domingo, 28 de setembro de 2014

Doutorado Informal, criar sem depender da Academia

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Como desenvolver um projeto de aprendizado autônomo e consistente, estabelecendo redes de diálogo e colaboração com quem acredita em conhecimento além dos certificados
Por Alex Bretas Vasconcelos | Imagem: Kiddaikiddee
Kathryn começou a ter coceira nas ideias. Mais especificamente, ela alimentava uma curiosidade cada dia maior em relação a carros esportivos: na verdade, ela queria comprar um Fiero antigo e restaurá-lo das rodas ao teto, um trabalho que pelas contas de Kathryn demoraria uns quatro anos. Argumentos pensados, convenceu os pais a deixarem-na comprar o carro com um dinheiro que ela mesma havia economizado.
Ao longo dos trabalhos de restauração, Kathryn sentiu-se inspirada pelo seu pai, que sempre a acompanhava, e por mensagens que trocava num fórum que reunia entusiastas do Fiero na internet. Dia após dia, ela construía, sujava as mãos, e depois as limpava para ler coisas sobre funilaria, pintura, sistemas elétricos e mecânicos. Como não poderia deixar de ser, conciliava a reforma do automóvel com várias outras atividades, como frequentar a escola, jogar bola e trabalhar como babá.
Depois de algum tempo, os amigos que Kathryn fez no fórum deixaram de somente postar elogios admirados e mensagens de motivação e passaram a perguntá-la seriamente sobre assuntos relacionados à restauração do Fiero. Ela começou a ser reconhecida pelo que aprendia, e isso devido a um projeto autônomo que partiu de um desejo corajoso.
Assim como Kathryn, que ousou colocar no mundo a sua curiosidade mais genuína, eu também o fiz. E estou arriscando chamar isso de doutorado informal. Toda essa história começou com o André Gravatá, que passou a utilizar o termo para nomear o projeto de aprendizagem autônomo que criara para si. O doutorado, aquele nível que certifica as pessoas que já podem inovar no mundo acadêmico, quando informal, aponta numa outra direção: todos já carregam consigo a sabedoria e a criatividade necessárias para inovar, e podem fazer isso sem depender da universidade.
Simples, só não é fácil. Yaacov Hetch – educador israelense e estudioso da educação democrática – diz que muita gente acha que a vida das crianças que estudam nas escolas democráticas não requer muito esforço. Elas não têm que se submeter a aulas e disciplinas, mas  precisam sustentar-se num caminho autônomo de aprendizagem, escolhendo o que e como aprender, em interação com o mundo. Yaacov afirma exatamente o oposto do que tantas pessoas acreditam: buscar uma área de interesse, agir e refletir de forma auto coordenada demanda uma enorme reserva de força interior. E é exatamente assim com o doutorando informal: para seguir na espiral de aprendizagem que mais lhe encanta, é preciso empreender-se continuamente.
Olhando para o meu processo, a partir do momento em que tomei a decisão de seguir pelo doutorado informal, mundos se abriram. Criei o Educação Fora da Caixa, um projeto de investigação cujo objetivo é irradiar aprendizagens a respeito de experiências, histórias e autores relacionados à educação de adultos. Duas palavras têm sido guias nessa jornada: curiosidade e autonomia. Assim, a opção de conduzir a pesquisa como um doutorado informal ficou bastante coerente. Compreender um pouco mais esse formato é uma das coisas que quero fazer no livro que será a principal entrega do projeto. À medida que interajo com pessoas que se interessam pela proposta, o doutorado informal vai ganhando alguns contornos.
Até o momento, entendo-o de dois jeitos. O primeiro é o doutorado informal como prática ou abordagem, e o segundo é o seu valor como metáfora. O lado prático tem a ver com como as pessoas que têm começado seus doutorados informais estão fazendo isso. Já estou começando a mapear essas práticas, e muitas possibilidades interessantes têm surgido – mentorias, grupos de diálogo, comunidades de prática, jornadas de aprendizagem, viagens, canais e redes de compartilhamento na internet, imersões, enfim, meios para materializar a intenção de aprender (e vivenciar) algo.As metodologias comumente utilizadas no meio acadêmico também podem servir ao doutorado informal, a questão é não se restringir a elas. Não colocar o método científico nem os resultados da ciência acima de qualquer outro domínio do conhecimento humano é justamente no que Paul Feyerabend, filósofo austríaco, acreditava. O meu entendimento é que o  doutorado informal segue nesse mesmo sentido: os caminhos são múltiplos, assim como as verdades.
O doutorado informal também pode ser visto como uma metáfora. Doutor, no Brasil, até bem pouco tempo eram os engenheiros, médicos e advogados. Em muitos lugares ainda se diz e se acredita nisso, quem “pode” é tratado como doutor. Tião Rocha, educador mineiro, conta que no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, empoderamento virou “empodimento”. “Ah, então quer dizer que nóis pode?” O doutorado informal surge também para promover empodimentos de aprendizagem: todos podem fazer um doutorado, mas não precisa ser aquele, da universidade, pode ser um que aproveite da sua curiosidade mais viva e emerja da sua realidade, e então, subitamente, aquilo vai fazer sentido pra você. Aqui, vale destacar que o doutorado informal não pretende imitar (nem rivalizar com) o doutorado acadêmico; antes, trata-se de um outro universo que sabe conviver com o mundo das instituições.
Neste novo território que se apresenta, cada um escolhe como vai trilhar seu caminho e como vai entregar os frutos do seu trabalho ao mundo. Pode ser livro, dança, tecnologia, política pública, exposição, metodologia e até mesmo tese.
Mas, quem vai atestar que o resultado obtido pelo meu doutorado informal é bom, ou mesmo válido? Quem vai poder me certificar como especialista no assunto que escolhi?
Augusto de Franco diz que a árvore vai sendo reconhecida pelos seus frutos, e não por um certificado emitido pela corporação dos botânicos. Cada vez mais, o que está em jogo numa contratação, por exemplo, não são os diplomas que uma pessoa possui, e sim a qualidade de seus frutos. Se eu provo e gosto, a árvore é boa e seus frutos são válidos.
Não questiono as razões que levaram ao surgimento das instituições que certificam o ensinamento, mas o que temos vivido hoje aponta para um resgate da nossa liberdade e responsabilidade para valorar produções e pessoas por nós mesmos.
O doutorado informal tem sido cocriado a diversas mãos e a ideia é que continue sendo assim. No dia 4 de agosto, realizamos o primeiro encontro em São Paulo, e a intenção é fazermos mais conversas. Tenho trabalhado no formato dos Círculos de Doutorandos Informais (CDIs), espaços de colaboração que promovem trocas e apoio mútuo para pessoas que já começaram um doutorado informal ou têm uma ideia, questão ou desejo que gostariam de destrinchar de forma autônoma. Também criamos um grupo aberto no Facebook, disponível neste link.
Enquanto nós desenvolvemos, por meio do par reflexão-ação, a ideia do doutorado informal, pessoas como Kathryn já captaram a essência desse caminho mais livre de aprendizagem. Recentemente, ela conseguiu seu primeiro emprego formal e começou a fazer faculdade, mas continua trabalhando firme no seu Fiero. Alguém duvida que ela vai conseguir chegar lá? Eu acredito que ela já chegou. Que tal aprendermos com ela a coçar nossas ideias com vontade, como dizia Rubem Alves?
Para entrar em contato, meu e-mail é alexbretas11@gmail.com . Se você tiver qualquer percepção ou comentário sobre o texto e o doutorado informal, por favor, compartilhe comigo!

De Menor: o avesso da justiça

Preciso e minimalista, longa exibe pulso firme da diretora ao expor falência da justiça, referida apenas à letra fria da lei
Por Jean-Claude Bernardet, em seu blog 
Vi na televisão uma entrevista com a juíza que assinou o alvará de soltura de Cadu, assassino confesso do cartunista Glauco e seu filho. Em liberdade, ele teria voltado a matar. A juíza disse que agiu de conformidade com a lei baseando-se em dois laudos que justificavam sua decisão. Tive a impressão que a juíza não tinha contato com a realidade mas só com a papelada.
É o que o filme de Caru Alves expressa com precisão. A narrativa trabalha duas séries: de um lado audiências em um juizado de menores em que são acusados adolescentes pobres. Eles são defendidos por uma advogada que assume a defensoria pública. A outra série é composta pelas relações dessa mesma advogada com um rapaz que acabamos descobrindo ser seu irmão. O contraponto entre as audiências (que lembram cenas de Juízo de Maria Augusta Ramos) e a intimidade dos irmãos salienta que a justiça não tem acesso às pessoas e se pauta pelo texto da lei e pelo que está escrito nos autos.
O escândalo irrompe quando a “delinquência”, “compreensível” e “normal” quando se manifesta em meios pobres e famílias estouradas, surge na classe média onde não faltam comida nem teto.
A narrativa é contida. Ela reduz personagens e temática ao essencial. Nenhuma palavra a mais do que o estritamente necessário. Esse minimalismo é harmonioso: construção da narrativa, diálogos, interpretação dos atores.
O minimalismo e a narrativa despojada não são do agrado do público maior. Fui a uma sessão no fim da tarde de domingo, éramos uns quinze.
De Menor marca a estreia de uma diretora de pulso firme.

Do direito a tornar-se adulto com dignidade

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Ideologia dominante convida: após a juventude, aceitemos o capitalismo como inevitável. Para resistir, é preciso compreender que o possível não se resume ao real
Por Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Adrien Dewisme, Vanité 2/3
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós”
Natália Correia
Há um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano em que ele confessa a humilhação que sofre no barbeiro por lhe cobrarem apenas meio corte. Não acreditando no ditado de que é dos carecas que elas gostam mais, Galeano deixa cair uma frase que lhe alivia um certo sentimento de inferiorização diária: “Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça e não fora”, e logo acrescenta convictamente: “Consolo-me comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma das minhas ideias, o que é uma alegria quando penso em todos esses arrependidos que andam por aí.”
Há uma raça de pessoas que normalmente cita, como atestado de bom comportamento, a famosa frase de recorte autobiográfico atribuída ao ex-chanceler alemão Willy Brandt de que “quem aos vinte anos não é comunista não tem coração e quem assim permanece aos quarenta não tem inteligência”.
No fundo cresceríamos com a idade. O processo de um tipo se tornar adulto passaria por uma juventude em que começamos por não aceitar o mundo tal qual existe com todas as suas gritantes injustiças, e sobretudo acharíamos que temos forças para tudo mudar. A esse estado suceder-se-ia o choque da realidade, o bom senso e o crédito à habitação e as prestações dos eletrodomésticos, de tal maneira que aos 40 saberíamos que temos de aceitar “as coisas” e tentar viver da forma mais confortável no melhor dos mundos possíveis.
Exemplo radical deste tipo de conversão à realidade existente é, e Portugal, o de uma cáfila de maoístas como Durão Barroso, que passaram de gritar loas à revolução e a um grande líder qualquer a gritar vivas ao mercado e a servi-lo pelo maior ordenado possível, dizendo para isso o disparate mais gigantesco para provar a conversão.
Neste processo de chegada à idade adulta não faríamos mais que aceitar as nossas inevitáveis limitações e preparar-nos para viver a realidade. A ideologia dominante não faria mais que assegurar que este capitalismo e este mundo estariam aqui para sempre. E, como a cultura popular e os maus filmes de ficção científica demonstram, é mais fácil imaginar uma grande catástrofe que destruísse o planeta, ou mesmo uma invasão de extraterrestres, que a simples mudança de um regime e modo de produção injusto, que desperdiça recursos e destrói o planeta. O capitalismo será, segundo este pensamento que pretendem coagir-nos a aceitar, a realidade que sobreviveria ao fim mesmo de toda a realidade: as máquinas automáticas venderiam Coca-Cola mesmo que os seres humanos desaparecessem para as consumir.
Neste horizonte inultrapassável estaríamos sempre condenados a escolher entre políticos tão excitantes e diferentes como António José Seguro, António Costa e Passos Coelho.
O nosso principal problema está nessa mesma aceitação da realidade como elemento estruturante do possível. Se consideramos que viveremos sempre num regime de banqueiros, em que os lucros têm eles e os prejuízos pagamos nós; se achamos inevitável ficarmos com uma democracia em que, independentemente do nosso voto, os políticos fazem o que lhes apetece; se transigimos com a continuação de um regime de corrupção “normal”, em que o contribuinte paga os contratos ruinosos que os políticos assinam com grupos com quem vão depois trabalhar; então temos a realidade que merecemos e vamos deixá-la em herança aos nossos netos.
A existência de situações de injustiça não decorre de sermos adultos, mas de sermos parvos.

