segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cinema Nômade - Príncipes e Princesas


Olhares sobre as práticas de justiça


Mil Platôs e esquizoanálise: micropolítica e o uso dos afetos


Entrevista com Luiz Fuganti - Desejo


Ação Cultural como Produção de Subjetividade


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às guerras, NÃO! 
No rescaldo das ações em Paris, reivindicadas pelo Estado Islâmico e que culminaram com a morte de mais de uma centena de pessoas, alguns anarquistas que vivem na França, integrantes do Alternative Libertaire, apresentaram um texto singular que destoou das reivindicações de movimentos organizados ligados à política. Consideraram abominável a chacina reivindicada pelo EI e explicitaram a dissimulação das “declarações de guerra” professadas pelo atual presidente francês. Os anarquistas mostraram que o sangue derramado pelas ruas da cidade é precisamente um dos efeitos diretos das guerras na Líbia, no Mali, na Síria, conflitos que o governo produz e sustenta há longo tempo. A atitude ferrenha e enérgica dos anarquistas atualizou um notável combate contra a guerra e a sua sintaxe. 
inventar vidas 
O renhido antimilitarismo afirmado pelos anarquistas não se restringiu ao combate às retaliações do governo francês e demais autoridades mundiais. Frente ao “estado de emergência”, os libertários convidaram as pessoas a ocuparem as ruas em vez de deixá-las nas mãos do Estado. Afirmaram, novamente, uma rara coragem, visto que o convite visou, sobretudo, impedir que o Estado, em nome da sua segurança e apoiado por sedentos fascistas, massacre homens e mulheres identificados como suspeitos. Em pleno século XXI, o não às guerras dos anarquistas segue com potente vitalidade. Homens admiráveis afirmam: onde houver um funeral, cabe aos anarquistas inventarem a vida. 
livres da UE, USA, EI... 
Há pouco mais de três anos, nas fronteiras entre a Síria e a Turquia, homens e mulheres anarquistas resistem ao Estado Islâmico e ao governo de Assad, praticam a autogestão, convivem com o que chamam de diversidade curda, reinventam costumes. Livres do EI e dos estímulos da UE e dos USA, expõem que os principais envolvidos na “luta contra o terrorismo” não figuram nas manchetes de grandes jornais e blogs de intelectuais alpinistas. E vejam só como são as coisas: os senhores do G- 20 se reúnem na Turquia, país cujo governo oportunista aliou-se ao EI para dizimar as experiências em Kobane e em povoados ao norte da Síria. Os anarquistas resistem. 
disputas pelo petróleo 
Os atentados terroristas e a guerra ao terror parecem mais o jogo entre o herói e o vilão que se alimentam mutuamente. O combustível para tal parece ser o bom e velho ouro negro, ponto de interesse comum entre ambos os lados. Mas, diferente dos filmes enlatados, heróis e vilões mudam de lado conforme a perspectiva da guerra. Anos antes do famoso september eleven, declarava-se guerra contra o Iraque de olho no petróleo de Kuait. Algumas décadas mais tarde, escorados nos atentados da Al-Qaeda, a coalizão liderada pelos Estados Unidos declarou uma inconsistente “Guerra ao Terror” e aterrorizou o Iraque pela segunda vez, apoiou “insurgências” na Síria e na Líbia e deixou, no lugar dos regimes autoritários, o caos. 
espirais sem fim 
Após o atentando em Paris, o presidente russo vai a público e diz ter provas de que as atividades do EI são financiadas pela venda de petróleo e derivados a dezenas de empresários, muitos deles integrantes de países que compõem o G20. No mesmo pronunciamento, conclama os EUA a juntar forças (armadas) contra o EI. Em uma elipse perigosa, a cada ataque o ocidente se indigna e promete retaliação quase que instantaneamente. Em seguida, brotam do chão outros homens bombas para explodirem o cotidiano de alguma capital que simbolize a potência do ocidente. Depois, outra retaliação violentamente desmedida e imediata que passa como rolo compressor por culturas, estruturas e tantas outras vidas no território do oriente médio que pouco têm a ver com os soldados do EI. E, como uma espiral sem fim, impulsiona-se atentados e retaliações sangrentas em razão exponencial. 
zero de conduta 
Como resposta à chamada “reorganização escolar” imposta pelo governo do estado de São Paulo, jovens secundaristas ocuparam dezenas de escolas paulistas. O governo respondeu como esperado e enviou as chamadas tropas de choque para a porta de algumas unidades de ensino. Durante quase uma semana, os estudantes experimentaram práticas que, para desespero de autoridades, nenhum governo pode conter. “O Estado pode vir quente que a gente está fervendo”, cantaram em frente a uma das escolas. Em outra, homenageada com o nome de um notório canalha celebrado pela História como herói, estamparam: “Fora Fernão Dias bandeirante assassino”. Agora, resta saber se os jovens vão se escolarizar em algum Movimento ou se farão como na sequência de “zero de conduta”, filme do anarquista Jean Vigo, e, alegremente, escaparão rumo a outros espaços. 
ora, horas 
Uma cidade inteira riscada do mapa. O Rio Doce morto. Militantes, ONGs e pesquisadores falam em ecocídio – termo sugerido por Murray Bookchin para descrever o novo totalitarismo capitalista, embora essa procedência anarquista seja omitida. Fala-se em responsabilização, embargo, multa, reparação. Diante da produção de mais um “sujeito vitimado”, a linguagem jurídica é dominante. Não há como reparar ou restaurar o que fez a principal atividade econômica do país, da colônia aos nossos dias. A disputa judicial apenas formaliza o ridículo de pentecostais na cidade de Colatina fazendo uma sessão de “descarrego” para curar o rio ou das vigílias e das preces, ali, aqui e acolá. Trata-se de decidir como queremos viver! Como disse um simples homem do campo: tudo acabou em duas horas de relógio. ação direta Os guerreiros krenak partiram para ação direta: bloquearam a ferrovia que liga os postos de coleta de minério às usinas de pelotagem e ao Porto de Tubarão em Vitória.

domingo, 22 de novembro de 2015

observatório ecopolítica

ano I, n. 0, novembro, 2015.



Depois de realizar uma extensa pesquisa sobre a emergência da ecopolítica do planeta, inauguramos o observatório ecopolítica, na puc-sp, vinculado ao nu-sol, núcleo de pesquisa autogestionário, que publicará análises de seus pesquisadores e de interessados relativas aos fluxos meio ambiente, direitos, segurança e penalização a céu aberto.

O planeta como alvo de governo transterritorial coincide com mudanças cada vez mais significativas na gestão da vida, produzindo suas verdades relativas à nova maneira de pensar e produzir o vivo com vistas a consolidar melhorias para as futuras gerações. Os resultados dos ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio), traçados pela ONU e programados para serem alcançados no período 2000-2015, desdobraram-se em Objetivos de Desenvolvimentos Sustentável (ODS) previstos para serem alcançados até 2030. Os ODM tinham como meta elevar as condições de saúde, educação, introduzir a gestão do meio ambiente, produzir mais seguranças nos Estados considerados em desenvolvimento e naqueles considerados sob condições mínimas precárias. Os novos objetivos, por sua vez, são destinados a todos os Estados, sob a forma de gestões compartilhadas. A racionalidade neoliberal consolidou um gradiente a ser governado pelo capitalismo sustentável como governamentalidade planetária.

Não há liberdade liberal ou neoliberal que não se funde na segurança. Diante das sucessivas crises quanto ao manejo e os usos dos recursos naturais, realizaram-se a partir de muitas contestações significativo número de eventos pretendendo diagnosticar e definir as crises em torno da ameaça da continuidade humana no planeta. Estes embates e a busca pela concórdia trouxeram desdobramentos que compõem o dispositivo meio ambiente. Os grandes encontros realizados desde o Clube de Roma, em 1968, e seus incrementos sequenciais em reuniões mundiais, conectando empresários, Estados e sociedade civil organizada, definiram a sustentabilidade, desde o relatório Nosso futuro comum, em 1987, como programática de produção de riquezas para uma governança global.

Do mesmo modo, a pletora de direitos que se desdobra desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, encontra um modo de subjetivação que se consolida com o anúncio de povos resilientes em um planeta resiliente pela ONU em 2012. Os históricos dispositivos de segurança dos Estados-nação, compostos das práticas diplomático-militar, em escala internacional, e policial, no âmbito interno, viram as missões de paz se voltarem para a reconstrução democrática de Estados e os ataques de coalizões militares, com ou sem a chancela da ONU, desdobraram-se em ocupações sem previsão de término.

