mudança?
Olgária Matos: Marcuse nos formulou bem essa questão. O século XX, para todos os fins do consumo, liberou os corpos mas reprimiu a vida do espírito ou, melhor, não liberou o espírito. O que significa que se tratou de uma pseudoliberação que acabou por se converter em uma nova forma de opressão. Se no passado a sexualidade era proibida de se realizar, hoje ela é obrigatória! O corpo – que é o que de mais íntimo possuímos – converteu-se em objeto de exposição (através da pornografia em geral veiculada pelo estilo publicitário) e de banalização. Piercings, tatuagens, nudez etc. são formas de exibição voltadas para si mesmas, já que não são signos distintivos de nenhuma identidade, mas são “comportamentos miméticos”, de massa. Todos copiam a todos sem reflexão, num desejo de identidade e de pertencimento buscados apenas no exterior. São pseudoidentidades e pseudopertencimentos, porque aquele que se tatua não o faz por uma escolha pessoal, mas porque um outro já o fez.
Seria preciso reinventar a ideia de felicidade para a ação não ser ativismo e não senso, mas autorreflexão, conhecimento e prazer neste conhecimento. Os corpos “belos e saudáveis” de hoje nada possuem em comum com aquela empatia do corpo e da alma, em que a beleza do espírito acaba por se revelar nos corpos precários e mortais. O fetichismo da juventude e o desejo de superação de si – os esportistas que sucumbem às drogas e às performances – nada poderiam ter em comum com a saúde do corpo e da alma, porque estas requerem filosofia!
Projeto Revoluções: Outro diagnóstico da contemporaneidade volta-se para o advento das redes sociais no mundo virtual. Nelas, os usuários encontram um espaço para expressar suas individualidades, seja em busca de relacionamentos, seja para divulgar suas ideias, ampliando as vias para a liberdade de expressão. Pensando em seu ensaio “A Identidade: um Estrangeiro em nós” (Discretas Esperanças – Reflexões filosóficas sobre o mundo Contemporâneo, 2006), é possível afirmar que tais manifestações na internet reforçam modelos de identificações que geram “patologias da comunicação”, como a intolerância e o dogmatismo que bloqueiam relações de alteridade? Ou seria este um meio a mais para reverter os laços sociais, configurando vias para a tolerância em uma recente cultura em que a virtualidade assume um papel central?
Olgária Matos: O virtual, as chamadas “amizades à distância”, atesta um “horror do contato”, o evitar a presença factual do outro que, por sua natureza, me contesta. Daí a tendência ao isolamento, ao narcisismo primário, regressivo, ao não contato com o outro, a dificuldade da generosidade e da gratidão, sem o que não há vida ética.
Projeto Revoluções: Um dos elementos possíveis resultantes da dinâmica entre desejo e direitos explode nas manifestações de violência, apresentadas não apenas na necessidade de reconhecimento de suas demandas, como também na instauração de forças paralelas que geram verdadeiros
“Estados dentro do Estado” (sejam as milícias paramilitares, sejam as organizações criminosas). No caso brasileiro, duas estratégias de contenção da violência estão constantemente nos noticiários: as Unidades de Polícia Pacificadoras , nas comunidades em que o tráfico era dominante, e a política de carceragem. Entre uma e outra experiência, podemos afirmar que o brasileiro está experimentando uma nova cultura de paz ou estamos reproduzindo um velho sistema de exclusão social?
Olgária Matos: Esta é uma questão difícil de começar a ser respondida, porque a lei no Brasil não parece ter a função de promover a paz social e a reparação de injustiças. Seja porque nossas leis por vezes parecem ter sido elaboradas para a pólis grega — e portanto não dão conta da violência da sociedade contemporânea –, seja porque não se compreende como ela é aplicada, e no final ela não cria coesão social, mas é vivida como sendo ela mesma violenta, arbitrária e geradora de injustiça. De onde a proliferação das organizações parapoliciais de extermínio etc.
Pode ser também que a ideia de que devamos ser mais compreensivos – complacentes – com os menores infratores, em vez de “conformá-los à boa sociedade”, esteja de fato entregando os jovens (que não têm a noção do limite do permitido e do interdito clara) à vida violenta e breve. Enfim, apesar de eu não me sentir à vontade para tratar de questões tão complexas – eu diria que é com os jovens que a lei deveria ser mais segura a fim de criar a ideia de autoridade legítima etc.