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atiçando a memória
No Chile, em 11 de setembro de 1973, militares apoiados por civis e agentes estadunidenses promoveram um golpe, garantido na bala, e que transformou também um estádio de futebol em campo de concentração. Nove anos antes, a ditadura civil-militar brasileira foi pioneira nesta tecnologia, usando o estádio Caio Martins, em Niterói, para encarcerar quase duas mil pessoas. Hoje, as reminiscências do governo civil-militar em tempos de governança democrática fazem com que a resistência ao golpe seja atualizada nas ruas, com manifestações e bombazos. Mas a memória do golpe chileno não anima apenas as forças resistentes; muitos aproveitam a data para recordarem, saudosos, um tempo ordeiro para eles. Competem para serem agraciados com a honraria que leva o nome do “augusto ditador”, oferecida pelo Ministério da Defesa chileno.
a produção do terror
Em meio aos embates em torno da memória do golpe, uma bomba explodiu no metrô da Escuela da Armada, no dia 8 de setembro, ferindo mais de uma dezena de pessoas. Prontamente, o governo chileno da Concertación declarou que a bomba era “obra da direita”. Um cientista político cravou na mídia internacional que os responsáveis eram anarquistas. Das 29 explosões no país neste ano, algumas foram reivindicadas por militantes libertários e não produziram feridos. A utilização dessas notícias pelo governo objetiva a revisão das leis sobre terrorismo e o recrudescimento da repressão. Além disso, o governo mobilizou mais de 1600 policiais para obstruir as históricas manifestações de rua no dia 11 de setembro. Relacionar anarquistas a terroristas é a velha estratégia de Estado, sob qualquer regime, para garantir a continuidade do exercício de seu terror. o financiamento e as organizações de ditadura
Nos últimos dias, a Comissão Nacional da Verdade divulgou documentos que registram a delação, por parte de grandes empresas, de funcionários envolvidos com o movimento sindical, entre 1964 e 1985. São elas: Embraer,Petrobrás, Ford, General Motors, Brastemp, Toshiba, Kodak, Johnson, Volkswagen, Philips e muitas outras. Além de fornecer dados pessoais dos trabalhadores, as empresas contratavam funcionários com o intuito de identificar possíveis opositores. A divulgação destes documentos atesta o óbvio que se tentou escamotear ao longo de décadas: no Brasil, assim como em outros países da América do Sul, a ditadura foi civil-militar. Explicita-se assim que as empresas não colaboraram com a ditadura apenas com financiamentos, mas também como forças repressoras organizadas. 
machos por caralho f.c. 
Na última semana, um jogador da seleção brasileira foi cortado pela comissão técnica sob a alegação de “indisciplina”. Sob o efeito do corte, identificado por polêmicas espalhadas em redes sociais como o resultado de suposto flagra do relacionamento sexual entre jogadores na concentração e dos desdobramentos da punição por racismo ao Grêmio, o Corinthians divulgou manifestação “anti-homofóbica”. Convocou os “fiéis” a calar os gritos de “bicha” dirigidos aos adversários, temeroso de punição pelo Tribunal Esportivo. A sua torcida organizada há um ano julgou publicamente um jogador que postou fotos distribuindo beijos na boca entre amigos e entrou com ação judicial contra a existência das “gaivotas fiéis”, torcida gay do mesmo club. Sustentado pelo discurso da tolerância, a política dos machos f.c. segue adiante, condenando, com apoio do “bom senso”, o prazer entre os jogadores, confinando os corpos às concentrações e fazendo do triunfante futebol uma miséria maior do que o 7x1 ao som de hino, lágrimas e odores familiares.

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kaapor
No Maranhão, desde agosto, índios Kaapor travam um combate direto com os madeireiros. Após serem comunicados de que o IBAMA e a FUNAI, mesmo com determinação da justiça promulgada em 2008, não se responsabilizavam pela fiscalização da extração da madeira na região, os Kaapor afirmaram: "estamos emguerra porque ninguém quer nos ajudar". O combate dos Kaapor escancara que a omissão do Estado nada mais é do que o apoio explícito aos avanços dos proprietários na floresta. Não existe omissão do Estado, quando muito um silêncio estratégico. Diante desta situação, o arco dos Kaapor defende não somente a própria terra. O arco teso dos índios mira a aliança escusa, banhada com sangue, do Estado e proprietários. 
contra a dissimulação 
Os proprietários avançam sobre a terra dos índios com apoios variados. Durante a última semana, um jornal de circulação nacional estampou uma manchete declarando que os índios haviam criado um "exército" para atacar os madeireiros. É sabida a mediocridade e o oportunismo de certas mídias. A força dos Kaapor é oposta àquela que visa constituir um exército. Quem possui exército, demarca os territórios, ataca os Kaapor e usa a violência, é o Estado. Quem dissimula diante disso é conivente com o extermínio. 
contra a polícia 
O assassinato do jovem negro em Ferguson explicitou o racismo incrustado na sociedade estadunidense. Se de um lado vários protestos espalhados pelo país reivindicaram “outra polícia”, mais próxima de lideranças comunitárias, de outro lado os anarquistas colocaram em xeque a sobrevivência da polícia e sua articulação indissociável com a violência. Na última semana, em Phoenix, após o assassinato de uma jovem por um oficial de farda, centenas de pessoas, entre elas militantes de grupos libertários, saíram às ruas no que foi chamado de protesto “antipolícia”. Este protesto escrachou viaturas, interrompeu a transmissão de um telejornal e recusou a participação de lideranças políticas. A manifestação “antipolícia” destoou do coro reformista e chamou a atenção para o racismo e a violência como propriedades do Estado.
cultura do castigo
De acordo com a UNICEF, o Brasil é o 6º país do mundo em número de homicídios de crianças e “adolescentes”até os 19 anos. Seus dados mostram que uma em cada 10 meninas em todo o planeta já sofreu algum tipo de “ato sexual forçado”; que 6 em cada 10 crianças são agredidas regularmente por seus pais, sendo que um terço destes acredita que o castigo físico é necessário para educar seus filhos. Independente de dados econômicos e estatísticos, a violência que atinge prioritariamente crianças e jovens é intrínseca à sociabilidade autoritária que começa dentro de casa. Nesse sentido, ao relatar as causas para a violência, a UNICEF e outras organizações de direitos humanos, em nome do chamado desenvolvimento humano, fazem funcionar a permanência de sua existência a partir de uma série de conceitos, indicadores e medidas que justificam ad infinitum a cultura do castigo. 
sondagens eleitorais 
Sondagens eleitorais da semana mostram como o eleitor — cidadão adulto que é obrigado a votar, ou jovem e idoso a quem o voto é facultativo —, reitera a moderação e o conservadorismo das condutas. A novidade é que esse eleitorado prefere o voto facultativo. Deve pensar: curtir o feriado é melhor. Entediado da política dos partidos e dos políticos, ele deseja que alguém zele pelos seus bens, sua segurança, sua vidinha. Para ele, involuntariamente, a política partidária, de variados matrizes ideológicos, é mesmice. Ao seu modo constata haver uma programação governamental inabalada, retóricas, novidades efêmeras, e, por fim, desiste. Fica à espera de qualquer condutor. Os pequenos fascismos do cotidiano se alimentam disso; o fascismo como governo do Estado começa assim.

domingo, 21 de setembro de 2014

A VIDA A GENTE INVENTA, A HISTÓRIA A GENTE CONTA, O MUNDO A GENTE TRAÇA

Este é um escrito que reapresento, depois de passados uns não sei quantos anos, numa homenagem à Jura -uma das velhas da minha vida-, quando da sua chegada aos 87 anos, neste 19 do setembro do 2014... taí o escrito, tal e qual veio ao mundo, sem edições...


            Quero fazer uma homenagem, neste escrito, a uma idosa que, mesmo com ares de guria, completa, por esses dias, seus setenta e poucos anos, e, por extensão, relembrar uma data comemorativa com relação ao idoso, que ocorre também por esses dias ... Juracema Fontoura, essa guria de setenta e poucos anos -viúva de um velho comunista que já encilhou seu pingo e foi campear em outras veredas de nosso imaginário, mas deixou na parede de sua casa a foice e o martelo, símbolos de suas crenças e de seus ideais-, chamo-a por borboleta porque, junto com sua irmã -outra borboleta de setenta e poucos anos-, dá suas revoadas tranqüilas e breves, e retorna ao ponto de onde saiu ... fazem isso com freqüência, tanta que sua bisneta, com suas asinhas em aprendizagem já é a borboletinha ... mal sai do casulo e já dá muito trabalho.
            Uma sua filha perguntava-me: teremos os mesmos desígnios quando chegarmos a tal idade? E isso me fez lembrar que, quando criança, sonhava com os tempos da adolescência que logo chegariam; e seguindo o que é próprio da condição humana, de nunca alcançar a completude e o que efetivamente se quer, quando adolescente, almejava, sedenta, a idade adulta, pensando que poderia nunca perder as coisas que a infância me permitia ver e fazer; chegada à condição de adulta, vi que teria muito por amadurecer, e agora, quanto mais cresço subjetivamente, mais almejo ficar velha, sonhando que então, com toda a experiência da caminhada da vida, possa viver e agir com mais maturidade!
            Sempre mantive relações de amizade com pessoas mais velhas do que eu, principalmente pela precocidade granjeada no convívio no moinho e no balcão do bolicho do meu pai ... tenho uma amiga que vai mais de duas décadas à minha frente, e às vezes, quando ela tece censuras ou considerações pertinentes à algumas experimentações por mim feitas, tenho que lembrar-lhe que quando eu nasci ela já estava domando boi a unha!
Relembro com carinho os velhos que habitaram a minha infância e que viverão para sempre em meu imaginário ... o seu Pedro Rosa, que me benzia contra cobreiro, anemia, tristeza e quebranto ... o compadre Mário, preto velho que picava o fumo em corda para fazer o seu palheiro, enquanto contava histórias de forma tão convincente que acreditei por muito tempo na veracidade das lendas que ele reinventava para me entreter; fui visitá-lo quando já chegava ao fim da vida, estava cego, bastou a minha presença para saber que eu tinha chegado; eu dava-lhe um pedaço de fumo sempre que ia ao bolicho, pois lhe associava à figura do saci pererê ... o compadre Homero, que visitei há pouco tempo e me recebeu com um literal quebra-costelas, contava-me histórias de lobisomem de forma que ainda hoje acredito que possam existir, e ensinou-me o apreço pelos bancos de madeira -aqueles de três pés-, assim como moer a cana para tomar a garapa e fazer melado ... a comadre Maria, que me contava os segredos das plantas e me ensinou a esperar amadurecer aquele casulinho que guarda as sementes do beijo para então estourá-los, e me disse, também, que um pé de butiá (uma das minhas frutas preferidas) demoraria sete anos para dar frutos, desde então conto ciclos pensando em plantar butiá e desistindo, pois demoraria muito tempo para colher a fruta, quando vejo que se passaram mais sete anos, penso que poderia ter plantado, acho que a minha vida mudará radicalmente no dia em que plantar um pé de butiá ... e tantos outros velhos, que aqui não cabe!

            Prestamos aqui a homenagem a todos os idosos -tanto aqueles que estão na "melhor idade", como aqueles que sofrem o malogro do abandono, da falta de sentido para a vida, da tristeza, da falta de respeito de seus familiares- ... idosos que, na forma que lhes foi possível, ajudaram a construir o mundo em que vivemos e, se deixaram problemas, seguimos a sina do ser humano lutando para construir um mundo melhor ... enfim, a vida a gente inventa, a história a gente conta e o mundo a gente traça!

sábado, 13 de setembro de 2014

A vida invoca a velha

Sou pescadora, bolicheira, conversadeira, inventadeira, poeteira, escrevinhadeira e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco conhecimento)... sou da conversa solta, sem palestramentos... penso que não temos nada para palestrar... a vida é feita de nossas experimentações que podem ser transformadas em conhecimento formal ou não... nesta semana estivemos conversando com trabalhadores da polícia civil, da brigada militar, da educação, dentre outros, dentro da programação de formação desse protagonistas, sensibilizando-os para a questão da violência contra a mulher e para o acolhimento humanizado dessas situações...
Introduzi (e apenas introduzi) o tema da violação dos direitos da mulher idosa, atravessado pela questão de gênero... assumo publicamente que não gosto de trabalhar com violação de direitos/ com violação da dignidade/ com violação da vida... já trabalhei na constituição e desenvolvimento do Serviço Sentinela, que antecedeu o CREAS na atenção e cuidado para com crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, abuso e exploração sexual... e agora trabalho com atenção e cuidado para com idosos vítimas de violação de direitos...
Gosto, mesmo, é do trabalho com a produção de potência, de vida e de mobilização nos existires... não gosto das gentes que se nutrem da desgraça, da dor, da bílis, da ansiedade, da ganância, da intolerância e de outros quetais... então prefiro pensar que a vida pode invocar a velha... e das coisas que temos visto no trabalho com os velhos, tem aí umas coisas que estão anotadas em meus papeis de embrulho para compor uns escritos... vejamos aí...
↘VIOLAÇÕES   
                - judicialização da vida/ judicialização dos processos de trabalho com o idoso
                - medicalização da vida do idoso
- medicamentalização da vida do idoso
                - exploração laboral do idoso
                - exploração financeira e material do idoso
                - exploração afetiva e usos abusivos dos afetos (incidência basicamente com mulheres), praticados por companheiros/ filhos/ netos/ outros familiares / outras pessoas
- abandono afetivo, físico e material de idosos
- vida-dura, dura-vida... o que vem depois das dores dos existires... vem idosos que tiveram seus existires endurecidos por suas dores e isso acabou produzido tanto ou mais dores nas vidas dos seus...
↘O IDOSO E A PRODUÇÃO DE AFETOS E CONTÁGIOS
                               . a vida do idoso produzindo reverberação/ritornelo na vida das gentes
                               . produção de redes e forças = potência
                               . a inventividade que produz movimentos pode também produzir acontecimentos
                               . as pessoas que fazem usos abusivos se debatem (desde as mais tênues às mais amplas dimensões) COM EXCESSOS DE VIDA
                - a produção da violação do direito da idosa é sempre apenas UM ponto no imenso descampado da vida da pessoa/ a vida, as potências, as impotências, os quereres, os fazeres são muito maiores do que isso
                - olhar para o quão fascistas podemos ser quando tentamos desfocar a conversa das gentes e dirigir à violência pura, sem considerar toda a trama das existências que se cruzam e que se compõem
↘ TRABALHO VIVO
                - movimento permanente, feito de continuidades e descontinuidades
                - produção de experimentações – coragem de ir tateando e tecendo novos, outros pensares e outros fazeres
                - capacidade de reconhecer no outro a singularidade do seu processo
- produção de vida nos processos de envelhecimento
CAPACIDADE INVENTIVA PARA OLHAR PARA OS EXCESSOS DE VIDA
                - a vida enquanto campo ético-estético-político
                - vidas-conceitos
                - vidas-paradoxo
↘ Problematização: O QUE É A VIDA?
                - por onde se constituem os abandonos?
                - por onde se constituem as violações/violências?
↘ Para quem sofre por excessos de vida
↘ Problematizações advindas do trabalho com idosos
                - usos abusivos de drogas lícitas
                - usos abusivos de álcool
                - usos abusivos de afetos (mães/avós devoradoras/ pais negligentes/ síndrome da avó superprotetiva que anula as possibilidades de vivimentos
↘ Algo que muito nos interessa é a possibilidade de auxiliar o outro a lidar com os excessos de vida e fazer disso vivimentos e não morrimentos