Ainda que as tensões entre Estados continuem (e a iminência da guerra permaneça como a condição prévia para a paz entre Estados), as novas formas de intervenção, visando às pacificações internas como condição prévia para a institucionalização da democracia, produziram o dispositivo diplomático-policial. A função de polícia repressiva conta agora com a participação do cidadão na gestão do controle de si e dos outros, proporcionando o compartilhamento de ações que pretendem alcançar efetividades imediatas e que, gradativamente, passa também a governar as denominadas áreas/zonas degradadas socialmente no interior dos Estados.

Não estamos mais diante das vigilâncias sobre os degenerados, os inimigos internos vistos como perigosos e anormais. A cultura do castigo fundante da cultura greco-romana é redimensionada, não mais segundo as relações normalizadoras almejadas pela relação vigilância-punição, própria do governo das disciplinas acopladas aos direitos de soberania modernos, mas agora conecta-se às práticas de monitoramentos sócio-culturais e eletrônicos da sociedade de controle. As instituições austeras se elastificam, assim como as punições, e o degenerado é redimensionado como degradado: o sujeito universal transtornado como ponto de investimento em fluxos que deve normalizar o normal. A psiquiatria e as neurociências, por conseguinte, assumem a condução dos prognósticos normalizadores, situando e orientando a gestão da vida equilibrada possível e a ser governada por todos.

Os efeitos desses diversos dispositivos (meio ambiente, resiliência, diplomático-policial e monitoramento) produzem o novo dimensionamento dos modos de subjetivação governados pelo controle de si e dos outros. Condutas tolerantes para a cultura de paz devem ampliar a chamada qualidade de vida e reduzir vulnerabilidades monitoradas por índices de prognósticos e aferições. Desse modo, espera-se que a participação de cada um na gestão dos problemas sociais seja mais eficaz no interior da máxima que pretende abarcar e conectar o local e o global.

A governança global reveste o indivíduo de sua casa ao Estado e às conexões planetárias até a ONU e dessa retorna, sob a forma modulável, a cada um. A racionalidade neoliberal, ao redimensionar a força de trabalho em capital humano, expandiu as práticas de gestão compartilhada dinamizando a participação e disseminando valores democráticos do âmbito político ao econômico. A sociedade de controle aciona cada vez mais fluxos de participação, monitorando condutas, ampliando seguranças, direitos, zelo pelo meio ambiente e dando ao capitalismo sustentável a nova faceta transcendental empírica pretendida pelo capitalismo como utopia da sociedade democrática, livre e em direção à paz entre Estados. Emerge o ambiente planetário a céu aberto!

A ecopolítica tem por alvo o planeta e o que é vivo para além do que convencionalmente se definia como sendo o dentro e o fora dele, seja na ocupação do espaço sideral em torno da Terra, seja na busca pelos exoplanetas, como redimensionou a física desde a teoria da relatividade, contemplando a noção de universo em expansão. A biopolítica, portanto, é uma de suas facetas, na medida em que a população não é mais pensada e, por conseguinte, governada nos limites territoriais da soberania e em função do controle do melhor governo de cada Estado.
Se a explosão das bombas de Hiroshima e Nagazaki, em 1945, encerrou o evento bélico II Guerra Mundial, ela levou a novos efeitos de segurança transterritoriais e também moveu, nos variados cantos do planeta, a contestação dos usos violentos e pacíficos da energia nuclear, mobilizando componentes que formataram o dispositivo meio ambiente com suas lutas e programas contra a degradação.

Os projetados planeta e cidadão resilientes terão de enfrentar as novas formas do terrorismo transterritorial que atinge no momento a intenção de constituir Estados independentemente da territorialidade das convencionais nações, como o Estado Islâmico. Monitoramentos de superfície, profundidade e siderais dimensionam e procuram controlar o vivo no planeta e suas lutas, guerras e gestão das espécies.

Do corpo individual no capitalismo industrial, que recebeu investimentos em sua força mecânica pelas disciplinas e pela biopolítica enquanto espécie, interessa agora sua inteligência como capital humano, sua perene jovialidade, sua competividade e capacidade inovadora. Os direitos para tal consolidam o empreendedorismo e governam as chamadas formas de empoderamento de minorias, agora como conjuntos dilatados de vulneráveis, voltados para a restauração, proteção, prevenção e precaução relativas ao corpo, do mesmo modo que investimentos de toda sorte também buscam restaurar as cidades, seus monumentos históricos, seus pontos turísticos, enfim, seus espaços a ser embelezados.

A ordem depende de monitoramentos seguros de coisas, gentes, palavras e imagens. Cria-se, enfim, a constatação de que tudo se encontra inacabado e que o esforço de cada um e de todos na governança global seja capaz de consolidar uma cultura de paz em perpétua atualização.

As relações ascensionais e descensionais de poder produzem resistências contínuas em fluxos, que necessitam ser mitigadas pelas novas práticas que governam os modos de subjetivação resiliente.

A disseminação das práticas democráticas em todas as relações, não mais circunscritas às políticas propriamente ditas, tende a destinar ao ostracismo as intenções revolucionárias procedentes dos movimentos advindos do século XIX e que teriam se esgotado com o fim da URSS e com o ajuste neoliberal da ditadura do proletariado na China.

Porém, desde os anos 1990, as revoltas passam a rapidamente aparecer e, com suas existências efêmeras ou não, a configurar novos modos de subjetivação das resistências que vão destemidamente dimensionando a trans-historicidade do cinismo grego, produzindo um novo cuidado de si e novos pronunciamentos parresiásticos. Os saberes insurgentes são indomesticáveis.

Sob e contra o regime da participação incentivada e efetivada de novas construções da vida em transformação, trata-se de se opor destemidamente às ilusões da pacificação política, configurando uma atitude antipolítica. Se o militantismo organizado pacificou o confronto reconduzindo-o aos parâmetros platônico-aristotélicos, a revolta, por sua vez, escancara a recusa não só da filosofia prostrada e cada vez mais professoral, portanto acadêmica, para sinalizar compreensões da emergência dessa vida outra, que mais uma vez reinsere os anarquismos como práticas atualizadoras, impossíveis de serem propositalmente renegadas ou destinadas ao esquecimento como um saber insurrecional singular, mas superado.

Os anarquismos, como antipolítica, desvencilham-se dos julgamentos autoritários e, mais uma vez, dispensam-se de ter um quadro teórico fixo, constante e imutável. As resistências não cessam e as revoltas, aos poucos, indicam os traçados de um modo de subjetivação que recupera e opõe o cuidado de si diante do controle de si e dos outros para delinear e realizar de modo insolente e aguerrido a vida outra.

O informativo quinzenal observatório ecopolítica convida a todos a essas possíveis conversações.



observatório ecopolítica é uma publicação quinzenal do nu-sol aberta a colaboradores. Resulta do Projeto Temático FAPESP – Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle. Produz cartografias do governo do planeta a partir de quatro fluxos: meio ambiente, segurança, direitos e penalização a céu aberto. observa.ecopolitica@pucsp.br

brasil e a lei contra o terrorismo - entrevista com edson passetti


Entrevista publicada pelo Instituto Humanitas UNISINOS (IHU), dia 17 de novembro de 2015.
Por Patricia Fachin e Ricardo Machado

IHU On-Line – Como se deu o processo de formação e aprovação do PL 101/15?

Edson Passetti – A aprovação pelo Senado do PL 101/15 segue aConstituição Federal quanto à regulamentação do terrorismo. De acordo com o “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O PL 101/15disciplina o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais, reformula o conceito de organização terrorista e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Na EMI nº 00125/2015 MJ MF, de 06/06/2015, os ministros José Eduardo Martins Cardozo e Joaquim Vieira Ferreira Levy expõem à presidenta do país o detalhamento sobre a nova compreensão de terrorismo, acompanhado das referidas leis a serem alteradas. A votação resultou em 34 votos pelo sim, 18 pelo não, com zero abstenção, e o voto favorável do presidente do senado. Os partidos que recomendaram o não foram: PSB, PT, PSB, PCdoB, REDE. Os senadores que votaram não ao PL 101/15 foram dos seguintes partidos: PSB, PDT (2 de 4), PT (nem todos), PR (1 de 3) REDE e PCdoB.


IHU On-Line – Que avaliação faz da aprovação do PL 101/15, conhecido como Lei antiterrorismo no Senado? Que fatores e motivações contribuíram para a aprovação da lei até o momento?

