sábado, 1 de outubro de 2011

famílias abertas e famílias fechadas


por colin ward*
em revista verve
Ao se escolher um parceiro, procura-se tanto reter as relações desfrutadas na infância, quanto retomar fantasias que se lhe foram negadas. Consequentemente, a seleção de um companheiro ou de uma companheira torna-se para muitos uma tentativa de arranjar um papel particular em uma produção fantasiosa própria. No entanto, na medida em que ambas as partes tem a mesma intenção, mas raramente as mesmas fantasias, o resultado pode ser muito bem o duelo entre dois produtores rivais. Há homens, como Stanley Spencer disse de si próprio, que necessitam duas esposas que se complementam, e mulheres que precisam de dois maridos complementares, ou ao menos dois objetos amorosos complementares. Se, em primeiro lugar, insistirmos que isso é imoral ou infiel, e, em seguida, que se isso ocorresse haveria uma obrigação de cada objeto amado em exigir direitos exclusivos, nós simplesmente estaríamos adicionando dificuldades desnecessárias a uma questão que poderia ter se apresentado sem nenhuma, ou ao menos com poucas, caso fosse permitido a cada um resolvê-la em seus próprios termos. Alex Comfort (Sexo na Sociedade).
Uma revolução essencialmente anarquista, que tem avançado enormemente em nossos dias, é a revolução sexual. É anarquista precisamente porque envolve a negação da autoridade das normas estabelecidas pelo Estado e por diversas iniciativas religiosas em relação às atividades dos indivíduos. Pode-se afirmar que tem avançado, não por causa do “colapso” da família que os moralistas (em geral erroneamente) enxergam por todo lado, mas porque, na sociedade ocidental, mais e mais pessoas decidiram conduzir sua vida sexual como acham melhor. Aqueles que profetizaram consequências terríveis como o resultado da maior liberdade sexual defendida pelos jovens — bebês indesejados, doenças venéreas, etc. — são geralmente os mesmos que buscam a realização de suas profecias ao se oporem ao livre acesso dos jovens aos anticoncepcionais e à eliminação do estigma e mistificação que cercam as doenças sexualmente transmissíveis.
O código oficial sobre questões sexuais foi transmitido ao Estado pela igreja cristã e tem sido cada vez mais difícil de ser justificado devido ao declínio das crenças sobre as quais está baseado. Anarquistas, de Emma Goldman a Alex Comfort, observaram a conexão entre repressão política e sexual. Embora aqueles que pensam que a liberação sexual leva necessariamente à liberação política e econômica provavelmente sejam otimistas, esta certamente faz as pessoas mais felizes. O fato de não haver bases imutáveis para os códigos sexuais pode ser observado a partir da ampla variedade de comportamentos aceitos e da legislação acerca de temas sexuais em diferentes períodos e em diferentes países. A homossexualidade masculina tornou-se um “problema” apenas porque virou assunto da legislação. A homossexualidade feminina não era um problema, pois sua existência foi ignorada pelos legisladores (homens). As anomalias legais são algumas vezes hilárias: “Quem pode explicar exatamente por que a relação anal é legal na Escócia entre homem e mulher, mas ilegal entre homens? Por que a relação anal entre homem e mulher é ilegal na Inglaterra, mas sancionada entre homens se ambos forem maiores de 21 anos?”
Quanto mais a lei é remendada no esforço de torná-la mais racional, mais absurdos aparecem. Isso significaria que não há códigos racionais para o comportamento sexual? Obviamente não: eles apenas estão submersos nas irracionalidades ou desqualificados por meio da associação com proibições irrelevantes. Alex Comfort, que encara o sexo como “o mais saudável e importante esporte humano”, sugere que “o próprio conteúdo do comportamento sexual muda provavelmente muito menos entre as culturas do que a capacidade individual de desfrutá-lo sem culpa.” Ele asseverou duas injunções ou mandamentos morais acerca do comportamento sexual: “Não deverás explorar os sentimentos de outra pessoa”, e “Não deverás causar em nenhuma circunstância o nascimento de uma criança indesejada.” A referência a esses mandamentos levou o 
professor Maurice Carstairs a provocá-lo com a questão: “por que, enquanto um anarquista, Comfort estaria prescrevendo regras?” — ao que este retrucou que uma filosofia da liberdade demandava um nível mais alto de responsabilidade pessoal do que uma crença na autoridade. A falta de prudência e cortesia habituais que pode ser observada no comportamento adolescente de hoje decorreu, como ele sugeriu, precisamente da determinação de um código de castidade que não faz nenhum sentido em detrimento de princípios que são “imediatamente compreensíveis e aceitáveis por qualquer jovem sensível.”