sábado, 6 de setembro de 2014

flecheira.libertária.353

futebol e cultura de paz 
Desde muito tempo o futebol é objeto da política. As grandes empresas que hoje governam o espetáculo buscam instrumentalizá-lo como via de promoção de condutas. Lê-se na entrada do Estádio Municipal de São Paulo a inscrição Cultura de Paz. Diversas equipes e jogadores tornam-se embaixadores de secretariados da ONU, como UNICEF, UNESCO e PNUD. FIFA e CBF, atrelados às organizações internacionais. Usam a peleja esportiva para edificar discursos sobre a tolerância, fair play e o combate ao racismo. A retórica de velhacos negociantes e serviçais de ditadores busca com isso consolidar sua benevolência complacente. Futebol é paixão! Não se mede, edifica ou racionaliza. 
a moral do rebanho 
Simultâneo à benevolência complacente e hipócrita de dirigentes, a turba das arquibancadas não se furta, no Brasil e no planeta, em urrar seus clamores de ódio belicoso e fascista. Quem assiste às partidas sabe dos incontáveis gritos de ódio, terror e extermínio por meio dos quais as torcidas se atacam mutuamente. Por vezes, esses gritos são submetidos à prova e resultam em derramamento de sangue. Só nas últimas semanas, dois episódios ganharam destaque: o assassinato de um torcedor do Palmeiras e os gritos de “macaco”, proferidos por torcedores do Grêmio contra o goleiro do Santos. A moral do rebanho é assim, afirma-se no extermínio e humilhação do outro. Como se diz por aí: “tolerância tem limites”. Eis tais limites expressos nos dois casos! Eis a expressão modorrenta, nos dois casos, da cultura da tolerância na qual se baseia a cultura de paz.futebol é diferença Não existe futebol sem adversários, discordâncias, diferenças, provocações e arroubos de emoção desproporcionais. Torcer não tem nada a ver com assumir uma identidade. Torcer é a condição para entrar na partida. No futebol, seja torcendo ou jogando, não há neutralidade. Não se trata de metáfora da vida ou da guerra. O futebol é a expressão de que a vida é combate honroso e, para isso, é preciso que haja adversários. Para que ambos sigam existindo. Não se completam 100 anos de história, lutas e glórias sem vitórias e derrotas. Essa é beleza trágica da peleja, o combate não tem fim. 
futebol é bola na rede 
Os gritos de ódio racistas contra negros, gays, mulheres, imigrantes ou mesmo contra a torcida do outro time, expõem o fascismo de quem os profere. Não têm nada a ver com a peleja em campo e não há tolerância que os façam cessar. Os torcedores que frequentam os estádios são os mesmos cidadãos que pedem mais polícia e segurança, que defendem a redução da maioridade penal, que governam suas vidinhas mornas segundo a moderação conservadora que lhes é característica. Basta lembrar que a torcedora do Grêmio, flagrada pelo monitoramento televisivo urrando expressões racistas, é funcionária da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. A alegria do gol explode na cara do adversário, a tristeza da derrota se sente junto aos seus. Futebol é bola na rede, o resto é imputação de canalhas, negociantes e oportunistas. 
arco-íris embolorado 
Cidadãos de bem da comunidade LGBT têm feito pressão e campanha eleitoral para elegerem o presidenta que melhore a vida da comunidade, garantindo a criminalização da homofobia e a legalização do casamento gay em seus programas de governo. Obediente e participativa, a comunidade acredita que seu voto poderá assegurar que nunca mais apanharão ou morrerão por serem gays. Será?! Para se empoderarem e serem socialmente aceitos, dão continuidade ao Estado e suas intrínsecas violências, de polícias e tribunais. Crentes na promessa de segurança, entregam suas vidas e corpos, outrora escandalosos e perigosos, para o melhor governante. Casados e politicamente conscientes, tornam-se apenas mais algumas cifras em meio à maioria abúlica. 
o mofo do jornalista e do voto 
Apaniguado pela mídia a qual serve semanalmente, determinado escritor e jornalista embolorado, expert em polêmicas, declarou recentemente votar nulo, pois seu esporte favorito “é torcer contra” todos os partidos que disputam o pleito. Entretanto, o posicionamento mofado do jornalista, queridinho de novos e antigos velhacos, explicitou que o “voto nulo” não somente é propriedade de ressentidos como sua “torcida contra”, mas também faz parte do ritual eleitoral. Como alertaram os libertários, o voto expõe a covardia de quem abandonou a própria liberdade. É preciso abolir sua obrigatoriedade, ranço político do ditador Vargas que contamina os partidos e as ovacionadas coalizões. Todavia, é preciso ir mais adiante e indagar acerca da modorrenta continuidade dos rituais eleitorais. Sobre isso, tristes jornalistas, ressentidos, amantes da ordem, apaniguados por proprietários, se calam. 

flecheira.libertária.338

boko haram e o colonialismo 
Pouco se sabe sobre a África. Pouco mesmo. Depois de semanas é que ganhou manchetes na mídia o caso do sequestro de quase 300 garotas no nordeste da Nigéria pelo Boko Haram. Os articulistas de jornais remontam ao colonialismo inglês e aos efeitos da edificação do Estado-nação que empastela etnias a partir daquelas feitas mais poderosas pelo próprio colonialismo. Mas não é ou foi só a criação do Estado que armou esta sinuca às etnias. O colonialismo avançou e enriqueceu os Estados e proprietários de mãos dadas com as religiões. Se Estado não pacifica nada, apenas afirma a força vencedora e a exigência de obediência, as religiões constroem guerras, na disputa pelo domínio cultural e político. Assim, o ecumenismo se transforma em carta na manga para situações tipicamente ocidentais, ou seja, de Europa, Américas e parte da Ásia. 
boko haram e o multiculturalismo 
Estados e religiões sempre consideraram as mulheres como subalternas. Até mesmo os civilizados Estados ocidentais quando reconhecem direitos às mulheres o fazem pela equiparação aos diretos masculinos, do Homem. Então, apenas de vez em quando sequestrar mulheres para o uso e abuso sexuais de autoridades superiores masculinas se transforma em notícia. Cada garota vale $12 para ser usada privada ou coletivamente por machos. Os civilizados ficam horrorizados. Os cidadãos se apaixonam pelo tema em telenovela, no cinema e às vezes na literatura. Os governantes externam sua indignação. No limite consolidam a retórica do multiculturalismo. 
boko haram e a liberdade das mulheres 
Onde estão as garotas sequestradas? O governo dos EUA comunicam que enviarão especialistas em negociação, com o assentimento do presidente da Nigéria, propondo solucionar o “caso”. Por certo, muitos outros casos aconteceram e acontecerão sem o tardio noticiário na imprensa ocidental. Não se trata de um caso. Grupos como o Boko Haram, mais ou menos reativos, continuarão agindo. A disputa religiosa e política não tem fim. Pode haver certa pacificação da obediência exigida pelas ações humanitárias, mas serão sempre episódicas. O assunto é principalmente de mulheres, quando deixarem de reivindicar posição semelhante aos homens e se descolonizarem. Esta é uma luta urgente. Não é humanitária, mas uma luta pela existência apartada do domínio do macho. Só assim os homens, também, poderão experimentar uma liberdade fora da lei que eles, os colonizadores civilizados, criaram para governar o domínio e disseminar o assujeitamento. O resto é retórica acadêmica, política e cultural para a vitória de governos. 
boko haram, mercado e política 
Depois do sequestro e da comoção nos Estados poderosos, o Boko Haram faz a contrapartida manjada. Agora as quase 300 garotas são apresentadas em vídeo convertidas ou reiterando o islamismo, enquanto se exige libertação de presos políticos da organização. Mesmo convertidas elas serão vendidas caso a atual reivindicação política não se cumpra. A vala é a mesma, tentar configurar como legítimo o ato terrorista como política totalitária. As garotas são mercadorias na troca de mercado e lote de carne humana na negociação política. Islâmicas ou não, são mulheres que servem aos dois lados da mesma moeda. 
época mais podre 
Há algum tempo, os noticiários têm mostrado linchamentos de jovens, geralmente pequenos ladrões ou acusados de alguma outra ilegalidade. As discussões controversas na mídia alertavam tanto para o perigo da justiça com as próprias mãos, como também saudavam a população descontente com a falta de segurança. Na última semana, o linchamento de uma dona de casa que se suspeitava realizar rituais de magia negra com crianças pretendeu dar outro rumo ao assunto. Não demorou para se descobrir que a linchada não tinha nada a ver com a história e que, portanto, fora agredida e morta injustamente. Rapidamente houve uma inversão de sinais: agora os linchadores são bandidos e a linchada, a vítima. A população fascista continua pensando que bandido bom é bandido morto. 
época mais podre 2 
Diante de corpos amarrados a postes, lançados sobre formigueiros, atacados com paus, tijolos, socos e pontapés, determinados sociólogos e especialistas em segurança pública defendem seus respectivos empregos, seu quinhão miserável, argumentando que os linchamentos se fortalecem defronte a uma sensação de ineficácia da Justiça. O que ninguém diz ou comenta é que tal prática asquerosa é a própria continuidade da violência da polícia, do tribunal, dos castigos, incrustada em cada cidadão covarde que decide atacar em grupo para acabar com a vida de alguém. Os linchamentos seguem se espalhando por todo território, sustentados por silêncios sorridentes. E tamanha covardia é a própria expressão da violência do Estado. 
buscado em: http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira338.pdf
boko haram
As garotas sequestradas permanecem encarceradas, sendo doutrinadas pelo Boko Haram (BH)... Terão sido vendidas a 12 dólares? Satisfazem aos machos revolucionários ou a um reacionário que as comprou? Não há notícias dos divulgados esforços ocidentais em conjunto com o Estado nigeriano. Noticia-se, entretanto, atentados urbanos a bombas em sequência contra civis. Neste caso, a mirrada intelligentsia não associa o BH com anarquia. Pudera, o BH quer um Estado islâmico a seu modo. Quer Estado! Trata-se de um terrorismo habilmente qualificado como político, derivado do colonialismo e do seu fim para garantir a chamada autonomia de um povo. Onde estão as garotas sequestradas? Isso passou a ser secundário diante dos ataques a bombas? Parece que sim. Afinal, elas são mulheres...
buscado em: http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira340.pdf

flecheira.libertária.336

quais as lutas no presente? 
O 1º de maio irrompeu em 1886, como modo de atualizar a luta de libertários assassinados pelo governo estadunidense. No Brasil, os anarquistas foram perseguidos sistematicamente desde as primeiras greves do século XX, sendo presos, expulsos, ou enviados para o campo de concentração da Clevelândia. A partir da ditadura do Estado Novo, parte dos trabalhadores cedeu às permutas com o Estado, por meio do Ministério do Trabalho e da burocracia sindical. Entretanto, é sempre bom lembrar que a luta do 1º de maio é uma afirmação libertária. Como estampou A Plebe, no início do século passado, “o anarquista recusa servir de rufião aos patrões (...) não elege fazedores de leis para não consentir na sua escravidão e para não se deixar enganar pelos costumados mariolas”. É sempre bom lembrar este combate contra o Estado. “Eu gozo combatendo-o”, anunciou o mesmo editorial. Combate vital, distinto das melancólicas micaretas financiadas por partidos e centrais sindicais. negócios internacionais Não é incomum (ainda hoje!) que certos canalhas considerem que a ditadura civil-militar no Brasil foi menos terrível do que outras ditaduras latino-americanas. Entretanto, relatos e investigações em nome dos direitos humanos têm reforçado que as ditaduras não estavam separadas entre si, e que respondiam também às demandas de relações internacionais entre os governos (para além da América do Sul). Recentemente, divulgaram-se documentos oficiais da ditadura chilena, que mostram o intercâmbio entre os dois países, incluindo a exportação de técnicas de torturas do governo brasileiro. Ditadura é ditadura! Os efeitos estão presentes em negócios internacionais celebrados até hoje e na permanência das violências do Estado, na continuidade das torturas, com ou sem ditaduras, seja em Santiago, São Paulo, Buenos Aires...
a autoritária conivência 
Em Curitiba, um casal discutia dentro do carro em meio ao trânsito. O homem – um policial civil – parou o automóvel, arrancou a mulher do banco do passageiro e a jogou no chão. Sacou suas algemas, imobilizou a namorada e disparou quatro tiros em seu peito. Depois, alvejou o próprio pescoço e esperou a chegada da polícia. Tudo isso aconteceu em uma avenida movimentada em plena manhã de um dia de semana. Pessoas que estavam em seus carros pararam para observar a cena e gravar vídeos com seus celulares. Já que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, preferiram registrar a cena para postá-la na rede do que impedir o assassinato.

hypomnemata 169


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 169, agosto de 2014.

Prisões, execuções e abolicionismo penal libertário

Controle e monitoramentos
Nos anos 1970, momento no qual se dizia aos quatro cantos que as prisões estavam superlotadas, o sistema de justiça sobrecarregado e se construía o discurso crítico-humanista contra as condições dos prisioneiros, um filósofo libertário inverteu o problema: há prisão povoada ou superpovoada; justiça encarregada, carregada, ou sobrecarregada sem as polícias que aprisionam?
A prisão passou a ser alvo de uma contestação radical, que abria espaço para o seu desaparecimento. Apareceram os movimentos reivindicatórios a respeito das condições de vida e defesa dos direitos humanos no seu interior.
Ao longo de três décadas a predominância de um discurso relativo às condições de vida e em defesa de direitos lançou tanta luz sobre a prisão, que as análises que afirmavam a urgência de sua abolição foram ofuscadas.
O resultado imediato dessas lutas foi a transformação da insuportável e terrificante prisão em algo tolerável, ao ponto de seus próprios habitantes trabalharem ativamente para tornar suportável a vida em seu interior.
Os anos 1990 foram preenchidos pelo crescimento exponencial de encarceramentos, aliado ao endurecimento penalista, ao controle policial exacerbado e aos monitoramentos pelas organizações de direitos humanos, nacionais e internacionais.
Abriu-se uma era de prisões de segurança máxima combinada com penas alternativas e controles a céu aberto de apenados, geridos por meio de parcerias público-privadas, no compartilhamento da gestão prisional entre governos, organizações internacionais, ligadas à ONU, privatizações e operacionalizados em parceria com a chamada sociedade civil organizada.
Produziu-se, assim, uma nova naturalização da prisão, desta vez por questões de segurança, com a colaboração das organizações de direitos humanos, sempre prontas a denunciar os “excessos”, “maus-tratos” e “injustiças” cometidos em seu interior e a favor da segurança.
Dessa nova naturalização decorreram duas inovações:
A criação de organizações de prisioneiros que, em pouco tempo, trabalhariam em parceria com a administração prisional na gestão compartilhada dos cárceres e a superexposição na mídia das questões prisionais, como “injustiças” contra os prisioneiros ou rebeliões comandadas por suas organizações, geralmente voltadas para a melhoria de condições dos apenados.
A prisão, gradualmente, foi se metamorfoseando de instituição austera de disciplina e vigilância, como imagem do medo, para laboratório de tecnologias políticas de controle e monitoramento.
Segue hoje como objeto de terror, menos pela imagem de seus muros e mais pelo que se passou a conhecer de seu interior.

