sábado, 31 de maio de 2014

Muito além da Bolsa-Família, a Renda Cidadã

Debate em São Paulo: uma renda digna paga a todos, independente de trabalho, seria resposta à automação e à desigualdade crescente?
Por Marília Arantes
Debate e lançamento de livro: Por que Renda Básica?, de Josué Pereira da Silva Com o autor, Eduardo Suplicy, Ladislau Dowbor e Paul Singer
Como evitar que o capital se aproprie de toda a riqueza produzida pela tecnologia? De que forma assegurar condições de vida dignas a bilhões de seres humanos, que não terão emprego assalariado? Onde reside, e como pode ser compartilhada, a criação de riquezas e talentos, num mundo pós-industrial? Cada vez mais decisivos, num mundo em crise, estes temas serão debatidos na próxima quinta-feira, às 19h30, em São Paulo. Eles percorrem o livro Por que Renda Básica?, de Josué Pereira da Silva, um economista que se enxerga na tradição de André Gorz.
Além do autor, estarão presentes Paul Singer, Ladislau Dowbor e Eduardo Suplicy. O evento será, ao mesmo tempo, uma reunião da Rede Brasileira da Renda Básica e Cidadania. Promovido por Outras Palavras e Editora Annablume, é parte do esforço feito pelo site para abordar de modo cada vez mais profundo a crise do capitalismo e as alternativas. A obra de Josué Pereira da Silva contribui de modo relevante para tal debate.
Nas circunstâncias atuais, aponta Josué Pereira, o trabalho já não dá cumpre o papel de integrador social. Portanto, mecanismos de transferência direta de renda – a Renda Básica, ou Renda Mínima, como preferem alguns –, servem para desmercantilizar, mesmo que parcialmente, a força de trabalho, em resposta às condições impostas por um sistema de seleção excludente.
No livro, o autor expõe visões sociológicas sobre trabalho e desemprego, referenciando historicamente teóricos elementares, principalmente – Karl Marx, Marx Weber, Émile Durkheim e, claro, John Maynard Keynes. Porém, sugere que o keynesianismo tornou-se ultrapassado, desde a introdução efetiva da tecnologia na produção. Ele defende que a Renda Básica seria solução para problemas decorrentes da desigualdade de renda após brusca ruptura – a automação – ter repercutido no desemprego estrutural das sociedades contemporâneas.
Mas, como esclarece o livro Por que Renda Básica?, muitos estudiosos percebiam este fenômeno, antes dele acontecer. Hannah Arendt, em 1958, comentou, “o advento da automação poderá em algumas décadas esvaziar as fábricas e libertar a humanidade do trabalho. No entanto, estamos diante do prospecto de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho”. Nesse sentido, já nos anos 80, Andre Gorz, concluiu, “a ‘sociedade do trabalho’ está caduca”, assim como Keynes, naquele prazo, “estava morto”. Frente à insustentável integração social por meio do trabalho, o fenômeno da automação lhe tirou a chance de conhecer seus “netos” – herdeiros do surto de desemprego que Keynes previu para três gerações seguintes à crise de 29.
Portanto, enfatiza Josué Pereira, ao começo do século XXI, Renda Básica, simboliza um passo além do idealista Welfare state, (Estado de bem-estar social). Segundo o autor, este modelo de política de desenvolvimento social não basta, não é possível atingir o cerne da desigualdade remediando o reforço dos serviços públicos. Ultrapassado – como Keynes e o fordismo – , ele reverencia o mito do pleno emprego.
Pereira conclui, “presenciamos o esgotamento de um modelo incapaz de oferecer condições para se realizar suas próprias exigências normativas.”
Entretanto, ele cita Claus Offe, para quem “desemprego não deve mais ser descrito como problema, já que o pleno emprego não pode ser realisticamente esperado, nem é solução que se possa, responsavelmente, ser apresentada ao público.”
“Se uma sociedade orientada pelo trabalho premia os assalariados, mas muitos cidadãos não são elegíveis para tais premiações, ela é, portanto, moralmente indefensável, pois fica pairando no plano cultural.” Nessa ideologia, delega-se a culpa para as vítimas. Pela contradição sistêmica, desemprego e exclusão, “acabam sendo interpretados como fracassos pessoais”, defendia Offe.
Embora Josué Pereira aponte uma série de vantagens à transferência de renda inclusiva como, por exemplo, “diminuição da dependência e aumento do poder de barganha dos beneficiários”, o autor também coloca visões críticas sobre o caráter “assistencialista”, que muitos enxergam neste tipo de mecanismo. Por exemplo, em seu livro, ele pontua críticas feitas por Frei Betto e Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança; pouco se fala do Fome Zero, embora também seja um programa bem sucedido do governo Lula. Quanto às falhas em questões de autonomia, Betto e Arns sugerem períodos de validade dos programas, para que beneficiários possam “caminhar com suas próprias pernas”.
Contudo, pontua Pereira, a ideia central do Renda Básica não é pautada por contrapartida nem classe social. Analisando a experiência do Bolsa Família, primeiro programa brasileiro de transferência nota-se uma adaptação. Nele, se substituiu a igualdade dos indivíduos – os beneficiários, na ideia original -, por famílias de baixa renda, também elegendo-se condições, como principalmente, o acompanhamento dos filhos na escola. Um tema central no debate na PUC-SP, será a possível transição do Bolsa Família por algo muito mais radical, como a Renda Básica. Para tanto, propõe-se expansão da rede de transferência direta a indivíduos, com objetivo de que o programa passe progressivamente a atender todas as camadas sociais, indistintamente, e sem qualquer contrapartida.
Eduardo Suplicy foi pioneiro no Brasil ao apresentar o Programa de Garantia de Renda Mínima – PGRM (1991). O projeto foi aprovado no Senado, mas barrado na Câmara dos Deputados, em 1998. Todavia, a iniciativa influenciou outros programas, como o Bolsa Escola, de Cristóvão Buarque, entre demais, também voltados às famílias. Experiências foram aplicadas em municípios Campinas, Brasília e Ribeirão Preto, e São Carlos do Pinhal, em 2009.
À frente da campanha de lançamento do PGRM em nível nacional, Suplicy retomará o assunto no debate na PUC-SP. Durante a mesa-redonda, convidados explicarão porque mecanismos macroeconômicos “mais civilizados” como o Renda Básica prometem resultados coerentes.
Segundo José Roberto Lins, da Annablume, nessa oportunidade, “reuniremos pesquisadores, economistas, sociólogos, filósofos, cientistas e ativistas sociais, estudiosos da transferência de renda e erradicação da pobreza, analisarão perspectivas e questões-chave para instituição da Renda Básica passando por experiências como o Bolsa Família, no Brasil, entre outras nas Américas e no mundo todo.”