Passetti – É preciso deixar claro que ao se falar de liberdade no capitalismo se está dizendo, antes de tudo, segurança para essa liberdade. Portanto, a democracia no capitalismo não é determinante, mas uma variável no governo do Estado. Do mesmo modo, a democracia representativa e pluralista jamais estará isenta de dispositivos de exceção. Dito isso, o terrorismo sempre é definido pelo Estado como uma prática que lhe é exterior e contra seu governo; que visa alterá-lo e, no limite, abolir o Estado. Dessa maneira, tudo o que não for reconhecido pelo Estado e pelas forças que o sustentam como legal, normal ou legítimo fica passível de ser compreendido como prática terrorista. Reconhece-se, porém, como um levante legítimo aquele que visa alterar o exercício do soberano pelo fato de ele exorbitar em suas prerrogativas. É o jogo político das forças envolvidas e reconhecidas no âmbito parlamentar que autoriza qualificar uma contestação como terrorista e outra como levante legítimo.

Os levantes do século XXI
O chamado terrorismo em solo nacional se esgotou no século XX. Um novo terrorismo transterritorial, inaugurado peloAl Qaeda e dimensionado hoje em dia pelo Estado Islâmico, acionou novas relações internacionais relativas ao chamado combate ao terrorismo. Entretanto, o chamado perigo interno está cada vez mais presente a partir do momento em que diversos agrupamentos voluntários que emergiram no interior dos movimentos de protestos planetários se comunicam intensamente por meio de redes eletrônicas apresentando condutas políticas e atitudes antipolíticas transterritoriais. Os Estados-nação, por meio de capturas e revisões nas formas de participação, procuram incorporar as recentes contestações, mas são incapazes de tragar todas elas.

Assim, de um lado, investem no controle monitorado do terrorismo transterritorial que visa ocupar ou criar um novo Estado, agregando territórios em novas fronteiras (EI), e, de outro lado, precisam demarcar, imediatamente, um ponto de contenção jurídico-político para protestos e levantes de teor antipolítico, cujo alvo imediato chama-se black bloc. A nova lei antiterrorismo no Brasil pretende responder a essas novidades sintonizadas como a comunicação informacional.

Repare que essas inovações legais já foram realizadas em outros países sempre em direção a dois pontos: o terrorismo transterritorial identificado com o fundamentalismo islâmico e as ações de rua relacionadas aos anarquistas. Foi assim no Reino Unido em 2000, com “Terrorism Act 2000”, que visava o movimento antiglobalização; nos EUA em 2001, com “Patriot Act”; na Grécia em 2008, visando os koukoloforos; mais recentemente na Espanha, com a Lei Mordaça, uma nova lei antiterrorismo e a Operação Piñata, que mantém mais de 60 anarquistas presos e/ou processados.


IHU On-Line – Quais são os pontos mais polêmicos do texto aprovado no Senado? O que o PL entende por "atos de terrorismo"? 

Passetti – Não se trata de isentar um ou outro ponto ou de justificar alguns deles. A aplicação da lei é de direito do soberano, da mesma forma que ela encontra na normatividade das relações sociais seu ponto justo de aplicação. Há uma sociedade que deseja cada vez mais seguranças, punições, monitoramentos, penalizações e que crê ser assim, porque sempre foi e será a vida normal. O cidadão, majoritariamente, crê tanto no Estado como no pastor, em seus condutores civis, militares, comunitários e religiosos. Por isso, mesmo o art. 2º desta lei situa claramente seus alvos:

1. os/as que podem pôr em perigo parte da humanidade com uso de gases, venenos e conteúdos biológicos, químicos e nucleares (e não esqueçamos que o monopólio de manejo desses produtos é legal e legítimo pelo Estado, e por empresas por ele autorizadas, sob circunstâncias determinadas);

2. as/os manifestantes que atentam contra o patrimônio capitalista travestido de público ou escancaradamente privado (bancos, transportes etc.), ou seja, a segurança da propriedade privada e de seu mercado;

3. os/as que invadirem bancos de dados;

4. as/os que interferirem nas garantias de propriedade por meio de sabotagem ou ocupação temporária, interceptando a circulação de mercadorias ou de pessoas (portanto, interferirem na segurança dos fluxos de circulação capitalista);

5. os/as que atentarem contra a integridade física de pessoas (logo, a violência policial nada mais é do que legítima conduta naturalizada; e qualquer um(a) pode ser guindado(a) à categoria de terrorista em uma manifestação).

Enfim, estão isentos todos os indivíduos e movimentos que agirem em manifestações de forma ordeira no intuito de colaborar para o equacionamento de reivindicações (assim sendo, a lei não atinge os movimentos sociais até que o jogo político assim o desejar). O restante da lei contém a mesma obviedade das leis de segurança em qualquer regime político, além da inclusão de complementos à penalidade quando se provocarem danos ambientais (e aqui estão excluídos todos os efeitos positivados para o desenvolvimento sustentável e as tragédias que levam vidas decorrentes destes benefícios). As penas, como sempre, serão cumpridas em presídios de segurança máxima (mais um ponto para a indústria do controle do crime).


IHU On-Line – Quais são os interesses em aprovar o PL e por que ele é votado em caráter de urgência? Há tal necessidade? 

Passetti – Quem define as necessidades são as forças políticas no ambiente político. Portanto, é a sociedade que o deseja não só por meio de seus representantes. Não é incomum lermos, vermos ou ouvirmos que é necessário dar um basta à baderna. A essa baderna claramente definida, inclusive nas mídias, que não tratam mais o black bloc a não ser como vândalos, agregando essa qualificação a qualquer conduta diferencial à ordem. Assim, as surpreendentes agitações no decorrer de uma mobilização podem vir a caracterizar um movimento intencionalmente ajustado à ordem e portador de uma estratificação a ser investigada para se identificar supostos terroristas. E, seguramente, por tal procedimento, não serão abocanhados os fascistas, os reacionários violentos, os conservadores desvairados.

Para estes sempre haverá uma justificativa fundamentada na reação inesperada de vítima. O que é necessário para o Estado não necessariamente o é para cada cidadão, mas, quando homogeneizados, os cidadãos se sentem seguros, ainda que seja para marchar como trabalhadores pelo regime liberalizante de seu patrão. O bom para a maioria dos cidadãos ditos “de bem” é ter patrão, polícia e condutores moralizantes. Essa é a urgência e a necessidade de Estado sob quaisquer circunstâncias. E na atual, sob a justificativa do momento, a urgência da legislação brasileira sobre terrorismo está vinculada aos argumentos condicionantes dos organismos internacionais devido à realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016.


IHU On-Line – Caso o PL seja aprovado, há riscos de criminalização dos movimentos sociais? Quais são as brechas da lei que possibilitariam esse tipo de criminalização?

Passetti – Note o argumento dos dois ministros no encaminhamento à presidenta: “7. Com isso, a organização terrorista será caracterizada por três elementos: o fundamento da ação, a forma praticada e o fim desejado pelo agente.

Dessa forma, conseguimos afastar qualquer interpretação extensiva que possa enquadrar como ação terrorista condutas que não tenham esse perfil. 8. Uma importante inclusão é a existência de uma causa excludente para as manifestações políticas, sociais ou sindicais, movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades individuais”.

Qualquer movimento colaboracionista com o Estado e os patrões não correrá perigo. Porém, nem sempre o que se prevê acontece no calor da mobilização. Eis o risco para o confortável cidadão, o militante profissional ou o emergente da hora. Com ou sem direitos humanos.


IHU On-Line – Que implicações o PL pode gerar para a democracia e para as liberdades, caso seja sancionado? Que consequências sociais vislumbra caso o PL seja aprovado?

Passetti – A democracia sob a qual vivemos precisa de leis como essa. Mas pode delas prescindir, claro. Trata-se de saber como o jogo de forças será conduzido. Entretanto, lanço mão novamente do informe dos dois ministros: “5. As alterações foram feitas, em regra, na Lei nº 12.850, de 2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas. Isto porque permitirá uma aplicação imediata de instrumentos de investigações previstas ali, como a colaboração premiada, agente infiltrado, ação controlada e acesso a registros, dados cadastrais, documentos e informações”.

Enfim, note bem, trata-se de controle monitorado sobre cada potencial suspeito, delação premiada (tão em uso atualmente para os gestores do capital) sempre estendida em seu próprio benefício, pretendendo com isso arruinar com as chamadas convicções políticas, mas que podem se deparar com o inevitável boicote, mesmo sob violências (ilegais ou ilegítimas), daqueles(as) que realizam sua atitude antipolítica, ou mesmo dos(as) que não se deixam convencer por prêmios aos alcaguetes.

