terça-feira, 14 de abril de 2015

flecheira.libertária.380

bella, ciao! Diante do fim de uma existência intensa, fulgurante, cabe não o luto, mas sim uma saudação à vida. Diante da existência da vida como obra de arte da anarquista Judith Malina, cabe-nos retomar seus percursos ético-estéticos e seguir com ela. Judith nasceu em 1926, em Kiel, Alemanha. Nos anos 1930, ao fugir com os pais do governo nacionalsocialista, desembarcou em solo estadunidense. Ainda muito jovem, enquanto seu pai, Max Malina, trabalhou para libertar homens, mulheres e crianças encarcerados em campos de concentração, circulou com a mãe, Rosa, pelas ruas de New York, lendo poesias que expunham as violências orquestradas pelos nazistas. No mesmo ano em que a II Guerra Mundial se encerrou, com menos de vinte anos, matriculou-se na escola de Erwin Piscator, diretor de teatro que também havia se refugiado nos Estados Unidos. No interior da escola, além do teatro descobriu outra paixão e amor com Julian Beck. Afetada por este encontro, pelas leituras do anarquismo de Paul Goodman, no final da década de 1940, inventou com Beck o the living theatre, teatro vivo inaugurado no início dos anos 1950, na própria casa em que dividiam na West End Avenue. Entre o ocaso da II Guerra e a eclosão do conflito no Vietnã, Malina e Beck afirmaram a anarquia articulada com a perspectiva do que chamaram de uma revolução não violenta, montando textos e organizando protestos nas ruas como as “Greves Gerais pela Paz”. Tal posicionamento levou os dois às primeiras prisões, no fim da década de 1950 e início dos anos 1960. Em 1963, depois de uma apresentação de “the brig”, texto de Keneth Brown sobre as violências no interior de uma prisão da marinha estadunidense, Beck e Malina foram sequestrados pelo Estado sob a justificativa de não pagamento de aluguel e dos impostos de renda. Malina, durante o julgamento, além de dispensar advogados e ler seus poemas, berrou “inocentes” a cada vez que o promotor responsável pela acusação utilizou a palavra “culpados”. Ao ser repreendida pelo juiz, declarou: “você pode até cortar a minha língua fora, mas não pode me impedir de dizer que sou inocente. Eu não lhe concedo este privilégio”. Impossibilitada de trabalhar, no final dos anos 1960, Malina viajou com o the living theatre para a Europa. Depois de participar dos acontecimentos de maio de 1968, em Paris, mais precisamente da ocupação do Teatro Odeon, apresentou “paradise now”, uma das montagens mais radicais da segunda metade do século XX. Em seguida, foi expulsa de Avignon e Roma e retornou brevemente aos Estados Unidos. No início dos anos 1970, chegou ao Brasil, em plena ditadura civil-militar, a convite de artistas que solicitaram o apoio do the living theatre na “luta pela liberdade num país cuja situação eles descreviam como sendo desesperadora”. Junto com o bando, Malina decidiu que a melhor maneira de apoiar os artistas era precisamente inventar pelas ruas, em espaços considerados “nãoteatrais”, um novo modo de fazer teatro. Depois das proposições contidas em “o legado de Caim”, realizado em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o coletivo foi impedido novamente de trabalhar, desta vez pelo DOPS do estado de Minas Gerais, que interrompeu o processo de “sonhos de mamãe”, montagem realizada em parceria com