quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Práticas clínicas no território


por Analice de Lima Palombini
As práticas clínicas, em sua diversidade e especificidades, devem sempre ser pensadas no contexto de um território, concebido como um espaço político de diferenças, desigualdades, conflitos e crenças singulares. O território não pode ser reduzido à casa onde se vive ou aos lugares frequentados pelo cidadão. O território não apenas circunda ou circunscreve o espaço privado, ele é o espaço vivo e mutante que atravessa, dinamiza e complexifica as relações existentes entre público e privado. No entanto, muitas vezes, os serviços de atenção psicossocial estão superlotados, a equipe está cansada e acaba se limitando às práticas regulares dentro do serviço. Outras vezes, a saída do serviço se dá apenas em casos de forte necessidade, como em visitas domiciliares e acompanhamento em caso de emergências. Nem sempre há uma relação orgânica e integrada com a estratégia de saúde da família e demais recursos do território. Como clinicar tecendo redes que propiciem a busca ativa de novas oportunidades de vida, do convívio e trocas com a cultura, seus impasses e saída possíveis? Como pensar neste contexto as relações entre a ciência e a cultura e seus processos de controle social, e suas relações com a política pública? Como construir estratégias que possibilitem a ampliação do cuidado no território, com os usuários e familiares? Que espaços temos criado para aumentar nosso conhecimento, práticas clínicas e sócio-culturais no território de referência? Há estímulo para se conhecer os recursos sócio-educacionais e a vida comunitária e cultural da população no território, e para a participação dos usuários e familiares neles? Há incentivo para ações e eventos comuns com as organizações comunitárias e movimentos sociais da área? As equipes conhecem e valorizam os recursos voluntários existentes no território? A equipe realiza alguma forma de acompanhamento terapêutico ou de suporte na vida diária? Promove grupos de ajuda e suporte mútuos na comunidade? Existem ações matriciais e/ou integradas com as equipes de saúde da família?
PRÁTICAS CLÍNICAS NO TERRITÓRIO
Conforme as diretrizes que orientam o sistema único de saúde (SUS) e a política nacional de saúde mental, a noção de território compreende não apenas uma área geográfica delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida comunitária. Território é lugar de vida, de caráter processual, produtor de relações que podem ser tanto identitárias como de diferença, onde têm lugar o conflito e sua negociação.
No livro O declínio do homem público, Richard Sennett propõe a seguinte definição de cidade: “assentamento humano onde está dada a possibilidade de encontro com o estranho”. Podemos aplicá-la à idéia de território que tem a heterogeneidade como sua marca: um território vivo é aquele que permite o encontro com o outro, com o que difere de mim, cumprindo, assim, uma função de alteridade que faz com que eu me torne diferente do que era.
Com efeito, a subjetividade se faz na relação ao outro, articulando singular e coletivo, indivíduo e sociedade, dentro e fora. É nesse entremeio que a clínica opera, como abertura à produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo, implicando transformações subjetivas. 
É próprio à clínica, portanto, que sua prática se dê no território, que ela busque multiplicar possibilidades de vida, provocando o alargamento dos modos de habitar o território para que a diferença possa nele ter lugar.
Uma tal concepção de clínica – a que se chamou de “clínica ampliada” –, se, por um lado, pode encontrar sustentação teórica em um autor seminal como Freud, que propõe o psíquico como esse ponto de articulação entre o singular e o coletivo, por outro é resultado do processo social e político implicado na consolidação do Sistema Único de Saúde em nosso país, determinante de transformações no modo de exercício da clínica. Ana Cristina Figueiredo (2009) aponta-nos três tempos dessa transformação:
- nos anos setenta, a passagem da clínica dos consultórios privados para os ambulatórios públicos, desprivatizando a clínica;
- nos anos noventa, o deslocamento dos ambulatórios públicos para os centros de atenção psicossocial (Caps), fazendo da clínica uma prática local, multiprofissional e interdisciplinar;
- na atualidade, a abertura dos Caps ao trabalho em rede, onde a clínica, ao mesmo tempo em que se estende ao território, também cede lugar a outras práticas, com as quais a responsabilidade pelo cuidado do usuário deixa de ser de um serviço, para ser compartilhada por diferentes atores do território.
A composição dessa rede é móbil, mutante. Ela acompanha os percursos próprios a cada usuário e as amarras singulares que vão se produzindo entre ele e as pessoas, gestos, objetos, lugares, serviços, organizações, que compõem o território onde vive. As práticas clínicas no território adquirem, assim, a característica da itinerância, indo ao encontro do usuário onde este estiver, acompanhando-o em seus percursos, buscando formas e espaços de expressão e conexão com o mundo.
Rubem Lemke, em sua dissertação de mestrado, ao abordar o tema da itinerância no contexto das políticas atuais de Saúde Mental e de Atenção Básica, destaca três modalidades clínicas de cuidado no SUS que se fazem nas andanças pelo território: a dos acompanhantes terapêuticos, dos redutores de dano e dos agentes comunitários. 
Resumidamente, essas três modalidades podem ser assim descritas: o acompanhamento terapêutico (AT) propõe uma clínica sem muros, que se faz no espaço aberto da cidade, acompanhando cotidianos de vida de forma a estabelecer laços entre o sujeito acompanhado e o território por ele habitado, utilizando o inesperado das ruas como matéria para as suas intervenções; a redução de danos (RD) promove ações de cuidado junto às pessoas que usam drogas e que habitualmente têm dificuldade de acesso aos serviços de saúde, com o objetivo de minimizar as conseqüências adversas do uso ou abuso de drogas; o agente comunitário (AC) promove a integração entre a equipe de saúde e a população de uma área definida, mantendo contato estreito com as famílias dessa área, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária.
Pautados pelos princípios da desinstitucionalização (reforma psiquiátrica) e da integralidade (reforma sanitária), acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários de saúde situam-se, igualmente, como atores de experiências que arriscam abandonar os ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida daquelas pessoas a quem se dirigem os seus cuidados, acompanhando essas pessoas em seus territórios existenciais. Apesar das suas especificidades e dos diferentes saberes envolvidos em cada uma dessas práticas, acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários têm a aprender um com o outro, podendo compartilhar ferramentas conceituais e estratégias clínicas diversas. Mais além disso, as funções encarnadas por cada um desses atores – ATs. RDs, ACS – não são sua prerrogativa exclusiva. Acompanhamento Terapêutico, Redução de Danos e Atenção Comunitária expressam, antes que especialismos, cargos ou profissões, um modo do cuidado, modo de conceber a clínica que atravessa, ou pode atravessar, as práticas de qualquer um dos trabalhadores envolvidos com o cuidado no território.
Aberta aos acontecimentos que advêm no espaço cotidiano das trocas sociais, a clínica se apresenta como “senhora da passagem”, como a nomeia Eduardo Passos, clínica no limiar entre “o público e o privado, entre a interioridade e a exterioridade do setting terapêutico, entre nós e a cidade, entre a clínica e as redes sociais”. Isso, porém, exige o diálogo permanente com outros setores, como educação, cultura, habitação... colocando em causa a política como indissociavelmente ligada à clínica. A clínica feita no território encontra, assim, na política, a sua zona fronteiriça, implicando a passagem das práticas clínicas a um exercício inventivo de cidadania.
Porém, se cidadania e singularidade são valores assumidos e veiculados pela reforma brasileira, não necessariamente estão constituídos como valores em torno dos quais se ordenam os espaços sociais em que se processa a sua implantação, o que remete menos a contradições internas à proposta dos serviços de atenção psicossocial do que a tensões históricas no processo de constituição do tecido social brasileiro, conforme assinala Carvalho (2001).Assim, as propostas de democratização do espaço de atendimento e de
promoção de sujeitos cidadãos entrelaçam-se a um quadro complexo de configuração de valores hegemônicos junto à população, relacionados aos processos de modernização (globalização) do país e às formas contemporâneas de existência (ibidem). As dificuldades não se restringem ao campo da reforma psiquiátrica; elas incidem no cerne mesmo da proposta do Sistema Único de Saúde e do ideário das políticas sociais em que a reforma se enraíza. A defesa da saúde como direito do cidadão e dever do estado, assegurada pela constituição de 1988, é, desde a origem, continuamente ameaçada pela ideia de estado mínimo e pela ótica do lucro, que concebe a saúde como mercadoria, valor de troca. É nesse contexto que se trava a disputa pela manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos em detrimento da criação de serviços de fato substitutivos. A precarização do trabalho, por sua vez, agravada pela ausência de mecanismos de proteção social, conduz às situações de vulnerabilidade, marcadas pelo empobrecimento, a ruptura dos laços, as atividades ilegais, o individualismo e a violência − são esses os desafios maiores que se interpõem à prática clínica no território, envolvendo mediação social para o estabelecimento de laços produtivos entre seus usuários e as comunidades locais. Em destaque, aqui, a polarização entre uma perspectiva que concebe a cidade como pólis − poder de produção de relações, conflitos e negociação − e a perspectiva hoje dominante, que a vê como mercado − onde o espaço público é privatizado, tornado uniforme, impondo, à diferença, a anulação, o silêncio e a violência. Nesse sentido, o caminho que a reforma psiquiátrica brasileira vem percorrendo é, por princípio, um caminho de resistência (Barros, 2003), sendo crucial que possa nele persistir.
Referências bibliográficas
BARROS, Regina Benevides. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em tempos neoliberais. In: CONSELHO Federal de Psicologia (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.196-206.
CARVALHO, E.N. A reforma, as formas e outras formas: as construções sociais da pessoa e perturbação em um serviço de saúde mental. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em .
FIGUEIREDO, A.C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Palestra proferida na Jornada do Instituto APPOA; Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre, 2009.
LEMKE, R.A. A itinerância e suas implicações na construção de um ethos do cuidado. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
PASSOS, E. A clínica, o método e as experiências de passagem. Conferência de abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I Congresso Brasileiro de AT “Singularidade, Multiplicidades e Ações de Cidadania”. São Paulo, 7, 8 e 9 de setembro de 2006. Não publicado.
SENNETT, R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Trabalho originalmente publicado em 1978.
Analice de Lima Palombini
Junho 2010