A delação premiada funciona muito bem entre os gestores do capital: é para eles; não antevejo resultados semelhantes de quem nela não crê (algo similar ao que se passou com presos políticos no regime ditatorial civil-militar que honrosamente se negaram a “abrir o bico” e que ocorre, também, todo dia em delegacias). Minha preocupação é saber se o militante profissional dos movimentos saberá lidar de modo pluralista com os que dele se diferenciam de modo tonitruante; se será audaz em se desvencilhar dos fascistas, reacionários e infiltrados, essa parcela do exército de reserva de poder do Estado; e se recusará a delação premiada. Tudo poderá ser alterado se o PL 101/15 desaparecer das intenções da presidenta. Ela sabe, tão bem quanto muitos de nós, que a liberdade depende mais de democracia do que de segurança; que, muitas vezes, a decisão majoritária está equivocada; que não se deve negligenciar minorias (majoritárias ou potentes). E que nada é fixo, constante e imutável. 

quinta-feira, 28 de maio de 2015

hypomnemata 175

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 175, abril de 2015.

Direto na direita...

bandeira de sangue
O Brasil é uma criação neste território invadido e delimitado pelos portugueses, como muitos outros espaços o foram por espanhóis, franceses, holandeses, ingleses, etc., desde 1500. O Brasil não é um indivíduo.
Nestas terras, desde o começo, fez-se uma opção pelo extermínio contumaz de indígenas guerreiros, passando pelas abomináveis violências oriundas do negócio de sequestros de homens e mulheres que viviam na África para aqui servirem como escravos.
Não só o Brasil foi resultado desses negócios. Não precisamos atravessar Oceanos: nas Américas e Caribe, massacres, genocídios e escravidão impregnam todas as bandeiras. O "diferencial" brasileiro foi a manutenção da escravidão até o “último minuto", com toda tortura e repressão alimentadíssimas pelo medo de uma revolta dos escravos à la Haiti (apesar da “ideologia” açucarada de relações entre casa grande e senzala...)...O terror policial era arma desejada e patrocinada pelos proprietários das “peças” negras.
No final do século XIX, após a proclamação da República e durante todo o século seguinte, a violência continuou. Arthur Bernardes ergueu, em 1922, o campo de concentração da Clevelândia do Norte, destinado, sobretudo, a isolar até a morte militantes anarquistas como o negro Domingos Passos.
Seguiu-se a isso, dos anos 1930 até o meio da década seguinte, a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e, após um breve intervalo, o golpe civil-militar de 1964, responsável pelo “desaparecimento” e assassinato de inúmeras existências identificadas como subversivas.
A chegada da democracia negociada não transformou essa História.
O sangue seguiu escorrendo por Carandirus, Febens, Casas, Candelárias, Carajás, Pinheirinhos, Cracolândias, Complexos, Favelas, Vielas, Caatingas e Gerais. Por essas e outras, o alerta dos anarquistas segue ainda mais urgente e vital.

simbologias
A bandeira do Brasil, erguida ou disposta como invólucro daqueles que em março de 2015 foram às ruas se manifestar pelo impeachment da presidente ou pela volta dos militares, franqueia não somente a conivência, mas o desejo de perpetuação deste banho de sangue.
E tudo se passou no teatro democrático, no qual os vândalos são sempre os outros.
Criada em 1889, classificada pelo Estado (ao lado das armas nacionais, do hino nacional e do selo nacional) como “símbolo oficial da República Federativa do Brasil”, o pedaço de pano com a inscrição “ordem e progresso” foi objeto de valorização durante as ditaduras, em especial, após o AI-5.
Durante o governo de Garrastazu Médici, a partir de 1969, qualquer ato que ferisse o “respeito à Bandeira nacional” passou a ser considerado contravenção passível de punição, o que foi flexibilizado durante as comemorações da vitória na Copa do Mundo, no ano seguinte e nos subsequentes ufanismos.
Não foi por acaso ou como mera expressão de “minoria numérica”, segundo antigas lideranças sempre de plantão ou de sua ala renovada, que o apelo ao golpe civil-militar entrou na pauta de imposições dos grupos que saíram às ruas de boa parte das cidades do país vestindo verde-e-amarelo.
Também não foi fortuito que entre os que subiram e tiveram direito à palavra no alto dos carros de som da Avenida Paulista, em São Paulo, estivesse o torturador Carlinhos Metralha, conhecido também como Capa Preta, integrante da corja canalha e macabra do Delegado Fleury à frente do DOPS de São Paulo.
E também não foi acidental o desfile de fascistas como certos grupos neonazistas e skinheads no alegado evento cívico.
O que se viu em março de 2015 não foi uma manifestação, como expuseram variadas mídias, mas sim uma marcha.
Transvestida com roupagem jovial, esportiva e com maquiagem vespertina, reclamava-se o velho ramerrame covarde por mais Estado e mais polícia, em um desfile de mortos-vivos mais próximo a um filme de José Mojica Marins ou ao célebre clipe de Michael Jackson, “Thriller” (sem a dança, é claro!).
Diante do que sempre está putrefato, nas décadas de 1970 e 1980, o jornal anarquista O Inimigo do Rei, para além de resistir à ditadura civil-militar, de posicionar-se a favor da liberação de todos os presos enquanto parte da esquerda negociava a anistia, e de experimentar a liberação das drogas e do sexo com muito humor, afirmava com insistência que a velhice não era uma questão etária, mas sim uma questão de abrir mão da vida.

o sequestro das palavras
Entre os que organizaram a mistura de marcha com rave, algumas características de micareta, torcida organizada da CBF, etc. e tal, um grupo em especial adotou a palavra “revolta”, termo caro à carne de alguns que se lançaram contra o Estado, contra a uniformidade das bandeiras, sejam elas de qualquer tipo.
"A anarquia não pode deixar de ser a negação do conjunto do sistema autoritário, e que em período de luta é a prática da desobediência, da insubmissão, da indisciplina, numa palavra, da revolta", afirmou Sébastien Faure ainda no século XIX.
O sequestro dessa palavra, usada por corajosos homens e mulheres que se lançaram ao fogo das lutas e contra a instituição de qualquer polícia, expõe a tolice de alguns e o oportunismo cabotino de outros.
Assim como grupos partidários à esquerda e à direita dão continuidade ao roubo da palavra libertário, iniciado pelos neoliberais estadunidenses, os cidadãos de bens de consumo se dizem revoltados com a situação do país.
Não há revolta pela ordem, não há revolta organizada, não há revolta pela nação, não há revolta com selfie ao lado da polícia.