Infância: cidadania versus consumo

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Declarada ilegalidade de propaganda dirigida à criança, agências de publicidade e emissoras de rádio e TV recorrem a surrada lenga-lenga
Por Lais Fontenelle
O 4 de abril de 2014 foi um dia histórico para as crianças brasileiras e todos os que lutam por uma infância livre de apelos do mercado. Nessa data foi publicada no Diário Oficial a resolução 163/14 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes), que define como abusivo e ilegal a publicidade dirigida às crianças com a intenção de persuadi-las para o consumo de qualquer produto ou serviço, conforme o Código de Defesa do Consumidor.
A resolução foi aprovada, de forma unânime, e proíbe que anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchadisings, ações em shows e nos pontos de venda sejam focados nas crianças menores de 12 anos. Cria, assim, um novo paradigma para a efetivação dos direitos das crianças.
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O texto da resolução versa também sobre a proibição de qualquer publicidade no interior de creches e escolas de educação infantil e fundamental, inclusive nos uniformes escolares e materiais didáticos, fazendo valer o que os especialistas e organizações não governamentais clamam há tempos: que a criança, até mais ou menos 12 anos, é extremamente vulnerável ao discurso persuasivo da publicidade e aos apelos de mercado – pois nessa fase de desenvolvimento físico, cognitivo e emocional ainda não têm completamente formada a capacidade crítica e de abstração de pensamento.
É sempre bom lembrar que escola deve ser um espaço de socialização da criança e de formação para cidadania – e não um local de promoção de produtos. Segundo o autor Neil Postman: “A escola deveria ser capaz de alterar as lentes pelas quais as crianças veem o mundo, e ter em vista a maneira como construir uma vida, e não apenas como ganhar a vida”.
A partir da resolução, não se pode mais negar que a publicidade, quando dirigida ao público menor de 12 anos, viola os direitos das crianças e gera impactos bastante negativos para o desenvolvimento infantil saudável. Ela contribui para o grande e urgente problema do consumismo na infância e suas graves consequências, tais como obesidade infantil, erotização precoce, estresse familiar, violência, consumo precoce de álcool, além de impactos ambientais severos.
Um ótimo exemplo disso são dados alarmantes como os que 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso e 15% obesas, como indica pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE 2008/2009; ou ligados à erotização precoce, que mostram 65% das meninas que se deixam explorar sexualmente usando o dinheiro para comprar bens de consumo1; ou ainda que o acesso rápido ao consumo, independência e prestígio são os principais motivadores de delitos entre os/as internos da Fundação Casa2. Já em relação ao consumo precoce de álcool, sabemos que 62% dos adolescentes brasileiros afirmaram ter sido expostos quase todos os dias, até mais de uma vez por dia, à publicidade de bebidas alcoólicas.3 Não se trata de coincidência, portanto, que a idade na qual se inicia o consumo regular de bebidas alcoólicas no Brasil está entre 12 e 14 anos.
Mas, apesar de todos esses dados nos mostrarem claramente o impacto negativo que a publicidade tem no desenvolvimento físico e emocional saudável de nossas crianças, o que bastaria para se comemorar a publicação das normas do Conanda, a resolução não foi bem recebida por todos – principalmente pelas entidades representativas de anunciantes, agências de publicidade e emissoras de rádio e televisão. Defendendo a autorregulamentação do setor, três dias após a promulgação da resolução estas entidades soltaram uma nota pública argumentando que somente uma lei editada pelo Congresso Nacional poderia regular a matéria.
Na nota, alegavam não somente a falta de competência do órgão para legislar sobre o assunto como, mais uma vez, de forma leviana, que esse tipo de proteção à infância seria um cerceamento da liberdade de expressão, confundindo-se com censura. E como já bem observou o jornalista e sociólogo Renato de Godoy em artigo recente, a Resolução 163 não versa sobre a restrição de conteúdo ideológico, político ou religioso, sendo assim o argumento da “censura” falho em sua origem. Será que a criação de normas “protetivas à infância” para uma atividade comercial constitui ameaça à liberdade de expressão, como querem nos fazer crer? E como seriam vistos países como a Suécia, Alemanha, Inglaterra e Noruega, que possuem regras exemplares para a publicidade infantil e têm uma longa história de democracia consolidada? Renato nos faz pensar.
Já para aqueles que defendem os direitos das crianças, a autorregulamentação defendida pelo setor não pode ser considerada suficiente para evitar abusos na comunicação comercial, pois conta com normas parciais, criadas voluntariamente por empresas e que não atingem todos os anunciantes e nem se aplicam a todas as estratégias de comunicação mercadológica.
Ao atacar o Conanda, as associações ligadas ao mercado esqueceram-se de que o órgão é vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem em sua competência, entre outras funções, elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Suas resoluções devem, portanto, ser respeitadas pelas empresas. Conselhos como o Conanda, assim como as conferências nacionais, são meios e locais para participação democrática da sociedade civil em processos deliberativos. Portanto, como já disse o jurista Dalmo Dallari, em texto sobre a resolução: “Preservou-se o direito constitucional de liberdade de expressão. Limitou-se, porém, o de liberdade de comércio, que deve ser restrito quando ameaça direitos humanos.”
Quando o mercado e as associações do setor publicitário deslegitimam o órgão, elas deixam claro, também, que sua oposição à Resolução 163 é uma estratégia política, e não somente econômica. Seu grande temor é que a exitosa resolução abra caminho para que o debate alcance outros temas, como a publicidade de cerveja e de alimentos não saudáveis ou, em última instância, a criação de um marco regulatório em nosso país. Porém, o que os representantes do mercado ainda não se deram conta, e que precisam aceitar, é que eles também são parte da sociedade, tendo portanto responsabilidade na proteção de nossas crianças. Como já previu o art 227 de nossa Constituição Federal, a criança é prioridade absoluta em nosso país, sendo dever da família, sociedade e Estado fazer valer seus direitos e deveres.
A vigência plena da Resolução 163 do Conanda deveria então ser paradigmática para a proteção integral da infância, mostrando que os direitos de nossas crianças devem prevalecer sobre os interesses econômicos. Depois de mais de um mês da sua promulgação cabe a nós, sociedade civil, fiscalizar se o mercado vai fazer valer a resolução e encarar o 04.04.2014 como uma conquista histórica da construção de uma democracia participativa e uma data que merece ser lembrada em nome de todas as crianças de nosso país.
Não podemos mais pensar em futuro ético e sustentável sem fazer valer os direitos da infância. Nenhum tipo de desenvolvimento econômico, tecnológico ou científico deve ser mais importante que o desenvolvimento biofísico e psicológico de uma única criança. Se acreditamos, de fato, que a infância é o prefácio de um mundo melhor e mais justo, devemos fazer valer a resolução e proteger as crianças de apelos comerciais com vontade política e atitude franca e responsável. Cabe então a todos nós fiscalizar e denunciar práticas abusivas de comunicação mercadológica dirigida às crianças. Um bom começo é conhecer o Projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana.