filhos de operários e mineradores da região. Acusados de “subversão” e “tráfico de drogas”, os integrantes do the living theatre foram presos, julgados e expulsos do país. Em seus diários da prisão no Brasil, Malina relata a descoberta das bachianas de Villa-Lobos, as canções de amor como as de Roberto Carlos que ouviu no rádio no interior da cela, o prazer em tomar um suco de frutas “superbom”, o amor entre dois resistentes à ditadura civil-militar separado pelas paredes das celas, a morte do amigo Jim Morrison, o embate com os oficiais quando questionada sobre o que pensava da polícia e respondeu: “como pacifista, não posso concordar com nenhuma violência”. Presa no DOPS, também recebeu com imensa alegria a notícia vinda do norte da América de que acabara de se tornar avó. A expulsão pela ditadura civil-militar brasileira propiciou a retomada de “o legado de Caim”, ao longo de toda a década de 1970, com experiências realizadas em lugares distintos, desde minas de minérios de ferro em Pittsburgh até a exposição pelas ruas de New York de “Seven meditations on political sado-masochism”, encenação das torturas e violências observadas nas prisões brasileiras. Entre 1980 e 1990, após a morte de Julian Beck, Malina seguiu adiante, dirigindo inúmeras peças na sede que o the living theatre inventou na Third Street. Depois das montagens de “anarchia” (1995) e “utopia” (1996), viajou à Itália para apresentar performances contra a pena de morte instituída pelo governo do país, tema retomado com força no final da década com “em meu nome não”, na Times Square, em New York, cada vez que algum condenado a morte era executado pelo governo dos Estados Unidos. Por fim, nos últimos anos de vida, Malina continuou a trabalhar sem cessar. Para além de montar “no place to hide” (2013), texto em que expôs a violência da especulação imobiliária a partir do fechamento de mais uma sede do the living theatre, durante as comemorações de seus 88 anos afirmou: “eu gostaria de livrar o planeta da pobreza, do dinheiro, das fronteiras, das prisões, dos policiais e da violência”. Quando questionada se pretendia parar de trabalhar devido aos problemas relacionados à saúde, comentou: “eu gostaria de me apresentar mais umas 600 vezes”. Diante de uma existência como esta, tecida em matéria fina, cabe não o luto, mas o movimento que é próprio da luta, da vida, este teatro vivo, aqui-e-agora. No teatro, ou em qualquer instante, se resiste. Cada um se transforma e se constrói como obra de arte. A existência de Malina pode ser vista na internet, lida em livros e teses, ouvida nos mais diferentes espaços, mas não só deve ser admirada por anarquistas, mas por qualquer humano que desista da servidão voluntária. Ela tinha o estilo da contundência legada por Henry David Thoreau com a desobediência civil, a da existência como guerra permanente proudhoniana, a rebeldia bakunista diante de qualquer autoridade, somadas aos cuidados com educação que apreendeu na coexistência com Paul Goodman. Como a anarquista Emma Goldman tornou-se a mulher mais perigosa da América. Morreu aos 88 anos, deixando em pé dois infinitos potenciais na lembrança da data triste, apesar da inevitabilidade da morte. Uma morte que reitera a continuação da vida libertária. Diante de uma existência fulgurante, viva, um viva! viva Judith Malina! 