Prisões e execuções seletivas e noticiadas
A exposição monitorada e as sequências de denúncias em relação aos cárceres também produziu reversos.
Cenas de decapitação, tomadas de presídios, “salves gerais”, massacres sistemáticos produzidos pela polícia, detenções suspeitas e superlotações de unidades produziram variadas reações em relação à prisão.
Conhece-se seu funcionamento, mesmo sem nunca ter sido preso ou detido. E seria um truísmo insistir em sua escandalosa seletividade, praticada em todo itinerário, da abordagem policial à condenação em juízo.
A seletividade penal vai além, uma vez que pretende um efeito intimatório exemplar, preventivo e de instalação do medo e da paranoia.
Na medida em que se sabe de pessoas detidas e condenadas por razões, no mínimo, pouco lógicas ou racionais, o receio de ser detido e condenado se aloja nos corações e mentes de qualquer cidadão potencialmente suspeito.
Não se trata apenas de insistir contra os argumentos e constatações reprisadas à exaustão de que as pessoas presas e condenadas são negras, pobres, moradoras de rua e reincidentes, mas de alertar para a falácia do sistema penal e sua explícita parcialidade.
As detenções de manifestantes no Brasil nos últimos meses também mostram isso, e a mais escandalosa foi a condenação do morador de rua, negro, chamado Rafael Braga Vieira, detido no dia 20 de junho de 2013, em meio a manifestação que levou mais de 300 mil pessoas às ruas do Rio de Janeiro, sob acusação de portar duas garrafas de coquetel molotov.
Segundo o laudo da própria polícia civil do estado do Rio de Janeiro, as garrafas eram vasilhames de plástico contendo desinfetante e água sanitária, o que levou sua defesa a entrar com apelação pedindo a anulação do processo, negada pela justiça carioca.
Some a esta as notícias que vieram à tona desde junho de 2013 como o sumiço do pedreiro Amarildo, a execução de Claudia  que teve o corpo arrastado por uma viatura da polícia─, a execução de dois meninos pelos soldados da UPP carioca, o assassinato de Douglas, na Vila Medeiros, em São Paulo e uma série de outros casos que qualquer um pode e deve lembrar.
Seria apenas exercício de retórica hipócrita confundir a recorrência desses casos com a necessidade de reformas legais, institucionais ou regulamentares.
Esses acontecimentos, sucintamente listados, expõem como o sistema penal reitera preconceitos, assimetrias e desigualdades.
Não há como ignorar esta constatação.
Sobretudo após eventos como as execuções de maio de 2006 em São Paulo, quando a Polícia paulista executou mais de 500 pessoas sob o pretexto de combater o Primeiro Comando da Capital e seu “salve geral”; os assassinatos de jovens negros em St. Louis e Nova York, em agosto de 2014, ou mesmo as recentes cenas terrificantes de decapitação nos presídios de Pedrinhas, no Maranhão, e Cascavel, no Paraná.
Em Cascavel, quem realiza as execuções é a organização de prisioneiros que, ironicamente, as faz para protestar contra os maus-tratos e as condições de vida no presídio, ainda que neste caso não houvesse lotação máxima. A questão vai além e está aquém das “boas condições dos presídios”.
Essas organizações totalitárias, longe de serem contra as prisões, são empresas bem constituídas e frutos diretos do próprio sistema penal.
Atuam segundo a mesma lógica, produzindo reforços constrangedores entre penalizadores e apenados.
Elas não rompem as relações baseadas na autoridade e no castigo. Reforçam-nas.
Acrescentem-se ainda as imagens de decapitação promovidas pelo grupo ISIS (Islamic State in Iraq and Syria), ou atualmente na mídia apenas EI – Exército Islâmico – que, como poder de Estado, mostrou a medida brutal das práticas penalizadoras, gerando compressão em uma mídia que, recentemente, havia aclamado com eloquência o enforcamento de Saddam Hussein e a execução de Osama bin Laden.

Revolta antipenal
Há décadas, diversos estudiosos nas áreas do Direito e das Ciências Sociais, no Brasil e no planeta, produzem pesquisas ─ sob as mais diversas perspectivas teóricas e políticas relacionadas ao abolicionismo penal.
Os abolicionistas penais propõem encarar corajosamente e de maneira inventiva questões como:
a cultura dos castigos;
a sociabilidade autoritária;
a seletividade penal;
os efeitos de segregação das políticas de segurança;
os limites e usos das políticas de direitos humanos;
a herança autoritária de ditaduras civis-militares;
o absurdo da continuidade da prisão para jovens,
enfim, a constatação revoltante da continuidade de uma lógica de solução de situações problemáticas pela punição e a recompensa, que incluem decapitações, torturas, humilhações, constrangimentos e estigmatizações.
Alertam, inclusive, para o fato de que muitos de nós solucionamos uma série de situações que poderiam ser classificadas como crime, sem recorrer ao sistema penal.
Logo, a sociedade sem penas já EXISTE!!!!!
Os casos de detenções, prisões, condenações e execuções devem ser urgentemente encarados a partir da perspectiva afirmada pelos abolicionistas penais.
Caso contrário, o absurdo se aninhará nas notícias que provocam reações e emoções como terror, alívio e comoção, indignação e satisfação, omissão e conformismo, sem avançar propositalmente em nada.
Servirão para encher páginas de jornais, ocupar organizações de direitos humanos, animar manifestações pontuais e consolidar um terror que se diz conjurar com mais segurança, mas que logo se voltarão a um novo caso ou a uma nova causa.
Afirmar a atitude abolicionista penal se coloca em um momento propício, quando os candidatos na atual disputa eleitoral, reconhecidamente descolados da possibilidade de mudanças efetivas, só conseguem discutir questões problemáticas e urgentes aludindo à boa segurança, a partir de uma mentalidade punitiva e de endurecimento legal.
Expõem, para além do pluralismo partidário, um conjunto de propostas coroado pela sempre enaltecida redução da maioridade penal e suas variantes derivadas na forma de aumento do tempo de internação e unidades especiais psiquiátricas; incrementos de responsabilização e gestões compartilhadas na aplicação e acompanhamento de medidas socioeducativas em meio aberto e fechado, clivadas pelo intocável encarceramento de jovens.
Este muro, erguido pela lógica das penas, deve ser derrubado.

Limites da defesa
O pensamento moderno, humanista, tão iluminado, precisa começar a encarar que “policiais corruptos”, ISIS e PCC (Partido do Primeiro Comando da Capital), terroristas e demais agentes de violência apontados como o outro, são complementos e extensões da mesma matéria que o violento Estado moderno e filhos pródigos e bastardos da mesma cultura do castigo.
A revolta antipenal, inventada pelos abolicionistas penais, esbarra muitas vezes na forma como os movimentos sociais e as organizações de direitos humanos reagem nesses casos.
Colocar os problemas da justiça criminal nos termos de justiça ou injustiça, e sob a diferenciação entre o que seria uma prisão política e uma prisão comum, mostra-se, no mínimo, equivocado.
Com ou sem as querelas colocadas por questões técnico-jurídicas que, muitas vezes, aninam os debates em torno desses casos, é possível identificar, no interior da lógica do sistema criminal, a produção e a reprodução de tecnologias de governos que sustentam uma sociedade de práticas autoritárias sob a égide de um regime liberal-democrático.
As detenções perpetradas no decorrer da onda de manifestações de rua deixam claras as limitações do pensamento fundado em termos de injustiças ou de prisões políticas.
É inócuo argumentar, como é comum entre os movimentos, que vivemos sob um novo paradigma de governo caracterizado pelo estado de exceção.
Paradoxalmente, ao colocar essas prisões como injustas, ilegais ou políticas, reconhece-se todas as demais detenções e/ou prisões como legítimas e/ou legais.
Assim como combater o que seria um governo de exceção, leva à busca de um bom governo que não produziria exceções mortais.
O que está em jogo não é a legitimidade das prisões ou detenções, mas a forma de funcionamento do sistema penal e o assujeitamento contínuo na aceitação naturalizada de sua própria existência.
Vivemos no Brasil um Estado Democrático de Direito, que é o mesmo que dizer que as coisas poderiam ser muito piores, mas é também reconhecer que todo preso é um preso político, segundo a configuração de qualquer regime e prática política na qual estamos irremediavelmente implicados.
O reconhecimento do monopólio legítimo da violência do Estado, se o autoriza a cometer os chamados excessos, cada vez mais regulares, não o restringe a tratar situações-problema como casos penais.
A oposição entre justiça civil e justiça penal é um consenso torpe.
Há sim possibilidades, mesmo sob estas condições, de equacionar as infrações segundo os procedimentos do direito civil.
Este é outro muro a ser derrubado.

Democracia, liberdade e extermínio
Nossa prática democrática, entendida como forma de expressão da liberdade política, encontra-se vacilante, pois quanto mais se deseja segurança, mais próximos estamos do fascismo.
Não porque vivemos uma alegada crise de representação, ou porque os partidos perderam a conexão com as ruas e os governos não são mais capazes de traduzir os anseios da população.
Não há “outro mundo possível” ou “nova política” que equacione esse impasse.
A ponta mais evidente desse autoritarismo assassino está na polícia, militar ou civil, que deve proteger cidadãos de bem; nos exércitos de fanáticos e mercenários que intuem profecias; nas organizações que governam os presos como empreendimento lucrativo...
O imenso iceberg é composto por milhares de expressões de ódio manifestos em redes sociais ou espaços de comentários de portais eletrônicos, que saboreiam ou vomitam linchamentos públicos e decapitações televisionadas.
A produção de rafaéis, amarildos, claudias, hidekis e demais anônimos atingidos cotidianamente pelo sistema penal não cessará, até chegar ao ponto de não mais provocar sustos porque expressam o desejo de exterminar o outro.
E se isso é feito pelas mãos dos mesmos outros, para eles esta é a sua condição de sossego derrisório alcançado.
As cabeças de cascavéis, pedrinhas e dos ISIS continuarão rolando, junto aos infinitos negócios econômicos, sociais e políticos, que envolvem empresas do tráfico, Estado, polícia, sicários, grupos terroristas e mercenários produzidos em meio às variadas relações que compõem os programas de segurança planetária e o regime dos ilegalismos reconfigurado na sociedade de controle.
É preciso encarar o sistema penal como um produtor político.
A revolta não é reforma nem revolução, é afirmação da vida livre e disposição ao risco, o oposto da segurança governamentalizada.
A política produzida pelo sistema penal não se restringe ao seu circuito institucional normativo; é composta pela obsessão inatingível de paz nas pessoas, pela busca interminável por segurança nos governos e pelas infindáveis assimetrias consolidadas e naturalizadas nesta sociedade.
O circuito de violências até hoje só produziu mais violência, linchamentos públicos, condenações e mortes; atinge, preferencialmente, os indesejáveis, os negros, os pobres, os moradores de rua, os subversivos, os revoltados.
Sua ardilosa contabilidade sob o governo de monitoramentos e controles objetiva fazer de qualquer pessoa um virtual prisioneiro.
E cada cidadão que não se revolta contra essa política de extermínio perpetrada pelo sistema penal se dispõe no planeta como um potencial carrasco, um agente do terror estatal e niilista.

hypomnemata 168

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 168, julho de 2014.

Piotr Kropotkin:
Ciência, apoio mútuo e anarquia

Um jovem príncipe complementa sua formação na Sibéria, onde passou cinco anos, convivendo com camponeses e prisioneiros e constatando os malefícios do Estado. Em Memórias de um revolucionário(1899), Piotr Kropotkin, nascido em Moscou em 1842, relata seus decisivos momentos na expedição pela Manchúria, o interesse pela geografia, as ciências naturais e, principalmente, a decisiva entrada em sua vida do poeta Mikhail Larionovich Mikhailov, que lhe apresentou Proudhon. O jovem que havia sido escolhido para o seleto grupo de pagens do czar, com a função de ser instruído para assessorar o governo do Estado, desiste da vida militar depois de violento levante presenciado na prisão da Sibéria. Retorna a S. Petersburgo, torna-se um geógrafo experiente e respeitável que será recomendado para o secretariado da Sociedade Geográfica Imperial Russa. Era 1871, a Comuna de Paris repercutia e a vida de Kropotkin tomou o rumo da anarquia. Em visita a Zurique, aproximou-se das práticas de Bakunin e deslocou-se para Neuchâtel, inteirando-se da Federação do Jura, ala anarquista da I Internacional. Conheceu seu futuro amigo James Guillaume e o anarquismo coletivista, do qual se distanciará, propondo o anarco-comunismoexplicitado em 1892, em A conquista do pão. Radicaliza a abolição da propriedade privada e do Estado, em consequente abolição do dinheiro, com democracia direta, conselhos e autogestão. O seu pensamento volta-se para a elaboração de um anarquismo científico, rebatendo o socialismo científico dos autoritários. Persegue tanto as considerações de Darwin sobre a evolução e a cooperação entre espécies, quanto as suas constatações históricas sobre o apoio mútuo como invariante nas relações humanas. Situando um novo determinismo, que será alvo de críticas internas de anarquistas como as de Malatesta, Kropotkin colabora para a formação de uma anarquia que repercutirá entre os camponeses nas revoluções ucraniana (1917-1921) e espanhola (1936-1939). Em seus escritos, destacam-se não só a importância das práticas camponesas de apoio mútuo, seu evolucionismo mobilizador, um certo puritanismo expresso nos debates sobre liberação dos costumes com Paul Robin, mas também suas insistentes críticas à prisão e aos manicômios. Ele esteve encarcerado por alguns anos nas prisões russas, depois de delatado por pertencer ao Círculo Tchaikovsky, que frequentava com o pseudônimo de Borodin. Esteve à beira da loucura até escapar da prisão de S. Petersburgo, transitar pela Noruega e Suécia e chegar a Edimburg, de onde rumou para Londres. Retornou ao Jura, conheceu Errico Malatesta, Carlo Cafiero e apoiou a propaganda pela ação. Como geógrafo, realizou pesquisas para a revista Nature. Encontrou outro notável geógrafo anarquista, Élisée Reclus, com quem colaborou na Geografia universal e a quem dedicou um emocionante obtuário; escreveu para a Enciclopédia Britânica, onde publicou, em 1910, seu verbete Anarquia. Editou o jornal L’Avante-garde, mas foi no Le Révolté que divulgou suas reflexões agrupadas, mais tarde, por Reclus e editadas, em Paris, como Palavras de um revoltado, em 1895. Kropotkin também foi preso político na França, em Lyon, até ser libertado em decorrência de constantes mobilizações contra seu encarceramento. O conjunto das suas observações e vivências nas prisões veio a ser conhecido como Nas prisões russas e francesas, em 1887, ano do nascimento de sua única filha, Alexandra. O agitador se recolhe a partir de 1890 para escrever vários livros fundamentais sobre a anarquia e o anarco-comunismo. Mesmo tendo sido sondado por Kerenski, e depois por Lenin, para se juntar ao governo do Estado, Kropotkin recusou, contestou e o seu funeral, em 1921, foi a última manifestação livre do povo revolucionário na Rússia. Ler Kropotkin, que dedicou especial atenção aos jovens, às mulheres e à capacidade política do campesinato, é um exercício de reflexão clara, repleta de detalhes, comentários instigantes, indicações de práticas inéditas e inventivas, que permanecem como sua primordial força libertária. Transcrevemos algumas de suas palavras anarquistas atuais, compondo livremente um texto libertário, seguido de indicação das fontes de onde elas foram buscadas.