sábado, 10 de novembro de 2012

Cebes lança coleção de e-books com temas fundamentais da reforma saniária


Cebes lança coleção de e-books com temas fundamentais da reforma saniária
Desde sua criação em 1976, o Cebes vem contribuindo e inovando no campo das publicações em políticas de saúde. Acompanhando o lançamento da Revista Saúde em Debate, um dos mais tradicionais e permanentes periódicos nacionais, foi apresentada à comunidade da saúde a Coleção Saúde em Debate, que tantos títulos ofereceu subsídios para os primeiros passos da Reforma Sanitária brasileira. Muitos dos principais autores brasileiros e internacionais foram publicados nesta coleção.
Mais recentemente, foi lançada a Coleção Pensar em Saúde, título este que homenageia Mario Testa, um grande mestre e estrategista dos movimentos sanitários latino-americanos. O objetivo desta coleção era o de contribuir para a atualização da agenda da Reforma Sanitária Brasileira - e acreditamos que alcançamos tal objetivo.
Agora, é com enorme satisfação que inauguramos a coleção de e-books intitulada Temas Fundamentais da Reforma Saniária, que tem como propósito oferecer a um público mais amplo os principais conceitos, dilemas e tendências das políticas de saúde em alguns de seus mais importantes aspectos. O material, advindo do Projeto de Formação em Cidadania para a Saúde, se destina à formação de atores sociais, provocando a reflexão crítica e instrumentalizando a ação política, e se divide em dez volumes. São estes:
1. A Reforma Sanitária Brasileira e o Cebes (Jairnilson Paim);
2. Capitalismo e Saúde (Roberto Passos Nogueira e Rogério Miranda Gomes);
3. Questão agrária e saúde (Guilherme Delgado);
4. Políticas sociais e de Saúde (Lenaura de Vaconcelos);
5. Desenvolvimento, trabalho, saúde e meio ambiente (Anamaria Tambelini e Ary Carvalho de Miranda);
6. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte, o direito sanitário, a governabilidade e a busca de saídas (Nelson Rodrigues dos Santos);
7. O trabalho em Saúde (Luiz Carlos de Oliveira e Francisco Antônio de Castro);
8. Democracia participativa e controle social em saúde (Ana Costa e Natalia Vieira);
9. Atenção primária à saúde: seletiva ou coordenadora de cuidados? (Lígia Giovanella e Maria Helena Magalhães)
10. Diversidade Cultural e Saúde (Paulo Amarante e Ana Costa).
Mais informações sobre a coleção podem ser buscadas através do e-mail cebes@cebes.org.br.