Mas que a mídia hoje tem um papel preponderante no mimetismo social não poderia ser minorado. A mídia impõe comportamentos e produz pensamentos imitados na sociedade. Que se pense o quanto a mídia responde pela conversão da política em espetáculo e as eleições em consumo de imagens de baixa qualidade e baixo padrão de comportamento ético e respeito recíproco ao adversário. A mídia polariza a política criando apenas o amor ou o ódio aos governantes, o que pouco tem em comum com a inteligência da vida pública e de um espaço comum compartilhado. Cada vez mais proliferam os particularismos e desaparecem valores comuns admirados e respeitados por todos – ou que tendessem simbolicamente a isso.
A educação medíocre que se preconiza para a grande massa – sob a alegação de que a “verdadeira cultura lhe é inacessível” – exclui a maioria da “vida do espírito”, que retorna à condição de privilégio de uma elite, esta também cada vez mais precarizada, porque o fim do valor filosófico e existencial da cultura impõe o “naturalismo“ dos comportamentos e sua informalidade como a medida da vida em comum. Daí as diversas formas de incivilidade, desde o comportamento das pessoas no trânsito, passando pelo fim das “boas maneiras” no tratamento entre as pessoas, até das formas mais graves de negação do Outro, como na criminalidade. Pena que os mais pobres tenham chegado à “universidade”, no momento em que o “ensino superior” não é superior a nada, não passa de um segundo grau mal dado e malfeito.
Mas como a história é devir – ou inquietação permanente – há sempre o inesperado que pode nos dar boas surpresas. Esperemos que o Egito tenha realmente sua “primavera”, como os franceses tiveram duas, a da Comuna de Paris que este ano comemora 140 anos, e o maio de 68 e suas “barricadas do desejo”. Porque os egípcios já nos deram sua dimensão simbólica, protegendo o Museu – patrimônio de toda a humanidade – dos oportunistas e saqueadores. Pois pode ser que as utopias não mudem o mundo, mas são elas que nos põe a caminho.

divulgação: Reflexões de um político

Em crônica ficcional pero no mucho, sondagem sobre os mecanismos que orientam a tomada de decisões, nas atuais democracias representativas
Por André C. F. Sampaio*, colaborador de Outras Palavras
A reunião era séria. Havia muitas pessoas no auditório e o coração do velho homem estava apreensivo como há muito ele não sentia. Seres desprezíveis, na opinião dele, estavam naquele momento dirigindo toda aquela discussão. Todos na sala tinham algo a dizer e quando o faziam traçavam ótimos argumentos e realmente era difícil tomar um lado. Muitos surpreendiam o velho homem, pois seus discursos eram cheios de convicção e de ideias inegavelmente nobres. Pessoas marcadas por ações duvidosas no passado, estavam ali sugerindo bons caminhos para uma saída de todo aquele problema. Onde estavam os vilões? As dúvidas eram genuínas e os caminhos planejados de muitas maneiras levavam a várias boas estratégias. Qual seria a melhor ideia? Essa era a questão.
O velho homem começou a sentir vergonha de ter pensado mal de todas aquelas pessoas. Ele lembrava que muitos que estavam ali eram inimigos declarados, mas agora concordavam entre si e se elogiavam. Eu perdi algum capítulo dessa história? Questões religiosas, políticas e ambientais pareciam não fazer mais diferença, todos pareciam querer acertar e descobrir o melhor caminho. Seria um milagre?
Começou então a fazer uma análise crítica utilizando de toda sua malícia adquirida em muitos anos de política, mas que agora parecia não existir. Quero fazer algo de bom, quero acertar na decisão. Analisou os discursos que já haviam sido feitos e os motivos que estavam levando as contradições com o passado de cada orador. Realmente era possível achar vários motivos para toda aquela “maravilha”. Um ou vários interesses obscuros podiam estar por de trás de todas aquelas palavras. Será que alguém realmente tinha apenas boas intenções e que não levaria vantagem própria nenhuma com suas proposições? A resposta com certeza era única: Não, não havia ninguém. O velho homem chegou a sua velha conclusão:As pessoas sempre pensam em vantagens próprias, mesmo vantagens puramente emocionais. No final das contas as vantagens variavam, mas o tipo de vantagem que cada um levaria era o que poderia classificar o caráter e a qualidade das pessoas e das propostas. Seria isso? Que bobagem é essa que estou pensando?
