Com métodos e éticas muito diferentes, os filmes “Pacific” e “Um Lugar ao Sol” retratam criticamente as classes altas brasileiras.
No recente encontro nacional de pesquisadores de cinema, o SOCINE, os polêmicos filmes brasileiros Um Lugar ao Sol e Pacific foram intensamente debatidos e comparados. O contexto de ambos é semelhante: são duas produções pernambucanas de 2009, dois documentários que decidem analisar as classes mais altas do Brasil por símbolos de consumo – o fato de se morar na cobertura de um prédio para o primeiro, a viagem num cruzeiro luxuoso para o segundo.
Mas as coincidências param por aí. Embora o objeto seja semelhante em termos sociais, a metodologia e a maneira de abordá-lo é radicalmente diferente, ou mesmo oposta – razão da discórdia expressa durante o congresso da SOCINE mencionado acima. Um Lugar ao Sol é um filme feito com uma ideia preconcebida, e vai buscá-la nas imagens, nos testemunhos e principalmente na montagem. Já Pacific é um filme de montagem, um filme que se apropria de imagens prontas e não concebidas para serem vistas no cinema e transforma-as numa obra coerente.
Os fins justificam os meios
Explicando melhor: o diretor Gabriel Mascaro decidiu convidar 125 pessoas muito ricas e proprietárias de coberturas a falar sobre este “modo de vida”. Apenas 9 delas aceitaram. O documentário anuncia uma curiosa lista em que essas pessoas estariam presentes, sem dar mais detalhes sobre onde ela se encontra ou como foi elaborada. Também não se diz nada a respeito da maneira como estes indivíduos foram abordados – de que maneira se convence uma pessoa riquíssima a falar de sua riqueza num documentário?
Dessas questões essenciais de ética, o filme não fornece detalhes. O que lhe interessa é o que essas pessoas têm a dizer. Neste sentido, o documentário se mostra riquíssimo, revelando uma visão bastante particular que estes moradores possuem das classes baixas, da noção de propriedade e de mérito. As frases de efeito se acumulam às dezenas, da mulher que acha os tiros da favela lindos, porque se parecem com fogos de artifício, passando pelo empresário que diz que merece a riqueza por ser um líder nato, ao filho mimado que diz que escreve “cobertura” em seu endereço para ser mais respeitado pelos amigos.
Entram em choque direto as noções de interior e exterior, de mérito e democracia, de liberdade e segurança. Os entrevistados se dizem seguros e livres dentro de seus diversos metros quadrados repletos de câmeras de segurança, ou então se sentem superiores e dominadores em relação aos andares de baixo, ou ainda dizem que sua riqueza é o fruto de um esforço que está ao alcance de qualquer um.
Mascaro conduziu todas essas pessoas não apenas a apresentarem suas vidas, mas a justificá-las, a explicar de onde vem a riqueza e porque as pessoas ao redor não possuem as mesmas oportunidades. Face a estas questões tão explícitas quanto complexas, todos fogem da “culpa burguesa” que o diretor parece querer atribuir a cada um deles. Defendem que o poder material é um presente divino, ou a ordem natural das coisas, ou ainda que ela não impede de praticar a caridade, “compensando” a desigualdade de oportunidades.
O grande problema de todas as frases exemplares extraídas desses entrevistados alienados e reacionários é justamente a maneira como se obteve o conteúdo procurado. Inicialmente, o documentário não admite que estas pessoas acreditam estar falando para um vídeo destinado aos países estrangeiros. Certamente suas reações teriam sido outras se conhecessem o uso real das imagens. Em seguida, Mascaro mantém o som da câmera ligada mesmo quando a entrevistada lhe pede para cortar, porque sente que “algo está sendo conduzido nisto tudo”.
Driblando os princípios da ética do documentário, o diretor parte do princípio que o fim justifica os meios – tudo vale para extrair frases tão absurdas daquelas pessoas cujas vidas já se considerava, desde o começo, absurdas. Mesmo um documentarista controverso como Michael Moore, que está muito longe de ser um exemplo de ética na imagem, deixa claro aos homens políticos republicanos que sua posição é contrária a que estes homens defendem.
O realizador usa metáforas, filma prédios de cima para baixo, de baixo para cima e ilustra a luta de classes em sua crítica mordaz a este modo de vida. Ele mantém um diálogo claro com o espectador, mas não partilha sua posição com os entrevistados. A ironia, o sarcasmo e a quase humilhação são desculpadas pelo realizador, que defende-se afirmando que uma das entrevistadas gostou muito do filme final, ou seja, ela não se sentiu ofendida. Esta era a mesma desculpa dada por Fernando Meirelles, por exemplo, quando dizia que Saramago havia gostado de sua adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira.