APOIO MÚTUO E A NATUREZA
A concepção de luta pela sobrevivência como um fator de evolução, introduzida na ciência por Darwin e Wallace, permitiu englobar uma faixa muito ampla de fenômenos numa única generalização, que logo se tornou a própria base de especulações filosóficas, biológicas e sociológicas.
Esses fatos eram compreendidos como esforços constantes — luta contra circunstâncias adversas — para que tal desenvolvimento de indivíduos, raças, espécies e sociedades resultasse na maior plenitude, variedade e intensidade de vida possível. Pode ser que, no início, nem mesmo Darwin tivesse plena consciência da universalidade do fator que ele foi o primeiro a invocar para explicar uma única série de fatos relativos à acumulação de variações individuais em espécies incipientes. Mas ele previu que o termo que estava introduzindo na ciência perderia seu significado filosófico, e único verdadeiro, se fosse usado apenas em seu sentido estrito: o de luta pura e simples entre indivíduos pelos meios de sobrevivência. E, logo no início dessa obra memorável, ele insistiu para que o termo fosse compreendido em seu “sentido amplo e metafórico, que incluía a interdependência entre os seres e (o que é mais importante ainda) não apenas a vida do indivíduo, mas também sua capacidade de deixar descendentes”.
Observo que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é substituída pela cooperação e que essa substituição resulta no desenvolvimento de faculdades intelectuais e morais que assegura à espécie as melhores condições de sobrevivência. [Darwin] sugeriu que, nesses casos, os mais aptos não são os mais fortes fisicamente, nem os mais astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de modo a se apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da comunidade.
Essas observações, que poderiam ter se tornado a base de pesquisas mais fecundas, infelizmente foram eclipsadas pela massa de fatos colhidos com o objetivo de ilustrar as consequências de uma competição pela vida.
O termo, que se originou da estreita concepção malthusiana — de competição de cada indivíduo contra todos os outros —, perdeu assim sua estreiteza na visão de alguém que conhecia a Natureza.
Aconteceu com a teoria de Darwin o que sempre acontece com teorias que exercem qualquer influência sobre as relações humanas. Em vez de ampliá-la de acordo com suas próprias intuições, seus seguidores a estreitaram ainda mais. Estes acabaram por conceber o mundo animal como um mundo de perpétua luta entre indivíduos semifamintos e sedentos do sangue uns dos outros. Fizeram a literatura moderna ressoar com o grito de guerra de “ai dos vencidos”, como se esta fosse a última palavra da biologia moderna. Elevaram a luta impiedosa por vantagens pessoais à condição de um princípio biológico ao qual também o homem deve se submeter à sobrevivência com seus braços, sob a ameaça de, caso contrário, sucumbir em um mundo baseado no extermínio mútuo.
Assim que começamos a estudar os animais — não apenas em laboratórios e museus, mas nas florestas e nas pradarias, nas estepes e nas montanhas —, percebemos imediatamente que, apesar da magnitude das hostilidades e do extermínio entre as várias espécies, e principalmente entre as várias classes de animais, existe, ao mesmo tempo, a mesma quantidade — ou talvez mais — de apoio, ajuda e defesa mútuos entre animais da mesma espécie ou, pelo menos, da mesma sociedade. Mas, se nos valermos de uma prova indireta e perguntarmos à Natureza: “Quem são os mais aptos: aqueles que vivem em guerra ou aqueles que se apoiam mutuamente?”, veremos de imediato e sem sombra de dúvida que são estes últimos. Os que adquirem hábitos de apoio mútuo têm mais chances de sobreviver e atingem, em suas classes respectivas, o desenvolvimento mais elevado do intelecto e da organização corporal. Considerando os incontáveis fatos que podem ser apresentados para corroborar essa visão, podemos dizer com segurança que, tanto o apoio mútuo, quanto a luta de todos contra todos são uma lei da vida animal; mas, enquanto fator de evolução, a primeira tem provavelmente uma importância muito maior, na medida em que favorece o desenvolvimento dos hábitos e características que asseguram a manutenção e a evolução da espécie, além de maior bem-estar e melhor qualidade de vida para o indivíduo com o menor dispêndio de energia.
O apoio mútuo é a regra em muitas das grandes divisões do reino animal. Existe realmente entre os animais inferiores, e devemos estar preparados para um dia descobrir, com os estudiosos da microbiologia, casos de apoio mútuo inconsciente até mesmo na vida de microrganismos.
Felizmente, a competição não é a regra no mundo animal, nem na humanidade. Entre os animais, limita-se a períodos excepcionais, e a seleção natural encontra campos melhores para sua atividade: melhores condições são criadas eliminando a competição por meio da ajuda e do apoio mútuos. Na grande luta pela vida  pela maior plenitude e intensidade possíveis com a menor perda de energia —, a seleção natural continua buscando precisamente os meios para evitar a competição. “Nada de competição! A competição é sempre prejudicial à espécie e vocês têm muitos recursos para evitá-la!” Essa é atendência da natureza, nem sempre compreendida de todo, mas sempre presente. Essa é a palavra de ordem que nos vem do bosque, da floresta, do rio, do oceano. “Portanto, associem-se — pratiquem o apoio mútuo! Esse é o meio mais seguro de dar a cada um e a todos a máxima segurança, a melhor garantia de existência e de progresso, seja corporal, intelectual ou moral.”
Portanto, atribuir o progresso industrial de nosso século à guerra de um contra todos, como se tem proclamado, é raciocinar como o homem que, não conhecendo as causas da chuva, atribui-as à vítima que imolou perante seu ídolo de barro. Mas é principalmente no campo da ética que a importância dominante do princípio de apoio mútuo aparece em sua plenitude. Parece evidente que o apoio mútuo é o fundamento real de nossas concepções éticas. Mesmo as novas religiões que apareceram de tempos em tempos — sempre em épocas em que o princípio de apoio mútuo estava entrando em decadência nas teocracias e nos Estados despóticos orientais, ou no declínio do Império Romano — elas só reafirmaram o mesmo princípio. Encontraram seus primeiros discípulos entre os humildes, nas camadas mais baixas e oprimidas da sociedade, entre os quais o princípio de apoio mútuo é o fundamento necessário da vida cotidiana. E as novas formas de associação introduzidas nas comunidades budistas e cristãs primitivas, nas irmandades da Morávia e outros lugares, assumiram o caráter de um retorno aos melhores aspectos do apoio mútuo da vida tribal primitiva. Entretanto, toda vez que era feita uma tentativa de retornar a esse antigo princípio, sua própria ideia fundamental era ampliada. Do clã, ela se estendeu ao tronco familiar, à federação de troncos familiares, à nação e, por fim  ao menos idealmente , a toda a humanidade.
Na prática do apoio mútuo, que remonta aos primeiros passos da evolução, encontramos a origem evidente e indubitável de nossas concepções éticas; e podemos afirmar que, no progresso ético do homem, o apoio mútuo  e não a luta de uns contra os outros  tem o papel principal. Em seu avanço, mesmo no momento presente, vemos também a melhor garantia de uma evolução ainda mais grandiosa de nossa espécie.

CIÊNCIA E EVOLUÇÃO
A ciência, hoje, demonstra-nos que a Terra deve sua origem a um núcleo de matérias cósmicas que se desprendeu primitivamente da nebulosa solar. Esse núcleo, pelo efeito de rotação sobre si mesmo em torno do astro central, condensou-se a ponto de a compressão dos gases levar a uma conflagração; e esse globo, filho do sol, teve, como aquele que lhe deu origem, de brilhar com sua luz própria na Via Láctea, como uma pequenina estrela. Tendo o globo resfriado, passou de estado gasoso ao estado líquido, pastoso, em seguida, cada vez mais denso, até sua completa solidificação. Mas nessa fornalha primitiva, a associação dos gases fez-se de modo que suas diferentes combinações dessem origem aos materiais fundamentais que formam a composição da Terra: minerais, metais, gases que permanecem livres, em suspensão na atmosfera.
O resfriamento, operando-se pouco a pouco, fez com que a ação da água e da atmosfera sobre os minerais tivessem ajudado a formar uma camada de terra vegetal; durante esse tempo, a associação do hidrogênio, do oxigênio, do carbono e do azoto conseguiram formar, no seio das águas, uma espécie de geleia orgânica, sem forma definida, sem órgão, sem consciência, mas já dotada de movimento, empurrando prolongamentos de sua massa para o lado que queria ir, ou melhor, do lado em que a atração fazia-se sentir sobre ela, e, da faculdade de assimilar os corpos estranhos que se agarravam à sua massa e deles nutrir-se. Enfim, a última faculdade: a um certo grau de desenvolvimento, poder cindir-se em duas e dar origem a um novo organismo semelhante a seu progenitor.
Eis os modestos começos da humanidade! Tão modestos que foi bem mais tarde, após um longo período de evolução, após a formação de um certo número de tipos na cadeia dos seres, que se chegou a distinguir o animal do vegetal.
Por isso, mais tarde, quando as relações entre o darwinismo e a sociologia me chamaram a atenção, não pude concordar com nenhuma das obras e panfletos escritos sobre esse tema tão importante. Todos eles tentavam provar que os seres humanos, devido à superioridade de sua inteligência e de seus conhecimentos, podiam mitigar entre si a dureza da luta pela vida. Mas, ao mesmo tempo, todos eles concordavam que a luta pelos meios de subsistência, a luta de todo animal contra seus semelhantes, e de cada ser humano contra todos os outros, era uma “lei da Natureza”. Eu não podia aceitar esse ponto de vista, porque estava convencido de que admitir uma implacável guerra interna pela vida no seio de cada espécie — e ver nessa guerra uma condição de progresso — era admitir algo que não só não havia ainda sido provado, como também não fora confirmado pela observação direta.
Os fatos não são novos, mas a maneira de concebê-los é que está em vias de evoluir, e se fosse preciso caracterizar esta tendência em poucas palavras, poder-se-ia dizer que, se outrora a ciência dedicava-se a estudar os grandes resultados e as grandes somas (as integrais, diria o matemático), hoje ela dedica-se, sobretudo, a estudar os infinitamente pequenos, os indivíduos que compõem essas somas, e das quais acabou por reconhecer a independência e a individualidade, ao mesmo tempo com sua íntima agregação.
É certo, com efeito, que, à medida que o cérebro humano liberta-se das ideias que lhe foram inculcadas pelas minorias de padres, chefes militares, juízes, empenhados em firmarem o seu domínio, e de homens de ciência pagos para o perpetuarem, surgiu uma concepção da sociedade em que não há lugar para aquelas minorias dominadoras; ela compreende no seu seio uma variedade infinita de capacidades, temperamentos, e energias individuais: não exclui ninguém.
O homem do povo não raciocina sobre abstrações, pensa em termos concretos, e por isso sente que a abstração ‘Estado’ revestiria para ele a forma de numerosos funcionários, escolhidos entre os seus camaradas de fábrica ou de oficina: excelentes camaradas hoje, seriam amanhã gerentes insuportáveis.
É somente pela abolição do Estado, pela conquista da liberdade inteira do indivíduo, pelo livre acordo, pela associação e pela federação absolutamente livres, que poderemos chegar ao comunismo.
O Estado é apenas uma das formas da vida social, ainda muito recente para as nossas sociedades. O homem viveu milhares de anos antes que se constituíssem os primeiros Estados. Conhecem-se os meios pelos quais essa associação entre o senhor, o padre, o mercador, o juiz, o soldado e o rei assentou o seu domínio. Foi pelo aniquilamento de todos os contratos livres: comunidades de aldeia, guildas,compagnonnages1, fraternidades, conjurações medievais. Foi pelo confisco das terras da comuna e das riquezas das guildas; foi pela proibição absoluta e feroz de toda a espécie de livre entendimento entre os homens; foi pelo massacre, pela roda, pela forca, pela espada, e pelo fogo que a Igreja e o Estado estabeleceram seu domínio, que conseguiram reinar doravante em aglomerações incongruentes de súditos.
Os que souberem despertar o espírito de iniciativa nos indivíduos e nos grupos, os que chegarem a criar nas suas relações mútuas uma ação e uma vida baseadas nestes princípios, os que compreenderem que a variedade, o próprio conflito, é a vida, e que a uniformidade é a morte, trabalharão não para os séculos futuros, mas verdadeiramente para a próxima revolução.

