terça-feira, 25 de dezembro de 2012

flecheira.libertária.279


perdas e orações 
O lamento e as orações é o que oferece a família de um perdedor radical que mata crianças e professores de outras famílias. É o que ela pode fazer permanecendo abismada, conservadora e imobilizada. Seu filho atira e mata a mãe, colecionadora de armas, antes de iniciar os disparos contra os outros que terminam em suicídio. Repetitiva notícia que estampa o terror cotidiano, o desespero mudo recorrente de cada perdedor radical que sai do anonimato, da insignificância e do fracasso como capital humano. É o lado recoberto pela religião no neoliberalismo, a face oculta revelada, o hálito do sobrevivente temporário. Outros virão. São efeitos das desesperadas buscas por seguranças fundadas no derradeiro ataque para extirpar seus  males. Enfim, é somente uma maneira de sair da morte incógnita diária que  te destina o conformismo e as convocações à participação. Outrora, foi uma provável criança escolarizada e educada para defender-se de fantasmas e ameaças estapafúrdias, crente na paz pela guerra.  
outros... 
Alguém na plataforma lotada de gente mal dormida, quase diariamente, atira-se diante do trem do metrô. Por instantes vira notícia local entre os que se atrasarão para chegar às suas ocupações. Não é mais notícia para a mídia; é a estatística do comum, a expressão da morte do nada extraordinário, do que atrapalha e atrasa o rotineiro ato de marcar o ponto na jornada de trabalho que  te quer inteligente, inovador e moderado. Cada suicídio tem sua história de desistência ou fracasso. É tão somente a cara do que  te  exige e a máscara do emudecido ressentimento. Debaixo da máscara do rosto há o rosto da máscara.  
e outros mais...  
Há também os que diante da história de resistências atiram para acabar com práticas livres e democráticas. Pretendem exercitar o poder soberano  investidos de  boas intenções e competência competitiva. São salvadores dos procedimentos burocráticos; desprezam a história e as resistências que um dia, seguramente por oportunismo, nela se alojaram. Aninham-se sobre as asas da lei e da religião, exigindo a conduta uniforme e informe dos demais, revestida de pluralismo. Exigem dos outros que desçam aos genuflexórios e orem pela sua continuidade e o alegado sucesso de todos. São os esclarecidos deslizando pela cômoda e pavimentada via para seu sucesso e subserviência. São incapazes de renunciar a mandar. Também são perdedores radicais. 

flecheira.libertária.278


democracia quase 
A democracia proporciona a revisão constante das leis. Também sua aplicação, segundo a interpretação. Facilita os pactos e as revisões dos contratos. A democracia acomoda e adequa fluxos de opinião. Possui uma reserva de argumentos que fortalece o mudar sempre para manter a ordem. Tem, portanto, uma característica autocrática que não aparece eventualmente como Estado de exceção temporário, mas também lhe é inerente como produtora de dispositivos de exceção. Estes podem ser novos e surpreendentes, mas antes de tudo estão configurados no interior das próprias leis. Quem rompe o pacto é geralmente o superior, sem prescindir da lei. Basta declarar-se tolerante com os debaixo e exercitar a retórica. A atual democracia 
representativa e participativa é o melhor dos regimes para a longevidade dos superiores, porque seu caráter autocrático permanece intocável. O problema para os democratas é saber dar-lhe outros conteúdos, mas para tal precisam liberar a democracia da autocracia. Todavia como recomendavam os bons filósofos do passado, não há regime puro apenas misto. Misto porque cada regime do Estado precisa justificar escravidões, miseráveis, pobreza, inferioridades, enfim, seus meios para disseminar o amor à obediência. A todos, cabe obedecer aos superiores e às leis. Este é o fundamento da legitimidade da autoridade central.  entre o direito e o quase justo 
Um expert em programas sociais, em passagem pelo Brasil, defende ao lado de senador brasileiro, o programa de renda mínima a todos. Constata problemas no Bolsa Família como o de facilitar a acomodação do beneficiário, evitando buscar emprego. Mas salienta que o programa, mesmo assim é bom. Bom, como? É bom porque forma um banco de cadastro governamental eficiente ao controle. Programas deste porte governam esta população como massa de apoio eleitoral. De fato, só falta mesmo convencer a burguesia que o programa de renda mínima lhe dará mais vantagens do que as já consolidadas, mudando sua imagem para uma burguesia justa. O filósofo e o senador são a ponta de lança da burguesia e a massa atônita e famélica o cabo firme nas mãos dos proprietários. Neste caso se configura democraticamente o quase nada para o quase justo. 
prisões... nada muda nas estatísticas
Novos dados oficiais mostram o crescimento da população carcerária. Mais uma vez, aparecem propostas para a construção de mais presídios. Da mesma maneira, aumentam as penalizações a céu aberto (medidas sócio-educativas, penas alternativas e em semi-liberdade). Novamente, reaparece a argumentação sobre reformas para humanização de presídios. Nada muda! O seletivo sistema penal se fortalece e espraia. A população quer mais segurança, os presos querem mais vantagens nos presídios, os ilegalismos e a legalidade se beneficiam... Tudo muito vantajoso, e porque não dizer, democrático: taí um conflito que jamais será equacionado. 
a preservação da política 
Ratificado em 1999, mas iniciado somente em 2005, o chamado primeiro período de compromisso do “Protocolo de Kyoto” expirou em 2012. Desde meados de 2007, sob efeito da Convenção das Nações Unidas para Alteração Climática realizada em Viena, chefes de Estado negociavam seus interesses para a prorrogação do Protocolo. Ao mesmo tempo em que a prorrogação era discutida, a redução das emissões tornaram-se moeda de troca planeta afora por meio da criação, em 2008, dos créditos de carbono. Agora, encerrado o primeiro período de compromisso, após o rescaldo das Conferências de Copenhague e Cidade do México, a COP-18, realizada no Catar, decidiu que o Protocolo seguirá até 2020. Todavia, sem a assinatura de países como Japão e Rússia, o documento segue com os signatários que emitem somente 15% 
dos gases na atmosfera. Em breve, chefes de Estado  se encontrarão novamente, produzindo outros acordos relacionados ao clima. O que importa é o prosseguimento da Agenda. Nada de novo. O desenvolvimento sustentável segue preservando a velha política e seus lucrativos negócios.

flecheira.libertária.277


felizes e em cana
Compondo os mais variados nomes, programas de  pacificação se alastram no Brasil. O mais conhecido “caso de sucesso”, as UPPs do Rio de Janeiro viraram referência de “novas estratégias de segurança” implementadas em outros estados. Já em vigor no Rio Grande do Norte, Bahia e Paraná esses programas, pela via da  cultura de paz, se atrelam aos variados projetos sociais e assistenciais (públicos ou privados) que administram a chamada administração da miséria das populações. Incluídos na classificação de cidadãos, homens e mulheres dos bairros pacificados clamam cada vez por mais polícia e pela sobrevivência da  comunidade pacificada. Celebram sorridentes como um lugar feliz a prisão a qual estão reservados pelas 
políticas de segurança do Estado. Enquanto isso um  destacado integrante das comunidades cariocas declara que a pacificação tornou possível um tráfico menos violento!  
mera coincidência?
O comandante-geral da polícia militar de São Paulo  informou na última semana que não há como abandonar a maior favela da zona sul da cidade, agora e cada vez mais designada também pelos paulistanos como  comunidade, após o fim da Operação Saturação ocorrida ao longo do mês de novembro. A polícia afirma ter uma “nova estratégia” de segurança com “nova proposta” para eliminar a influência do PCC nessa região: dividir o território em quadrantes para facilitar as patrulhas e continuar ocupando 24 horas por dia a favela por tempo indeterminado. A semelhança com programas de  pacificação aplicados em outros lugares não é mera coincidência, é somente a explicitação das modulações de controle. 
minorias fardadas 
Pela primeira vez, uma mulher foi nomeada oficial general das forças armadas pela marinha brasileira. Certas mulheres, feministas e minorias endireitadas comemoram a “conquista”. Eles já haviam, na metade deste ano, comemorado a nota oficial do exército que declarou não haver, dentro da instituição, qualquer discriminação quanto à “orientação sexual” de seus soldados. No fluxo incessante de reivindicação por novos direitos de minorias reclama-se também o direito de um soldado gay poder tornar-se um general. Reivindicam o direito de pertencer às Forças Armadas e entregam suas vidas à arregimentação. Em detrimento da conquista de mais direitos do macho hétero, escamoteia que as violências legais dos exércitos, dentre suas infindáveis atrocidades, sempre se aplicaram com brutal covardia sobre os corpos não só de mulheres, meninas e gays, mas também sob os direitos do macho hétero. 
sob suspeita
Em Portland, nos Estado Unidos, a polícia iniciou, a partir de julho de 2012, a invasão das casas de certos jovens com um mandato que previa a busca de roupas pretas e “literatura ou material antigoverno ou anarquista”. O pretexto? Suspeitas de envolvimento destas pessoas em manifestação de 1º de maio, em Seattle. Sabe-se, no entanto, que certos jovens vinham sendo monitorados há algum tempo. Não se trata do que fizeram, mas do que podem fazer. Diante do Estado, um anarquista é sempre um criminoso em potencial. Sua existência ingovernável mete medo em quem tem o Estado dentro de si. 
no tribunal, o silêncio
Depois de encontrar o que procurava, a polícia encaminhou três jovens ao grande júri – expediente jurídico estadunidense que tem como função julgar o mérito de uma ação judicial, isto é, especular sobre a viabilidade de tornar alguém oficialmente réu – esperando esclarecimentos a respeito de suas relações. Já que este procedimento antecede a acusação oficial, as pessoas submetidas ao grande júri não podem se valer do famoso “direito de permanecer calado” ou “não produzir provas contra si mesmo”. Os três jovens, anarquistas, recusaram-se a falar diante do júri e entregar a si ou a seus amigos. Foram presos em seguida por desrespeitar o tribunal com seu silêncio. Dois destes três jovens permanecem presos. Diante do tribunal, seu silêncio não é mera ausência de som: a recusa a falar é afirmação da vida anarquista.