Ora, tanto Meirelles quanto Mascaro sabem muito bem que os filmes não foram feitos para seus entrevistados ou autores do livro de origem. Um Lugar ao Sol foi feito para o público, apesar dos entrevistados, que são meros alvos fáceis de quem se retira frases suculentas. A ingenuidade de um dos entrevistados não isenta o diretor de responsabilidade – pelo contrário, deixa ainda mais claro que estas pessoas não estavam conscientes do discurso que seria articulado a partir de suas imagens.
Os meios são os fins
Em Pacific, o diretor Marcelo Pedroso acompanhou algumas viagens do cruzeiro homônimo que vai de Pernambuco a Fernando de Noronha. Percebendo quais pessoas gravavam imagens da viagem, ele convidou-as a ceder seus materiais para um documentário. Não se dá mais informações sobre a abordagem ou sobre a reação dos viajantes, mas esta metodologia é apresentada desde o início, como ponto de partida indispensável à compreensão do projeto.
O que se segue, portanto, são imagens amadoras, de baixa qualidade, instáveis e sempre deslumbradas com os arredores. Acima de tudo, são imagens que portam um discurso involuntário sobre o consumo, já que estes momentos íntimos (pessoas na cama, dançando, dormindo, se maquiando) não tinham o intuito de serem partilhados. A montagem pretende dar forma ao conjunto, em ordem cronológica, seguindo a chegada ao navio, a descoberta das regalias, das festas, a noção de espaço, de privilégio e de mérito. Seria interessante saber qual era a priori o destinatário destas imagens – se os viajantes pretendiam vê-las sozinhos ou mostrá-las a amigos e família, e em qual contexto.
De qualquer modo, instaura-se com Pacific a rara noção de autor cinematográfico como aquele que organiza o discurso, mas não necessariamente capta as imagens. O autor aqui é o montador, o diretor, e não as pessoas que gravaram seus passeios. As imagens, para elas, servia como prova de pertencimento, como o ça a été do qual falava Barthes, um documento de que essas pessoas de fato estiveram onde estiveram e viram o que viram. A fascinação precisa ser registrada, partilhada, inclusive como sinal de status. É preciso que colegas, familiares e outros vejam essas imagens e compreendam de fato todo o luxo pelo qual os viajantes pagaram. “Corre, filma o golfinho!”, diz um deles. A imagem é realmente vista como sinal de distinção.
Face a este material já existente, o diretor decidiu não acrescentar nenhuma narrativa ou depoimento. A montagem fala por si mesma, ela retrata muito bem o kitsch, o excesso e principalmente o imperativo de diversão que Adorno citava como inerente a qualquer sociedade do hedonismo. Além de mostrar o que viveram, estas pessoas precisam (se) convencer de que se divertiram, de que o dinheiro foi bem gasto e transformado num prazer proporcional ao preço estipulado pelo cruzeiro. Eles criam uma imagem de si mesmos alegres, sorridentes, algo que se satura ao longo de 80 minutos de documentário; mesmo que esta saturação seja um elemento indispensável ao próprio discurso crítico.
O que estas pessoas acharam do filme final? Não se sabe, talvez seja estranho para elas verem suas caras e seus beijos espontâneos projetados para dezenas de milhares de pessoas. Talvez a imagem apenas reconforte o instinto narcisista. De qualquer modo, o kitsch, os excessos e a construção da imagem da riqueza pode tanto ser interpretada desta maneira, tanto ser vista como uma colagem simples de vídeos de viagem. A ambiguidade do discurso joga a favor do filme, que deixa ao espectador construir o sentido deste projeto.
Este é o inverso de Um Lugar ao Sol, no qual não se deixava muita dúvida sobre o olhar cínico que o diretor portava sobre suas imagens. Mascaro obtém certamente frases e momentos muito mais potentes, mais emblemáticos e representativos, mas paga um preço alto por isso, tornando seu projeto mais do que questionável. Já Pedroso, obviamente, também intervém em seu material, mas pretende colocar em paralelo o olhar dos indivíduos com o seu próprio, aumentando o leque de interpretações deixadas à disposição do espectador.
Um Lugar ao Sol (2009)Filme brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro.
Pacific (2009)Filme brasileiro dirigido por Marcelo Pedroso.
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