HARMONIA E ANARQUIA
Censuram-nos, com frequência, por aceitarmos como divisa esta palavra, que faz tanto medo a muitos espíritos: anarquia. “Vossas ideias são excelentes — dizem-nos — mas confessai que o nome de vosso Partido é uma escolha infeliz. Anarquia, na linguagem corrente, é sinônimo de desordem, caos; esta palavra desperta no espírito a ideia de interesses que se entrechocam, de indivíduos que fazem guerra entre si, que não podem conseguir estabelecer a harmonia.”
Tratemos, entretanto, de nos entender. De que ordem se trata? Aqueles que censuram a anarquia, dizendo ser ela a negação da ordem, não falam da harmonia do futuro; falam da ordem tal como é concebida pela sociedade atual! Vejamos, pois, o que é esta ordem que a anarquia quer destruir.
Reduzir nove décimos da Humanidade ao estado de besta de carga, vivendo o dia-a-dia, sem nunca ousar pensar nos prazeres proporcionados ao homem pelo estudo das Ciências, pela criação artística — eis a ordem!
A ordem é a miséria, a fome, tornadas estado normal da sociedade.
É o fantasma do operário insurreto às portas do rico, o fantasma do povo insurreto às portas dos governantes.
A ordem é uma minoria ínfima, educada nas cátedras governamentais, que se impõe, por esta razão, à maioria, e que prepara seus filhos para ocupar mais tarde as mesmas funções, a fim de manter os mesmos privilégios, pela astúcia, pela corrupção, pela força, pelo massacre.
A ordem é a guerra contínua de homem a homem, de profissão a profissão, de classe a classe, de nação a nação.
A ordem é a servidão, o acorrentamento do pensamento, o aviltamento da raça humana, mantida pelo ferro e pelo açoite.
A ordem, enfim, é o banho de sangue da Comuna de Paris. É a morte de trinta mil homens, mulheres e crianças, despedaçados pelos obuses, metralhados, enterrados na cal viva sob as ruas de Paris. É o destino da juventude russa, emparedada nas prisões, enterrada na neve da Sibéria, da qual, os melhores, os mais puros, os mais devotados representantes, morrem pela corda do carrasco.
Eis a ordem!
E a desordem — o que eles chamam de desordem?
É a insurreição do povo contra esta ordem ignóbil, quebrando seus grilhões, destruindo os obstáculos e caminhando para um futuro melhor. É o que a Humanidade tem de mais glorioso em sua História.
É a revolta do pensamento às vésperas das revoluções; é a derrubada das hipóteses sancionadas pela imobilidade dos séculos precedentes; é a eclosão de todo um fluxo de novas ideias, de invenções audaciosas, é a solução dos problemas da Ciência.
A desordem é a abolição da escravidão antiga, é a insurreição das comunas, a abolição da servidão feudal, são as tentativas de abolição da servidão econômica.
A desordem — o que eles denominam desordem — são as épocas durante as quais o gênio popular toma seu livre impulso e dá, em alguns anos, passos gigantescos, sem os quais o homem teria permanecido no estado de escravidão antiga, de ser rastejante, aviltado na miséria.
A desordem é a eclosão das mais belas paixões e das maiores dedicações, é a epopeia do supremo amor pela Humanidade!
Tomando a anarquia como ideal da organização política, não fazemos mais do que formular também outra pronunciada tendência da humanidade. E vemos na história que os períodos durante os quais foram derrubados os governos em consequência de revoluções parciais ou gerais, foram épocas de repentino progresso no terreno econômico e intelectual.
E se observamos o desenvolvimento presente das nações civilizadas, vemos um movimento cada vez mais acentuado em pró de limitar a esfera de ação do governo e deixar cada vez maior liberdade ao indivíduo. A humanidade tende a reduzir a zero a ação dos governos, isto é, a abolir o Estado, essa personificação da injustiça, da opressão e do monopólio. Certamente que a ideia de uma sociedade sem Estado provocará pelo menos tantas objeções como a economia política de uma sociedade sem capital privado. Todos nós fomos amamentados com preconceitos a respeito das funções providenciais do Estado.
Quanto à harmonia que o espírito humano descobre na natureza, e que, no fundo, não é mais do que a constatação de uma certa estabilidade dos fenômenos, o homem de ciência moderno reconhece-a sem dúvida hoje mais do que nunca. Mas ele não procura explicá-la pela ação das leis concebidas segundo um certo plano, preestabelecidas por uma vontade inteligente.
O que se chamava “lei natural” não é mais do que uma aproximação entre certos fenômenos, entrevista por nós; e cada 'lei' natural assume um caráter condicional, isto é: se tal fenômeno se produzir em tais condições, seguir-se-á tal fenômeno. Nada de leis existentes fora do fenômeno: é o fenômeno e não a lei que determina aquele que lhe sucede. Nada há de preconcebido no que nós chamamos a harmonia da natureza. Bastou para estabelecê-la o acaso dos choques e dos encontros.
A harmonia aparece assim como equilíbrio temporário, estabelecido entre todas as forças, como uma adaptação provisória; e este equilíbrio só durará com uma condição: a de se modificar continuamente, representando em cada instante a resultante de todas as ações contrárias. A força acumulará seu efeito, deve abrir caminho, deve exercer sua ação, e se outras forças impedem que se manifeste não se aniquilará por isso, mas acabará por romper o equilíbrio, por quebrar a harmonia, por reencontrar uma nova posição de equilíbrio, e trabalhar em uma nova adaptação. Tal como a erupção de um vulcão, cuja força aprisionada acabou por despedaçar as lavas petrificadas, que o impediam de projetar gases, lavas e cinzas incandescentes. Tais são as revoluções.

A GUERRA
A guerra permanente deve rebentar a favor do direito de primazia nos mercados. Guerras pelas possessões no Oriente, guerras pelo império dos mares, guerras para impor direitos de entrada e ditar condições aos vizinhos; guerras contra os que se revoltam! Na Europa o canhão nunca está calado, gerações inteiras são massacradas e os Estados gastam em armamentos o terço das suas receitas — e bem se sabe o que são os impostos e o que custam ao pobre.
Quando a guerra atual [1914] começou, envolvendo praticamente toda a Europa numa terrível batalha, e quando — naquelas partes da Bélgica e da França que foram invadidas pelos alemães — essa batalha assumiu uma escala nunca vista de destruição em massa da vida de civis e de pilhagem dos meios de subsistência da população em geral, “a luta pela vida” tornou-se a explicação favorita daqueles que tentaram achar uma desculpa para esses horrores.
Mas, se a importância da ajuda e do apoio mútuo entre os animais começa a ser reconhecida entre os pensadores modernos, ainda não se pode dizer que isso está acontecendo em relação à segunda parte de minha tese: a importância desses dois fatores na história do Homem, tendo em vista o crescimento de suas instituições sociais progressistas.
Os líderes do pensamento contemporâneo ainda tendem a afirmar que as massas têm pouco interesse pela evolução das instituições sociais do homem e que todo progresso feito nessa direção se deveu a líderes intelectuais, políticos e militares das massas inertes.
Não foram as massas das nações europeias que prepararam a presente guerra-calamidade, nem foram elas que forjaram seus métodos bárbaros: foram seus líderes, seus líderes intelectuais. Em parte alguma as massas do povo tiveram voz no preparo da carnificina atual, e menos ainda na criação dos métodos atuais da guerra, que representam uma desconsideração total pelo que julgávamos ser a melhor herança da civilização.
As camponesas que, ao ver prisioneiros de guerra alemães e austríacos arrastando-se exaustos pelas ruas de Kiev, colocam em suas mãos pão, maçãs e às vezes, uma moeda de cobre; os milhares de homens e mulheres que cuidam dos feridos, sem fazer qualquer distinção entre amigo e inimigo, oficial ou soldado; as mulheres e os velhos camponeses franceses e russos deixados para trás em suas aldeias, que decidem nas assembleias do povo de sua aldeia arar e semear os campos dos que estão “lá”, sob o fogo inimigo; as cozinhas cooperativas e popottes communistes que surgiram em toda a França; a ajuda espontânea da Inglaterra e dos Estados Unidos à nação belga e à Polônia devastada pelo povo russo, ambos esses empreendimentos implicando uma quantidade tão imensa de energia e trabalho voluntário, organizado com tanta liberdade que desaparece todo caráter de “caridade”, tornando-o mera ajuda de vizinhos, todos esses fatos e muitos outros parecidos são as sementes de novas formas de vida.
E o Estado não pode reconhecer no seu seio uma união livremente consentida, por esta simples razão: é que o Estado só quer súditos.

EDUCAÇÃO
O homem não é um ser que possa viver exclusivamente para comer, beber e procurar um abrigo. Desde que tenha satisfeito as exigências materiais, as necessidades a que se possa atribuir um caráter artístico se apresentarão tanto mais artísticas e ardentes. Tantos indivíduos, tantos desejos; quanto mais civilizada for a sociedade, mais a individualidade for desenvolvida, mais esses desejos serão variados.
Só uma grande ideia pode inspirar a arte. A arte é no nosso ideal sinônimo de criação. Deve lançar os seus ideais para frente, mas salvo algumas raras, muito raras exceções, o artista de profissão fica muito ignorante, muito burguês, para entrever os horizontes novos. Esta inspiração, além disso, não pode sair dos livros: deve ser exaurida na vida e a sociedade atual não a poderia dar.
Outros socialistas repudiam o Falanstério. Mas quando se lhes pergunta como se poderia organizar o trabalho doméstico, respondem: “Cada um fará o seu próprio trabalho”. “Minha mulher satisfaz bem o da casa: as burguesas que façam o mesmo”. E se é um burguês socializante que fala, ele atira à sua mulher, com um sorriso gracioso: “Não é assim, querida, que você passaria bem sem criada numa sociedade socialista? Você faria, não é? Como a mulher do nosso valente amigo Paulo, ou do João, o marceneiro, que você conhece?” E a mulher responde-lhe com um sorriso agridoce: “Sim, querido”, dizendo para si que, felizmente, isso virá para as calendas gregas. Criada ou esposa, é ainda e sempre com a mulher que o homem conta para se desencarregar dos trabalhos da casa. Mas a mulher também reclama — enfim — a sua parte de emancipação da humanidade. Não quer ser a besta de carga da casa.
Os anarquistas rejeitam a organização do casamento. Eles dizem que dois seres que se amam não precisam de permissão de um terceiro para se deitarem juntos; a partir do momento que sua vontade leva-os a tomar esta decisão, a sociedade nada tem a ver com isso, e menos ainda a interferir.
Os anarquistas dizem o seguinte: pelo fato de que se deram um ao outro, a união do homem e da mulher não é indissolúvel, não estão condenados a terminar seus dias juntos se acontecer de se tornarem antipáticos um ao outro. O que sua livre vontade formou, sua livre vontade pode desfazer.
Sob o império da paixão, sob a pressão do desejo, só viram suas qualidades recíprocas, e cerraram os olhos para seus defeitos; uniram-se, e eis que a vida em comum desfaz as qualidades, faz sobressair os defeitos, revela ângulos que eles não sabem arredondar. Vamos lá! Já é hora de voltar a noções mais sãs. O amor entre um homem e uma mulher não foi sempre mais forte do que as leis, do que todas as hipocrisias e todas as reprovações que quiseram ligar à realização do ato sexual?
Apesar da vergonha que se quis lançar sobre a mulher que enganava seu marido — não falamos do homem, que sempre soube ficar bem à vontade em matéria de moral e bons costumes —, malgrado o papel de pária reservado em nossas sociedades pudicas à mãe solteira, isso impediu, por um único momento, as mulheres de fazer seus maridos cornos; as moças de se entregar àqueles que lhes havia agradado, ou se aproveitar do momento em que os sentidos falavam mais forte que a razão?
O anarquista respeita a vida humana, luta pela abolição da pena de morte, da tortura e de qualquer forma de castigo imposta ao homem pelo homem. Todos os outros demonstram a cada dia seu mais total desrespeito pela vida humana. Matar o inimigo ou torturá-lo na prisão, eis os princípios que defendem. Eles apenas colhem os frutos de seus próprios ensinamentos.
A educação que todos nós recebemos na escola do Estado — na chamada escola oficial — vicia de tal modo os nossos cérebros que a própria noção de liberdade acaba por se extraviar, por se converter em servidão.
Triste espetáculo é o de ver aqueles que se julgam revolucionários consagrar o mais profundo ódio aos anarquistas — só porque as concepções dos anarquistas sobre a liberdade ultrapassam as concepções, mesquinhas e estreitas, que eles têm sobre o assunto, concepções essas que eles adquiriram na escola oficial do Estado! E, entretanto, este espetáculo é um fato real e positivo. É que o espírito de servidão voluntária foi sempre cultivado habilmente nos cérebros juvenis; e, atualmente, ainda segue a mesma norma, para perpetuar a submissão do indivíduo ao Estado.