hypomnemata 150


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 150, novembro de 2012.


Governamentalidades da sobrevivência
         O PCC (Primeiro Comando da Capital) completa dez anos na década em que se comemora um Brasil melhor: milagre legal e ilegal. 
         Entre o momento de sua demonstração pública de força (2001), passando pelo momento em que exerceu seu poder de governo sobre a cidade (2006), até as atuais mortes de policiais fardados ou não, há o desdobrar de um dispositivo ou o preenchimento estratégico de um velho dispositivo que combina polícia e prisão no regime dosilegalismos. (Conforme anotado neste caderno eletrônico em diversas ocasiões, dentre elas: hypomnemata-extra, de fevereiro de 2001, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=22hypomnemata-extra, de maio de 2006, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=85 hypomnemata 74, de junho de 2006, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=87hypomnemata 102, de outubro de 2008, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=119). 
         Em torno dessa sigla transitam policiais, coronéis, comandantes, secretários, prefeitos, governadores, gerentes, aviões, especialistas em segurança pública/sociólogos, jornalistas, comentaristas, donos de biqueiras (pontos de venda no varejo), investidores, usuários, ladrões, rappers, assassinos, investigadores, governadores, gente de bem, com suas propriedades, posições de destaques, e os que são tomados pelos jornais e TVs como agentes do mal
         O PCC não é somente uma organização, ele é um programa; não responde a uma estrutura fechada e piramidal de comando, mas atua por conexões, alianças, forma de atuação, incorporação. 
         A crônica cotidiana feita em músicas e entrevistas de rappers defende a ambigüidade entre interesses gerais e particulares; ao mesmo tempo deixa claro que o PCC oferece à população pobre proteção e cuidado. 
         Os rappers fazem eco, com seu linguajar peculiar, aos sociólogos e especialistas em segurança, que com seu linguajar acadêmico sustentam que as chamadas organizações criminosas preenchem a lacuna deixada pelo Estado. 
         Diferente de estabelecer uma direção organizada, a relação entre as ações das chamadas facções e as instâncias do Estado, regula um ramo de negócio e dá forma a um uso específico da violência em prisões e bairros de periferia. 
         Não se trata de uma organização piramidal tradicional, mas de uma programação disponibilizada também ao uso entre os enclausurados. 
         Trata-se de mais um programa fortalecedor da variação dos investimentos políticos na formação de resilientes e que contribui para construir a apologia à sobrevivência e a glorificação de superação das adversidades dentro e fora da prisão, dentro e fora do chamado “mundo do crime” e reforçar o amor pela periferia. 
         Ninguém se filia ao partido do crime, apenas declara pertencimento e, depois, deve mostrar que é capaz de ser considerado
         Como está estampado na imprensa, para entrar tem que ser convidado e fazer uso do “livre arbítrio” na escolha, mas, assumido o compromisso, deve-se obedecer ao conjunto de regras conhecido por todos nas prisões e periferias. 
         E assim, passa a compor a hierarquia local, seja da prisão ou da biqueira. Em resumo, institui-se a conduta pelo procedimento
         Governa-se ruas e presídios com paciência, diligência e sabedoria, sem prescindir do uso e ameaça do terror. 
         Quem segue o fluxo das regras e estratégias instituídas sabe que pra formá, tem que tê procedê
         Deve estar pronto a responder um salve, que virá a qualquer momento. 
         Vez por outra será necessário, na sua mística aterrorizante, oferecer a carne em sacrifício. 
         Em tribunais de execução, reuniões, cartas e conferências por meio de celulares, dão forma às suas fantasias de “poderosos chefões“ que mandam na cidade ou em parte dela, em conexões nacionais e internacionais, tendo nas mãos uma legião de miseráveis e nos bolsos um tanto de gente importante. 
         Sabem da sua condição “revolucionária” (como anunciam em seu revisado estatuto e proclamam por meio das letras de rap) de vanguarda da criminalidade e elite dos miseráveis: eles formam, em composição com as demais forças da sociedade civil organizada, a elite secundária no governo das misérias. 
         Na conexão Rio-Sampa, combina suas modulações com espelhamentos legais e ilegais pela diversificação do mercado de drogas e programas de governo que orquestram repressão e cuidados. 
         Como declarou um secretário de segurança, há seis anos à frente da pasta no Rio de Janeiro, trata-se de oferecer uma escolha racional aos cidadãos, na qual eles concluam que é mais vantajoso ficar do lado do Estado que do traficante. 
         Em São Paulo, seus porta-vozes dizem que o partido é mais competente em pacificar os presídios e os bairros, assim como denunciam não apenas a existência de milícias de policiais e ex-policiais, mas a intensificação da ação de grupos armados conhecidos nos anos 1980 como justiceiros ou “pés de pato”, gente que não conseguiu ser policial ou foi expulso da corporação, mas segue no “combate ao crime” e na execução de “criminosos”. 
         No entanto, sabe-se que não há dicotomia, mas trânsito lucrativo e negociável entre formas de governo compartilhadas: uma política. 
         Em meio ao alarme e ao pânico imobilizador, autoridades admitiram que negociam com traficantes e chefes, enquanto especialistas contemplativos reclamam por institucionalidade e transparência das negociações.
sinistro
         Há um pacto sinistro; quando rompido, arrasta corpos para valas comuns de quebradasbiqueiras, becos e vielas. 
         Sinistro é uma gíria carioca que designa um sujeito apetitoso no crime, pronto para ação, ameaçador, algo próximo do que em São Paulo se chama de bicho solto oucabuloso
          É também, no Rio de Janeiro, um cara legal, bacana, que faz algo impressionante. 
         Sinistro, no direito, designa o dano material num evento, seja roubo ou uma colisão de carros. 
         Para as agências de seguro, é o dano material do objeto segurado. 
         Sinistro, do latim sinistru, é a mão esquerda, presságio de mau agouro, prelúdio de desgraças: o que é assustador, temível, ameaçador. 
         Se em italiano essa palavra também é usada para nomear os partidos e movimentos de esquerda, eis mais uma possibilidade de situar o termo; para isso basta voltar à história da formação do Comando Vermelho e constatar em que deu a burguesa distinção entre preso político e preso comum. 
         Mais uma vez, confirma-se que todo preso é um preso político. 
         Nas ruas, anuncia-se o caos para produzir o desejo de ordem, que, para muitos, só existe sob os cuidados de um governo, seja institucionalizado ou não. 
         Nas prisões, a atuação do PCC instituiu uma cultura de paz: sem crack, sem estupros, sem mortes, sem rebeliões, sem sinistro. 
         Provaram a eficiência do programa em promover a ordem com sabedoria, diligência e paciência. 
         Primeiro o terror ganhou as ruas, agora os agentes seguem em negociações, televisionadas e a portas fechadas, para que as periferias desfrutem da paz que reina nos presídios paulistanos, sob o governo desse programa chamado PCC e seus preceitos morais, regras, instituições, negócios, parcerias, protocolos. 
         Não houve nem haverá o fim do terror ou das execuções. 
         O PCC institui, em meio a um contingente de miseráveis e em parceria com ricos negociadores, uma modulação atual de governos dos ilegalismos
         Na composição entre polícia, prisão, justiça e ambientes, não se mostram como um governo paralelo ou complementar, mas como parceiro de uma governamentalidade específica do social
          É o quinhão macabro, com mortes e execuções, das inclusões de miseráveis pelo mercado.