A canalização dos recursos públicos para o setor privado


A canalização dos recursos públicos para o setor privado
Crédito: Nelson Perez/Valor Econômico
Fonte: SaudeWeb
Se as eleições fossem hoje e os candidatos do setor de saúde estivessem divididos entre Público e Privado, o voto da professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas, Sônia Maria Teixeira Fleury, provavelmente seria na primeira opção. “O que está acontecendo é uma terceirização geral não só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua do setor público”, afirma sobre a participação da iniciativa privada nas modalidades de PPP. Psicóloga de formação, Sônia teve sua trajetória marcada pela política e sociologia na área da saúde. Participou da Reforma Sanitária e passou pela Fiocruz. Sônia, conversou com a FH, por telefone de sua casa no Rio de Janeiro. Veja os principais trechos a seguir.

Revista FH: Estamos em ano de eleições municipais e Saúde é apontada pelos eleitores como um dos principais problemas em muitas cidades. Por outro lado, as campanhas atendem o pedido explorando ao máximo o assunto. Como você analisa a responsabilidade do cidadão nesse contexto?

Sônia Fleury: Não falta participação da cidadania demandando. Acho que falta, por exemplo, possibilidade dela ser mais efetiva nas unidades de saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) tentou a participação, mas no nível do sistema e  não nas unidades. No máximo, há uma ouvidoria ou assistente social e nada mais para que a pessoa faça valer sua vontade, as pessoas poderiam ter algum tipo de controle, isso poderia ser introduzido. Ademais, uma fiscalização maior também dos próprios conselhos em relação ao que está sendo feito e aos gastos com saúde, porque eles são poucos transparentes e pouco acompanhados pela população.

FH: Então, nesse caso, você acha que deveria ter mais ouvidorias dentro das unidades básicas de saúde?

Sônia: Sim, se elas tivessem algum tipo de poder. Acho que as ouvidorias poderiam estar ligadas ao próprio sistema de promotorias para que elas tivessem efeito, porque só fazer uma reclamação na ouvidoria e não ter resultado também não adianta. É possível ter conselhos de moradores e profissionais que participem do controle social dentro das unidades, e não só nos níveis municipal, estadual e federal.

FH: Uma das pesquisas que você coordenou é justamente sobre a inovação na gestão de saúde na esfera municipal. Onde o gestor de saúde de hoje pode inovar?
Sônia: A pesquisa compara, no período de 10 anos, o processo de descentralização e inovação em três dimensões: social, que envolve a inovação com a sociedade, a gerencial e também a assistencial. Na primeira pesquisa, os resultados mostravam grande diferença entre estas três curvas. Havia muito mais inovação social- isto foi até um pré-requisito para a descentralização do SUS, ou seja, criação de conselhos e de algum tipo de participação e prestação de contas junto à sociedade- e havia menos inovação gerencial e menos ainda assistencial. Depois de 10 anos houve uma mudança e na área assistencial ocorreram muitos incentivos do governo com o Programa Saúde da Família, Saúde Bucal, entre outros. Estas inovações foram disseminadas no Brasil inteiro em nível municipal. Portanto, hoje, a questão mais séria é a gerencial. É a que aparece como a menos inovadora e entra como o maior problema.

FH: Como você acha que os gestores poderiam mudar essa situação? Isso depende deles ou de alguma política de nível federal?

Sônia: As duas outras dimensões, assistencial e social foram induzidas pelo poder central. Acho que a área gerencial mereceria o mesmo esforço. O que vemos, claramente, quando analisamos o perfil dos mais inovadores, e isso é mais do que orientação política ou este tipo de coisa, é que os mais inovadores, no geral, fizeram cursos específicos para administrar e gerir. Portanto, a difusão massiva de educação gerencial poderia ser feito por meio do próprio ministério. Acho que um convênio com outras áreas é possível. Da mesma forma que se fez um esforço massivo para incentivar programas como o PSF, que deram resultados, também deveria se fazer para a qualificação da gestão na área de saúde. Acho que é possível e deve ser feito tanto pelo próprio gestor quanto pela indução do nível regional ou central.

FH: Entre os mecanismos de controle social estão os Conselhos Municipais de Saúde. Como você avalia o trabalho desses conselhos?
Sônia: Os conselhos são para a gestão do sistema municipal e não para o serviço. Acho que deveriam existir as duas coisas, pois esses conselhos não têm capilaridade. Se eles existissem nos locais de atenção, poderiam receber mais informações, não só em relação ao sistema, mas também em relação às unidades. Acredito que os conselhos têm tido papel importante, principalmente em lugares onde há uma sociedade civil mais organizada, com mais consciência e capacidade de exercer a função de controle social. Claro que o Brasil tem diferenças enormes e há uma diversidade muito grande. O que se mostrou é que parte dos conselhos aprovou as contas dos orçamentos estaduais enquanto muito dos Estados não cumpriam o percentual legal da sua contribuição, então isso mostra que ele não tem cumprido plenamente as suas funções, apesar de serem interlocutores importantes da sociedade. Mas, muitas vezes, a própria autoridade governamental passa por cima do conselho, um exemplo é a tensão que está ocorrendo no Mato Grosso, em relação à contratação de OSS. O Conselho Estadual é contra e definiu uma norma contrária, mas o Executivo foi adiante. Portanto, nas decisões mais importantes, os governantes não querem passá-las pelo conselho.

FH: Na sua opinião, o que tem, de fato, avançado na Saúde, na esfera Municipal? No projeto de municipalizar o SUS e levar mais acesso à saúde?
Sônia: A municipalização avançou tanto em termos de qualificar gestores no Brasil inteiro quanto em difundir os programas e aumentar a cobertura e a atenção à saúde, mas acho que existem estrangulamentos enormes tanto na área de gestão quanto na de financiamento. Houve um recuo muito grande de financiamento por parte da União, e os estados burlaram a lei até quando puderam, incluindo gastos que não eram de saúde no percentual previsto por lei. Pois só agora tivemos uma regulamentação mais rigorosa (Emenda 29), que determina, claramente, o que é considerado gasto com saúde. Qualquer dado ou estatística mostra que cresceu a participação do município no financiamento público à saúde em relação aos outros dois níveis. Isso porque o problema ‘bate na porta’ do gestor municipal, inclusive com a judicialização.