Certamente não é necessário ser um anarquista para perceber a família nuclear moderna como uma resposta 
do tipo camisa de força às necessidades funcionais do lar doméstico e da criação de filhos, que impõem restrições intoleráveis a muitas pessoas que são capturadas nessa armadilha. Edmund Leach assinalou que “longe de ser a base da boa sociedade, a família, com sua estreita privacidade e espalhafatosos segredos, é a fonte de todos os nossos descontentamentos.” David Cooper a denominava “a insuperável e mais letal câmara de gás de nossa sociedade”, e Jacquetta Hawkes disse que “é uma forma indutora de terríveis demandas aos seres humanos capturados por ela: fortemente carregada pela solidão, exigências excessivas, restrição e fracasso.” Obviamente, para alguns ela funciona como o melhor arranjo, mas nossa sociedade não 
toma providências para os outros, cujo número se pode deduzir ao se fazer a pergunta: “Quantas famílias felizes eu conheço?”
Consideremos o caso do Mané Cidadão. Em virtude de algumas noites alegres na discoteca, ele e Maria fazem um contrato com o Estado e/ou com alguma corporação religiosa para viverem juntos por toda vida e recebem uma licença para copular. Assumindo que eles superaram os problemas de encontrar algum lugar para viver e formar uma família, olhemos para eles alguns anos depois. Ele, a cada dia lutando do trabalho para casa, sente-se capturado em uma armadilha. Ela sente o mesmo, a solitária dona de casa sem nenhuma ajuda, acorrentada à pia e ao balde de fraldas. E as crianças também, cada vez mais, com o passar dos anos, sentem-se em uma armadilha. Por que papai e mamãe não nos deixam simplesmente em paz? Não é preciso continuar essa saga porque a conhecemos de trás para frente.
Em termos de felicidade e plenitude dos indivíduos envolvidos, a família moderna mostra-se melhor em relação à sua predecessora do século XIX ou às várias alternativas institucionais sonhadas por autoritários utópicos; e podese muito bem argumentar que hoje não há nada que impeça as pessoas de viverem da maneira como gostam. No entanto, de fato, tudo em nossa sociedade, dos anúncios publicitários na televisão às leis de herança, está baseado na suposição da compacta pequena unidade consumidora da família nuclear. A moradia é um exemplo óbvio: para as moradias municipais não estão previstas unidades fora do padrão e no setor privado nenhum empréstimo ou hipoteca estão disponíveis para a formação de comunidades.
Os ricos podem evitar a armadilha pelo simples expediente de pagar outra pessoa para fazer o serviço doméstico e cuidar de suas crianças. Mas para as famílias comuns, o sistema faz exigências que muitas pessoas não conseguem dar conta. Aceita-se isso pois é universal. De fato, o padrão se tornou tão ubíquo que os Kibbutz israelenses ou as comunas chinesas são os únicos exemplos que Dr. Leach poderia citar, onde crianças crescem em grupos domésticos amplos e mais flexíveis, centrados na comunidade e não na cozinha da mãe. Mas mudanças se anunciam: o movimento de liberação feminina é um lembrete que o preço da família nuclear é a subjugação da mulher. As comunas ou moradias conjuntas que alguns jovens estão estabelecendo são sem dúvida, parcialmente, uma consequência da necessidade de dividir aluguéis inflacionados, mas em muitos casos, são também uma reação contra o que eles percebem com a estultificada natureza rígida da pequena unidade familiar.
A mística do parentesco biológico resulta em que alguns casais vivam em desesperada infelicidade por causa de sua infertilidade, enquanto outros têm crianças que são indesejadas e negligenciadas. Isso também gera a situação comum de pais agarrados a suas crianças porque depositaram muito do seu capital emocional neles, enquanto que estas querem desesperadamente escapar de seu amor possessivo. “Um lar seguro”, escreve John Hartwell, “muitas vezes significa uma atmosfera sufocante onde as relações humanas se tornam uma paródia e onde gotas de criatividade são esmagadas como evidência de desvios.” Estamos muito longe do tipo de comunidade na qual as crianças poderiam escolher localmente figuras parentais às quais elas gostariam de se ligar. No entanto, um bom número de sugestões interessantes está no ar, todas indicando um afrouxamento dos laços familiares no interesse de ambos: pais e filhos. Há a ideia de Paul e Jean Ritter de uma “casa de crianças” no bairro atendendo 25 a 30 famílias; há o conceito de “Casa dos Jovens” de Paul Goodman, instituição análoga à de algumas culturas primitivas; e há a “Unidade de Moradia de Famílias Múltiplas”, sugerida por Toddy Gold. Essas ideias não estão baseadas em nenhuma rejeição de nossa responsabilidade em relação aos jovens: elas envolvem repartir essa responsabilidade pela comunidade e aceitar o princípio que, como Kropotkin colocou, “toda criança é nossa criança.” Elas também implicam dar responsabilidades às próprias crianças, não apenas em relação a elas mesmas, mas à comunidade, o que é exatamente o que a nossa estrutura familiar fracassa em fazer.