estalar anarquismos



Botar lenha na fogueira. Aumentar o fogo. Apreciar as centelhas, como fogos de artifícios. Ouvir ruídos. Sentir o calor das brasas. Pular a fogueira. Fazer comida, cantar, dançar, dar uns beijos, fumar, beber, notar o rebolado e sentir o estalar das paixões. Conversar, discordar, concordar, discordar de novo. Dormir, acordar, brindar e brincar com os amigos e os amores livres.
Estalar: a vida anarquista é fogo, aquece a água, precisa de ar e germina a terra. Não faz da natureza santuário, lei, nem religião. Explode como bomba, demole para inventar: não se ocupa da negação, mas de afirmações. Não tem respostas para grande parte das perguntas; se ocupa de problemas próprios, de equacionamentos imediatos capazes de potencializar a liberdade. Estalar anarquismos.
diante do estado das coisas
A memória dos anarquismos não é seletiva e não está guardada em nenhum livro, arquivo físico ou digital, bibliotecas, museus. Seus livros, músicas, relatos, poesias, teatros, imagens são efeitos das infindáveis lutas que acompanham cada anarquista. Não são propriedades de ninguém, não estão disponíveis aos julgamentos e aos juramentos de ninguém.
Os anarquistas preservam suas memórias fazendo anarquia, desdobrando práticas, inventando lutas, remexendo na história apaziguada, experimentando a liberdade no presente. Só existe o presente libertário se ele for o espaço do devir, e não ficar reduzido a lembranças do passado e nostalgia de futuro.
O presente que vivemos é maledicente por que faz acreditar na eternidade da democracia ou numa utopia de tempos passados. Viver no presente é encarar uma nova luta, diante do conformismo, das acomodações políticas, das negociações estranhas e da crença em condutores libertários, vivos e mortos. No mundo de hoje, não cabem mais os modelos, há muita moda, tudo é passível de ser modulado, inclusive o mais puro revolucionarismo. Não há mais iluminismo que provoque estalos.
Num mundo onde a democracia é a panacéia, ela virou a medida de todas as coisas, ser anarquista ficou muito fácil e, paradoxalmente, muito difícil. Hoje, o que não faltam são sites, verbetes, blogs, comunidades, indicações didáticas em livros oficiais, professores e intelectuais bem intencionados e zelosos com a pluralidade de opiniões. O direito à liberdade de expressão reduziu a ação à palavra, a palavra ao disse-que-me-disse, ao desespero e destempero dos exacerbados, que confundem afobação com ação direta, e que sonham em organizar a massa. Hoje, não há mais massa e muito anarquismo acabou diluído na multidão, o nome do mesmosujeito histórico; muito anarquista não deixa mais de reconhecer que afinidade é sinônimo de pluralismo, e esquece que todo pluralismo exige uniformidade, propõe representação, captura organizações, monitora os movimentos, educa o cidadão e, não só por isso, é contra-anarquista.
No mundo globalizado e de antiglobalização, o trabalho manual foi governado pelo trabalho intelectual, imaterial, de produção de produtos e transformou os sindicatos em empresas e em refúgios seguros. Só há vestígios do sindicalismo revolucionário, de anarcosindicalismo, de trabalhadores, sindicalizados ou não, quando comprometidos com a autogestão. Os trabalhadores estão sob o governo da empregabilidade e do empreendedorismo, que lhes dispõem de algum tempo para ações sociais, assistenciais e que alguns trabalhadores fantasiam chamando ação direta.
Há um dispositivo de captura mordaz, que apaga o fogo, que faz subir a fumaça do resfriamento, que amontoa cinzas e que convoca à participação. As minorias que traziam uma potência de contestação e se aproximavam dos anarquistas, teve seu ápice com o movimento 1968. Hoje estão organizadas em função de uma pletora de direitos e acomodadas numa grande almofada chamada alternativos em ONG’s e no Estado. Foi assim que a democracia representativa se fez também participativa e pretende nocautear a democracia direta.
Os anarquistas nunca prezaram a democracia como valor universal; sempre lidaram como ela nas lutas e prezam a ação direta como realização da autogestão. Os anarquistas não compõem; preferem enfrentamentos. Estão sempre preparados para luta e sabem valorizar o descanso do guerreiro. O anarquista não é profissional da luta, não é agente dos conceitos, nem um defensor de ideias. Tampouco pretende ser vanguarda ou condutor de consciência. Para o anarquista, a vida é uma batalha.
diante das coisas sem Estado
É sempre bom lembrar que a administração das coisas não se faz sem um poder sobre as pessoas. É preciso se afastar dessa ilusão à toa. Então, não há sentido anarquista em pretender restituir direitos sociais, mas é preciso a potência do direito livre que se realiza entre pessoas e um objeto. É preciso um direito anti-soberania para acabar com o fundamento divino do direito que sustenta a exploração do forte pelo fraco.
Onde isso repercute, onde provoca estalos? Aqui no Brasil, desde a década de 1980, os anarquistas republicam nossos escritos de luta incansáveis, reinventando conversações, promovendo cursos de memória, atualização e crítica, reabrindo centros de cultura libertária, abrindo novos espaços, traçando outros percursos, escrevendo, falando, conversando, provendo mais federações, realizando encontros, reavivando almoços, ecologias, amores livres, um anarquismo social com estilo de vida, coletivo e pessoal, múltiplo e potente. É preciso deixar de lado as picuinhas sobre anarquismo social e anarquismo como estilo de vida: os anarquismossempre foram sociais e sempre inventaram um estilo de vida terrível ao Estado e temido pelos oponentes.
Onde o anarquismo provoca cinzas e conta os mortos? Os anarquistas inventaram práticas que, ao contrário do que gostariam seus detratores e inimigos, são, gradualmente, assimiladas pelo movimento da vida. Assim, desde as escolas mistas até algumas práticas do sexo livre, que antes escandalizavam os boçais, foram devoradas como sexualidades, identidades e pedagogias assim e assado. As nossas práticas de políticas radicais, desde o final da década de 1990, habitam movimentos de contestação global, mas correm o risco de serem absorvidas pela racionalidade neoliberal e a política de moderação. O que é caro a nós anarquistas é a luta, o desassossego, a educação livre das nossas crianças, o nosso sexo solto, as nossas amizades impermeáveis e inclassificáveis, o trabalho livre e prazeroso.
Há um jeito de fazer anarquista que não se guia por finalidades, mas pelo surpreendente. Não somos coisas, nem pessoas disponíveis à condução, somos propiciadores de éticas libertárias que nos fazem, no presente, como o assombro e o estalo.
Só para não dizer que não falamos de nossos equívocos, aí vão alguns deles. Tem anarquista metido a bacana que dá curso com certificado; tem escritor anônimo, fantasiado de acadêmico, que fala de autores pré e pós anarquismo; tem o ramerrame que não escapa do efeitos do bolchevismo; têm os pretensiosos que balbuciam uma coisa chamada teoria anarquista; tem tolinho e tolinha, falando de anarquismo como inserção social ou anarquismo social; tem malandro fazendo colóquios e encontros enunciados como o primeiro ou segundo, revelando seu camuflado desejo de hierarquia e displicência com a linguagem; tem solidário com preso político, que desconhece o preso comum, e às vezes, incensa empresas do chamado crime organizado; tem acadêmico universitário que acha que o anarquismo está substituindo o marxismo; têm aqueles que querem convocar à participação e acreditam na liberdade da internet; têm os que ignoram a mística e o autoritarismo do Movimento Sem Terra (MST), do tribunal popular, dos sentinelas, dos líderes de movimentos sociais e da prefixologia sabichona; têm anarquistas que esquecem onde trabalham sob condições de exploração e assujeitamentos e fazem de sua prática um encontro deweek-end.
Há a urgência de relembrarmos que os intelectuais são apenas retaguarda dos movimentos anarquistas; não esquecer os efeitos destrutivos das organizações conspiratórias governando as consciências; que não há fantasia na pobreza, apenas uma miséria que precisa ser desgovernada; que as distinções entre istas nada mais é que divisão ou pluralismo; que as federações precisam deixar de ser territorializadas; e que o grande monumento erguido pelos anarquismos está no mutualismo e no federalismo.
O Nu-Sol é uma associação de pesquisadores libertários voltados para problematizar relações de poder e inventar liberdades. Procuramos por meio de pesquisas, cursos regulares e abertos ao público, como os cursos livres e experimentações com linguagens, levar por meio de conversações com a universidade e o público os resultados de nossas pesquisas e incômodos à flor da pele.
Distanciamo-nos dos refúgios seguros trazidos pelas teorias, do conformismo embalado pelas dogmáticas, dos zeladores das responsabilidades procedimentais e das confortáveis retóricas que alimentam os defensores das vítimas.
As pesquisas e atitudes do Nu-Sol apartam-se de condutas solenes, da superioridade da Ideia, daconsciência superior e da intransigência da funcionalidade institucional, para se situar nas lutas por liberdade diante dos efeitos das mais diversas maneiras de governar e dos aprisionamentos sob a vontade do soberano, das normalizações disciplinares e dos governos desdobrados nas sociedades de controle.
Lidamos com nossas inquietações de vida indo habitar outros espaços, dentro e fora da universidade, transformando a aula convencional em inesperada aula-teatro, ladeando livros com vídeos, pesquisas científicas com literaturas e artes plásticas, a história no corpo com as surpresas advindas do mundo da inteligência artificial e demasiada humana. Interessamo-nos pelas manifestações ético-estéticas da existência libertária diante dos governos de saber e de verdades.
Transitamos pelas bordas e depois delas. Apreciamos as imensas extensões que se avistam e que podemos pisar adiante, porque nos fixamos fora de nós e na órbita das fomes, livres das utopias e fazendo da pesquisa e das atitudes do Nu-Sol uma heterotopia libertária.
St. Imier 8 a 12 de agosto de 2012