terça-feira, 7 de abril de 2015

flecheira.libertária.379

terrorista é o estado 
A última edição da flecheira libertária noticiou que 15 anarquistas que vivem na Espanha foram sequestrados pelo Estado em operação policial intitulada “Piñata”. Uma semana depois, dez deles foram libertados do cárcere, porém, mantidos presos em território espanhol ao terem seus passaportes confiscados. Hoje, 7 de abril, cinco anarquistas permanecem encarcerados sob a acusação de terrorismo, “subversão da ordem pública e perturbação da paz social”, e por suposta associação ao Grupo de Anarquistas Coordenados (GAC). Estes encarceramentos obedecem à lógica da prevenção e da segurança: o Estado segue disseminando violência e terror. 
onde há polícia não existirá paz 
Na última quinta-feira, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, uma criança de 10 anos foi executada pela polícia com um tiro de fuzil na cabeça. Ao corpo do menino Eduardo de Jesus Ferreira somam-se outras 3 mortes pela polícia apenas neste início do mês. Autoridades políticas e policiais atribuem os assassinatos a “uma falha no combate à criminalidade” e a uma “falta de controle” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) locais. Prometeram punir com exoneração os chamados culpados bem como alargar monitoramentos e fiscalizações, e reforçar a polícia local com a reocupação das favelas do Complexo pelo COE (Comando de Operações Especiais). Inaugurada no Alemão com amplo apoio da sociedade civil há pouco mais de dois anos, a chamada polícia pacificadora perseguiu, prendeu, torturou e assassinou sistematicamente. A morte de Eduardo na quinta-feira somente explicitou que onde houver polícia, seja ela qual for, não existirá paz. E tudo recomeçará como sempre. 
a mudança que não muda 
Imediatamente após o assassinato, moradores do Complexo do Alemão protestaram por justiça, contra a violência e contra a presença das UPPs na favela. Utilizando-se de todo o seu aparato repressivo, a polícia respondeu novamente com violência. No sábado, mais manifestações, agora estrategicamente não reprimidas. Enquanto a Coordenadoria da Polícia Pacificadora pretende iniciar um reforço com a atuação de diferentes polícias e comandos no local, os moradores pedem que as UPPs sejam substituídas por Unidades de Políticas Públicas. Seja pela polícia repressiva, ostensiva ou pacificadora, seja pelas chamadas “políticas públicas”, não se abre mão do Estado. E este não abre mão da violência e do extermínio em nome da segurança de alguns. 
marcha, missionário! 
No mês passado a igreja-empresa do bispo-pastor que também é dono de canal de televisão lançou outra novidade: o grupo de jovens “Gladiadores do Altar” organizado no Ceará. Nos vídeos que circulam na internet, é possível ver rapazes fardados, entoando versos evangélicos em tom militar e fazendo saudações com o braço direito erguido em direção ao tal “altar”. Militantes de esquerda e do LGBT temem ações paramilitares, enquanto a igreja afirma que tudo é apenas parte da formação de novos “missionários”. O Ministério Público sustenta que tudo pode, protegido pela liberdade de culto. Em tempos de democracia juramentada e profusão de direitos, os fascismos seguem fervilhando sob as camadas de tolerância. Todos querendo o direito de manifestar o mesmo, de cultuar o próprio e de criminalizar o que se lhe opõe. 
aumentando os raios da conexão 
Enquanto a Google está projetando seus balões que levarão internet para áreas isoladas, o Facebook começou a testar seus drones que usam raios lasers para a transmissão de dados. Os drones possuem 29 metros de envergadura, funcionam por energia solar e pretendem conectar áreas que nunca estiveram online. Segundo o Facebook, apenas 10% da população no planeta vive sem conexão e os drones fornecerão acesso a mais de 5 milhões de pessoas. A estas serão disponibilizados os sites considerados essenciais, como Facebook e Wikipedia. Outros costumes serão mapeados a partir do fornecimento de dados dessas pessoas. Entre o emaranhado de fios, ondas e raios, o avanço da conexão de todos pretende que ninguém sobreviva incógnito. Em breve tudo estará mapeado. Será? 