qual esquerda, qual direita?
notas sobre igualitarismo e liberdade

Em junho de 2013 especialistas de todas as cores e posições correram para argumentar sobre a instauração de uma crise: crise de representação, crise econômica, crise política, crise das instituições, etc. e tal.
Atordoados, não sabiam bem o que se passava, não tinham a certeza se o tremor era efeito do movimento das placas tectônicas ou de suas acomodações.
Sentiu-se o tremor, e na ânsia de explicá-lo ou reivindicá-lo para sua predileta ideologia, muitos se pouparam da embriaguez da emergência, com cálices de sensatez.
Algo se passou ali, pois o frescor da revolta dançava pelas ruas com bailarinos embriagados, sensuais e iracundos.
Um efeito singular das revoltas e de toda insurgência: despertar temor e escancarar a encenação da prudência dos governantes e diretores de consciência para levá-los a explicitar sua retranca política e analítica.
Quando uma revolta estoura, ordem e contraordem (elites e dirigentes) unem-se em um generalizado pedido de calma, em um desesperado lamento por ordem.
Também entre os que se revoltam há os que logo aderem à prudência, passando de revoltados a revolucionários juramentados, agentes da contraordem na construção de uma idílica nova ordem. Ao verem sua cabeça a prêmio, sucumbem à razão, mesmo que mantenham a íntima convicção de que tudo se move.
Mas há os que tomados pelo espanto ou pelo horror afirmam, sob o risco da morte e com seu corpo em jogo, que o planeta segue girando.
São os iracundos, os indisciplinados, os incontroláveis, os destemperados, os insuportáveis, enfim, uma força ingovernável.
Afirmam a vida, não por convicção, mas porque há coisas vividas que se transformam irreversivelmente. Muda a vida, a forma como a encaramos, a existência de cada um.
Quase dois anos depois de junho de 2013 as ruas de várias cidades do Brasil foram tomadas novamente, desta vez pelas sobras de verde amarelo guardadas da recente Copa das Copas, como alerdou o governo federal.
Não há paralelo.
Junho de 2013 foi um acontecimento.
Março de 2015 foi uma marcha no interior de uma alegada crise.
Expôs os efeitos da restauração: a crise anunciada pelas elites intelectuais bem pagas por seus patrões empresariais e governamentais “reapareceu”, agora, como uma explicitação do lugar da direita em todos os governos. Mas ela quer mais!
Tudo o que se disse contra partidos, sindicatos, parlamentos e instituições de representação foi reparado, primeiro pelas eleições majoritárias no final de 2014, e depois pelas disputas ressentidas em torno de adversários, vencedores e perdedores.
Sabe-se de onde provêm os termos esquerda e direita: do lugar ocupado na assembleia do Estado francês entre jacobinos e girondinos.
Sabe-se, também, que cortar cabeças não é privilégio de um nem de outro, ainda que os procriadores de verdades, de um e de outro lado, acusem-se mutuamente de ordenadores de genocídios.
Cortar cabeças, praticar genocídios, condenar ao ostracismo, eliminar o outro, são todas elas práticas próprias da política em nome da nação, do povo, da raça, dos burgueses, da grande massa abúlica e famélica.
E isso não é o mesmo que dizer: tudo se equivale. É somente constatar a obediência dos que seguem na disputa à mesma racionalidade por medo, esperança ou omissão.
A direita modorrenta, autodeclarada democrática, que tomou as ruas em março de 2015 é sala e antessala do fascismo borbulhando sangue e sedenta de mais sangue nos seus surrados cotidianos a serem assegurados.
Não se trata de disputa partidária, mas de certa forma de fazer e imaginar, certo cálculo diante da vida regrada de cada cidade com o cidadão metamorfoseado em policial de si e dos outros.
Dois lados e uma mesma coisa, a política no espelho: direita e esquerda.
Os anarquistas foram os primeiros a notarem isso, logo após a experiência parlamentar de Proudhon durante a Primavera dos Povos.
Libertários, como Max Stirner, na mesma década de 1840, indicavam essas variações políticas de abstrações, voltadas à construção de verdades que visam governar e suprimir a singularidade de cada um.
Os embates dos séculos XIX e XX acomodaram essa disputa estatal entre socialistas e liberais, os primeiros igualitaristas e os segundos favoráveis à liberdade individual. Os acontecimentos ao longo do século XX confirmaram as inaugurais análises dos libertários.
Entretanto, o conservadorismo hoje nas ruas e em redes sociais não é novo, tampouco deriva como causa ou distorção das jornadas de junho.
Ele está inscrito na história pregressa e recente de um Brasil acostumado às oligarquias, aos dirigentes sindicais amasiados com o Estado, aos intelectuais iluminados, às vanguardas artísticas patrocinadas, aos barões da mídia, aos casamentos de celebridades, aos pastores pentecostais, aos partidos e movimentos sociais messiânicos, aos empreendedores, enfim, às modulações de um pastorado expandido com suas posses, distinções e sobrenomes, e o outro tanto de desesperados pedintes.
Hoje, quando se anuncia uma “nova direita” nacionalista, amante de Miami, defensora da redução da maioridade penal e da pena de morte, escorada no dinheiro do agronegócio e saudosa da ditadura civil-militar, é preciso perguntar-se: qual direita?, qual esquerda?
O temor pelo crescimento desta direita foi o lastro do governo que se diz progressista e de esquerda. Mas a direita sempre esteve aí, inclusive ao lado do mesmo governo. No máximo, ela terá a conduta colonizada de sempre: mostrar-se institucionalizada e justa como já é a extrema direita europeia na companhia do Pegida e similares.
Assim como a esquerda, que partilha da mesma racionalidade de colonizados e se agita para imitar a nova esquerda europeia, ironicamente inspirada na velha esquerda latino-americana; assim como os guerrilheiros europeus se espelharam em táticas e estratégias dos guerrilheiros latino-americanos nos anos 1980. Tudo muito europeu: tudo muitotercer mundo. Tudo velho!
De fato, novo e velho não é uma questão etária.
Há certa forma de fazer e imaginar globalmente, desde fins dos anos 1970, como reação aos rebeldes de 68, que exige inovação, criatividade, jovialidade performática, um pouquinho de contestação (não muito!) e transgressão renovadora da ordem.
O que governa as condutas econômicas também governa a política institucional, e por isso tanta divulgação de velhas novidades.
Prato cheio para os diretores de consciência e para os jovens escolarizados e hiperconectados que se debatem em torno da última novidade de todos os tempos da última semana.
O século XX mostrou que o igualitarismo propalado pela esquerda socialista não passou o nível do despotismo, e a liberdade individual, defendida pela direita liberal, não passa de um culto obstinado à segurança.
Num tempo em que muitos desejam ordem e segurança, esquerda e direita disputam projetos e projeções, brincam de escravos de Jó em torno do centro e reconhecem firma de seus progressos.
Os rebeldes e insurgentes seguem livres, iguais e diferentes. Ousam saber o que defendem e não vacilam sobre quem atacar. Suas presenças desatam os pactos dos adversários complementares e os unificam institucionalmente em torno de uma frágil segurança armada e monitorada.
Os libertários não são uma novidade. São críticos contumazes da esquerda e inimigos declarados da direita, institucionalizada ou não.
Sempre estiveram aí, prontos para o embate, como minoria potente que perturba o sono dos contentes.
Olham para cima não para governar ou elaborar tratados filosóficos. Apreensivos, veem no espaço sideral, além das estrelas vivas, cujas luzes ainda não enxergamos, as galáxias, a escuridão do universo tingida de clareza pela rotação da Terra e a sua ocupação capitalista.