"por favor, moderem seus afetos"!


Há dias em que a realidade brota e pulsa feito sangue jorrando de existências lúgubres que se parecem com moldes desenhados conforme o talhe do bom-mocismo!
Olho para as ceias preparadas tão dentro das farofas prontas e pergunto para as cerejas (as vermelhas cerejas!): que fazem aí numa hora dessas? Olho para as galinhas e os perus, naquela provocadora posição de bunda para cima, e penso: que desastre numa hora dessas... tenho que comê-los sem pronunciar qualquer asneira que possa ofender os que simplesmente os comem sem pensar em seus rabos!
Há dias em que a vida acumula em suas dobras, o sebo fedorento de existências vãs!
Há dias em que fico empapuçada com aqueles que fazem mil floreios para enunciar discursos de “respeito às diferenças”, mas que acreditam que conviver em diversidade signifique “respeitar” aquele que não conseguiu sair conforme aos moldes calcados pelo ideário dominante (e aí fica difícil, também, “respeitar” gentes com pensamentos que beiram à estupidez!)!
Há dias em que perco o sono por causa do vento que insiste em combater o calor que tenta me devorar!
Há dias em que perco o sono quando vejo a imensidão dos movimentos que faço na vida e no quanto isso se faz importante também para a vida das outras pessoas!
Perco o sono, também, em dias em que a minha dignidade é aviltada! Começo a usar pontos de exclamação e não paro mais!
Sentada em meio aos livros que me transitam, olho nos olhos da vida que circula por aqui e entro em reticências... lembro do tempo em que não sabia o que fazer com o fato de “gostar de mulher”, porque isso estava fora do desenho e da estampa que me fora traçado viver... lembro do quanto ralei para lidar com isso e aprender a transformar toda essa coisa em vida... e posso dizer que, agora, não seja qualquer vida! Na verdade acho insuportável esse tipo de balanço em que se acaba colocando na balança tudo o que já ralamos na vida, tentando, com isso, oferecer contrapeso ao aviltante que tivemos que suportar numa tacada só!
Olho para os livros e alegro-me por ser transitada pelo conhecimento produzido por tantas gentes... olho para os caminhos que transversei em toda a minha existência e sinto o maior orgulho por tudo o que já fiz... olho para trás, para frente, para os lados e em qualquer direção que vá, posso ir de cabeça erguida... olho para a vida das pessoas com quem transversei ou transverso em meu trabalho ou em minha vida pessoal e vejo com que envergadura, amplitude, imensidão, seriedade, amorosidade, generosidade, grandeza e alegria faço a vida acontecer, compondo-a com a vida de tantas gentes... olho para os caros amigos que compõem minha existência e tenho o maior orgulho por todos eles fazerem parte da minha vida e, também, por ser tão importante na vida de todos eles... olho para o percurso que já produzi em minha vida, na perspectiva de problematizar a questão das diferenças e para o quanto isso tem sido importante para provocar o pensamento  sobre a diversidade, assim como, para ajudar a produzir o compartilhamento da vida em qualquer circunstância, e sinto uma alegria imensa e rara por ajudar a provocar muitos movimentos na vida das gentes... tenho certeza, sem pretensão alguma, de que ao longo da curta vida que até agora transitei, consegui me tornar gente... por essas e outras, não aceito, não admito, não suporto que alguém, seja lá quem for, se ache no direito de me vir dizer como, quando, onde, com quem, com que intensidade eu possa viver os meus afetos... não aceito que alguém se ache no direito de transformar as suas próprias dificuldades para lidar com aquilo que é do outro (aqui, no caso, com o que é meu), em restrição à vivência dos meus afetos... é por demais precário, é por demais tacanho, á por demais raso, é por demais aviltante, é por demais pretensioso alguém pensar que pode me chamar para um canto e alertar: “agora que fulanos e sicranos estão chegando, por favor, moderem os seus afetos” (afetos que se restringiam a estar sentada ao lado de minha companheira, segurando sua mão e vivenciando nosso carinho singelamente)... por essas e outras, com licença, estou indo embora, porque no mundo em que eu vivo, viver é possível... no mundo em que eu vivo, já ralei muito e não cabe mais nem sequer um pensamentozinho tão aviltante... no mundo em que eu vivo, não sobrou nenhuma margem para se brincar de viver... não é de molecagens que foi feita a envergadura e o talhe de minha existência!

O JANTAR


NA ORDEM SOCIAL de hoje, o mais elevado tipo de sociedade humana está nas salas de estar. Nas elegantes e refinadas reuniões das classes aristocráticas não há nenhuma das impertinentes interferências da legislação. A individualidade de cada um é totalmente admitida. O intercurso, portanto, é perfeitamente livre. A conversação é contínua, brilhante e variada. Grupos são formados por atração. E são continuamente rompidos e reformados através da ação da mesma energia sutil e onipresente. A deferência mútua permeia todas as classes, e a mais perfeita harmonia jamais alcançada, nas complexas relações humanas, prevalece precisamente sob aquelas circunstâncias que os legisladores e homens de Estado temem como condições de inevitável anarquia e confusão. Se existem quaisquer leis de etiqueta, elas são meras sugestões de princípios,
admitidos e julgados porcada pessoa, pela mente de cada indivíduo.
Seria concebível que em todo o futuro progresso da humanidade, com todos os inúmeros elementos de desenvolvimento que a época presente vem desdobrando, a sociedade em geral, e em todas as suas relações, não atingirá um grau de perfeição tão alto como certos segmentos da sociedade, em certas relações especiais,já atingiu?
Suponha que o intercurso da sala de estar seja regulado por uma legislação específica. Que o tempo permitido para cada cavalheiro dirigir-se a cada dama seja fixado por lei; que as posições que eles possam sentar ou ficar de pé sejam precisamente reguladas; que os assuntos sobre os quais eles tenham permissão de discorrer, e o tom de voz e os gestos que cada um possa fazer, sejam cuidadosamente definidos, tudo sob o pretexto de evitar a desordem e a violação dos privilégios e direitos uns dos outros. Poder-se-ia conceber algo melhor calculado e mais certo de converter todo intercurso social numa escravidão intolerável e numa confusão sem esperança?
por S. Pearl Andrews - (A Ciência da Sociedade)
buscado em: cooperação.sem.mando