1
 Vítimas da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes: Indicadores de Risco, Vulnerabilidade e Proteção, Childhood Brasil, 2009;Caldas 2010
2 Pesquisa sobre o perfil dos adolescentes e dos servidores da Fundação CASA, 2006.
3 PINSKY, Ilana, Publicidade de Bebidas Alcoólicas e os Jovens, FAPESP, 2009.

domingo, 25 de maio de 2014

Transexualidade: “Sem viés afetivo, é difícil mudar a escola”. Entrevista especial com Márcia Acioli

“Quando o foco do debate são os direitos humanos, todas as questões de gênero, identidade de gênero e sexualidade confluem para o direito de viver a dignidade humana”, pontua a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc.
As discussões sobre gênero e transexualidade, que num primeiro momento causam “estranhamento” na comunidade escolar, devem iniciar nas “instâncias de formação de profissionais da educação para preparar o ambiente acolhedor e oferecer aos professores recursos para lidar com o tema no âmbito pedagógico, com ética e delicadeza”, sugere Márcia Acioli na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação dela, enquanto temas relativos aos direitos das crianças e adolescentes são “bem recebidos” pelos professores, na discussão sobre temas como a transexualidade “o constrangimento é enorme, e muitos profissionais da educação não sabem por onde começar”, assinala. E acrescenta: “Se repararmos bem, o público da escola (estudantes, professores, familiares e demais profissionais) é repleto de pessoas que não se encaixam no modelo de gênero colocado para nós como normal. Esse modelo distancia enormemente meninos de meninas, homens de mulheres. A educação sexista elimina possibilidades e acaba produzindo muita exclusão”.
Márcia também chama a atenção para a “ausência do tema nos materiais didáticos”. Para ela, a não inserção dessa discussão no material escolar “é grave, pois é como se as pessoas trans não existissem”. E conclui: “O fato de não aparecerem nos materiais didáticos ajuda a produzir a cultura de suas imagens como aberração, como coisa exótica, quando o que mais querem é apenas transitar pela vida com naturalidade, sem agressão e com dignidade”.
Márcia Acioli coordena o projeto Criança e Adolescente: Prioridade no Parlamento. É especialista em Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP e mestre em Antropologia Aplicada à Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília - UnB. Atualmente, dentre outras atividades desenvolvidas no Inesc, Márcia Acioli é responsável pelo Projeto Onda: Adolescentes em Movimento pelos Direitos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A discussão sobre transexualidade deve ser feita na escola? A partir de que idade essa discussão deve iniciar no ambiente escolar e por quê?
Márcia Acioli - Depende. Se os professores e as professoras não estiverem seguros/as ou se tiverem posições muito conservadoras, podem produzir mais preconceito e discriminação.
As instâncias que devem liderar a discussão são inicialmente as de formação de profissionais da educação para preparar o ambiente acolhedor e oferecer aos professores recursos para lidar com o tema no âmbito pedagógico, com ética e delicadeza.
No entanto, se há caso concreto na escola, se há desconforto diante da pessoa trans e se esta pessoa sofre violência ou constrangimentos, é papel da educação produzir um ambiente de compreensão, de acolhimento e de mudança. É tarefa da escola provocar reflexão e, com isso, interromper a cultura da violência homofóbica.
Desde que entra na escola, a criança pode e deve lidar com temas das diversidades. Em cada idade com métodos diferentes. Na educação infantil o mais importante é oferecer recursos para se criar uma noção de mundo que caiba todos os jeitos de ser. Brincadeiras, livrinhos de história, abordagens pedagógicas devem mostrar o direito de ser do jeito que cada um/a quer ser (o do jeito que a pessoa é); devem mostrar diferentes modelos de família; devem oportunizar a meninos e meninas o acesso a todas as brincadeiras e pensar sobre o sentido de brincar.

“Tudo o que não segue o modelo heteronormativo é descartado, considerado aberração e condenado”