terça-feira, 14 de abril de 2015

flecheira.libertária.380

bella, ciao! Diante do fim de uma existência intensa, fulgurante, cabe não o luto, mas sim uma saudação à vida. Diante da existência da vida como obra de arte da anarquista Judith Malina, cabe-nos retomar seus percursos ético-estéticos e seguir com ela. Judith nasceu em 1926, em Kiel, Alemanha. Nos anos 1930, ao fugir com os pais do governo nacionalsocialista, desembarcou em solo estadunidense. Ainda muito jovem, enquanto seu pai, Max Malina, trabalhou para libertar homens, mulheres e crianças encarcerados em campos de concentração, circulou com a mãe, Rosa, pelas ruas de New York, lendo poesias que expunham as violências orquestradas pelos nazistas. No mesmo ano em que a II Guerra Mundial se encerrou, com menos de vinte anos, matriculou-se na escola de Erwin Piscator, diretor de teatro que também havia se refugiado nos Estados Unidos. No interior da escola, além do teatro descobriu outra paixão e amor com Julian Beck. Afetada por este encontro, pelas leituras do anarquismo de Paul Goodman, no final da década de 1940, inventou com Beck o the living theatre, teatro vivo inaugurado no início dos anos 1950, na própria casa em que dividiam na West End Avenue. Entre o ocaso da II Guerra e a eclosão do conflito no Vietnã, Malina e Beck afirmaram a anarquia articulada com a perspectiva do que chamaram de uma revolução não violenta, montando textos e organizando protestos nas ruas como as “Greves Gerais pela Paz”. Tal posicionamento levou os dois às primeiras prisões, no fim da década de 1950 e início dos anos 1960. Em 1963, depois de uma apresentação de “the brig”, texto de Keneth Brown sobre as violências no interior de uma prisão da marinha estadunidense, Beck e Malina foram sequestrados pelo Estado sob a justificativa de não pagamento de aluguel e dos impostos de renda. Malina, durante o julgamento, além de dispensar advogados e ler seus poemas, berrou “inocentes” a cada vez que o promotor responsável pela acusação utilizou a palavra “culpados”. Ao ser repreendida pelo juiz, declarou: “você pode até cortar a minha língua fora, mas não pode me impedir de dizer que sou inocente. Eu não lhe concedo este privilégio”. Impossibilitada de trabalhar, no final dos anos 1960, Malina viajou com o the living theatre para a Europa. Depois de participar dos acontecimentos de maio de 1968, em Paris, mais precisamente da ocupação do Teatro Odeon, apresentou “paradise now”, uma das montagens mais radicais da segunda metade do século XX. Em seguida, foi expulsa de Avignon e Roma e retornou brevemente aos Estados Unidos. No início dos anos 1970, chegou ao Brasil, em plena ditadura civil-militar, a convite de artistas que solicitaram o apoio do the living theatre na “luta pela liberdade num país cuja situação eles descreviam como sendo desesperadora”. Junto com o bando, Malina decidiu que a melhor maneira de apoiar os artistas era precisamente inventar pelas ruas, em espaços considerados “nãoteatrais”, um novo modo de fazer teatro. Depois das proposições contidas em “o legado de Caim”, realizado em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o coletivo foi impedido novamente de trabalhar, desta vez pelo DOPS do estado de Minas Gerais, que interrompeu o processo de “sonhos de mamãe”, montagem realizada em parceria com filhos de operários e mineradores da região. Acusados de “subversão” e “tráfico de drogas”, os integrantes do the living theatre foram presos, julgados e expulsos do país. Em seus diários da prisão no Brasil, Malina relata a descoberta das bachianas de Villa-Lobos, as canções de amor como as de Roberto Carlos que ouviu no rádio no interior da cela, o prazer em tomar um suco de frutas “superbom”, o amor entre dois resistentes à ditadura civil-militar separado pelas paredes das celas, a morte do amigo Jim Morrison, o embate com os oficiais quando questionada sobre o que pensava da polícia e respondeu: “como pacifista, não posso concordar com nenhuma violência”. Presa no DOPS, também recebeu com imensa alegria a notícia vinda do norte da América de que acabara de se tornar avó. A expulsão pela ditadura civil-militar brasileira propiciou a retomada de “o legado de Caim”, ao longo de toda a década de 1970, com experiências realizadas em lugares distintos, desde minas de minérios de ferro em Pittsburgh até a exposição pelas ruas de New York de “Seven meditations on political sado-masochism”, encenação das torturas e violências observadas nas prisões brasileiras. Entre 1980 e 1990, após a morte de Julian Beck, Malina seguiu adiante, dirigindo inúmeras peças na sede que o the living theatre inventou na Third Street. Depois das montagens de “anarchia” (1995) e “utopia” (1996), viajou à Itália para apresentar performances contra a pena de morte instituída pelo governo do país, tema retomado com força no final da década com “em meu nome não”, na Times Square, em New York, cada vez que algum condenado a morte era executado pelo governo dos Estados Unidos. Por fim, nos últimos anos de vida, Malina continuou a trabalhar sem cessar. Para além de montar “no place to hide” (2013), texto em que expôs a violência da especulação imobiliária a partir do fechamento de mais uma sede do the living theatre, durante as comemorações de seus 88 anos afirmou: “eu gostaria de livrar o planeta da pobreza, do dinheiro, das fronteiras, das prisões, dos policiais e da violência”. Quando questionada se pretendia parar de trabalhar devido aos problemas relacionados à saúde, comentou: “eu gostaria de me apresentar mais umas 600 vezes”. Diante de uma existência como esta, tecida em matéria fina, cabe não o luto, mas o movimento que é próprio da luta, da vida, este teatro vivo, aqui-e-agora. No teatro, ou em qualquer instante, se resiste. Cada um se transforma e se constrói como obra de arte. A existência de Malina pode ser vista na internet, lida em livros e teses, ouvida nos mais diferentes espaços, mas não só deve ser admirada por anarquistas, mas por qualquer humano que desista da servidão voluntária. Ela tinha o estilo da contundência legada por Henry David Thoreau com a desobediência civil, a da existência como guerra permanente proudhoniana, a rebeldia bakunista diante de qualquer autoridade, somadas aos cuidados com educação que apreendeu na coexistência com Paul Goodman. Como a anarquista Emma Goldman tornou-se a mulher mais perigosa da América. Morreu aos 88 anos, deixando em pé dois infinitos potenciais na lembrança da data triste, apesar da inevitabilidade da morte. Uma morte que reitera a continuação da vida libertária. Diante de uma existência fulgurante, viva, um viva! viva Judith Malina! 

terça-feira, 7 de abril de 2015

flecheira.libertária.379

terrorista é o estado 
A última edição da flecheira libertária noticiou que 15 anarquistas que vivem na Espanha foram sequestrados pelo Estado em operação policial intitulada “Piñata”. Uma semana depois, dez deles foram libertados do cárcere, porém, mantidos presos em território espanhol ao terem seus passaportes confiscados. Hoje, 7 de abril, cinco anarquistas permanecem encarcerados sob a acusação de terrorismo, “subversão da ordem pública e perturbação da paz social”, e por suposta associação ao Grupo de Anarquistas Coordenados (GAC). Estes encarceramentos obedecem à lógica da prevenção e da segurança: o Estado segue disseminando violência e terror. 
onde há polícia não existirá paz 
Na última quinta-feira, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, uma criança de 10 anos foi executada pela polícia com um tiro de fuzil na cabeça. Ao corpo do menino Eduardo de Jesus Ferreira somam-se outras 3 mortes pela polícia apenas neste início do mês. Autoridades políticas e policiais atribuem os assassinatos a “uma falha no combate à criminalidade” e a uma “falta de controle” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) locais. Prometeram punir com exoneração os chamados culpados bem como alargar monitoramentos e fiscalizações, e reforçar a polícia local com a reocupação das favelas do Complexo pelo COE (Comando de Operações Especiais). Inaugurada no Alemão com amplo apoio da sociedade civil há pouco mais de dois anos, a chamada polícia pacificadora perseguiu, prendeu, torturou e assassinou sistematicamente. A morte de Eduardo na quinta-feira somente explicitou que onde houver polícia, seja ela qual for, não existirá paz. E tudo recomeçará como sempre. 
a mudança que não muda 
Imediatamente após o assassinato, moradores do Complexo do Alemão protestaram por justiça, contra a violência e contra a presença das UPPs na favela. Utilizando-se de todo o seu aparato repressivo, a polícia respondeu novamente com violência. No sábado, mais manifestações, agora estrategicamente não reprimidas. Enquanto a Coordenadoria da Polícia Pacificadora pretende iniciar um reforço com a atuação de diferentes polícias e comandos no local, os moradores pedem que as UPPs sejam substituídas por Unidades de Políticas Públicas. Seja pela polícia repressiva, ostensiva ou pacificadora, seja pelas chamadas “políticas públicas”, não se abre mão do Estado. E este não abre mão da violência e do extermínio em nome da segurança de alguns. 
marcha, missionário! 
No mês passado a igreja-empresa do bispo-pastor que também é dono de canal de televisão lançou outra novidade: o grupo de jovens “Gladiadores do Altar” organizado no Ceará. Nos vídeos que circulam na internet, é possível ver rapazes fardados, entoando versos evangélicos em tom militar e fazendo saudações com o braço direito erguido em direção ao tal “altar”. Militantes de esquerda e do LGBT temem ações paramilitares, enquanto a igreja afirma que tudo é apenas parte da formação de novos “missionários”. O Ministério Público sustenta que tudo pode, protegido pela liberdade de culto. Em tempos de democracia juramentada e profusão de direitos, os fascismos seguem fervilhando sob as camadas de tolerância. Todos querendo o direito de manifestar o mesmo, de cultuar o próprio e de criminalizar o que se lhe opõe. 
aumentando os raios da conexão 
Enquanto a Google está projetando seus balões que levarão internet para áreas isoladas, o Facebook começou a testar seus drones que usam raios lasers para a transmissão de dados. Os drones possuem 29 metros de envergadura, funcionam por energia solar e pretendem conectar áreas que nunca estiveram online. Segundo o Facebook, apenas 10% da população no planeta vive sem conexão e os drones fornecerão acesso a mais de 5 milhões de pessoas. A estas serão disponibilizados os sites considerados essenciais, como Facebook e Wikipedia. Outros costumes serão mapeados a partir do fornecimento de dados dessas pessoas. Entre o emaranhado de fios, ondas e raios, o avanço da conexão de todos pretende que ninguém sobreviva incógnito. Em breve tudo estará mapeado. Será? 