sábado, 1 de dezembro de 2012

para dona cleci


Não me relaciono muito bem com gentes desprovidas de gentitudes e de gentidades, mas tenho um carinho especial  pelas crianças e pelos velhos... gosto das crianças pela pureza com que(des) olham e (des)pensam o mundo e as coisas do mundo... e dos velhos, gosto pela sabedoria com que (des)acontecem a vida... nessas e noutras, encontro muita gente que me atravessa os afetos pela preciosidade das coisas que lhes habitam e transitam, assimassim, conheci Maria Cleci Soares Henriques... uma guria que já estava nos seus 81 anos quando a conheci... hoje conta 82... arqueada em seu corpo frágil, mantém-se altiva em sua existência... leitora de muitos livros, teve breve passagem pela escola formal, mas isso não a impediu de aprender a ler o traçado preciso das letras escritas com as tintas do alfabeto... lê Saramago, que não é leitura pra qualquer coió... faz projetos... tece invenções... cria a vida no tempo de seus tempos... por essas e outras, reproduzo aqui, um escrito de seu neto (Carlos Guilherme Vogel do Amaral), por conta do acontecimento dos seus 80 anos...
“Terça-feira, 14 de setembro de 2010
O que se faz em 80 anos?
Oitenta anos são 960 meses, algo em torno  de 4.174 semanas, 29.220 dias ou ainda 701.280 horas. Um pouco além disso, 80 anos pode ser tempo suficiente para curtir a infância com os irmãos e os primos, tempo para fazer com que alguém ande muitos quilômetros para pedir sua mão em casamento, tempo para parir e criar quatro filhos, ver esses filhos terem filhos e olhar para os netos, crescidos e barbados, e implorar a vinda de um bisneto.
Tempo para frequentar os bancos escolares por apenas quatro meses e mesmo assim aprender o suficiente para apreciar Shakespeare ou para ensinar um neto a ler enquanto lhe acompanhava na leitura diária do jornal.
Tempo para aprender a fazer um almoço inconfundível ou doces de abóbora de lamber os beiços. Tempo para preparar chimarrão e fazer palavras cruzadas. Tempo para assistir à novela das seis e para cultivar a mania de jogar cartas sozinha em cima da cama. Tempo para costurar as roupas furadas que os netos trazem de longe e para acender uma vela para iluminá-los quando é preciso. Tempo para aprender a fumar e tempo para deixar o cigarro de lado.
Tempo para fazer amigos e viagens mesmo depois dos setenta. Tempo para saber que nunca é tarde para começar algo novo. Tempo para dores difíceis, como a de perder um filho e tempo para superar e seguir em frente. Tempo para chorar e tempo para sorrir.
Tempo mais do que suficiente para encher um neto de orgulho.
Fica registrada aqui minha homenagem aos 80 anos da Dona Cleci, minha avó” (Carlos Guilherme Vogel do Amaral).

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a primeira aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Introdução ao pensamento de Michel Foucault
Aula 1

Ler com a garganta fechada 
“Um pesadelo me persegue desde minha infância: tenho sob os olhos um texto que não posso ler ou que apenas uma ínfima parte é para mim decifrável. Simulo lê-lo, sei que o invento. Depois, o texto de repente se embaralha inteiramente, não posso mais ler ou inventar nada, minha garganta se fecha e então eu acordo”[1]. Aquele que sempre sonhou com textos fugidios que resistem à apreensão, aquele que desconfiou de uma leitura que passa ao largo de tal resistência, leitura que só poderá simular sua compreensão, será protagonista de uma experiëncia intelectual singular na história da filosofia contemporânea. Singular não apenas por ser uma experiência que concordou em demorar-se diante de objetos que, à primeira vista, não pareciam próprios à reflexão filosófica, como o estatudo da loucura, das prisões, da sexualidade, da literatura de vanguarda, entre outros. Singular porque esta constituição de novos objetos de reflexão esteve indissociável de uma questão de método mais profunda. Questão que se enuncia da seguinte forma: o que significa, para a prática filosófica, ler um texto? Todo texto pode ser objeto de uma leitura filosoficamente orientada ou tal leitura deve apenas confrontar-se com textos estabelecidos pelo organon da tradição da filosofia ocidental? E, principalmente, o que vem a ser uma “leitura filosoficamente orientada”? Tais questões estão na base deste que será o objeto de análise de nosso curso: a experiência intelectual de Michel Foucault.

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a terceira aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault
Aula 3

Na aula de hoje, analisaremos a primeira parte de Doença mental e psicologia, isto a fim de mostrar qual o campo inicial de reflexões de Michel Foucault e quais as articulações entre tal campo e os procedimentos gerais próprios à epistemologia histórica francesa.
Este pequeno livro, Doença mental e psicologia, é, na verdade, uma porta de entrada privilegiada para a compreensão da experiência intelectual de Michel Foucault por retomar temas articulados no interior da reflexão filosófica francesa desde os anos vinte e por já indicar os caminhos que Foucault trilhará em direção ao estabelecimento de sua estratégia maior: submeter a reflexão epistemológica sobre as ciências humanas a uma genealogia do poder e das práticas disciplinares. Submissão que aparece no horizonte desde que Foucault admite que: “o homem só se transformou em uma ´espécie psicológizável´ a partir do momento em que sua relação à loucura permitiu uma psicologia”[1]. Como se a própria normatização da vida produzisse seu outro.
No entanto, este livro tem uma história peculiar. Lançado pela primeira vez em 1954, seu título era outro: Doença mental e personalidade. De fato, toda a segunda parte, intitulada “As condições reais da doença” era diferente do que encontramos na versão atual pois dedicada, principalmente, a Pavlov e á tentativa de edificação das condições para uma ciência psicológica materialista. Então vinculado ao marxismo e ao partido comunista, Foucault não deixa de seguir vias muito semelhantes a outro marxista, Georges Politzer e sua psicologia concreta que privilegia o caráter de internalização de contradições sociais enquanto cerne da constituição de patologias. Colaborava para isto, ainda, uma leitura precoce de Hegel. Foucault havia defendido, em 1949, uma dissertação para a obtenção do diploma de estudos superiores sob a orientação de Jean Hyppolite cujo título era: “A constituição de um transcendental histórico na Fenomenologia do Espírito de Hegel”.
No entanto, ao preparar uma nova versão em 1962, Foucault, agora distante do marxismo, reescreve todo o capítulo final de seu livro, substituindo a análise inicial por um grande resumo de sua tese de doutorado que acabara de sair: A história da loucura. Devido a este grande remanejamento, Foucault renegará completamente este trabalho. Em suas entrevistas, sempre irá se referir a História da loucura como sendo seu primeiro livro. O que nos deixa com uma questão maior,: por que introduzir o pensamento de Michel Foucault através de um livro que o próprio autor repudiou?

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a segunda aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).
Aula 2
Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

Na aula de hoje, iniciaremos nosso primeiro módulo sobre a formação da experiência intelectual de Michel Foucault. Trata-se aqui de analisar este período que vai da formação intelectual de Foucault até a redação de História da Loucura, em 1961.
Talvez a melhor de analisarmos tal período seja levando em conta a maneira com que o próprio Foucault compreende o ambiente intelectual no interior do qual ele aparecerá. Ou seja, trata-se de levar a sério esta operação de interpretação das linhas de força que geraram um programa filosófico determinado. Operação que exige uma certa reconfiguração a posteriori da história da filosofia, uma certa filtragem constituída para legitimar escolhas e estratégias intelectual. Sendo assim, devemos nos perguntar como Foucault organiza e compreende as linhas de força  que atuaram na configuração de seu programa filosófica.

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a quarta aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Na aula de hoje, começaremos a leitura de História da loucura através do comentário de seu primeiro capítulo, “Stultifera navis”, e de algumas questões presentes no segundo capítulo, “O grande internamento”.Este comentário do segundo capítulo será seguido mais de perto na próxima aula através, principalmente, da reconstituição do debate entre Derrida e Foucault a respeito das relações entre cogito e loucura. Neste sentido, as leituras para a próxima aula serão, além do capítulo em questão de História da loucura, “Cogito e história da loucura”, de Jacques Derrida e os textos “Meu corpo, este papel, este fogo” e “Resposta a Derrida”, escritos por Foucault em 1972.
            Até agora, nós vimos algumas coordenadas gerais a respeito da maneira com que Foucault se insere naquilo que poderíamos chamar de tradição da “epistemologia histórica” francesa, esta cujos nomes principais são Bachelard, Canguilhem, Koyré e, de uma maneira muito particular, Politzer. Esta inserção visou evidenciar como, para Foucault, a tarefa filosófica da contemporaneidade era solidária de uma epistemologia. Pois a reflexão filosófica seria fundamentalmente reflexão epistemologia, quer dizer, reflexão historicamente orientada sobre a constituição de objetos do discurso científico. No entanto, esta epistemologia histórica não era resultante apenas da submissão da epistemologia à história das ciências. Havia ainda uma clara articulação que visava inserir tais reflexões sobre a história  das ciências em um quadro mais amplo de história das idéias, dos sistemas filosóficos, religiosos, em suma, de uma história geral das sociedades.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Práticas clínicas no território