FH: Você atuou no projeto da Reforma Sanitária Brasileira, que resultou no SUS. Mais de 20 anos depois, na sua opinião, quais são os entraves que impedem a universalização não só do sistema, mas também do acesso?
Sônia: O investimento para ter uma rede homogênea espalhada pelo município é fundamental para permitir esse acesso. E nós tivemos e ainda temos muitos problemas de investimento. Mas há, claro, problemas de gestão do sistema, como aumentar a produtividade e, fundamentalmente, voltar a ter uma perspectiva de carreira pública e introduzir elementos inovadores de gestão sem precisar privatizá-la. É possível ter metas, cobrar e remunerar diferencialmente pelo que for cumprido no próprio setor público. Na minha opinião, o que está acontecendo é que há uma perspectiva por parte dos gestores de abandonar o setor público, como se exercer a função da saúde pública fosse problema, pois se acha que, comprando do setor privado, se eliminam os problemas de licitações, funcionalismo público e se pode fazer uma gestão mais eficiente. É possível fazer uma gestão mais eficiente dentro do setor público. Acho que um dos problemas do SUS é o abandono da gestão pública.


FH: Então, você acha que os gestores com as PPPs e OSS tendem muito a resolver os problemas via iniciativa privada, sendo que esse problema pode ser resolvido dentro do sistema público, com mecanismos da gestão pública?

Sônia: Mecanismos de gestão que incorporem elementos modernos. Por exemplo, um contrato de gestão com base em metas não precisa ser um acordo com o setor privado. Pode-se fazer isso entre entes públicos, contratando o hospital ou posto de saúde com metas e repassar recursos com base nisso. Mas por que só fazer isso com o setor privado e com elementos mais modernos de gestão e de certa forma abandonar a gestão pública, sem melhorar os salários, a carreira e a cultura política e a qualificação do pessoal e optar pela saída do setor privado? Quando o mundo inteiro está vendo os resultados das PPPs, especialmente dessa modalidade que começou a ser introduzida na Bahia, com a construção do próprio hospital e depois com a gestão de contrato de 25 ou 30 anos, esse tipo conseguiu falir o sistema nacional de saúde inglês, que é um marco mais importante da história da saúde no mundo.


FH: Você pode comentar mais sobre este modelo na Inglaterra?

Sônia: Lá não só existiu o modelo, como foi um desastre e faliu o sistema. Porque se faz um contrato de 25 anos para a construção do hospital e depois equipar e em seguida ter gestão do serviço. Não é essa a modalidade de OSS, em que o governo investe, faz o serviço público e entrega ao privado para gestão- modalidade comum em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto na Inglaterra como em Portugal isso hoje é considerado o grande problema, pois se supunha que essa modalidade iria trazer mais recursos para o setor público, seria mais eficiente e gastaria menos recursos na área de saúde e, além disso, seria mais flexível, porque o setor público é muito inflexível. Porém, o feitiço virou contra o feiticeiro, porque agora, no meio da crise europeia, por exemplo, não há flexibilidade para mudar esses contratos. Como cortar gastos de saúde com um contrato que não pode ser rompido? Portanto, a aparente flexibilidade se transformou em uma enorme inflexibilidade. Outra coisa é que os acordos são feitos com uma estimativa de preços, isso em um setor em que é muito difícil estabelecer valores por prazos tão longos, pois é um dos que mais incorporam tecnologia. Então, há uma série de inconvenientes nessa relação. Uma das coisas que levantei é que, se na Europa, a PPP tem tido uma enorme lucratividade para os bancos que foram os financiadores, no Brasil quem financia é um banco público, o BNDES. Portanto, essa ideia de uma enorme injeção de recursos é um pouco falsa em um País onde o próprio setor privado depende enormemente de financiamento público.

FH: Então você é contrária ao modelo de integração público-privada ou contrária a este modelo específico de PPP e favorável a um modelo de OS, por exemplo?
Sônia: No Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que se o governo resolver usar o modelo de OSS, os funcionários serão de carreira (públicos). Então, independente de gestão ser ou não terceirizada, o funcionário que atende à população não será o terceirizado. Mas o que está acontecendo é uma terceirização geral não só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua do setor público. Essa suposta integração é uma ideia de que o setor público virará simplesmente um contratador e o SUS será um financiador da área privada. Isso deve ser muito bom para a área privada, que sempre viveu no Brasil em torno de benefícios e subsídios do setor público. Desde sua criação, incentivado fortemente durante o Regime Militar, o privado não surgiu espontaneamente e, sim, por política pública, com financiamento e contrato com setor público. Agora, este setor quer continuar se beneficiando e quer que o SUS se transforme no verdadeiro comprador de seu serviço.

FH: O SUS é inspirado em modelos europeus e tem como pano de fundo o Estado de Bem Estar Social. Você citou a Inglaterra, que por causa das PPPs e diante da crise econômica está falindo um sistema que é tido como exemplo.
Sônia: Inclusive porque os hospitais privados de PPPs terminaram com o custo de atenção maior do que os públicos. As expectativas de que isso seria a solução saíram pela culatra.

FH: Na sua opinião, a participação da iniciativa privada é uma espécie de ameaça para esse modelo de universalização?
Sônia: Sempre existe a participação, mas a questão é saber se esta participação está canalizando os recursos públicos para o setor privado ou se ela traz o benefício para o bem estar público. Isso depende muito do tipo de relação que se estabelece. Por exemplo, no sistema público do Canadá, os médicos de consultórios são privados, mas, desde que estejam subordinados a uma lógica que é pública, tudo bem. No Brasil, o que se pensa em geral é o contrário, ou seja, é subordinar a lógica pública à dinâmica do mercado privado. Por exemplo, é possível ter PPPs na área de saúde com o desenvolvimento de medicamentos e tecnologia, mas por que a atenção à saúde, que é prioridade da função do Estado como bem estar público, deve ser atribuída a um contrato com privado? Qual é a vantagem disso? Não há prova das vantagens para o bem estar público.

FH: Mas a própria questão do sistema universal na Europa é complicada, pois a população envelheceu e é preciso financiar saúde e previdência para um contingente gigante e o Estado está quebrando por conta da crise.