IHU On-Line – Essa discussão já está presente nas escolas brasileiras?
Márcia Acioli - Não tenho noção do que acontece pelo país, mas vejo iniciativas interessantes que ora sofrem rejeição por parte de algum segmento da escola, ora são condenadas antes mesmo de iniciar. Mas pelo fato de os movimentos sociais pautarem o tema e de os movimentosLGBT produzirem materiais e dialogarem com as políticas de educação, podemos dizer que importantes passos foram dados.
É difícil generalizar. Há experiências belíssimas e outras de profundo constrangimento. Mas o tema chega, mesmo que num primeiro momento causando estranhamento. Creio que temos muito a fazer no campo da sensibilização. Sem viés afetivo, é difícil mudar a escola.
IHU On-Line - Quais são as dificuldades de tratar desse tema no ambiente escolar, quando ele ocorre?
Márcia Acioli - A parte mais desafiadora é o despreparo de educadores, especialmente quando a religião invade a escola e interdita o assunto — o que é bastante frequente. Assim como também é bastante difícil dialogar com famílias conservadoras.
No Brasil, a religião (especialmente de profecia cristã), de uma forma muito intensa, se mistura com a política e com a educação. Neste contexto, tudo o que não segue o modelo heteronormativo é descartado, considerado aberração e condenado. Neste aspecto, podemos afirmar que religião na escola pode representar um foco provocador de exclusão e de violência.
IHU On-Line - Como os alunos reagem à discussão acerca da transexualidade? Como esse assunto, além da discussão de gênero, repercute entre eles?
Márcia Acioli - Na experiência do Inesc de diálogo com estudantes do ensino médio em escolas públicas do Distrito Federal, o debate transcorre de forma suave, em clima de respeito. Os meninos e as meninas mostram avidez pelo debate e chamam atenção para a importância de se discutir sexualidade na escola.
Quando o foco do debate são os direitos humanos, todas as questões de gênero, identidade de gênero e sexualidade confluem para o direito de viver a dignidade humana. Temos a experiência de produzir a revista Descolad@s, na qual os/as adolescentes escrevem sobre qualquer tema, desde que o enfoque seja os direitos humanos. A revista, na sua terceira edição, publicou uma entrevista com dois jovens transexuais, na qual Caetano e Paula falam sobre suas adolescências, as dificuldades de crescerem nos corpos errados e constrangimentos na família e na escola. Esta revista (tiragem de 13 mil) é distribuída nas escolas de ensino médio. Para nosso espanto, não recebemos nenhuma reclamação por parte dos professores, pelo contrário, a demanda foi enorme e a revista se esgotou rapidamente.

“Não são questionados os modelos, mas as pessoas que não se encaixam neles”

IHU On-Line - Como a discussão sobre a transexualidade repercute entre pais de alunos?
Márcia Acioli - Há pais que acolhem o debate porque amam seus filhos e querem protegê-los, mas isso é minoria. Na maioria das vezes os pais e as mães também sofrem constrangimentos e não sabem dialogar com seus filhos e suas filhas sobre o assunto. Este diálogo pode ser construído sem afobação, mas com seriedade e urgência. Não só pais de filhos/as trans. Todos precisam se apropriar do debate para acolher os/as colegas e namorados/as que seus filhos possam vir a ter.
IHU On-Line - Em artigo recente a senhora faz uma comparação entre temas como trabalho infantil, exploração sexual e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que estão na pauta das escolas como propostas de políticas de educação e, por outro lado, chama a atenção para a discussão acerca da transexualidade, que não está na pauta. Por que, na sua avaliação, há distinção no tratamento desses temas?
Márcia Acioli - Sim, aos poucos os temas relativos aos direitos da criança e do adolescente chegam à escola e têm sido bem recebidos pelas professoras e professores. Quando o tema é transexualidade, percebo que o constrangimento é enorme e muitos profissionais da educação não sabem por onde começar. No entanto, se repararmos bem, o público da escola (estudantes, professores, familiares e demais profissionais) é repleto de pessoas que não se encaixam no modelo de gênero colocado para nós como normal. Esse modelo distancia enormemente meninos de meninas, homens de mulheres. A educação sexista elimina possibilidades e acaba produzindo muita exclusão.
IHU On-Line - Quais são as principais dificuldades de abordar a questão da transexualidade nas escolas?
Márcia Acioli - Os tabus, os modelos de educação que destinam às meninas um universo cor-de-rosa no seu sentido mais radical, e aos meninos um mundo de agressividade e violência. Estes modelos que são produzidos e alimentados pelo mercado de consumo se tornaram inquestionáveis. Neste caso, não são questionados os modelos, mas as pessoas que não se encaixam neles. Não há clima favorável.
IHU On-Line - A transexualidade é abordada nos livros didáticos? De que maneira?
Márcia Acioli - Não conheço. Até hoje, não conheço. Mas a ausência do tema nos materiais didáticos é grave, pois é como se as pessoas trans não existissem. O fato de não aparecerem nos materiais didáticos ajuda a produzir a cultura de suas imagens como aberração, como coisa exótica, quando o que mais querem é apenas transitar pela vida com naturalidade, sem agressão e com dignidade.
IHU On-Line - Em que consistem as Propostas da Conferência Nacional de Educação Básica em relação àdiversidade sexual?
Márcia Acioli - É a repercussão das vozes das diversidades na política de educação, ou seja, uma série de recomendações e orientações para assegurar condições de todas as pessoas acessarem a educação e terem direito a uma vida escolar sem discriminação, com educação igualitária e de qualidade.
IHU On-Line - Como avalia a aprovação do registro de gênero neutro pelo Supremo Tribunal da Austrália? O que isso significa?
Márcia Acioli - O Supremo Tribunal da Austrália ampliou a possibilidade de registro de gênero. O que antes ficava entre o feminino e o masculino passou a permitir à pessoa optar pelo gênero neutro. A Austrália não é o primeiro país a permitir o registro de um "terceiro gênero". Na Índia também há o reconhecimento do terceiro gênero pelaSuprema Corte. Na Alemanha, desde 2013 há a possibilidade de registro de gênero como indefinido.
Isso significa a possibilidade de um ajuste, uma adequação entre os registros civis e a identidade da pessoa. João Neri, trans-homem brasileiro, autor do livro A viagem solitária, nos conta como foi difícil perder sua história acadêmica e profissional, quando finalmente conseguiu mudar de nome. Não havia diplomas em seu nome novo, como se nada tivesse feito até então, como se ele não tivesse existido. Ele perdeu sua cidadania em nome de sua dignidade.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Conversações Libertárias na Somaterapia - Política e Agonismo com Thiago Rodrigues

Nesta Conversação Libertária, o cúmplice Thiago Rodrigues - Professor no Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da UFF e Pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) da PUC-SP, nos apresenta suas pesquisas sobre a noção política na perspectiva agonística: a vida como incessante combate. 
Sua generosa participação nesta conversa franca vem a contribuir para ampliar as possibilidades do anarquismo na atualidade.