por Analice de Lima Palombini
As práticas clínicas, em sua diversidade e especificidades, devem sempre ser pensadas no contexto de um território, concebido como um espaço político de diferenças, desigualdades, conflitos e crenças singulares. O território não pode ser reduzido à casa onde se vive ou aos lugares frequentados pelo cidadão. O território não apenas circunda ou circunscreve o espaço privado, ele é o espaço vivo e mutante que atravessa, dinamiza e complexifica as relações existentes entre público e privado. No entanto, muitas vezes, os serviços de atenção psicossocial estão superlotados, a equipe está cansada e acaba se limitando às práticas regulares dentro do serviço. Outras vezes, a saída do serviço se dá apenas em casos de forte necessidade, como em visitas domiciliares e acompanhamento em caso de emergências. Nem sempre há uma relação orgânica e integrada com a estratégia de saúde da família e demais recursos do território. Como clinicar tecendo redes que propiciem a busca ativa de novas oportunidades de vida, do convívio e trocas com a cultura, seus impasses e saída possíveis? Como pensar neste contexto as relações entre a ciência e a cultura e seus processos de controle social, e suas relações com a política pública? Como construir estratégias que possibilitem a ampliação do cuidado no território, com os usuários e familiares? Que espaços temos criado para aumentar nosso conhecimento, práticas clínicas e sócio-culturais no território de referência? Há estímulo para se conhecer os recursos sócio-educacionais e a vida comunitária e cultural da população no território, e para a participação dos usuários e familiares neles? Há incentivo para ações e eventos comuns com as organizações comunitárias e movimentos sociais da área? As equipes conhecem e valorizam os recursos voluntários existentes no território? A equipe realiza alguma forma de acompanhamento terapêutico ou de suporte na vida diária? Promove grupos de ajuda e suporte mútuos na comunidade? Existem ações matriciais e/ou integradas com as equipes de saúde da família?
PRÁTICAS CLÍNICAS NO TERRITÓRIO
Conforme as diretrizes que orientam o sistema único de saúde (SUS) e a política nacional de saúde mental, a noção de território compreende não apenas uma área geográfica delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida comunitária. Território é lugar de vida, de caráter processual, produtor de relações que podem ser tanto identitárias como de diferença, onde têm lugar o conflito e sua negociação.
No livro O declínio do homem público, Richard Sennett propõe a seguinte definição de cidade: “assentamento humano onde está dada a possibilidade de encontro com o estranho”. Podemos aplicá-la à idéia de território que tem a heterogeneidade como sua marca: um território vivo é aquele que permite o encontro com o outro, com o que difere de mim, cumprindo, assim, uma função de alteridade que faz com que eu me torne diferente do que era.
Com efeito, a subjetividade se faz na relação ao outro, articulando singular e coletivo, indivíduo e sociedade, dentro e fora. É nesse entremeio que a clínica opera, como abertura à produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo, implicando transformações subjetivas. 
É próprio à clínica, portanto, que sua prática se dê no território, que ela busque multiplicar possibilidades de vida, provocando o alargamento dos modos de habitar o território para que a diferença possa nele ter lugar.
Uma tal concepção de clínica – a que se chamou de “clínica ampliada” –, se, por um lado, pode encontrar sustentação teórica em um autor seminal como Freud, que propõe o psíquico como esse ponto de articulação entre o singular e o coletivo, por outro é resultado do processo social e político implicado na consolidação do Sistema Único de Saúde em nosso país, determinante de transformações no modo de exercício da clínica. Ana Cristina Figueiredo (2009) aponta-nos três tempos dessa transformação:
- nos anos setenta, a passagem da clínica dos consultórios privados para os ambulatórios públicos, desprivatizando a clínica;
- nos anos noventa, o deslocamento dos ambulatórios públicos para os centros de atenção psicossocial (Caps), fazendo da clínica uma prática local, multiprofissional e interdisciplinar;
- na atualidade, a abertura dos Caps ao trabalho em rede, onde a clínica, ao mesmo tempo em que se estende ao território, também cede lugar a outras práticas, com as quais a responsabilidade pelo cuidado do usuário deixa de ser de um serviço, para ser compartilhada por diferentes atores do território.
A composição dessa rede é móbil, mutante. Ela acompanha os percursos próprios a cada usuário e as amarras singulares que vão se produzindo entre ele e as pessoas, gestos, objetos, lugares, serviços, organizações, que compõem o território onde vive. As práticas clínicas no território adquirem, assim, a característica da itinerância, indo ao encontro do usuário onde este estiver, acompanhando-o em seus percursos, buscando formas e espaços de expressão e conexão com o mundo.
Rubem Lemke, em sua dissertação de mestrado, ao abordar o tema da itinerância no contexto das políticas atuais de Saúde Mental e de Atenção Básica, destaca três modalidades clínicas de cuidado no SUS que se fazem nas andanças pelo território: a dos acompanhantes terapêuticos, dos redutores de dano e dos agentes comunitários. 
Resumidamente, essas três modalidades podem ser assim descritas: o acompanhamento terapêutico (AT) propõe uma clínica sem muros, que se faz no espaço aberto da cidade, acompanhando cotidianos de vida de forma a estabelecer laços entre o sujeito acompanhado e o território por ele habitado, utilizando o inesperado das ruas como matéria para as suas intervenções; a redução de danos (RD) promove ações de cuidado junto às pessoas que usam drogas e que habitualmente têm dificuldade de acesso aos serviços de saúde, com o objetivo de minimizar as conseqüências adversas do uso ou abuso de drogas; o agente comunitário (AC) promove a integração entre a equipe de saúde e a população de uma área definida, mantendo contato estreito com as famílias dessa área, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária.
Pautados pelos princípios da desinstitucionalização (reforma psiquiátrica) e da integralidade (reforma sanitária), acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários de saúde situam-se, igualmente, como atores de experiências que arriscam abandonar os ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida daquelas pessoas a quem se dirigem os seus cuidados, acompanhando essas pessoas em seus territórios existenciais. Apesar das suas especificidades e dos diferentes saberes envolvidos em cada uma dessas práticas, acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes comunitários têm a aprender um com o outro, podendo compartilhar ferramentas conceituais e estratégias clínicas diversas. Mais além disso, as funções encarnadas por cada um desses atores – ATs. RDs, ACS – não são sua prerrogativa exclusiva. Acompanhamento Terapêutico, Redução de Danos e Atenção Comunitária expressam, antes que especialismos, cargos ou profissões, um modo do cuidado, modo de conceber a clínica que atravessa, ou pode atravessar, as práticas de qualquer um dos trabalhadores envolvidos com o cuidado no território.
Aberta aos acontecimentos que advêm no espaço cotidiano das trocas sociais, a clínica se apresenta como “senhora da passagem”, como a nomeia Eduardo Passos, clínica no limiar entre “o público e o privado, entre a interioridade e a exterioridade do setting terapêutico, entre nós e a cidade, entre a clínica e as redes sociais”. Isso, porém, exige o diálogo permanente com outros setores, como educação, cultura, habitação... colocando em causa a política como indissociavelmente ligada à clínica. A clínica feita no território encontra, assim, na política, a sua zona fronteiriça, implicando a passagem das práticas clínicas a um exercício inventivo de cidadania.
Porém, se cidadania e singularidade são valores assumidos e veiculados pela reforma brasileira, não necessariamente estão constituídos como valores em torno dos quais se ordenam os espaços sociais em que se processa a sua implantação, o que remete menos a contradições internas à proposta dos serviços de atenção psicossocial do que a tensões históricas no processo de constituição do tecido social brasileiro, conforme assinala Carvalho (2001).Assim, as propostas de democratização do espaço de atendimento e de
promoção de sujeitos cidadãos entrelaçam-se a um quadro complexo de configuração de valores hegemônicos junto à população, relacionados aos processos de modernização (globalização) do país e às formas contemporâneas de existência (ibidem). As dificuldades não se restringem ao campo da reforma psiquiátrica; elas incidem no cerne mesmo da proposta do Sistema Único de Saúde e do ideário das políticas sociais em que a reforma se enraíza. A defesa da saúde como direito do cidadão e dever do estado, assegurada pela constituição de 1988, é, desde a origem, continuamente ameaçada pela ideia de estado mínimo e pela ótica do lucro, que concebe a saúde como mercadoria, valor de troca. É nesse contexto que se trava a disputa pela manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos em detrimento da criação de serviços de fato substitutivos. A precarização do trabalho, por sua vez, agravada pela ausência de mecanismos de proteção social, conduz às situações de vulnerabilidade, marcadas pelo empobrecimento, a ruptura dos laços, as atividades ilegais, o individualismo e a violência − são esses os desafios maiores que se interpõem à prática clínica no território, envolvendo mediação social para o estabelecimento de laços produtivos entre seus usuários e as comunidades locais. Em destaque, aqui, a polarização entre uma perspectiva que concebe a cidade como pólis − poder de produção de relações, conflitos e negociação − e a perspectiva hoje dominante, que a vê como mercado − onde o espaço público é privatizado, tornado uniforme, impondo, à diferença, a anulação, o silêncio e a violência. Nesse sentido, o caminho que a reforma psiquiátrica brasileira vem percorrendo é, por princípio, um caminho de resistência (Barros, 2003), sendo crucial que possa nele persistir.
Referências bibliográficas
BARROS, Regina Benevides. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em tempos neoliberais. In: CONSELHO Federal de Psicologia (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p.196-206.
CARVALHO, E.N. A reforma, as formas e outras formas: as construções sociais da pessoa e perturbação em um serviço de saúde mental. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em .
FIGUEIREDO, A.C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Palestra proferida na Jornada do Instituto APPOA; Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre, 2009.
LEMKE, R.A. A itinerância e suas implicações na construção de um ethos do cuidado. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
PASSOS, E. A clínica, o método e as experiências de passagem. Conferência de abertura do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I Congresso Brasileiro de AT “Singularidade, Multiplicidades e Ações de Cidadania”. São Paulo, 7, 8 e 9 de setembro de 2006. Não publicado.
SENNETT, R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Trabalho originalmente publicado em 1978.
Analice de Lima Palombini
Junho 2010