Sônia: O Estado está quebrando porque está financiando banco. Se ao invés de financiar banco, financiasse saúde e previdência, não teria problema. Os recursos foram desviados desde os Estados Unidos, onde começa a crise, para salvar os bancos que especularam, sem controle do Estado, na área de habitação, financiamentos habitacionais e o subprime. O que aconteceu é que recurso público do Estado foi usado para tampar os buracos dos bancos e isso também ocorreu na Europa. Portanto, na verdade, não é o envelhecimento da população o problema, é a falta de regulação do Estado sobre o capital financeiro, que hoje o domina. Enquanto nós estivermos nessa situação, não haverá dinheiro para o bem estar social. Agora, se o dinheiro usado para salvar os bancos e resolver o sistema bancário no mundo fosse usado para o sistema de saúde, não estaríamos com problema algum.
buscado em: http://www.cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=3804&idSubCategoria=56
FH: Você é psicóloga de formação, o que te chamou atenção para escolher o caminho da medicina social e políticas públicas?
Sônia: Me formei psicóloga trabalhando com psicologia social. Então, não era trabalhar com indivíduos e, sim, com grupos em instituições. Desde essa época estou ligada à saúde, mais especificamente, com representações sociais em saúde e doença. A ideia da política no sistema de saúde sempre foi uma preocupação, portanto foi uma trajetória natural buscar a compreensão maior da dimensão política e sociológica.

comunidade (verbetes nu-sol)

comunidade
 


 
A comunidade é o governo de todos sobre todos. Nela prepondera a obediência e se expressa, racionalmente, a vontade conservadora de uniformidade e nivelamento. Opera segundo uma gestão de poder individualizante e totalizadora, fazendo com que cada indivíduo participe ativamente do governo da comunidade na mesma proporção em que se torna polícia de si próprio e do alheio. A vida em comunidade é o princípio mais elementar de servidão, organizador histórico da política de grupos identitários. Seu amálgama é regido por valores morais de origem que determinam suas formas exemplares de conduta. A comunidade pode se constituir como um pequeno Estado no interior do próprio Estado, e na sociedade de controle, é uma das nomeações para guetos, periferias, favelas, subúrbios. Também designa grupos que agem no interior da prisão, como resistência reativa, atuando na conservação e continuidade das políticas desegurança, agenciadas tanto por instituições estatais, como pela sociedade civil organizada, redimensionando elites no interior da própria comunidade. A comunidade conserva ou delimita costumes identitários e inibe a experimentação de inovações; na sociedade de controle torna-se um dispositivo dos programas de administração da miséria e de gerenciamento das penas.
Ver também: campo de concentraçãocrime organizado;denúnciaestamos todos presosjustiça cidadã.

crianças (verbetes nu-sol)

crianças
 



 
As crianças são temidas. Uma só palavra, um único gesto delas pode fazer desmoronar qualquer reino. Os adultos sabem muito bem disso e procuram calá-las, domesticar seus impulsos e aplicar sobre elas sua milenar cultura e educação por meio de ameaças e usos dos castigos, introjeção da crença em fantasmas, escolarizações e inibições de atitudes despojadas. Espera-se da criança que ela se transforme num bom cidadão, num bom trabalhador, numa boa pessoa, religiosa, filantrópica, tolerante, moderada. Espera-se que as crianças agora e no futuro colaborem para a conservação e aprimoramento de costumes. Todavia, são as crianças pobres que encarnam e escancaram o medode crianças em nossa sociedade. Elas são vistas como potencialmente perigosas, antes de mais nada, porque são pobres, por não possuírem uma família estruturada como a burguesa, não frequentarem regularmente escolas, não provarem para a sociedade que serão bons cidadãos e trabalhadores. Segundo o direito penal, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente, ela vive em situação de risco. Desde o Código de Menores de 1927 habita o vocabulário de juízes,promotoresadvogados e pessoas preconceituosas como menor. É o outro, o estranho. É a criança perigosa que a sociedade não conseguiu calar e domesticar. Da mesma maneira, o conhecimento produzido pelas humanidades não consegue admirar a criança e suas surpreendentes atitudes. Prefere uniformizá-la e colabora para imobilizá-la por meio do conceito de infância, determinando quais são as condutas esperadas e adequadas, segundo uma classificação normalizadora. A criança é um perigo para a sociedade, uma leveza para a liberdade.
Ver também: abolicionismo penalpericulosidadesegurança integradatécnicos em humanidadesvulnerabilidade.

drogas (verbetes nu-sol)

drogas
 



 
O termo "drogas" é hoje usado para classificar todos os psicoativos cuja produção, comercialização e uso são proibidos por lei. Droga psicoativa é uma substância que provoca efeitos apaziguadores (como o álcool, a maconha, a heroína e a morfina, estas últimas derivadas do ópio), euforizantes (como a cocaína e a cafeína) ou alucinógenos (como o LSD, o peyote ou a ayuahusca). No entanto, há algo que diferencia a cocaína da cafeína, ou o álcool da maconha: a cocaína e a maconha são ilegais, ao passo que as outras duas não. Essa distinção não se deve às propriedades químicas ou aos supostos "prejuízos" à saúde que poderiam causar, mas a um processo político, social, econômico e moral – o proibicionismo – que, desde a década de 1910, tem lançado todo um conjunto de "drogas" na ilegalidade. Entretanto, a relação entre os homens e os psicoativos é tão antiga quanto a própria vida social. As pessoas usam "drogas" para experimentar estados alterados de consciência, buscar prazeres únicos, tratar doenças, diminuir sofrimentos físicos e mentais, praticar exercícios espirituais, cometer ações inusitadas. Como a procura pelas "drogas" é incontível, a proibição apenas gerou um mercado ilícito de proporções mundiais, onarcotráfico. Enfim, o termo droga também designa o pejorativo na sociedade e passível de internação e encarceramento. Os antiproibicionistas pleiteiam a descriminalização ou a legalização das drogasOs abolicionistas penais defendem a liberação das drogas como atitude condizente com o princípio do governo do próprio corpo e de suas ingovernáveis sensações.
Ver também: crime organizadojovensprogramas educativos;redução de danospericulosidade.