Resumo de sua fala:

Em um dos seus últimos escritos, intitulado "O sujeito e o poder", de 1984, Michel Foucault (1926-1984) afirmou que nunca pretendeu produzir uma teoria do poder, mas sim compreender como que cada corpo, cada singularidade somática, era constituída como um sujeito. Para tanto, o filósofo sentiu a urgência em deslocar-se das teorias clássicas do poder, alicerçadas sobre um modelo que tomava o poder como força repressiva exercida sobre todos a partir de um centro. Isso porque, desde seus estudos sobre o poder psiquiátrico, Foucault notara que as relações de poder se davam em múltiplas e simultâneas dimensões, provocando resistências e sujeições, induzindo comportamentos, conduzindo condutas, fazendo falar e não apenas calar. 

As relações de poder se aproximariam, então, muito mais de relações de combate, do que meras dominações articuladas a partir de autoridades constituídas e instituições. Por isso, a perspectiva do combate seria, para Foucault, uma hipótese de análise mais interessante para estudar as relações de poder. Essa noção de poder aproximava-se do conceito grego de agon, enfrentamento constante não necessariamente violento, mas que pautaria todas as relações humanas. Assim, tomando as relações de poder como uma guerra infindável, uma sucessão incontornável e cotidiana de situações estratégicas, Foucault retomou uma tradição acerca das relações de poder, da definição de política e da vida social que remontava aos pré-socráticos como Heráclito de Éfeso (535 a.C. -- 475 a.C.) e que fora soterrada por dois milênios de platonismo até ser reativada por homens como Friedrich Nietzsche (1844-1900). Antes dele, porém, o anarquista Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) formulou uma original análise das relações de poder, da guerra e da paz, em escritos como La guerre et la paix (1861) e Do Princípio Federativo (1863), que se voltavam ao princípio da vida como combate causando polêmica e rechaço entre a maioria dos anarquistas, socialistas e conservadores de seu tempo.

A perspectiva agonística do poder será apresentada a partir de uma leitura de Foucault e Proudhon, passando por Nietzsche, que compreende a política não apenas como o que acontece na esfera institucional (partidos, parlamentos, eleições), mas como o ambiente no qual vivemos, vencemos, cedemos, resistimos. Tal perspectiva pode ser acionada como método para uma analítica do presente interessada em ativar a coragem de luta de uma ética voltada às invenções de si que se dão em meio as intermináveis lutas que geram sujeições e liberações. Thiago Rodrigues.

buscado em: http://www.youtube.com/watch?v=cjyCfXH7fVA

Uso medicinal do canabidiol

Anvisa decidirá uso do canabidiol em remédios neste semestre

CFPAté o final de junho a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) poderá decidir sobre a importação de medicamentos contendo canabidiol, um dos princípios ativos da maconha. O anúncio foi na quinta-feira (15/5) pelo diretor-adjunto da Anvisa, Luiz Roberto Klassmann, durante o 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal, em São Paulo.
Estudos científicos sobre o tema apontam que o canabidiol possui funções medicinais para tratar diversas doenças, entre elas as neurológicas. A decisão da Anvisa, no entanto, para se tornar efetiva, precisa ser aprovada pela Diretoria Colegiada da agência, em reunião prevista para ocorrer ainda neste semestre.
Caso seja aprovado pela agência, brasileiros com prescrição médica recomendando o uso de medicamentos com a substância poderão entrar no País legalmente com o produto, ou recebe-lo por encomenda.
Em entrevista ao portal G1, Klassmann afirmou que a partir do momento que o canabidiol deixar de ser proscrito, as barreiras alfandegárias irão acabar. Para ele, a iniciativa ajudará a reduzir o preconceito envolvendo o uso da erva para fins terapêuticos, com base em conceitos científicos.
Atualmente esses remédios estão em uma lista do órgão de Vigilância Sanitária que proíbe o uso medicinal, a não ser quando há autorização especial para importação concedida pelo diretor da Anvisa ou sentença jurídica dando permissão à atividade.
Em nota, o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirmou que “o profissional médico tem a autonomia para prescrever ou não qualquer medicamento, sempre respeitando a autonomia do paciente e informando-o sobre o diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos de cada tratamento”.
Regularização
Em 9 de abril, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e mais 16 entidades se reuniram no gabinete do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) para defender a regulamentação da maconha para os usos medicinal, industrial e recreativo. O tema será alvo de um ciclo com cinco debates promovido pela Comissão de Direitos Humanos do Senado, requerido por Buarque, em data a ser definida.
Durante a reunião, o grupo entregou à assessoria do senador Cristovam uma carta (leia aqui), assinada por mais de 40 entidades, entre elas o CFP, contendo pontos favoráveis à regulamentação da substância. Os representantes das entidades se colocaram à disposição para auxiliar e munir o senador com informações técnicas e científicas em defesa da regularização.