sábado, 10 de novembro de 2012

Cebes lança coleção de e-books com temas fundamentais da reforma saniária


Cebes lança coleção de e-books com temas fundamentais da reforma saniária
Desde sua criação em 1976, o Cebes vem contribuindo e inovando no campo das publicações em políticas de saúde. Acompanhando o lançamento da Revista Saúde em Debate, um dos mais tradicionais e permanentes periódicos nacionais, foi apresentada à comunidade da saúde a Coleção Saúde em Debate, que tantos títulos ofereceu subsídios para os primeiros passos da Reforma Sanitária brasileira. Muitos dos principais autores brasileiros e internacionais foram publicados nesta coleção.
Mais recentemente, foi lançada a Coleção Pensar em Saúde, título este que homenageia Mario Testa, um grande mestre e estrategista dos movimentos sanitários latino-americanos. O objetivo desta coleção era o de contribuir para a atualização da agenda da Reforma Sanitária Brasileira - e acreditamos que alcançamos tal objetivo.
Agora, é com enorme satisfação que inauguramos a coleção de e-books intitulada Temas Fundamentais da Reforma Saniária, que tem como propósito oferecer a um público mais amplo os principais conceitos, dilemas e tendências das políticas de saúde em alguns de seus mais importantes aspectos. O material, advindo do Projeto de Formação em Cidadania para a Saúde, se destina à formação de atores sociais, provocando a reflexão crítica e instrumentalizando a ação política, e se divide em dez volumes. São estes:
1. A Reforma Sanitária Brasileira e o Cebes (Jairnilson Paim);
2. Capitalismo e Saúde (Roberto Passos Nogueira e Rogério Miranda Gomes);
3. Questão agrária e saúde (Guilherme Delgado);
4. Políticas sociais e de Saúde (Lenaura de Vaconcelos);
5. Desenvolvimento, trabalho, saúde e meio ambiente (Anamaria Tambelini e Ary Carvalho de Miranda);
6. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte, o direito sanitário, a governabilidade e a busca de saídas (Nelson Rodrigues dos Santos);
7. O trabalho em Saúde (Luiz Carlos de Oliveira e Francisco Antônio de Castro);
8. Democracia participativa e controle social em saúde (Ana Costa e Natalia Vieira);
9. Atenção primária à saúde: seletiva ou coordenadora de cuidados? (Lígia Giovanella e Maria Helena Magalhães)
10. Diversidade Cultural e Saúde (Paulo Amarante e Ana Costa).
Mais informações sobre a coleção podem ser buscadas através do e-mail cebes@cebes.org.br.

A canalização dos recursos públicos para o setor privado


A canalização dos recursos públicos para o setor privado
Crédito: Nelson Perez/Valor Econômico
Fonte: SaudeWeb
Se as eleições fossem hoje e os candidatos do setor de saúde estivessem divididos entre Público e Privado, o voto da professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas, Sônia Maria Teixeira Fleury, provavelmente seria na primeira opção. “O que está acontecendo é uma terceirização geral não só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua do setor público”, afirma sobre a participação da iniciativa privada nas modalidades de PPP. Psicóloga de formação, Sônia teve sua trajetória marcada pela política e sociologia na área da saúde. Participou da Reforma Sanitária e passou pela Fiocruz. Sônia, conversou com a FH, por telefone de sua casa no Rio de Janeiro. Veja os principais trechos a seguir.

Revista FH: Estamos em ano de eleições municipais e Saúde é apontada pelos eleitores como um dos principais problemas em muitas cidades. Por outro lado, as campanhas atendem o pedido explorando ao máximo o assunto. Como você analisa a responsabilidade do cidadão nesse contexto?

Sônia Fleury: Não falta participação da cidadania demandando. Acho que falta, por exemplo, possibilidade dela ser mais efetiva nas unidades de saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) tentou a participação, mas no nível do sistema e  não nas unidades. No máximo, há uma ouvidoria ou assistente social e nada mais para que a pessoa faça valer sua vontade, as pessoas poderiam ter algum tipo de controle, isso poderia ser introduzido. Ademais, uma fiscalização maior também dos próprios conselhos em relação ao que está sendo feito e aos gastos com saúde, porque eles são poucos transparentes e pouco acompanhados pela população.

FH: Então, nesse caso, você acha que deveria ter mais ouvidorias dentro das unidades básicas de saúde?

Sônia: Sim, se elas tivessem algum tipo de poder. Acho que as ouvidorias poderiam estar ligadas ao próprio sistema de promotorias para que elas tivessem efeito, porque só fazer uma reclamação na ouvidoria e não ter resultado também não adianta. É possível ter conselhos de moradores e profissionais que participem do controle social dentro das unidades, e não só nos níveis municipal, estadual e federal.

FH: Uma das pesquisas que você coordenou é justamente sobre a inovação na gestão de saúde na esfera municipal. Onde o gestor de saúde de hoje pode inovar?
Sônia: A pesquisa compara, no período de 10 anos, o processo de descentralização e inovação em três dimensões: social, que envolve a inovação com a sociedade, a gerencial e também a assistencial. Na primeira pesquisa, os resultados mostravam grande diferença entre estas três curvas. Havia muito mais inovação social- isto foi até um pré-requisito para a descentralização do SUS, ou seja, criação de conselhos e de algum tipo de participação e prestação de contas junto à sociedade- e havia menos inovação gerencial e menos ainda assistencial. Depois de 10 anos houve uma mudança e na área assistencial ocorreram muitos incentivos do governo com o Programa Saúde da Família, Saúde Bucal, entre outros. Estas inovações foram disseminadas no Brasil inteiro em nível municipal. Portanto, hoje, a questão mais séria é a gerencial. É a que aparece como a menos inovadora e entra como o maior problema.

FH: Como você acha que os gestores poderiam mudar essa situação? Isso depende deles ou de alguma política de nível federal?

Sônia: As duas outras dimensões, assistencial e social foram induzidas pelo poder central. Acho que a área gerencial mereceria o mesmo esforço. O que vemos, claramente, quando analisamos o perfil dos mais inovadores, e isso é mais do que orientação política ou este tipo de coisa, é que os mais inovadores, no geral, fizeram cursos específicos para administrar e gerir. Portanto, a difusão massiva de educação gerencial poderia ser feito por meio do próprio ministério. Acho que um convênio com outras áreas é possível. Da mesma forma que se fez um esforço massivo para incentivar programas como o PSF, que deram resultados, também deveria se fazer para a qualificação da gestão na área de saúde. Acho que é possível e deve ser feito tanto pelo próprio gestor quanto pela indução do nível regional ou central.

FH: Entre os mecanismos de controle social estão os Conselhos Municipais de Saúde. Como você avalia o trabalho desses conselhos?
Sônia: Os conselhos são para a gestão do sistema municipal e não para o serviço. Acho que deveriam existir as duas coisas, pois esses conselhos não têm capilaridade. Se eles existissem nos locais de atenção, poderiam receber mais informações, não só em relação ao sistema, mas também em relação às unidades. Acredito que os conselhos têm tido papel importante, principalmente em lugares onde há uma sociedade civil mais organizada, com mais consciência e capacidade de exercer a função de controle social. Claro que o Brasil tem diferenças enormes e há uma diversidade muito grande. O que se mostrou é que parte dos conselhos aprovou as contas dos orçamentos estaduais enquanto muito dos Estados não cumpriam o percentual legal da sua contribuição, então isso mostra que ele não tem cumprido plenamente as suas funções, apesar de serem interlocutores importantes da sociedade. Mas, muitas vezes, a própria autoridade governamental passa por cima do conselho, um exemplo é a tensão que está ocorrendo no Mato Grosso, em relação à contratação de OSS. O Conselho Estadual é contra e definiu uma norma contrária, mas o Executivo foi adiante. Portanto, nas decisões mais importantes, os governantes não querem passá-las pelo conselho.