As necessidades e aspirações pessoais variam de modo tão amplo, que é tão insensato sugerir alternativas estereotipadas, quanto recomendar conformidade universal ao padrão existente. Em uma ponta da escala, está a deformação da criança pelo acidente da paternidade, tanto pela possessividade, quanto pela perpetuação da síndrome familiar de inadequação e incompetência. Na outra ponta, está o embrutecimento emocional da criança por meio da falta de ligação pessoal em uma situação de abrigo institucional. Conhecemos lares convencionais permeados com afeição casual onde responsabilidades e tarefas domésticas 
são repartidas, enquanto que facilmente imaginamos um lar comunal no qual as mulheres são verdadeiros burros de carga coletivos, e não individuais, e uma criança que não seja muito atraente e assertiva foi não apenas isolada, mas também negligenciada. Mais importante do que a estrutura da família é a expectativa que as pessoas têm do seu papel nela. O tirano doméstico da família Vitoriana era capaz de exercer sua tirania apenas porque os outros estavam preparados para suportá-la.
Há um velho slogan entre educadores progressistas; “acolha-os, ame-os e deixe-os em paz.” Mais uma vez, isso não encoraja a negligência, mas enfatiza que metade das misérias e frustrações pessoais dos adolescentes e dos adultos em que eles se transformam é decorrente das pérfidas pressões ao indivíduo para que este faça o que outras pessoas acreditam ser apropriado para ele. Ao mesmo tempo, a contínua extensão dos processos de educação formal adia cada vez mais a aceitação da efetiva responsabilidade do jovem. Qualquer professor de educação continuada irá relatar a diferença entre jovens de dezesseis anos que estão trabalhando e frequentam cursos vocacionais de meio período e aqueles da mesma idade que ainda estão na educação em tempo integral. Naqueles países tenebrosos onde ainda se permite que crianças trabalhem, percebe-se não apenas o elemento de exploração, mas também a maturidade que acompanha incumbir-se das responsabilidades funcionais do mundo real.
Os jovens são capturados em uma delicada armadilha: a idade da puberdade e a idade do casamento (na medida em que nossa sociedade ainda não permite a experimentação de alternativas) são admitidas, ao mesmo tempo em que a aceitação no mundo adulto é continuamente adiada — apesar da redução da maioridade formal. Não surpreende que muitos adultos pareçam estar presos a um modelo de imaturidade. Na vida em família não se desenvolve uma genuína sociedade permissiva, mas apenas uma sociedade na qual é difícil tornar-se adulto. Por outro lado, para uma minoria de jovens, uma minoria que tem aumentado, os estereótipos do comportamento sexual e papéis sexuais que confinaram e oprimiram as gerações anteriores por séculos, simplesmente se tornaram irrelevantes; fato que poderá certamente no futuro ser considerado como uma das conquistas positivas da nossa era.
Tradução do inglês por Beatriz Carneiro.
Nota: Traduzido de “Open and closed families”. Publicado pela primeira vez em Anarchy  in action, Londres, Editora Allen & Unwin, 1973. (N.T.)
Resumo: A revolução sexual é uma revolução anarquista, nega a família e suscita experiências de liberdade. O autor retoma outros anarquistas, ao alertar para as consequências do papel da família na subjugação da mulher e frustração de pais, crianças e jovens. Descarta tanto alternativas estereotipadas, como padrões universais existentes. Ressalta ainda a importância da educação livre e comunitária das crianças. 
palavras-chave: revolução sexual, família, crianças.
Colin Ward (1924-2010). Anarquista nascido no Reino Unido, foi arquiteto, urbanista e pedagogo. Depois da Segunda Guerra passou a contribuir com o periódico Freedom, fundado por Piotr Kropotkin no século XIX. Editou o periódico Anarchy entre 1961-1970. Entre suas obras mais importantes estão Anarquia e ação (1973) e A Criança na Cidade (1978).

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