Drogas

Carl Hart desmistifica questões na UnB

DSC_0821 editadaO auditório 12 da Universidade de Brasília (UnB) foi completamente lotado, na tarde desta quinta-feira (15/5), por estudantes, profissionais e parlamentares  presentes na palestra do neurocientista americano Carl Hart, que veio ao Brasil para ministrar palestra sobre ciência, drogas e a superação de mitos, além de lançar seu livro “Um preço muito alto”.
Em Brasília, o evento foi uma organização da Comissão UnB.Futuro em parceria com a Faculdade de Biologia e a TV Ceilândia, com o apoio do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Segundo o coordenador executivo da Comissão UnB Futuro, Fernando Paulino, este foi o encontro com maior audiência já realizado.
Surpreso pela grande participação do público, o neurocientista Carl Hart iniciou sua fala compartilhando um pouco do que aprendeu  durante sua última semana no Brasil, e, principalmente, nos seus últimos 24 anos de vida, em relação às drogas e temas afins.
Hart cresceu em um bairro negro na periferia de Miami, onde não só consumia e vendia drogas, mas também portava armas e roubava. Anos depois, tornou-se o primeiro professor negro de neurociência da Universidade de Columbia.  Um dos principais motivos para sua virada, que lhe permitiu abrir os olhos para questões sobre discriminação racial, foi a educação que recebeu ao alistar-se no exército americano da década de 80, que estava em serviço na Inglaterra.
DSC_0765 editada“Ao longo de minha trajetória recebi uma  educação que desafiou meu pensamentos e me inspirou a estudar e fazer a diferença quando voltasse aos Estados Unidos”, relatou.  E foi o que  fez – dedicou-se, já na América, a pesquisas sobre drogas, e acabou tornando-se doutor em neurociência.
Uma das percepções que teve desde o início foi que a discriminação racial andava lado a lado com os preconceitos relacionados às drogas. “Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas condenadas pelo uso de crack é negra, mesmo não utilizando a droga mais do que os brancos”, disse.
Mitos
Muitos são os mitos que permeiam o imaginário social ao se falar de drogas e, durante a palestra, grande parte deles foi negada pelo neurocientista.  É o caso do vício, que muitas pessoas acreditam surgir com a primeira dose. “Nenhuma droga que você usa apenas uma vez te deixará viciado. Isto exige vários engajamentos com a substância”, explicou Hart.
Os danos cerebrais causados pelo uso das drogas, segundo o pesquisador, é exagerado pela maior parte dos neurocientistas e pesquisadores. “Dados mostram que o desempenho cognitivo de usuários não está fora da normalidade, pelo contrário”, afirmou.A noção de que usuários de crack, por exemplo, só têm como objetivo outra dose da droga também foi desmistificada. Em pesquisa que realizou em sua universidade com alguns usuários, foi constatado que entre a droga ou uma nota de 20 dólares, os participantes preferiam o dinheiro em todas as ocasiões, sendo que a maioria o usava para outros fins que não a compra de drogas. “Isto vai contra a literatura científica, que diz que pessoas com danos cognitivos não conseguem se engajar em planejamentos de longo prazo”, disse.
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Outro fato que desafiou seu pensamento foi o mito de uma sociedade livre de drogas, ideia embasada por ações e leis  que acabam não resultando em avanços. “Nos EUA, os números não mudaram, mas hoje se gasta 26 milhões de dólares para acabar com as drogas.  O resultado é que hoje  o principal motivo para a prisão é por crimes relacionados às drogas, mas a maioria dos presos só é usuário e de maconha”.
Hart também citou o exemplo do Brasil, em que o  crack é citado como o grande causador de impactos negativos nas favelas.  “O crack nem existia há dez anos e os problemas já estavam lá. Isso nos diz que há outra coisa responsável pelo problema e as autoridades usam as drogas como desculpa”.
Em relação às comunidades terapêuticas, Hart afirmou não considerar um tratamento apropriado aos usuários viciados. “Não sei o que estão usando, mas entendo que há influencias religiosas e não possuem evidencias empíricas que revelam ser este um método adequado”, criticou.
Para reduzir os vícios e problemas causados pelas drogas, Hart defende a combinação da ciência com as políticas públicas, além da descriminalização de todas as drogas. “O tráfico de drogas pode ser processado como crime, mas garantimos, com a descriminalização, que há questões que a polícia não pode resolver sozinha. O espirito da lei tem que se refletir na educação”.
E por educação, Hart cita a importância de explicar melhor os efeitos das drogas à sociedade, o que inclui fatores como a dose adequada, a experiência de cada usuário e o ambiente de consumo. “São informações simples que ajudam a manter as pessoas em segurança e torná-los usuários verdadeiramente responsáveis. Entender estas pessoas e seus objetivos é importante para ajudar não só na elaboração de políticas, mas no acolhimento e  tratamento. As pessoas podem ter problemas com drogas, e têm, mas com uma educação melhor podemos diminuir este índice”, concluiu.
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Avaliação
Além de Hart, estavam presentes na mesa os professores da UnB, Renato Malcher e Andrea Gallassi, o coordenador da UnB Futuro Isaac Roitman, o decano de pesquisa e pós-graduação Jaime Santana e o coordenador da Comissão UnB Futuro, Fernando Paulino.
Para  Renato Malcher, a amplitude de informações levadas por Carl Hart vai além da questão das drogas, mostrando como a formação científica de uma pessoa é influenciada por fatores históricos, culturais e religiosos.
Com suas vivências, Malcher percebe que, mesmo em um ambiente acadêmico, ainda há dificuldade em encarar novas perspectivas sobre determinados problemas sociais.  “A trajetória do Carl Hart mostra a relevância de programas que fomentam a inclusão e trazem uma nova perspectiva para a ciência”, comentou.
A professora  Andrea Galassi  foi positiva sobre as discussões: “As pessoas estão sim buscando educação e sendo mais reflexivas sobre o tema. O caminho é longo e espaços como este nos animam a seguir adiante”.
O decano Jaime Santana também elogiou a iniciativa de pensar o futuro de assuntos relativos às universidades de forma geral, discutindo dados científicos e colocando a academia à frente das discussões com o público.

domingo, 11 de maio de 2014

Vigiar, punir e exibir!