hypomnemata 174

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 174, março de 2015.
Da maior importância
Cinco anos depois da Constituição de 1988, já aparecia a Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 171, sobre a redução da menoridade penal para 16 anos. Diante dos efeitos da mobilização constitucional da época, os setores conservadores não obtiveram sucesso. Mas como as forças reativas, sempre esperam pela ocasião em que os progressistas estão enfraquecidos, principalmente dentro do senado e da câmara, eles retomam suas investidas. E o fazem desta vez, com o apoio da oposição capitaneada pelas bancadas evangélicas e “da bala” (codinome adequado à Frente Parlamentar de Segurança Pública da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara). Derramam seus velhos, preconceituosos e amedrontadores argumentos revestidos de contextos jurídicos em prol da segurança. Declaram a contestação à PEC como ideológica e se aclamam os justos proclamadores da verdade, agora escorados no princípio de maioria.
Esses agentes interessados em encarceramentos, construções de presídios, dispositivos eletrônicos de controles, e verdadeiros defensores da moral sabem usar e abusar do princípio da maioria do qual depende a democracia representativa e participativa. Eles também expressam uma vontade de maioria de encarcerar jovens com 18, 16, 12, em qualquer idade. Por isso, neste momento, a possível discussão se resume ao argumento de cláusula pétrea ser ou não consistente. O debate parlamentar e nas mídias gira em torno deste ponto como se o discurso criminológico fosse apenas composto de saber jurídico, do mesmo modo que as constantes práticas de judicialização, e coroado de justificativas de como no país X ou Y se define a idade certapara prender. Não escasseiam argumentos jurídicos e penalizadores que oscilam quanto à convenção em 18 anos como idade de responsabilidade penal, segundo épocas mais ou menos conservadoras. Escancaram ser preciso punir mais e melhor.
Os agentes interessados na redução da maioridade penal não se contentam mais com prisões para jovens. Para eles pouco importa que a gestão das prisões é compartilhada entre administração prisional pública ou privatizada e facções criminosas. Isso é a prisão moderna desde o século XIX e como tal ela é objeto dos reformadores sociais que balbuciam e, às vezes gritam, afirmando ser ela a fábrica ou a empresa de delinquentes. Pouco importa, ela deve ser produtiva e, lá dentro, cada um, ao seu modo, deve ser reeducado para o certo, mesmo sabendo-se que aqui fora viverão do incerto e da continuidade dos ilegalismosPouco conseguem as escolas, os equipamentos sociais, as ações pacificadoras das polícias. Elas geram empregos, lucratividades, capturam lideranças para programas sociais compartilhados e produzem empreendedores sociais que desovam seu ramerrame discursivo.
Experimentam-se, em um ou outro lugar, maneiras inovadoras de administrar as infrações, em sua grande maioria seletivamente realizada pelo sistema penal sobre pobres e pretos, ou quase todos pretos como diz uma famosa canção brasileira. No Brasil se aplica o Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com internação provisória e internações apenadas. Entretanto, os conservadores dizem que isso é pouco; que o jovem infrator deve ser punido como um adulto e por isso mesmo, se jovem é o garoto e a garota com mais de 12 anos, os mais teimosos se arvoram em defender a redução da idade penal seguindo esse critério.
Em uma situação como essa, devemos nos perguntar, para além da atual massa obsessiva parlamentar e da maioria crente na punição: não está na hora de se abrir uma discussão sobre como acabar com as prisões para jovens? Os programas transnacionais investem em acabar com a pobreza, melhorar as condições de saúde, habitação, escolarização etcetc, patrocinados pela ONU, e cada governo mostra seus índices de desenvolvimento estáveis ou crescentes. Os perseverantes em segurança só conseguem pensar em armas legalizadas, polícias, exércitos e prisões. Miram o tráfico como alvo principal, mas procuram não acertar na mosca. Acabar com o tráfico traria um prejuízo levaria a mais uma crise econômica. Então se a conversa é moral, os irrelevantes dados estatísticos sobre infrações de jovens só interessam quando é para mostrar que esses jovens encarcerados depois habitarão as prisões? Por mero exercício lógico, isso nada mais é que reconhecer que as prisões para jovens não servem para os jovens infratores.
A massa dos representantes que lá decide é eleita pelos adultos e jovens. De certo modo expressa a miséria ética de nossa sociedade de maioria e de minorias numéricas. A/O jovem sob qualquer regime de maioridade penal não pode ser candidato a representante; é vista (o) como incapaz, só deve obedecer. Então, para que vale a educação? Dizem os apressados: para formar o bom cidadão. Bom, porque deve aprender a abrir mão de sua vontade para um representante, cumprir suas obrigações e interiorizar o medo, cuja imagem mais nítida e cruel está na prisão.
Discutir maioridade penal, com ou sem cláusula pétrea, é enfrentar a diversidade de experimentações possíveis sem encarcerar o jovem. Quem nunca cometeu uma infração?... Mas você responderá: eu nunca cometi um crime hediondo. Sorte sua, de ainda não ter enfrentado uma situação-problema surpreendente.

sábado, 14 de março de 2015

flecheira.libertária.375

mulheres 
Há variadas versões para a “origem” do Dia Internacional da Mulher. Desde o incêndio em indústria têxtil de Nova York, que culminou na morte de centenas de operárias, no início do século XIX, até protestos de mulheres na Rússia no momento da eclosão da I Guerra Mundial. Nos anos 1960, militantes atualizaram a data visando animar o fogo de combates liberadores. Na década seguinte, a ONU formalizou a data como celebração das “conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres”. Antes e depois da origem e da data cívica, mulheres extraordinárias combateram o macho, a polícia, o Estado, e a política reivindicatória de direitos. Há quase um século, Emma Goldman, anarquista fichada pelo governo dos Estados Unidos como a “mulher mais perigosa da américa”, afirmou: “é certo que o movimento pelos direitos da mulher quebrou muitas cadeias, mas também forjou novas. A efetiva emancipação não surgirá das urnas de voto nem dos tribunais”. 
frequentando os direitos 
A publicidade, descolada ou caretona, voltada às mulheres independentes e às mulherzinhas, aposta na solenidade. À imperdível oportunidade de lucro, agora se soma a valorização de uma conduta socialmente responsável. A mulher está incluída no mercado como consumidora, produto, trabalhadora e/ou empreendedora. A mídia celebra as de mulheres de sucesso e expõe corpos e vidas violentados das demais como exemplos dramáticos de histórias tristes. As militantes marchadoras entoam palavras mofadas em seus protestos caquéticos. Cumprem agendas para serem visualizadas como minoria pluralista, obediente e tolerante. As oportunistas condutas machistas continuam a calar, violentar, exterminar e governar. E, de repente, aparecem repaginadas como masculinismo!!! Para coroar, mais uma conduta é criminalizada como crime hediondo. Isso é que dá querer frequentar. 
comida 
Uma rede internacional de parques de diversão inaugurou neste verão uma sede em um shopping da cidade de São Paulo. Criado no México, nos anos 1990, o Kidzania imita uma grande cidade, estimulando crianças de 4 a 14 anos a escolher sua futura profissão e a consumir fielmente determinadas marcas ali espalhadas. Em recente entrevista, o criador do empreendimento (presente em 10 países e com mais de 10 milhões de visitas) declarou: “o parque em formato de cidade é uma potente plataforma para se criar lealdade às marcas nessa sociedade de consumo”. Seguindo a premissa time is money, o Kidzania possibilita aos pais gastarem pelo shopping enquanto seus filhos aprendem, ludicamente, como administrar créditos. Pais e filhos, crentes no capitalismo e na força da grana, desfilam carnudos, rosados e ocos. Despertam a fome dos miseráveis. 
cereja no bolo 
Todos os domingos milhares de pessoas se locomovem madrugada a dentro para visitar seus parentes ou amores sequestrados pelo sistema penitenciário. Em São Paulo, a imensa rede carcerária, que se espalha também pelo interior, suga gente do Brasil inteiro. A grande maioria é composta mulheres, pretos ou quase pretos e pobres. Carregados de sacolas de comida em vasilhames transparentes ou sacos plásticos, procuram estar de acordo com as regras, estabelecidas pela polícia do Estado ou pelo PCC e similares. Desejam evitar maiores incômodos, constrangimentos e penalidades. Prontos para entrar, passam pela humilhante revista íntima, proibida pela legislação. Dizem que as visitas são necessárias para o processo de ressocialização. Com ou sem legislação a família é parte constitutiva da prisão desde o século XIX.

quinta-feira, 5 de março de 2015

hypomnemata 173

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 173, fevereiro de 2015.