hypomnemata extra


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
novembro de 2009.
Danem-se os torturadores!
           Não há Estado democrático de direito sem miséria e tortura. Não há banalização da tortura, pois todo saber jurídico penal exige a tortura para obtenção da verdade que lhe interessa.
Tudo o que se convencionou chamar de crime é político. Não há distinção entre o comum e o político: ambos expressam a realidade do regime da propriedade que, às vezes, é atingida nos seus poderes privado e público, e outras no corpo do próprio indivíduo, seja ele adulto, jovem ou criança.
Toda subversão é insuportável ao Estado. Toda subversão incita a liberdade e expõe assimetrias. Quando um povo está sob regime ditatorial, a subversão é a derradeira expressão de sua saúde.
No regime democrático de direito, os acomodados cidadãos preferem não ver, ouvir e falar sobre as torturas diárias que acontecem em prisões, delegacias, vielas, favelas, lares bem constituídos, escolas...
Querem fazer crer que com o fim das prisões políticas, só restaram torturadores em arquivos processuais ou na memória sempre viva de guerreiros da liberdade! O torturador é o vestígio impagável do fascismo. Este, por vezes, toma a forma de governo de Estado, e, na maioria das vezes, em conduta democrática dissimulada.
A noção de crime, a polícia, o tribunal e todo o aparato penal alimentam a continuidade dos dissimulados. Sustentam a necessidade da polícia, do tribunal e de todo aparato penal, azeitado pela tortura. Instaura-se um círculo vicioso em que todos devem acreditar, finalmente, no tribunal nacional e internacional.
Acreditam que pela punição se forjam valores universais de humanidade; que se corrigem as torturas pelas punições legais; e que, se necessário for, façam uso da pena de morte em nome do Estado democrático de direito e pelo bem da humanidade.
Todavia, antes de julgar um torturador, ou condenar sua impunidade —propriedades dos aplicadores de castigos — precisamos saber seus nomes e estampá-los pelas ruas, nas casas de famílias, nas escolas... Divulgar quanto ganharam e ganham, onde estão, do quevivem, com quem se relacionam...
A tortura, assim como a punição, não é um instituto jurídico, mas um dispositivo das tecnologias de poder.
Danem-se os torturadores! E que sejam sempre bem-vindos os subversivos, em qualquer regime. Deles sempre dependerão novas experimentações de liberdade! Mas não confundam subversão pela liberdade com terrorismo fundamentalista!
Abaixo qualquer terror de Estado e os torturadores! Não nos esqueçamos que a democracia moderna nasceu com o terror!
A democracia é também o regime propício a ampliar liberdades e dar um fim ao regime da propriedade. 
         
 Saúde!

hypomnemata 149 - nu-sol


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 149, outubro de 2012.

Do governo das condutas e das contra-condutas
Ganha mais um impulso o programa de retirada de usuários de drogas do meio urbano.
Iniciado na Bahia e realizado em São Paulo foi expandido para o Rio de Janeiro, depois da pacificação na comunidade Jacarezinho.
Os governos levam adiante seu programa de assistência voluntária, involuntária e compulsória ao usuário de drogas; acoplam ao tráfico capitalista os itinerários complementares dos que transitam entre o recolhimento e o acolhimento; situam as premissas que norteiam o controle de si e dos outros relativos à despoluição de si e o usuário é visto como possível capital humano virtual a ser atualizado no e pelos programas de cuidados.
O resultado esperado é a reforma do meio urbano com o consentimento dos cidadãos, ao mesmo tempo em que as políticas ambientais ganham contornos eugênicos.
Sabemos que no passado recente houve um grande investimento autoritário neste sentido; seu foco estava nos deficientes, loucos, estranhos, subversivos, gays e, por último, nos judeus; suas práticas levaram aos campos de concentração e de extermínio até a solução final.
Todavia, os revestimentos humanistas a estas práticas condenadas durante a II Guerra Mundial, amenizaram democraticamente as políticas de segregação, extermínio e controle dos outros.
A prática recente, ao se fundar no consentimento obtido junto aos normais que habitam a população, repete o ponto de partida do mesmo procedimento eugênico nazista tão condenado pela retórica do humanitarismo contemporâneo.
Não se trata mais de supressão de anormais ou de uma raça.
Agora, o revestimento humanitarista e ambiental dirige-se ao atendimento e ao acompanhamento como cura interminável pelos procedimentos similares aos das internações no passado.
Entretanto, mesmo não recebendo o nome de campo de concentração, os espaços de confinamentos para tratamentos reiteram as mesmas práticas de segregação e limpeza; o objetivo não é mais o do extermínio, mas sim o da produção de programas de saúde e segurança voltados à despoluição de cada um, possibilitando seu acesso à condição de capital humano.
Pela programação sobre a cura interminável, redimensiona-se a esperança de cada usuário na sobrevivência, por meio da sua adesão circunstancial à moral da ordem; de outro lado, difunde-se a conexão entre programa de vida e vida programada não só para o regime geral do governo das condutas como também para o das contra-condutas.
O tráfico permanece restrito ao combate político-repressivo, ao mesmo tempo em que as programações inacabadas, voltadas aos usuários, atualizam o processo de governo das condutas com base no tratamento dos transtornos e nos cuidados com os transtornados.
As drogas continuam vistas pelos governos e sociedade como efeito nocivo sobre corpos e mentes de pessoas de fraca consistência psicológica, a serem governados pelo discurso psiquiátrico humanitarista.
Nada de discussão sobre o uso de drogas senão pelos efeitos do tráfico; nada de propostas objetivas relativas ao fim do tráfico.
Ao contrário, tais programações consideram o tráfico como normal e, em seu limite, abarcam a possibilidade neoliberal de legalização das drogas como produto comercial acoplado ao gerenciamento de condutas pelos dispositivos legais do Estado, atualizados pelos programas de cuidados.
Nem poderia ser diferente: o capitalismo começou com tráficos e se sustenta com base na permanência das conexões entre reprodução do capital e ilegalismos.
No meio disso, mais uma vez, os pobres e os miseráveis estão disponíveis a ser tanto mão de obra do tráfico, quanto usuários de drogas.
Eles são considerados a população-alvo para intervenções psiquiátricas, sob o regime de programas governamentais com a participação de organizações não-governamentais, recebendo o auxílio à sua própria despoluição e contribuindo para a sustentabilidade capitalista.
É o melhor que se pode oferecer a eles com apoio dos demais cidadãos; é de melhoria em melhorias que se governam as condutas socialmente aceitas ou não.
As contra-condutas voltadas a negociações sobre legalizações pontuais deixam intocável a produção de ilegalismos por estarem dirigidas à descriminalização de condutas relativas às chamadas drogas leves, como a maconha, usualmente consumida, hoje em dia, por estratos superiores aos dos miseráveis.
Enquanto isso as condutas combatidas fazem parte dos programas sociais de pacificação de favelas, limpeza e valorização dos centros urbanos, produção de empregos assistenciais de segurança e saúde para especialistas e ONGs que são aplicados aos usuários de drogas condenadas para funcionarem como retratos de redutores de violências.
A população dos cidadãos está presente não apenas consentindo, mas obtendo empregos e dando dinâmica à melhoria das condições de seu acesso à renda; ao mesmo tempo, direta ou indiretamente, governa de modo eugênico a população dos insuportáveis.
Esta deve reconhecer os efeitos das benfeitorias da programação de sua despoluição individual relacionada à composição de um ambiente mais saudável governado pela panaceia da cura.
Não se trata mais de segregar para exterminar, mas de identificar para incluir de maneira limpa.
O usuário deve, voluntariamente, aderir para que os esforços na redução de internações involuntárias e compulsórias justifiquem a ampliação dos programas.
Espera-se que cada programa siga inacabado, pois não há nem haverá nenhuma disposição para a erradicação do tráfico; sua eficiência se mostrará e atestará, por meio de estatísticas divulgadas midiaticamente e pela difusão da restauração da exemplaridade da vida em família com apoios de ONGs e organizações transterritoriais.
Resultado atual da proliferação dos programas de saúde e segurança para os usuários: crescimento da descriminalização de condutas pontuais e políticas inofensivas, visando transformar a droga em mercadoria legal sob um padrão de fiscalização conectado ao domínio das condutas pelo Estado.
Não se trata mais da biopolítica pela qual o Estado governava a espécie, sua população em um território; agora, trata-se de governo da vida de certas populações por demais populações realizado pela simbiose Estado-sociedade civil e organizações transterritoriais.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Zona Autónoma