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Novos casos de linchamento relembram: transformar violência em espetáculo é uma forma de mascarar a brutalidade oculta que permeia sociedade
Por Celso Vicenzi | Imagem: Katerina Apostolakou
As pessoas que amarram seres humanos em postes ou os imobilizam com travas de bicicleta – cenas que se repetem de diferentes maneiras pelo Brasil, assim como os linchamentos – têm as mesmas motivações daqueles que pregaram Cristo na cruz. Não há diferenças, por mais cristãos que os contemporâneos imaginem ser. Salvo a distância no tempo, são atos com um mesmo propósito, o de exibir a punição para servir de exemplo.
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São os mesmos que queimaram entre 100 mil e 500 mil mulheres nas fogueiras da Inquisição Católica, na Europa, acusadas de bruxaria (há quem fale em 9 milhões).
Não diferem dos que enforcaram Tiradentes, o esquartejaram e penduraram sua cabeça em Vila Rica e pedaços de seu corpo nos lugares em que fizera seus discursos revolucionários.
Para que os exemplos não frutifiquem, é preciso sempre uma dura lição!
São os mesmos que enforcaram ou decapitaram com machados ou guilhotinas milhares de seres humanos em praças públicas. Ou os torturaram com os métodos mais cruéis já inventados pela mente humana, diante de grandes plateias. A crueldade precisa de espectadores. E não são poucos, ontem como hoje, aqueles que se regozijam com esses atos.
Na Revolução Francesa, na Europa da Idade Média, em vários lugares e épocas, o povo comparecia às execuções em praça pública com o mesmo entusiasmo de quem vai a  uma festa popular. Era um espetáculo “familiar” em que até as crianças estavam presentes. Lá como cá, a aceitação da pena aplicada pelos algozes sempre foi enorme.
Por isso, não importa o grau de violência perpetrado, em todos esses casos, mais do que punir, o objetivo sempre foi o de exibir a punição à sociedade com o intuito de desencorajar, de amedrontar pelo terror, de inibir atos semelhantes.
Não bastou condenar Jesus à pena de morte, era preciso mostrá-lo pregado à cruz, para que o exemplo pudesse intimidar quem ousasse seguir o mesmo caminho. Como podem concluir, o método tem suas falhas… Os cristãos se espalharam pelo mundo. Junto a Cristo estavam, também pregados a cruzes, dois ladrões. Não muito diferentes desses que hoje são punidos de modo violento pela sociedade, seja pela tortura, pela mutilação ou pela prisão em cadeias superlotadas, piores que as masmorras medievais.
A moderna sociedade brasileira pouco se difere das de épocas tenebrosas ao permitir castigos cruéis aos apenados. A única diferença é que, atualmente, não há no aparato político-jurídico quem os justifique, mas é certo que pouco se faz para impedir que a tortura seja método usual e corriqueiro em delegacias do país, para obtenção de informações e como instrumento de poder. Para os “homens e mulheres de bem”, como boa parte se autoidentifica, não basta privar o sentenciado da liberdade, é preciso infligir castigos cruéis. E, se possível, a pena capital: “bandido bom é bandido morto”.  (E depois vão à missa, ao culto, às orações, para pedir paz e um lugar reservado no céu…).
Cerca de 55 mil pessoas são assassinadas anualmente no Brasil. A maioria, 39 mil, são negros. Para os pesquisadores, o racismo e as condições econômicas e sociais são as principais causas.
A pena de morte, na cruz, na fogueira, na cadeira elétrica, na forca, na guilhotina, por injeção ou pelas balas da PM – não importa o método – nunca funcionou para deter nenhum tipo de violência. E muito menos para calar ideias e ideais. Mas serve para o júbilo dos que assistem e para aqueles que assumem, por alguns momentos, o papel de carrasco.
Segundo Priscila Lessa (“A tortura no Ocidente: atrocidade cultural ou exercício do poder”, disponível aqui), o carrasco tinha uma posição de status no Antigo Regime, na França, entre os séculos XVI e XVIII, e era uma profissão bem remunerada e hereditária. “A arte do ofício da tortura e da execução passava, por tradição, de pai para filho. O jovem carrasco tinha sua iniciação desde muito pequeno, aos cinco ou seis anos, quando já estava apto a ajudar o pai em pequenos castigos, como banhar o acusado em óleo quente ou queimar-lhe a sola dos pés.”
Os filhos desses jovens e adultos que atualmente se deliciam em fazer justiça com as próprias mãos também já estão aptos a aprender o ofício? Aprenderão, desde cedo, como tratar adolescentes e jovens envolvidos em furtos e assaltos? Afinal, quem aprende mais com quem? Quem pratica eventual ato ilegal ou violento aprende a não fazê-lo mais depois de espancamento, tortura e prisão num poste, ou o aprendizado é maior para aqueles dispostos a ingressar nessa cruzada por justiçamento, que, sem  demora, corre o risco de “sentenciar” pequenos “marginais” à morte, amarrados em postes?
Indivíduos são estimulados desde cedo pela ideologia autoritária, pelos telejornais e programas de TV especializados em exibir violências de todos os tipos, menos aquelas cometidas pelos donos do poder. Afinal, também não é violência o modelo de sociedade onde 0,7% de seus habitantes detêm 41% de toda a riqueza mundial? E que leva milhões à morte? E empurra milhares ao crime? No caso brasileiro, não é uma violência a mesma sociedade ostentar o sexto maior PIB e a quarta maior desigualdade social do planeta? Por que não ocorre aos “justiceiros” amarrar aos postes os responsáveis por tamanha crueldade contra toda a população – ela, classe média, incluída? Tão próxima de um dia se juntar aos que estão mais abaixo?
O aparato de controle da escola, dos meios de comunicação, das igrejas, das tradições familiares, do Estado, ou seja, toda uma ideologia que se aprende desde o nascimento, tem justamente essa função de manter a maioria da população na ignorância sobre quem, de fato, são os seus principais verdugos. Quem são os maiores responsáveis pela inexistência de políticas públicas que poderiam evitar a maior parte das brutalidades cotidianas? Boa parte dos cidadãos, sem acesso à informação de qualidade, a uma boa formação humanística, só consegue enxergar como inimigo direto, o “marginal” que  pratica vários delitos.
E contra ele descarrega toda a sua torta ideia de justiça, deixa-se assombrar por vontades arcaicas que o colocam a um passo da barbárie. Séculos, milênios de civilização permitiram ao ser humano construir obras monumentais e desenvolver tecnologias próximas da ficção, mas não o afastaram muito das emoções mais primitivas, de raiva, ódio, vingança, egoísmo, medo e crueldade.
Da cruz ao poste, Estado e cidadãos, numa relação dialética que se retroalimenta, mantêm o modelo ineficaz para conter a violência: vigiar, punir e exibir.