FH: Na sua opinião, o que tem, de fato, avançado na Saúde, na esfera Municipal? No projeto de municipalizar o SUS e levar mais acesso à saúde?
Sônia: A municipalização avançou tanto em termos de qualificar gestores no Brasil inteiro quanto em difundir os programas e aumentar a cobertura e a atenção à saúde, mas acho que existem estrangulamentos enormes tanto na área de gestão quanto na de financiamento. Houve um recuo muito grande de financiamento por parte da União, e os estados burlaram a lei até quando puderam, incluindo gastos que não eram de saúde no percentual previsto por lei. Pois só agora tivemos uma regulamentação mais rigorosa (Emenda 29), que determina, claramente, o que é considerado gasto com saúde. Qualquer dado ou estatística mostra que cresceu a participação do município no financiamento público à saúde em relação aos outros dois níveis. Isso porque o problema ‘bate na porta’ do gestor municipal, inclusive com a judicialização.


FH: Você atuou no projeto da Reforma Sanitária Brasileira, que resultou no SUS. Mais de 20 anos depois, na sua opinião, quais são os entraves que impedem a universalização não só do sistema, mas também do acesso?
Sônia: O investimento para ter uma rede homogênea espalhada pelo município é fundamental para permitir esse acesso. E nós tivemos e ainda temos muitos problemas de investimento. Mas há, claro, problemas de gestão do sistema, como aumentar a produtividade e, fundamentalmente, voltar a ter uma perspectiva de carreira pública e introduzir elementos inovadores de gestão sem precisar privatizá-la. É possível ter metas, cobrar e remunerar diferencialmente pelo que for cumprido no próprio setor público. Na minha opinião, o que está acontecendo é que há uma perspectiva por parte dos gestores de abandonar o setor público, como se exercer a função da saúde pública fosse problema, pois se acha que, comprando do setor privado, se eliminam os problemas de licitações, funcionalismo público e se pode fazer uma gestão mais eficiente. É possível fazer uma gestão mais eficiente dentro do setor público. Acho que um dos problemas do SUS é o abandono da gestão pública.


FH: Então, você acha que os gestores com as PPPs e OSS tendem muito a resolver os problemas via iniciativa privada, sendo que esse problema pode ser resolvido dentro do sistema público, com mecanismos da gestão pública?

Sônia: Mecanismos de gestão que incorporem elementos modernos. Por exemplo, um contrato de gestão com base em metas não precisa ser um acordo com o setor privado. Pode-se fazer isso entre entes públicos, contratando o hospital ou posto de saúde com metas e repassar recursos com base nisso. Mas por que só fazer isso com o setor privado e com elementos mais modernos de gestão e de certa forma abandonar a gestão pública, sem melhorar os salários, a carreira e a cultura política e a qualificação do pessoal e optar pela saída do setor privado? Quando o mundo inteiro está vendo os resultados das PPPs, especialmente dessa modalidade que começou a ser introduzida na Bahia, com a construção do próprio hospital e depois com a gestão de contrato de 25 ou 30 anos, esse tipo conseguiu falir o sistema nacional de saúde inglês, que é um marco mais importante da história da saúde no mundo.


FH: Você pode comentar mais sobre este modelo na Inglaterra?

Sônia: Lá não só existiu o modelo, como foi um desastre e faliu o sistema. Porque se faz um contrato de 25 anos para a construção do hospital e depois equipar e em seguida ter gestão do serviço. Não é essa a modalidade de OSS, em que o governo investe, faz o serviço público e entrega ao privado para gestão- modalidade comum em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto na Inglaterra como em Portugal isso hoje é considerado o grande problema, pois se supunha que essa modalidade iria trazer mais recursos para o setor público, seria mais eficiente e gastaria menos recursos na área de saúde e, além disso, seria mais flexível, porque o setor público é muito inflexível. Porém, o feitiço virou contra o feiticeiro, porque agora, no meio da crise europeia, por exemplo, não há flexibilidade para mudar esses contratos. Como cortar gastos de saúde com um contrato que não pode ser rompido? Portanto, a aparente flexibilidade se transformou em uma enorme inflexibilidade. Outra coisa é que os acordos são feitos com uma estimativa de preços, isso em um setor em que é muito difícil estabelecer valores por prazos tão longos, pois é um dos que mais incorporam tecnologia. Então, há uma série de inconvenientes nessa relação. Uma das coisas que levantei é que, se na Europa, a PPP tem tido uma enorme lucratividade para os bancos que foram os financiadores, no Brasil quem financia é um banco público, o BNDES. Portanto, essa ideia de uma enorme injeção de recursos é um pouco falsa em um País onde o próprio setor privado depende enormemente de financiamento público.

FH: Então você é contrária ao modelo de integração público-privada ou contrária a este modelo específico de PPP e favorável a um modelo de OS, por exemplo?
Sônia: No Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que se o governo resolver usar o modelo de OSS, os funcionários serão de carreira (públicos). Então, independente de gestão ser ou não terceirizada, o funcionário que atende à população não será o terceirizado. Mas o que está acontecendo é uma terceirização geral não só da função gerencial, mas também da atenção, que é precípua do setor público. Essa suposta integração é uma ideia de que o setor público virará simplesmente um contratador e o SUS será um financiador da área privada. Isso deve ser muito bom para a área privada, que sempre viveu no Brasil em torno de benefícios e subsídios do setor público. Desde sua criação, incentivado fortemente durante o Regime Militar, o privado não surgiu espontaneamente e, sim, por política pública, com financiamento e contrato com setor público. Agora, este setor quer continuar se beneficiando e quer que o SUS se transforme no verdadeiro comprador de seu serviço.

FH: O SUS é inspirado em modelos europeus e tem como pano de fundo o Estado de Bem Estar Social. Você citou a Inglaterra, que por causa das PPPs e diante da crise econômica está falindo um sistema que é tido como exemplo.
Sônia: Inclusive porque os hospitais privados de PPPs terminaram com o custo de atenção maior do que os públicos. As expectativas de que isso seria a solução saíram pela culatra.

FH: Na sua opinião, a participação da iniciativa privada é uma espécie de ameaça para esse modelo de universalização?
Sônia: Sempre existe a participação, mas a questão é saber se esta participação está canalizando os recursos públicos para o setor privado ou se ela traz o benefício para o bem estar público. Isso depende muito do tipo de relação que se estabelece. Por exemplo, no sistema público do Canadá, os médicos de consultórios são privados, mas, desde que estejam subordinados a uma lógica que é pública, tudo bem. No Brasil, o que se pensa em geral é o contrário, ou seja, é subordinar a lógica pública à dinâmica do mercado privado. Por exemplo, é possível ter PPPs na área de saúde com o desenvolvimento de medicamentos e tecnologia, mas por que a atenção à saúde, que é prioridade da função do Estado como bem estar público, deve ser atribuída a um contrato com privado? Qual é a vantagem disso? Não há prova das vantagens para o bem estar público.

FH: Mas a própria questão do sistema universal na Europa é complicada, pois a população envelheceu e é preciso financiar saúde e previdência para um contingente gigante e o Estado está quebrando por conta da crise.

Sônia: O Estado está quebrando porque está financiando banco. Se ao invés de financiar banco, financiasse saúde e previdência, não teria problema. Os recursos foram desviados desde os Estados Unidos, onde começa a crise, para salvar os bancos que especularam, sem controle do Estado, na área de habitação, financiamentos habitacionais e o subprime. O que aconteceu é que recurso público do Estado foi usado para tampar os buracos dos bancos e isso também ocorreu na Europa. Portanto, na verdade, não é o envelhecimento da população o problema, é a falta de regulação do Estado sobre o capital financeiro, que hoje o domina. Enquanto nós estivermos nessa situação, não haverá dinheiro para o bem estar social. Agora, se o dinheiro usado para salvar os bancos e resolver o sistema bancário no mundo fosse usado para o sistema de saúde, não estaríamos com problema algum.
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FH: Você é psicóloga de formação, o que te chamou atenção para escolher o caminho da medicina social e políticas públicas?
Sônia: Me formei psicóloga trabalhando com psicologia social. Então, não era trabalhar com indivíduos e, sim, com grupos em instituições. Desde essa época estou ligada à saúde, mais especificamente, com representações sociais em saúde e doença. A ideia da política no sistema de saúde sempre foi uma preocupação, portanto foi uma trajetória natural buscar a compreensão maior da dimensão política e sociológica.