Todos falavam tão bem e pareciam estar tão certos. Existem várias verdades neste assunto? Qualquer estratégia parece levar a uma boa saída? Era isso que parecia. O velho homem começou a traçar um diagrama no papel que dispunha em cima da mesa, colocava as vantagens das propostas e quantas pessoas seriam gratificadas futuramente, além disso, inseria as prováveis vantagens que o elaborador da proposta levaria. O intuito era achar a proposta que agradaria o maior número de pessoas e que levaria as vantagens mais honradas ao propositor. Essa deveria então ser a proposta a ser seguida. Ele conseguiu chegar a uma proposta que ajudaria muitos e que só daria vantagens emocionais ao seu propositor como: ser elogiado no futuro, receber gratidão, e outras. Isso é possível? Ele tinha uma ótima visão das coisas, mas poderia não estar enxergando algo sobre aquele homem, sobre aquela proposta.
Como é difícil confiar nas pessoas. Eram tão boas todas as propostas que a melhor tinha que ser aquela que partia do homem mais justo e correto. Seria isso?
Praticamente todos os homens que estavam na sala tinham um passado duvidoso, marcados por ações sem lógica ideológica. A ideologia existia em todos, mas sempre podia ser encoberta por futuras vantagens ou um plano de linhas tortas, onde os fins justificam os meios. Os fins justificam os meios? Depende da situação? Como posso julgar esses homens?
Finalmente chegou a vez do velho homem fazer seu discurso. Ele deveria indicar o caminho a ser seguido, tinha esse poder. O coração do pobre homem estava acelerado, desesperado e todos pareciam conseguir ouvir aquelas batidas frenéticas. Ele tinha suas próprias vantagens ideológicas, econômicas e emocionais sobre cada proposta. Se escolhesse a que lhe daria maiores vantagens seria julgado por todos da sala. Mas isso normalmente ninguém se importa, pois todos fazem. Dessa vez ele queria tomar a decisão que fosse correta para a maioria. A maioria sempre tem razão. Será? Na verdade ele sabia que gostava daquele poder e do respeito promovidos pelo seu cargo, mas sabia que nem sempre escolhia os melhores caminhos. Sou realmente competente para fazer isso?
O velho homem tinha muita experiência, mas não sabia de tudo e nem conhecia tão bem todos os problemas que lhe eram apresentados. Na verdade nenhum outro saberia também. Será?
Vários minutos haviam se passado e o velho homem estava de cabeça baixa e simplesmente não dizia nada. Finalmente ele enxergou o que devia fazer. Não vou declarar, nem escolher nada, vou renunciar estas responsabilidades, sou incapaz, não estou apto para isto. Alguém realmente conhecedor dessa problemática virá ao meu lugar.
Ele concluiu que quando todas as propostas parecem corretas, ou quando existem muitas dúvidas, isso indica que se sabe pouco a respeito do assunto. Não existem várias verdades. Só existe uma. O velho homem não sabia realmente como fazer aquela escolha, e provavelmente em várias ocasiões fez o que não deveria, mas dessa vez ele queria o certo. Saiu vaiado do auditório, mas se sentia honrado.
André C. F. Sampaio é músico, engenheiro florestal, doutor em Geografia e um dos animadores da Sociedade Chauá

divulgação: Eduardo Galeano aponta quatro mentiras sobre o ambiente

A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem
Quatro frases que aumentam o nariz do Pinóquio
1- Somos todos culpados pela ruína do planeta.
A saúde do mundo está feito um caco. “Somos todos responsáveis”, clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade.
Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao “sacrifício de todos” nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras – inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio – não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam.
Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, “faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades”. Uma experiência impossível.
Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.
2- É verde aquilo que se pinta de verde.
Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. “Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas”, esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação.
Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: “os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro.”
O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente.
O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete.
A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.
3- Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.
Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas… As empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco-92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno.
No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.
A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil.
Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.
4- A natureza está fora de nós.
Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: “Honrarás a natureza, da qual tu és parte.” Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo.
Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão.
Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer.
Eduardo Hughes Galeano, jornalista e escritor uruguaio. É autor de mais de quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas. Suas obras transcendem gêneros ortodoxos, combinando ficção, jornalismo, análise política e História. Sua obra mais famosa é o livro “Veias Abertas da América Latina”.

divulgação: Desnaturalização da heterossexualidade

"Para executar estratégias políticas que denunciem o quanto a heterossexualidade é compulsória, não podemos apostar só em marcos legais", escreve Leandro Colling, professor da Universidade Federal da Bahia, é presidente da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura e membro do Conselho Nacional LGBT, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 17-05-2011.
Eis o artigo.
O Dia de Combate à Homofobia, 17 de maio, é uma boa data para repensarmos as estratégias que utilizamos para desconstruir os argumentos dos homofóbicos.
As políticas de afirmação identitária, utilizadas para atacar as opressões contra LGBTTTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), negros e mulheres, para citar apenas alguns grupos, surtiram efeito e por causa delas podemos comemorar algumas conquistas. Mas, ao mesmo tempo, essas políticas são limitadas em alguns aspectos.
Além de afirmar as identidades dos segmentos que representamos, também precisamos problematizar as demais identidades. Por exemplo: LGBTTTs podem, se assim desejarem, problematizar a identidade dos heterossexuais, demonstrando o quanto ela também é uma construção, ou melhor, uma imposição sobre todos.
Assim, em vez de pensarmos que as nossas identidades são naturais, no sentido de que nascemos com elas, iremos verificar que nenhuma identidade é natural, que todos resultamos de construções culturais.
Dessa maneira, a "comunidade" LGBTTT passaria a falar não apenas de si e para si, mas interpelaria mais os heterossexuais, que vivem numa zona de conforto em relação às suas identidades sexuais e de gêneros (aliás, bem diversas entre si).
Para boa parte dos heterossexuais, apenas LGBTTTs têm uma sexualidade construída e problemática, e o que eles/as dizem não tem nada a ver com as suas vidas.
É a inversão dessa lógica que falta fazermos para chamar os heterossexuais para o debate, para que eles percebam que não são tão normais quanto dizem ser.
Ou seja: para combater a homofobia, precisamos denunciar o quanto a heterossexualidade não é uma entre as possíveis orientações sexuais que uma pessoa pode ter.
Ela é a única orientação que todos devem ter. E nós não temos possibilidade de escolha, pois a heterossexualidade é compulsória.
Desde o momento da identificação do sexo do feto, ainda na barriga da mãe, todas as normas sexuais e de gêneros passam a operar sobre o futuro bebê. Ao menor sinal de que a criança não segue as normas, os responsáveis por vigiar os padrões que construímos historicamente, em especial a partir do final do século XVIII, agem com violência verbal e/ou física.
A violência homofóbica sofrida por LGBTTTs é a prova de que a heterossexualidade não é algo normal e/ou natural. Se assim o fosse, todos seríamos heterossexuais. Mas, como a vida nos mostra, nem todos seguem as normas.
Para executar estratégias políticas que denunciem o quanto a heterossexualidade é compulsória, e de como ela produziu a heteronormatividade (que incide também sobre LGBTTTs que, mesmo não tendo práticas sexuais heterossexuais, se comportam como e aspiram o modelo de vida heterossexual), não podemos apostar apenas em marcos legais e institucionais.
Precisamos desenvolver, simultaneamente, estratégias que lidam mais diretamente com o campo da cultura, a exemplo de ações nas escolas, na mídia e nas artes.
O projeto Escola sem Homofobia, assim, não correria o risco de apenas interessar a professores/as e alunos/as LGBTTTs. Nesse processo, comunicadores e artistas também poderiam servir como excelentes sensibilizadores para que tenhamos uma sociedade que realmente respeita a diversidade. E a festeja como uma das grandes riquezas da humanidade.