Zona Autónoma: Territorio asambleario de la auto-gestión de lo común y lo multitudinario. El fin del Capital-Estado y de todos sus dispositivos ampliados: massmediáticos y empresario, legislativo y ejecutivo, judicial y militar, educativo y sanitario. Todos ellos aparatos de captura de la vida, que no hacen más que manipular y absorber, controlar y disciplinar, recluir y reprimir, formatear y reparar, al sujeto social que alimenta y reproduce la “Matrix”. Una forma de comando universal que separa al emisor del receptor, al productor de lo hecho, al  que vota del que lo representa, a quien ordena del que obedece, al reo del juez, al sometido bajo la amenaza armada, al “sin luz” del educador, a la enfermedad de la cura. La autonomía no es una fuga personal y grupal autocomplaciente, una práctica que es renuente a la crítica, que hace un dogma de todo lo valiosamente realizado por el campo de la autonomía. Tampoco es un movimiento que se subdivide en grupos y endogrupos, despreciando cada uno a los integrantes del otro. Descalificándose entre compañeros/as que hasta ayer, todos ellos, se consideraban los hombres y las mujeres del cambio social. El peor de los narcisismos, porque proviene de los que aspiran a ser mejores. La Zona Autónoma es un territorio, que por supuesto se asienta, pero que va mucho mas allá, del propio espacio físico de cada poder popular. Un área donde no gobierne el salario y el mercado, al mismo tiempo que gobierna una forma política anticapitalista y asamblearia. Un rizoma diseminado local, nacional y mundialmente. Con capacidad de articulación material y no solo simbólica. Un reticulado cosmopolita con nodos autónomos diseminados por el planeta, antagonizando la lógica de la representación de la mercancía fuerza de trabajo. Una Zona Autónoma internacional, que supere la resistencia global al capital y pase a la ofensiva construyendo, aquí y ahora, el anticapitalismo.
em: DICCIONARIO POSFORDISTA 