AUTORIDADE E PROPRIEDADE
É o crescimento contínuo e a ampliação das funções do Estado, embasado nessa fundação bem mais sólida do que a religião ou o direito de hereditariedade — a lei. Enquanto dura o Estado, enquanto a lei permanecer sagrada aos olhos dos povos, enquanto as revoluções futuras trabalharem pela manutenção e ampliação das funções do Estado e da lei, os burgueses conservarão o poder e a dominação das massas. A constituição do Estado onipotente pelos juristas é a origem da burguesia, e é ainda o Estado onipotente que faz a força atual da burguesia. Pela lei e pelo Estado, os burgueses apoderaram-se do capital e constituíram sua autoridade. Pela lei e pelo Estado, eles a mantêm. Pela lei e pelo Estado, prometem ainda reparar os males que corroem a sociedade.
O líder do Estado não se separaria do chefe da oposição, e o promotor, do advogado, senão no dia em que aquele pusesse em dúvida a própria instituição do parlamento, e se o advogado tratasse o próprio tribunal como autêntico niilista, isto é, se negasse seu direito à existência. Então, mas só então, poderia separar-se. Enquanto isso estão unidos para consagrar seu ódio àqueles que minam a supremacia do Estado e destroem o respeito pela autoridade. Contra estes eles são implacáveis. E se os burgueses da Europa inteira consagram tanto ódio aos trabalhadores da Comuna de Paris, é porque criam ver neles autênticos revolucionários, prontos a lançar ao mar o Estado, a propriedade e o governo representativo. Compreende-se, assim, qual força esse culto comum do poder hierárquico dá à burguesia.
Hoje, na medida em que se desenvolve a capacidade de produção, o número dos ociosos e dos intermediários aumenta prodigiosamente. Tudo ao contrário do que se dizia antes entre socialistas, que o capital chegaria a concentrar-se em um tão pequeno número de mãos que não haveria mais senão expropriar alguns milionários para entrar na posse das riquezas comuns, o número dos que vivem à custa do trabalho alheio é cada vez mais considerável.
Todos nós fomos educados, desde as tradições romanas e as ciências professadas nas universidades, a crer no governo e no Estado-Providência. Para manter esse prejuízo elaboraram-se sistemas de filosofia; teorias da lei são redigidas com o mesmo fim. Toda a política se baseia neste princípio e cada político, de qualquer divisa, vem sempre dizer ao povo: “Dai-me o poder, eu quero e posso libertar-vos das misérias que vos oprimem”.
Sem a tese da origem sobrenatural do homem, a ideia segundo a qual a sociedade tal como existe, com sua divisão de ricos e pobres, governos e governados, decorrente de uma vontade divina, também não se sustenta mais. A autoridade que se apoiou por tanto tempo em sua origem supranatural, fábula que contribui — ao menos tanto quanto a força bruta — para mantê-la e, com ela, a propriedade que ela tinha por missão defender, vê-se, ela também, forçada a acantonar-se por trás das razões mais concretas e mais sustentáveis.
O proprietário, desejando transmitir a seus descendentes o fruto de suas rapinagens, modelou a família a fim de assegurar sua supremacia sobre a mulher e, para poder, em sua morte, transmitir seus bens a seus descendentes, foi preciso tornar a família indissolúvel. O casamento atual equivale à prostituição mais desavergonhada.
Todavia, um mal ainda mais profundo do sistema atual afirma-se cada vez mais. É que na ordem de apropriação privada, tudo o que serve para viver e produzir — a terra, a habitação, o alimento e a ferramenta — uma vez passados às mãos de alguns, estes impedem continuamente que se produza o que é necessário para dar o bem-estar a cada um.
Obrigatoriamente a abundância de uns será baseada na pobreza de outros, e o mal-estar da maioria deverá ser mantido a todo o custo, a fim de haver braços que se vendam por uma parte apenas daquilo que são capazes de produzir; sem isso, nada de acumulação privada do capital!
Esses traços característicos de nosso sistema econômico fazem dele sua própria essência. Sem eles, não pode existir; porque, quem venderia então a sua força de trabalho por menos daquilo que ela é capaz de produzir, se não fosse forçado a isso pela ameaça da fome? E esses traços essenciais do sistema são também a sua mais esmagadora condenação.
Cada nação acha vantagem em combinar entre si a agricultura com a maior variedade possível de oficinas e de manufaturas. A especialização que os economistas nos têm falado era boa para enriquecer alguns capitalistas, mas não tem nenhuma razão de ser, e há, pelo contrário, toda a vantagem em que cada país, cada bacia geográfica possa cultivar seu trigo e os seus legumes e fabricar em sua casa todos os produtos manufaturados que consome. Esta diversidade é o melhor penhor do desenvolvimento completo da produção pelo concurso mútuo e de cada um dos elementos do progresso: enquanto a especialização é a suspensão do progresso.
A agricultura não pode prosperar senão ao lado das oficinas. E desde que uma única oficina apareça, uma variedade infinita de outras oficinas de toda a espécie deve surgir em volta dela, a fim de que, ajudando-se mutuamente, estimulando-se umas às outras por suas invenções, se acrescentem juntas.

LEIS E PUNIÇÕES
Nos Estados atuais, uma nova lei é considerada como um remédio a todos os males. Ao invés de cada um mudar por si mesmo o que é ruim, começa-se por pedir uma lei que o modifique. Uma lei sobre as estradas, uma lei sobre os costumes, uma lei sobre os cães raivosos, uma lei sobre a virtude, uma lei para opor um dique a todos os vícios, a todos os males que são tão-somente o resultado da indolência e da covardia humanas!
Nossas sociedades parecem não mais compreender que se possa viver de outra forma senão sob o regime da lei, elaborada por um governo representativo e aplicada por um punhado de governantes; e, mesmo quando conseguem emancipar-se deste jugo, seu primeiro cuidado é o de retomá-lo de imediato.
O radical pede uma extensão maior das liberdades políticas, enquanto se apercebe que o sopro da liberdade rapidamente conduz ao levantamento dos proletários; e então recua, muda de opinião, e volta às leis de exceção e ao governo do sabre. Uma legião de autoridades é necessária para manter os privilégios e este mesmo conjunto torna-se a origem de todo um sistema de delações, mentiras, ameaças e de corrupção. Hipocrisia e sofisma tornam-se a segunda natureza do homem civilizado.
A um exame atento, as milhares de leis que existem para regular a humanidade parecem estar divididas em três categorias principais: proteção da propriedade, proteção dos indivíduos, proteção do governo. E, analisando cada uma dessas categorias, chegamos a uma única e inevitável conclusão lógica e necessária: a inutilidade e perniciosidade das leis.
E muitas das nossas leis criminais têm o mesmo objetivo em vista, tendo sido criadas para manter o trabalhador numa posição de subordinação em relação ao patrão, proporcionando a segurança necessária para que a exploração continue.
No dia da Revolução, os revolucionários sociais estarão firmemente decididos a acabar com todas elas. E, na verdade, nada mais justo do que fazer-se uma grande fogueira ao ar livre lançando nela todas as leis que tratassem dos assim chamados “direitos de propriedade”, todos os títulos de propriedade, todos os registros e escrituras...
Os socialistas sabem o que significa proteção da propriedade. As leis que regulam a propriedade não foram criadas para garantir, nem ao indivíduo nem à sociedade o gozo do produto do seu trabalho. Pelo contrário, elas foram criadas para despojar o produtor de uma parte daquilo que ele produziu e para garantir a outras pessoas a posse daquela porção do produto que foi roubado, ou do produtor em particular ou da sociedade em geral. E é precisamente porque essa apropriação — e todas as outras formas de propriedade que tenham as mesmas características — é uma injustiça gritante que é necessário todo um arsenal de leis e um exército de soldados, policiais e juízes para mantê-las contra o bom senso e o sentimento de justiça inerentes à humanidade.
As observações que acabamos de fazer a respeito das leis sobre a propriedade poderiam ser aplicadas também à segunda categoria de leis: aquelas destinadas a manter os governos, ou seja, as leis constitucionais. É outra vez um arsenal de leis, decretos, disposições, decisões de conselhos e o que mais houver criados com o fim de proteger as diversas formas de governo, seja ele representativo, delegado ou usurpado, sob cujo tacão a humanidade se contorce. Sabemos bem — e os anarquistas não cansam de demonstrá-lo em suas eternas críticas contra as várias formas de governo — que a missão de todos os governos, monárquicos, constitucionais ou republicanos, é proteger e manter através da força, os privilégios das classes dominantes: a aristocracia, o clero e os comerciantes.
Resta considerar a terceira categoria, aquela que diz respeito à proteção dos indivíduos e ao combate e prevenção do "crime", a mais importante delas, já que a maior parte dos preconceitos a ela está vinculada; porque, se desfruta de uma consideração especial, é em consequência da crença de que este tipo de lei é absolutamente indispensável à manutenção da segurança em nossas sociedades.
Essas leis, criadas a partir das práticas mais úteis às comunidades humanas, foram mais tarde aproveitadas pelos governantes como um dos meios para justificar sua própria dominação. A autoridade dos chefes das tribos, das famílias mais ricas da cidade e do rei dependia da função de juízes que desempenham o mesmo nos nossos dias: sempre que é discutida a necessidade da existência de um governo é o seu papel como juiz supremo que está sendo posto em questão. "Se não houvesse governo, os homens acabariam por destruírem-se uns aos outros" — diz o orador da aldeia. "O principal objetivo de todos os governos é assegurar a cada acusado o direito de ser julgado por doze homens honestos", afirmou Burke. Pois bem, apesar de todos os preconceitos que ainda existem em torno do tema, já é tempo de os anarquistas declararem, em alto e bom som, que esta categoria de lei é tão inútil e injuriosa quanto as precedentes.
Em primeiro lugar, quanto aos assim chamados "crimes" — assaltos contra pessoas — é sabido que pelo menos 2/3 e frequentemente 3/4 deles são instigados pelo desejo de apossar-se da fortuna alheia. Esta imensa classe de "crimes e delitos" desaparecerá no dia em que a propriedade privada deixar de existir. "Mas, dirão alguns, se não tivermos leis para contê-los e castigos para detê-los, sempre haverá bandidos para tentar contra a vida de seus semelhantes, que levarão a mão à faca em todas as lutas nas quais se envolverem e vingarão a mais insignificante ofensa com a morte". Este refrão é repetido sempre que se põe em dúvida o direito que a sociedade tem de punir os criminosos.
Entretanto, há um fato relacionado a este assunto que hoje já foi suficientemente provado: a severidade da pena não diminui a quantidade de crimes. Enforque e esquarteje os criminosos se quiser, e o número de crimes continuará igual. Elimine a pena de morte e não terá um crime a mais, eles diminuirão até. As estatísticas o provam. Mas se a colheita for boa, o pão barato e fizer bom tempo, o número de crimes cairá imediatamente. Isso também pode ser provado pelas estatísticas. A quantidade de crimes sempre aumenta ou diminui em proporção direta aos preços dos alimentos e ao estado do tempo. Não que a fome seja a causa de todos os crimes. Não é este o caso. Mas se a colheita é boa, e os alimentos podem ser comprados a um preço acessível; quando o sol brilha os homens, de corações mais leves e menos infelizes que de costume, não se entregam a paixões sombrias, nem mergulham a faca no peito de seu semelhante por motivos banais.
Além do mais, é também sabido que o medo do castigo nunca impediu que qualquer crime fosse cometido. Somos continuamente lembrados dos benefícios que a lei confere e dos efeitos benéficos do castigo, mas terão aqueles que nos falam tentado alguma vez fazer um balanço entre os benefícios atribuídos às leis e castigos e os efeitos degradantes que esses castigos tiveram sobre a humanidade? Tente calcular todas as perversas paixões que os atrozes castigos infligidos em nossas ruas despertaram na humanidade. O homem é o animal mais cruel que existe na face da Terra. E quem terá estimulado e desenvolvido esses instintos cruéis, desconhecidos mesmo entre os macacos, senão o rei, o juiz e os padres apoiados em leis que permitiam que a pele fosse arrancada em tiras, o breu fervente derramado sobre as feridas, os membros arrancados, os ossos esmagados, os homens despedaçados para que sua autoridade fosse mantida?
Tente avaliar a torrente de depravação libertada entre a sociedade humana pela política de delação encorajada pelos juízes e paga em dinheiro vivo pelos governos, a pretexto de auxiliar na descoberta de "crimes". Basta apenas que entre nas prisões e veja no que se transforma um homem privado da liberdade e encerrado com outros seres depravados, mergulhados no vício e na corrupção que escorre das próprias paredes das nossas prisões. Basta lembrar que, quanto mais reformas sofrem estas prisões, mais detestáveis se tornam.
Nossas modernas prisões-modelo são mil vezes mais abomináveis do que as masmorras da Idade Média. Finalmente, basta lembrar a corrupção e a depravação que existem entre os homens, alimentadas pela ideia da obediência — que é a própria essência da lei — da punição; da autoridade arrogando-se o direito de punir, de julgar sem considerar nem a nossa consciência, nem a estima de nossos amigos; da necessidade de que haja carrascos, carcereiros e informantes — em uma palavra, de todos os atributos da lei e da autoridade.
Pense em tudo isto e certamente concordará conosco quando afirmamos que uma lei que inflige punições é uma abominação que deveria deixar de existir.
Na próxima revolução, esperamos que o grito de guerra seja: "Queimem as guilhotinas, destruam as prisões, expulsem os juízes, os policiais e os informantes — a raça mais imunda que existe sobre a face da Terra; tratem como a um irmão o homem que foi levado pela paixão a praticar o mal contra seu semelhante; e, sobretudo, retirem dos ignóbeis produtos da ociosidade da classe média a possibilidade de exibir seus vícios sob cores atraentes, e estejam certos de que apenas uns poucos crimes violentos virão perturbar a nossa sociedade".
Chega de leis! Chega de juízes! Liberdade, igualdade e solidariedade humana são as únicas barreiras efetivas que podemos opor aos instintos antissociais de alguns seres que vivem entre nós.

PRISÃO
A origem da supressão sistemática da vontade individual dos prisioneiros, a sistemática redução de homens à condição de máquinas irracionais, executada durante os longos anos de encarceramento, é facilmente explicável: ela surgiu do desejo de impedir qualquer quebra da disciplina e da necessidade de manter o maior número possível de prisioneiros sob o controle do menor número possível de carcereiros. E, ao examinar a volumosa literatura que trata das prisões-modelo, podemos verificar que os maiores elogios são reservados exatamente àqueles sistemas que obtiveram resultados utilizando menos carcereiros.
A prisão que mata no homem toda vontade e toda força de caráter, que encerra nas suas paredes mais vícios do que se pode encontrar em qualquer outro ponto do globo, não foi ela sempre a universidade do crime? Não é a sala de um tribunal uma escola de ferocidade?
E assim sucessivamente.
É tão cômodo punir uma criança quando pratica uma travessura: isso acaba com toda a discussão!
Houve um tempo em que os loucos — que se julgava, fossem possuídos pelo demônio — eram tratados de maneira mais abominável que se possa imaginar. Acorrentados como animais eram temidos mesmo por aqueles que cuidavam deles. Abrir suas correntes e deixá-los em liberdade seria considerado então uma total insensatez. Então surgiu um homem — Pinel — que teve a coragem de abrir as suas correntes e oferecer-lhes palavras amigas e um tratamento fraterno. E aqueles homens que eram vistos como seres selvagens, sempre prontos a devorar qualquer ser humano que deles se aproximasse, cercaram seu libertador e provaram que ele estava certo quando mantinha a fé nas melhores características da natureza humana, afirmando que elas continuavam a existir mesmo entre os seres cuja inteligência fora ofuscada pela doença. A partir daquele momento, vencera a causa da humanidade. O louco deixou de ser tratado como uma besta selvagem, os homens reconheceram nele um irmão.
As correntes despareceram, mas os asilos — um novo nome para designar prisão — permaneceram e entre suas quatro paredes surgiu, aos poucos, um sistema tão terrível quanto o anterior. Foi então que os camponeses de um vilarejo belga, levados pelo bom senso e pela bondade que existia em seus corações, mostraram aos sábios e estudiosos das doenças mentais um novo caminho. Eles libertaram os doidos — abriram-lhes as portas de suas casas pobres, ofereceram-lhes um lugar a sua mesa, uma cama onde pudessem dormir, um lugar em suas fileiras para que cultivassem a terra, deixaram que frequentassem suas festas e bailes. E logo se espalhou a fama das “curas milagrosas” obtidas pelo santo a cujo nome fora consagrada a igreja de Ghell. O remédio aplicado pelos camponeses era tão antigo e tão simples — a liberdade —, que as pessoas cultas preferiam atribuir a cura à influência divina em lugar de aceitar a realidade. Mas não faltavam homens honestos e bondosos que compreendiam a força do tratamento criado pelos camponeses de Ghell, defendiam-no e dedicavam toda a sua energia à tentativa de vencer a inércia mental, a covardia e a indiferença do meio.
A liberdade e os cuidados fraternos provaram ser a melhor cura no nosso lado da supracitada e ampla fronteira “entre a insanidade e o crime”. O progresso fica naquela direção.
Diante da pergunta “o que fazer para melhorar o sistema penal?”, só há uma resposta: nada. É impossível melhorar uma prisão. Não se pode fazer absolutamente nada além de demoli-la.