hypomnemata 174

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 174, março de 2015.
Da maior importância
Cinco anos depois da Constituição de 1988, já aparecia a Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 171, sobre a redução da menoridade penal para 16 anos. Diante dos efeitos da mobilização constitucional da época, os setores conservadores não obtiveram sucesso. Mas como as forças reativas, sempre esperam pela ocasião em que os progressistas estão enfraquecidos, principalmente dentro do senado e da câmara, eles retomam suas investidas. E o fazem desta vez, com o apoio da oposição capitaneada pelas bancadas evangélicas e “da bala” (codinome adequado à Frente Parlamentar de Segurança Pública da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara). Derramam seus velhos, preconceituosos e amedrontadores argumentos revestidos de contextos jurídicos em prol da segurança. Declaram a contestação à PEC como ideológica e se aclamam os justos proclamadores da verdade, agora escorados no princípio de maioria.
Esses agentes interessados em encarceramentos, construções de presídios, dispositivos eletrônicos de controles, e verdadeiros defensores da moral sabem usar e abusar do princípio da maioria do qual depende a democracia representativa e participativa. Eles também expressam uma vontade de maioria de encarcerar jovens com 18, 16, 12, em qualquer idade. Por isso, neste momento, a possível discussão se resume ao argumento de cláusula pétrea ser ou não consistente. O debate parlamentar e nas mídias gira em torno deste ponto como se o discurso criminológico fosse apenas composto de saber jurídico, do mesmo modo que as constantes práticas de judicialização, e coroado de justificativas de como no país X ou Y se define a idade certapara prender. Não escasseiam argumentos jurídicos e penalizadores que oscilam quanto à convenção em 18 anos como idade de responsabilidade penal, segundo épocas mais ou menos conservadoras. Escancaram ser preciso punir mais e melhor.
Os agentes interessados na redução da maioridade penal não se contentam mais com prisões para jovens. Para eles pouco importa que a gestão das prisões é compartilhada entre administração prisional pública ou privatizada e facções criminosas. Isso é a prisão moderna desde o século XIX e como tal ela é objeto dos reformadores sociais que balbuciam e, às vezes gritam, afirmando ser ela a fábrica ou a empresa de delinquentes. Pouco importa, ela deve ser produtiva e, lá dentro, cada um, ao seu modo, deve ser reeducado para o certo, mesmo sabendo-se que aqui fora viverão do incerto e da continuidade dos ilegalismosPouco conseguem as escolas, os equipamentos sociais, as ações pacificadoras das polícias. Elas geram empregos, lucratividades, capturam lideranças para programas sociais compartilhados e produzem empreendedores sociais que desovam seu ramerrame discursivo.
Experimentam-se, em um ou outro lugar, maneiras inovadoras de administrar as infrações, em sua grande maioria seletivamente realizada pelo sistema penal sobre pobres e pretos, ou quase todos pretos como diz uma famosa canção brasileira. No Brasil se aplica o Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive com internação provisória e internações apenadas. Entretanto, os conservadores dizem que isso é pouco; que o jovem infrator deve ser punido como um adulto e por isso mesmo, se jovem é o garoto e a garota com mais de 12 anos, os mais teimosos se arvoram em defender a redução da idade penal seguindo esse critério.
Em uma situação como essa, devemos nos perguntar, para além da atual massa obsessiva parlamentar e da maioria crente na punição: não está na hora de se abrir uma discussão sobre como acabar com as prisões para jovens? Os programas transnacionais investem em acabar com a pobreza, melhorar as condições de saúde, habitação, escolarização etcetc, patrocinados pela ONU, e cada governo mostra seus índices de desenvolvimento estáveis ou crescentes. Os perseverantes em segurança só conseguem pensar em armas legalizadas, polícias, exércitos e prisões. Miram o tráfico como alvo principal, mas procuram não acertar na mosca. Acabar com o tráfico traria um prejuízo levaria a mais uma crise econômica. Então se a conversa é moral, os irrelevantes dados estatísticos sobre infrações de jovens só interessam quando é para mostrar que esses jovens encarcerados depois habitarão as prisões? Por mero exercício lógico, isso nada mais é que reconhecer que as prisões para jovens não servem para os jovens infratores.
A massa dos representantes que lá decide é eleita pelos adultos e jovens. De certo modo expressa a miséria ética de nossa sociedade de maioria e de minorias numéricas. A/O jovem sob qualquer regime de maioridade penal não pode ser candidato a representante; é vista (o) como incapaz, só deve obedecer. Então, para que vale a educação? Dizem os apressados: para formar o bom cidadão. Bom, porque deve aprender a abrir mão de sua vontade para um representante, cumprir suas obrigações e interiorizar o medo, cuja imagem mais nítida e cruel está na prisão.
Discutir maioridade penal, com ou sem cláusula pétrea, é enfrentar a diversidade de experimentações possíveis sem encarcerar o jovem. Quem nunca cometeu uma infração?... Mas você responderá: eu nunca cometi um crime hediondo. Sorte sua, de ainda não ter enfrentado uma situação-problema surpreendente.