Trabajo precario


Trabajo precario: Empleo inestable, intermitente, incierto. El trabajo precario da nacimiento a una nueva modalidad del hacer bajo el capitalismo, y se encarna en un sujeto social con nombre propio: “El Precariado”. Fracción de clase mayoritaria de la multitud; encarnación de la disminución del trabajo socialmente necesario para reproducir la vida del empleado y aumentar pavorosamente el trabajo excedente que produce plusvalor. Lo que es igual, a salarios paupérrimos que deviene en un subproletariado del subconsumo, o “working poor”. Hoy, las economías crecen con ejércitos industriales de reserva a tiempo completo, o “Excedentariado”, que no volverá nunca más a las fábricas. Hoy, el capitalismo funciona con el paulatino pasaje del trabajo registrado y por tiempo indefinido, al contratado en negro y por tiempo fijo, o de lo contrario, no funciona. Para el capital la fuerza de trabajo es una mercancía. Las modalidades laborales del “Terciariado” y el “Precariado”, disminuye el valor de esa mercancía tan particular, tan valiosa para el capitalista: la energía humana del hacer. Una sustancia que genera plusvalía y por la cual el empresario paga lo menos posible, para que así, el uso del trabajo produzca el mayor plus-valor posible. La Argentina, es una clara demostración que la economía puede crecer por cuatro años a la manera china, pero no por ello aumentan los salarios reales de la mayoría. Contrariamente, el poder adquisitivo del salario está ahora, en promedio, por debajo de 2001. Y además, el país tiene índices de desigualad social, trabajo en negro y tercerizado, peores que en plena crisis recesiva del 2001. Para graficar y permitir comparaciones -para aquellos que no viven en la Argentina- pondremos los valores en dólares (U$S). Redondeando, mientras la línea de indigencia está en los 150 dólares, la de la pobreza ronda los 300 dólares, y la canasta familiar de bienes y servicios está en los 800 dólares. Desde el 2001, y con el retorno de los gobiernos peronistas, el trabajo en negro aumentó un 500 por ciento, y la plusvalía absoluta y relativa (productividad que le dicen) se incrementó un 44 %. Aproximadamente, con Kirchner, el 30 por ciento de los trabajadores(as) son indigentes, el 60 % son pobres, y el 80 por ciento está fuera de los Convenios Colectivos de Trabajo, o Paritarias. La mitad de los trabajadores privados registrados -unos 2,5 millones- recibe un sueldo de 300 dólares por mes (por lo tanto, son pobres). Los asalariados precarios son el 40 por ciento de la fuerza laboral y la mitad gana U$S 140 (es decir, indigentes). El ingreso de la mitad de los cuentapropistas no profesionales es de  U$S 150 (también indigentes). El cincuenta por ciento del personal doméstico   -tanto como un millón- cobra U$S 80 (poco más que la mitad de la línea de indigencia). Los piqueteros con planes sociales, que tanto irritan al poder, reciben 50 dólares (tres veces menos que la línea de indigencia); no teniendo un peso de aumento en los últimos cinco años. Para ellos, no ser ya pobres, sino indigentes, resulta un verdadero lujo. Y para el capital, como lazo social, la asistencia es el precio global que paga la sociedad mercantil, el valor que abona el estado, para controlar en la sub-vida a las masas que han sido descartadas. Sub-alimentados, para el capitalismo, si se dejan morir de hambre y enfermedades evitables mejor, tanta masa excedente estorba. Tanto pobre, con tanto tiempo libre para pensar y organizarse, resulta peligroso. Como son menos que un ejército industrial de obreros de reserva, ya que no gastarán nunca más su fuerza de trabajo en una fábrica, el estado los alimenta con menos de lo mínimo e indispensable. Si el salario, debía ser la medida de la reproducción de la fuerza de trabajo; la asistencia, es la forma de clientelizar a millones a los que se les paga para que sólo continúen en silencio respirando. Además de los trabajadores negados, y de trabajadores formales con salarios de pobreza y tercerizados en la indigencia, hay un sub-proletariado salarial de la sub-indigencia. Daremos un ejemplo ilustrativo: existe en plena Ciudad “Autónoma” de Buenos Aires, una fuerza de trabajo sub-obrera, empleada en 1.600 talleres y fábricas ubicados en distintos barrios de la Capital Federal. Que trabajan entre 16 y 18 horas diarias, encerrados de por vida, con familias hacinadas en casas-talleres-cárceles, desnutrida crónicamente y cobrando 70 dólares por mes (la mitad del ingreso para ser un indigente). De este modo, se entiende, como los asistidos sociales (como fuerza excluida del salario de manera perpetua) no puedan superar los valores que cobra el subsuelo del trabajo por una paga. Para la lógica de acumulación del capital, un desempleado no puede recibir más que los ofensivos 50 dólares, cuando hay asalariados a 70 dólares por mes. Después de la devaluación, se produjo una trasvasamiento de nada menos que “¡Diez puntos!” de los ingresos del trabajo al capital. ¡Y todavía algunos dudan si después del 2001 no hubo un proceso de acumulación originaria de capital! El balance de los últimos 12 años, indica, que hubo una transferencia de 13.7 por ciento de la “torta” nacional. Sesenta mil millones de pesos anuales, ¡720.000 millones en total! Cientos de miles de millones extras, que le fueron robados a la multitud por el capital, bajo gobiernos radicales y peronistas. La distribución de la riqueza bajo el gobierno de Kirchner resulta peor que durante toda la convertibilidad. Es decir, no sólo es peor que con Menem, sino que resulta peor que durante el gobierno de De la Rúa. Ahora el capital se queda con el 47.4% de la riqueza, mientras que en 1993 obtenía el 33.7%, en 1997 el 46.8 por ciento, y en el 2.000 el 40%. Esta exacción contra el trabajo pauperiza y mata. Este verdadero genocidio en democracia resulta un espectáculo pornográfico de miseria planificada. La multitud aspira a salir de la pobreza trabajando, mientras que trabajando se hace pobre. Sea con Menem y De la Rúa, con Duhalde y Kirchner, el posfordismo no tiene marcha atrás, salvo que la multitud termine con el capitalismo. El capital no precisa muchos más esclavos de los que ya expolia. Mientras concentra la superexplotación en unos (aumentando al máximo el tiempo excedente de trabajo y el valor de cambio de la mercancía, precarizando a la mayoría, y disminuyendo al mínimo el tiempo necesario para reproducir toda la fuerza de trabajo, o sea bajando el costo de los salarios) expulsa a otros, hasta llegar al valor sin uso del trabajo como desempleo asalariado, bajo la figura del asistido social subindigente y trabajador negado por el capital. El sindicalismo no “ajusta” al mundo del trabajo al estado, porque ya no concuerda, el empleo con la agremiación. A nivel universal, solamente un 8 por ciento de toda la población económicamente activa está sindicalizada. Sin el fordismo como modelo dominante, y por ende, sin sindicatos masivos; los partidos capitalistas de masas han terminado. El éxodo electoral del ciudadano, desafiliado de las viejas pautas keynesianas, provoca que el “Capital-Parlamentarismo” haya decidido gobernar con el porcentaje que los vote, sean cuales fueren los que lo hagan. De ahí su ontología social a constituirse en un estado “Capital-Ejecutivista”, carente de legitimidad, y poseedor de una mera pátina de legalidad. Ya no estamos, siquiera, en el campo de la representación; sino en el plano de la simulación de la propia representación. El sistema capitalista establece un patrón económico que explota, de manera asalariada plena en la Matrix “Capital-Parlamentaria”, a un tercio de la población trabajadora. El resto, al precariado y el paro. Y esta es una propensión mundial del capital. En el planeta, el 50 por ciento de la fuerza laboral está des-asalariada; y el otro 50 por ciento, se divide por mitades, los que están en blanco y en negro. Es decir, únicamente el 25 % está registrado, otro 25 por ciento resulta intermitente y el 50% restante es trabajo negado. Del comienzo de la decadencia de la sociedad keynesiana y fordista, de los dos tercios incluida en el trabajo registrado y un tercio en la precariedad y la reserva; se invirtió la pirámide, y se avanza como tendencia, a una sociedad postkeynesiana y postfordista con un tercio de registrados y dos tercios en la flexibilidad y el trabajo negado. Trabajo capitalista= 25%registrado+25% “Precariado”+50% “Excedentariado”. ¡Otra que el viejo ejército industrial de reserva! Subordinación y pasividad, o cooptación y represión. El menú de la sociedad del capital y el Estado excedentario, no tiene más platos para ofrecer a millones de bocas hambrientas.
em: DICCIONARIO POSFORDISTA