A COMUNA DE PARIS
Durante cinco longos meses, Paris esteve cercada pelos alemães. Durante cinco meses, ela precisou lançar mão de seus próprios recursos vitais e de toda a força moral de que dispunha. Teve então a ideia de sua capacidade de resistência e percebeu o que ela significava. Percebeu também que o bando de tagarelas que havia tomado o poder não tinha a menor ideia sobre como organizar a defesa da cidade ou sobre como promover seu desenvolvimento interno. Viu um governo que se opunha a todas as manifestações de inteligência daquela metrópole poderosa. Entendeu, finalmente, que qualquer governo é importante para proteger-se das grandes catástrofes e incapaz de preparar o caminho para revolução. Durante o cerco, a cidade vira seus defensores, os operários, sofrendo as mais terríveis privações, enquanto os ociosos se regalavam em meio a um luxo insolente e, graças aos esforços do governo central, presenciara o fracasso de todas as tentativas de acabar com essa situação escandalosa. E cada vez que o povo demonstrava sinais de um desejo de libertar-se, o governo colocava novos grilhões na corrente. Essas experiências fizeram com que se chegasse naturalmente à conclusão de que Paris precisava libertar-se, tornar-se uma comunidade independente, capaz de satisfazer sozinha todas as aspirações de seus cidadãos.
No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris levantou-se contra o governo que desprezava e detestava e declarou que Paris era agora uma cidade independente, livre e dona do seu destino.
Esta derrubada do poder central aconteceu sem a costumeira encenação teatral que normalmente acompanha as revoluções. Não houve tiros e o sangue não chegou a correr sobre as barricadas. Quando o povo armado saiu às ruas, os governantes fugiram, as tropas abandonaram a cidade e os funcionários civis refugiaram-se apressadamente em Versalhes, levando tudo o que podiam. O governo se evaporou como uma poça de sangue estagnado em meio à brisa da primavera, e no dia 19 de março Paris se viu livre da sujeira que havia maculado, sem que tivesse corrido quase nenhuma gota de sangue de seus filhos. Sob o nome de “Comuna de Paris”, nasceu uma nova ideia que havia de se tornar o ponto de partida para as revoluções futuras.
Depois de ter cercado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo soltou sobre eles um bando de soldados embrutecidos pelo vinho e pela vida na caserna, homens que haviam sido publicamente instruídos para “acabar logo com os lobos e suas crias”.
Derribada dessa orgia louca, dos corpos empilhados após esse extermínio em massa, veio a vingança mesquinha, o chicote, os ferros, os golpes e insultos dos carcereiros, a quase-morte pela fome, enfim, todos os requintes da crueldade. Poderá o povo esquecer esses fatos?
Assim como nos parece desnecessária a existência de um governo fora da Comuna, deveríamos também perceber a inutilidade de um governo dentro dela.
Na Comuna a luta era pela conquista e manutenção da liberdade do indivíduo, pelo triunfo do princípio federativo, pelo direito de se unirem para a ação — enquanto que as guerras dos Estados tinham, e tem por objetivo anular estas liberdades, submeter o indivíduo, aniquilar a livre iniciativa, jungir os homens a uma mesma servidão perante o rei o juiz, o sacerdote e o Estado.
É neste ponto que reside toda diferença: há as lutas e os conflitos que matam; e há as lutas e os conflitos que impulsionam a humanidade pelos verdadeiros caminhos do progresso.

REVOLTA
Cidadãos e cidadãs, enquanto a sociedade reivindicar a lei de talião, enquanto a religião e a lei, a caserna e o tribunal, a prisão e a galé industrial, a imprensa e a escola continuarem a ensinar o desprezo supremo pela vida do indivíduo, não peçam aos revoltados que respeitem essa sociedade! Se quiser, como nós, que seja respeitada a liberdade inteira do indivíduo, e, consequentemente, a sua vida, deveis forçosamente repudiar o governo do homem pelo homem, seja qual for a sua forma; é-se forçado a aceitar os princípios da Anarquia. Deveis procurar, então, conosco, as formas da sociedade que melhor possam realizar este ideal, e por fim a todas as violências que nos revoltam.
E, hoje, a anarquia tem de carregar sobre seus ombros um fardo bem maior do que aquele de seus começos. Já não é uma simples luta contra camaradas de oficinas que se arrogam uma autoridade qualquer num agrupamento operário. Não é mais uma simples luta contra chefes de outrora, nem mesmo uma simples luta contra um patrão, um juiz ou um policial.
É tudo isso, sem dúvida, pois sem a luta de todos os dias, para que chamar-se revolucionário? A ideia e a ação são inseparáveis, se a ideia tem ascendência sobre o indivíduo; mas, sem ação, a própria ideia atrofia-se.
O anarquista deve apoiar a luta e a agitação de todos os dias contra opressores e preconceitos, manter o espírito de revolta em toda a parte onde o homem sente-se oprimido e possui a coragem de revoltar-se.
É aos jovens que quero falar. Que os velhos — os velhos de coração e de espírito, bem entendido — ponham o livro de lado para não fatigarem inutilmente seus olhos com uma leitura que nada lhes dirá.
Uma primeira questão, sei disso, apresenta-se. “O que eu me tornarei?” Você se perguntou muitas vezes. Com efeito, quando se é jovem, compreende-se que, após ter estudado uma profissão ou uma Ciência durante vários anos — à custa da sociedade, observe bem —, não é para fazer dela um instrumento de exploração, e seria preciso ser bem depravado, bem carcomido pelo vício, para nunca ter sonhado, um dia, aplicar sua inteligência, sua capacidade, seu saber, para ajudar a libertação daqueles que pululam hoje na miséria e na ignorância. Você é daqueles que sonharam, não é verdade? Bem, o que fará para que seu sonho se torne uma realidade?
Basta sair deste meio do qual você se encontra e onde é usual dizer que o povo nada mais é senão um monte de ignaros; venha para este povo e a resposta surgirá por si mesma.
De vez em quando chega um jovem, que sonha com tambores e barricadas e vem procurar cenas de sensação, mas deserta a causa do povo tão logo percebe que o caminho da barricada é longo, que o trabalho é penoso e que, neste caminho, nas coroas de louros que ele conquistar estarão misturados a espinhos. Com maior frequência, são ambiciosos insaciados, que, após terem fracassado em suas primeiras tentativas, procuram captar os votos do povo, porém mais tarde serão os primeiros a bradar contra ele, assim que este quiser aplicar os princípios que eles próprios professaram; talvez apontem os canhões contra a “vil multidão”, se ela ousar se mover antes que eles, os chefes, tenham dado o sinal.
Vocês, amadores de Ciência pura, se fossem tocados pelos princípios do socialismo, se compreenderam todo o alcance da revolução, que se anuncia, não observam que toda a Ciência deve ser refeita para que seja colocada de acordo com os novos princípios; que se trata de realizar neste domínio uma revolução cuja importância deve ultrapassar de muito aquela que se realizou nas Ciências no século XVIII? Não compreendem que a História — hoje “fábula convencionada”, sobre a grandeza dos reis, das grandes personagens e dos parlamentos — deve ser toda reformulada do ponto de vista popular, do ponto de vista do trabalho realizado pelas massas nas evoluções da Humanidade? Que a Economia social — hoje, consagração da exploração capitalista — deve ser toda elaborada de novo, tanto em seus princípios fundamentais quanto em suas inumeráveis aplicações? Que a Antropologia, a Sociologia, a Ética devem ser por inteiro remanejadas e que as próprias Ciências Naturais, encaradas sob um novo ponto de vista, devem sofrer uma profunda modificação quanto à maneira de conceber os fenômenos naturais e ao método de exposição? Pois bem, faça! Coloque sua inteligência a serviço de uma boa causa! Sobretudo, porém, venha nos ajudar com sua lógica rigorosa para combater os preconceitos seculares, para elaborar, pela síntese, as bases de uma organização melhor; sobretudo, ensine-nos a aplicar em nossos raciocínios a ousadia da verdadeira investigação científica e, dando o exemplo, mostre-nos como se sacrifica à vida pelo triunfo da verdade!
Enfim, vocês todos, que possuem conhecimentos, talentos, se têm coração, venham, pois, vocês e seus companheiros, colocá-los a serviço daqueles que mais precisam. E saibam que, se vierem não como senhores, mas como camaradas de luta; não para governar, mas para se inspirar em um novo meio; menos para ensinar do que para conceber as aspirações das massas, adivinhá-las e formulá-las, e depois trabalhar, sem descanso, continuamente, com todo o ímpeto da juventude, a fazê-los entrar na vida — saiba que, então, mas só então, você viverá uma vida completa, uma vida racional. Verá que cada um de seus esforços feitos neste sentido produz amplamente seus frutos — e este sentimento de acordo, estabelecido entre seus atos e mandamentos de sua consciência, lhe dará forças que você não suspeitava existir em você mesmo.
É fácil para mim ser mais breve falando aos jovens do povo. O socialismo moderno saiu das próprias profundezas do povo. Se alguns pensadores, oriundos da burguesia, vieram trazer-lhe a sanção da Ciência e o apoio da Filosofia, o fundamento das ideias que eles anunciaram não deixa de ser um produto do espírito coletivo do povo trabalhador. Este socialismo racional da Internacional, que é hoje nossa melhor força, não foi ele elaborado nas organizações operárias, sob a influência direta das massas? E os poucos escritores, que ofereceram seu concurso a este trabalho de elaboração, não fizeram outra coisa senão encontrar a fórmula das aspirações, que já emergiam entre os operários?
Todos vocês, jovens sinceros, homens e mulheres, camponeses, operários, empregados e soldados, compreendam seus direitos e venham conosco; venham trabalhar com seus irmãos para preparar a revolução que, abolindo toda escravidão, quebrando todas as correntes, rompendo com as velhas tradições e abrindo a toda Humanidade novos horizontes, virá enfim estabelecer nas sociedades humanas a verdadeira Igualdade, a verdadeira Liberdade, o trabalho para todos, e também para todos os plenos gozos dos frutos de seu trabalho, o pleno gozo de todas suas faculdades; a vida racional, humanitária e feliz!

REVOLUÇÃO
É, precisamente, sobre a questão do Estado que os socialistas se encontram divididos. Assim, no conjunto das facções que existem entre nós e que correspondem aos diferentes temperamentos, às diversas maneiras de pensar, e, sobretudo, ao grau de confiança na próxima revolução, esboçam-se duas grandes correntes.
Uma é composta de indivíduos que procuram fazer a revolução social dentro do Estado, mantendo a maior parte das suas atribuições, ampliando-as, inclusive para utilizá-las em benefício daquilo que preconizam. A outra é composta de criaturas que, como nós, vemos no Estado — não apenas na sua forma atual, mas até na sua própria essência e sob todas as fórmulas de que possa revestir-se –—um obstáculo à revolução social, um tropeço, por excelência, ao desenvolvimento de uma sociedade baseada na igualdade e na liberdade. E, mais ainda: os anarquistas veem no Estado a fórmula histórica elaborada para impedir o florescimento da sociedade norteada por esses dois princípios. Consequentemente, os anarquistas trabalham para abolir o Estado, e não para reformá-lo.


BIBLIOGRAFIA
Aos jovens (1880). In. Revista Libertárias, n. 4 (Rebeldias). São Paulo: Coletivo Libertárias, 1998.
A Ordem (1881). In. A anarquia: sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Nu-Sol/Imaginário/Coletivo Anarquista Brancaleone, 2001.
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Las cárceles y su influencia moral sobre los presos (1887). Discurso pronunciando por Piotr Kropotkin em Paris eem 20 de dezembro de 1887. Disponível em:http://abajolosmuros.files.wordpress.com/2009/11/kropotkin-piotr-las-carceles-y-su-influencia-moral-sobre-los-presos1.pdf
O comunismo anarquista (1888). In A conquista do pão. Disponível em: https://crabgrass.riseup.net/assets/71280/kropotkin-a-conquista-do-pao.pdf.
A conquista do pão (1892). Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1953.
A lei e a autoridade (1895) . In. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário/Ícone Editora: 2005.
A Comuna de Paris (1895). In Woodcock, op.cit.
O Estado e seu papel histórico (1896). São Paulo: Nu-Sol/Imaginário/Soma, 2000.
Palavras de um revoltado (1895). São Paulo: Imaginário, 2005.
A anarquia: sua filosofia, seu ideal (1896). São Paulo: Nu-Sol/Imaginário/Soma, 2000.
Ajuda mútua: um fator de evolução (1902). São Sebastião : A Senhora Editora, 2009.
A ação anarquista na revolução (publicado em Les temps nouveaux 1913). In. O princípio anarquista e outros ensaios.

1 O companheirismo era uma prática entre artesãos e aprendizes que foi capturada pelos sindicatos a partir da industrialização (Nota dos Editores).