Água
            Os humanos, a flora e a fauna, assim como o planeta Terra são compostos preponderantemente de água e dela dependem.
O planeta tem água potável, não potável a ser transformada por engenharias de refinamento (a custo alto, é claro), e poluída pela industrialização moderna (a custo capitalista baixo e social alto).
         Estudos contemporâneos voltados para o desenvolvimento sustentável denunciam o mau uso das águas. Ao mesmo tempo, deslocam para os consumidores a tarefa e a responsabilidade de economizar e moldar suas condutas para o bom uso da água (que resta).
         Indicam que deverá haver esforços a serem dispendidos pelos governos, indústrias e agronegócios para o aproveitamento das águas, suas nascentes, de águas poluídas e mares.
         Envolta no emaranhado das chamadas catástrofes climáticas, a questão da água em breve se transformará em um lucro a mais para o regime da propriedade. Quem tiver renda para obtê-la e financiar novos aquedutos para captar água de rios, chuvas e talvez marinha serão agregados aos proprietários.
         O bom uso recomendável da água pelas práticas da sustentabilidade transfere ao cidadão e à sua prole o dever de compartilhar a boa gestão da água enquanto governos, financistas e industriais bebem suas águas medicinais e minerais de grife. E vão poluindo o quanto podem; afinal, desenvolvimento é preciso.
         Trata-se do regime do esforço de muitos para manter a produção de alimentos, petróleo, indústria, da fome e da sede cada vez mais melhorada na medida do possível sustentável.
         Sustentável a quem? Para quem? A resposta é óbvia: uns lucram e fazem da crise um drama para anunciarem um iminente futuro trágico. A cada pobre, miserável ou obediente cidadão que cumpre as tarefas impostas na redução de seu consumo resta ficar à disposição das justas penalizações por descumprirem as leis.
         Em breve, entre usos e reutilizações de águas podres restarão aos privilegiados os majestosos oásis como os dos inovadores emirados.
         Enquanto isso, militares e diplomatas pensam em como defender (e quem sabe tomar) o ouro azul do futuro.
Lugar comum insustentável.

purificando a água
Durante a crise da água, como vem sendo afamada, expressões do grotesco nos avizinham. A última destas expressões trata sobre o uso das “águas” da Represa Billings, em São Paulo.
O grotesco revela o disforme e o horrível, mas também o cômico e o bufo, como traços modernos da existência humana. Trabalha com as excrecências não com nojo, mas como aquilo que também nos revela mundanos, ou baixos humanos.
Assim, um poeta francês, perspicaz ao falar do mal, mesmo nas flores, em um de seus poemas cita os detritos hostis como um confuso material vomitado por Paris. De outra parte, um pouco mais otimista, outro escritor francês, ao falar dos miseráveis no século XIX, acredita que a sinceridade da imundície é capaz de agradar e repousar a alma.
De um lado ou de outro, uma tragicomédia está para ser traçada com a possibilidade de uso do vômito expelido por São Paulo, através do Rio Pinheiros, cuja descarga acontece na Billings.
Independentemente da capacidade e custos de purificação deste esgoto por meio de tratamentos químicos e físicos, não se pode ignorar o fato da cidade nos devolver aquilo que expelimos por um orifício e que pode nos retornar por outro, exatamente neste sentido inverso.
O governador mandou avisar que a água estará própria para o consumo humano, mas os especialistas ainda debatem e se contradizem sobre a viabilidade de tal empreitada.
Não se sabe ainda ao certo o grau de purificação que o esgoto da Billings pode alcançar para se tornar potável. Mas não se duvida da possibilidade dos administradores públicos venderem barro por água, como já vem sendo notado em milhões de torneiras, em especial, nas periferias da cidade.
Nestas regiões que vivem no constante rodízio, a água quando vem é podre. A maioria de seus habitantes suportam a situação como fatalidade.
Se assim for, provavelmente nossa bílis tratará de identificar as impurezas da Billings e, por função que lhe é característica, retornar em vômito, aquilo que a cidade já havia vomitado.
Este é o ruminar das aglomerações urbanas.

o estado da água é o roubo pelo Estado
Cantareira pode ser tanto o “osso articulado ao úmero e ao esterno; clavícula” como um “poial para cântaros na cozinha”.
Segundo relatos dispersos, a última definição está relacionada com a terra próxima à cidade de São Paulo. Nos séculos XVII e XVIII, a região foi percorrida por tropeiros que abasteciam os cântaros de água para seguirem adiante rumo a Minas Gerais e Goiás.
Contudo, foi a partir de meados do século XIX, mais precisamente em 1863, que a mata se tornou alvo de interesse, efeito do laudo de engenheiros ingleses, encomendado pelo governo da Província, que indicou o chamado Ribeirão da Pedra Branca como o ideal para a captação de água para o abastecimento de São Paulo.
Uma década depois foi criada a “Companhia Cantareira e Esgotos” (1877) e nos últimos anos do século, sob a argumentação de ampliar o abastecimento e proteger as nascentes, o Estado desapropriou parte da área para a criação da “reserva florestal da Cantareira”.
Se, no século XIX, parte da denominada Serra da Cantareira tornou-se propriedade do Estado, no fim dos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, este território foi ampliado com a construção de diversas represas na bacia do Rio Piracicaba, formando o chamado “Sistema Cantareira”.
Em 1968, concomitantemente à criação da Operação Bandeirante (OBAN), que intensificou a perseguição, prisão, tortura e assassinato sistemático conduzido pelo Estado contra homens e mulheres identificados como subversivos, o governador Roberto de Abreu Sodré criou a COMASP (Companhia Metropolitana de Águas de São Paulo) e o chamado “Plano de Desenvolvimento Global dos Recursos Hídricos das Bacias do Alto Tietê e Cubatão”.
Cinco anos depois, por meio da Lei Estadual n.119, assinada por Laudo Natel, a fusão da COMASP com outras sete empresas resultou na criação da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).
Como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, o Sistema Cantareira fez parte da política levada a cabo pelo governo de Garrastazu Médici, garantindo o banho de parte da população de São Paulo foi garantido à custa do sangue de inúmeros resistentes à ditadura e da morte de inúmeros rios entregues à poluição.
Diante da chamada “crise hídrica”, o que ninguém comentou foi precisamente que a “crise” é a própria história da água transformada em propriedade, desde o século XIX, passando pela ditadura civil-militar, criação do Sistema Cantareira e da concessão à SABESP (renovada, em 2004, durante a democracia) dos chamados serviços públicos de saneamento básico. Em 2013, seu lucro líquido foi de 1,92 bilhões de reais.
Se, no século XIX, a água que corria pelos rios e matas se tornou propriedade do Estado, a partir do século XXI, ela também foi adquirida pela indústria, empresas privadas de saneamento e investidores em agronegócios.
Como expôs o Nu-Sol na flecheira libertária: “o que o governo não se ocupou em divulgar, até agora, é que grande parte do consumo de água (92% em países em desenvolvimento e 90% em países desenvolvidos) é de setores da indústria ou agronegócio (...). Se o racionamento for necessário, você terá que poupar de qualquer maneira. Se você se acostumar a poupar desde já – em nome do bem comum – a chance de revolta numa situação mais crítica, também são quase nulas. Essa é a matemática do (re)banho” (http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira358.pdf).
Entre 2014 e 2015, as campanhas criadas pelo Estado são menos para a garantia da água do que para perpetuar o roubo do curso de certos rios e responsabilizar os chamados consumidores pela possibilidade de falta d’água.
Deste modo, pretende-se estimular cada cidadão a se tornar um chamado “guardião das águas”, apto a monitorar e denunciar o vizinho quanto ao desperdício de água.
Certos anarquistas, como os editores do periódico A vida, em 1914, já alertavam que o roubo de riquezas como as águas, os rios, os mares, a terra, só podia se efetuar pela submissão de quem entregava a própria sobrevivência para se tornar defensor daquele mesmo responsável por sua miséria: o Estado.
O que é produzir?
— É criar uma riqueza.
O que é riqueza?
—É tudo que pode ser útil ao homem.
Então o sol é uma riqueza.
— Sim, como o ar, a água, os peixes, etc.
Mas o sol não é produzido pelo homem.
— Não. Por isso se chama uma riqueza gratuita.
Há outras riquezas gratuitas?
— O ar, a chuva, os rios, os mares.
A terra será uma riqueza gratuita?
— Deveria sê-lo, porque é a matéria natural da produção das riquezas minerais e orgânicas. Mas não é.
Porque não é?
— Porque é possuída por alguns homens em prejuízo da maioria dos homens.
Quem mantém essa propriedade particular?
— O governo, isto é, alguns homens que pretendem dirigir os outros homens.
Qual o meio de que lançam mão para tal fim?
— A lei, e para garantir a lei, o soldado.”

Encarar a chamada crise, portanto, é desvelar que o estado das águas é efeito direto de seu roubo pelo Estado. Não há saídas senão a invenção de outros modos de lidar com a água. Alguns anarquistas experimentam isso, são suas outras histórias até o presente.