Maconha: para um debate sem preconceito

Bret Kantola

Um balanço sobre os estudos científicos que apontam benefícios e riscos da cannabis. E uma questão: iremos tratá-la racionalmente, ou como tabu?
Por Jerome Groopman, New York Review of Books | Tradução Taynée Mendes
Era verão, em 2006, e um jovem cientista israelense entrou no meu laboratório. Veio aprender como vírus atacam células, uma questão relevante na minha pesquisa. Ansiava me aprofundar no meu tema com sua experiência em uma área emergente que muito me intrigava: os efeitos biológicos do canabinoide, um composto químico ativo da maconha. O cientista tinha estudado na Universidade Hebraica de Jerusalém com o professor Raphael Mechoulam, químico conhecido pela descoberta em 1964 do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), principal composto psicoativo presente na maconha. Mais tarde, Mechoulam identificou a cannabidiol (CBD), uma substância relacionada abundante na erva, tão díspar do THC que não apresentou efeitos patentes no humor, na percepção, na consciência ou no apetite.1
O trabalho do jovem cientista mostrou-se produtivo. De maneira muito rápida, testou os efeitos de várias canabinoides em um vírus da herpes que causa o desenvolvimento do sarcoma de Kaposi, um tumor desfigurante e por vezes fatal em pessoas com baixa imunidade, como os portadores da Aids. Acontece que o CBD, o composto não psicoativo abundante, pode anular os danos malignos do vírus.2 No meu departamento, cientistas também descobriram que os canabinoides podem alterar a maneira pela qual leucócitos migram em resposta a um estímulo fisiológico, um aspecto essencial em defesa imunológica. Outras equipes de pesquisa descobriram que o THC inibe o crescimento e a propagação do câncer de pulmão e o CBD, o câncer de mama em protótipos de laboratório.3 É evidente que substâncias químicas presentes na erva podem ter resultados diversos e potentes tanto em células normais quanto malignas.
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No entanto, o que achei mais fascinante é o fator de possuirmos um sistema de canabinoide natural ou “endógeno”. Em 1988, pesquisadores identificaram um local de chegada, ou receptor, na superfície das células cerebrais que retêm o THC. O primeiro receptor foi chamado de canabinoide receptor 1, ou CB1.4 Cinco anos depois, descobriu-se um segundo receptor para canabinoides, CB2.5  Esta última proteína receptora era menos frequente no sistema nervoso central, mas numerosa em leucócitos. Novamente, foi Raphael Mechoulam quem descobriu o primeiro canabinoide endógeno, um ácido adiposo no cérebro, o qual chamou de “anadamida”. (O nome vem do sânscrito ananda que significa “bem-aventurança”.) A ligação entre a anandamida e o CB1 produz uma avalanche de mudanças bioquímicas em nossos neurônios.6
Outro canabinoide endógeno foi identificado posteriormente. Isso faz sentido em termos de evolução, na medida em que os receptores CB1 e CB2 estariam ausentes em nossas células, se não criássemos moléculas de forma natural para atracar nesses receptores. As ramificações fisiológicas dos canabinoides endógenos mostram-se bastante amplas; seus efeitos mais impressionantes relacionam-se à percepção e à reação a dor.
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A cannabis é uma das mais antigas drogas psicotrópicas em uso contínuo. Arqueologistas confirmam a tese em escavações na Ásia que remontam ao período Neolítico, por volta de 4000 a.C. A espécie mais comum da erva é a Cannabis sativa,presente em climas tropicais e temperados. Marijuanaé um termo mexicano que se referia inicialmente a fumo barato e hoje designa as folhas e flores secas do cânhamo. Haxixe é em um termo em árabe para o cânhamo indiano e se refere a sua viscosa resina. Acredita-se que o imperador chinês Shen Nung, que descobriu também o chá e a efedrina, foi um dos primeiros a relatar o uso terapêutico da cannabis em um compêndio médico que data de 2737 a.C. Em 1839, William O’Shaughnessy, médico britânico que trabalhou na Índia, publicou um artigo sobre o uso da cannabis como analgésico e estimulante de apetite que também modera náusea, relaxa os músculos, e pode melhorar ataques epiléticos. Suas observações abriram caminho para um uso amplo da cannabis para fins medicinais no Reino Unido: chegou a ser prescrito à rainha Vitória para aliviar o desconforto menstrual.7
A planta de cannabis contém cerca de 460 compostos, entre mais de 60 canabinoides. THC, a substância psicoativa chave na maconha, aumentou de cerca de 1-5% para 10-15% nas plantas cultivadas desde os anos 60. Ao furmar-se a erva, 20-50% de THC é absorvido pelos pulmões. Ao comê-la, menor quantidade de THC atinge o cérebro porque a substância sofre metabolização ao passar do intestino em direção ao fígado. O THC acumula-se em tecidos adiposos, do qual é liberado devagar, e age primariamente no receptor CB1 na região do sistema dopaminérgico mesolímbico, que, acredita-se, contribui positivamente para o prazer e a excitação da droga.8
Embora fumar ou ingerir cannabis provoque, em geral, uma sensação de estar “chapado”, de forma relaxada e eufórica à medida que a ansiedade e a precaução diminuem, alguns usuários de primeira viagem, assim como pessoas com transtornos psicológicos, podem sentir mal-estar, medo e pânico. Ao ficar chapado, é comum sentir-se um nível de sociabilidade bastante elevado, embora possa haver forte retraimento para aqueles que reagem de forma disfórica. A percepção do tempo é alterada, a sensação em geral é de que as horas passam mais rápido; a percepção de espaço também muda, e as cores parecem mais nítidas e a música mais vibrante. Altas doses de cannabis podem levar a alucinações, costume religioso em algumas culturas. Diferente do ópio, não há casos de morte registrados por overdose de THC, provavelmente porque os canabinoides não inibem os canais respiratórios, que resultaria em asfixia. Para o usuário regular, a falta de maconha pode causar uma síndrome de abstinência incômoda e perturbadora.
Em 2008, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou uma pesquisa sobre saúde mental com 54.068 participantes com mais de 16 anos em 17 países. Na pesquisa, pelo menos 160 milhões de pessoas entre 15 e 65 anos admitiram ter usado maconha pelo menos uma vez; o menor uso foi constatado na República Popular da China, 0,3%, e o maior nos Estados Unidos, 42,4%, com a Nova Zelândia em segundo lugar.9
Apesar do vasto consumo, a maconha ainda é ilegal na maior parte dos países. Harry J. Anslinger, um importante proibicionista, pressionou com sucesso o congresso norte-americano para passar a Lei Fiscal da Maconha de 1937, deixando o acesso à erva mais custoso. Anslinger foi diretor da Secretaria Federal de Narcóticos e falou em público que a maconha era um verdadeiro perigo, uma “um barato louco”. A Associação Médica norte-americana se opôs à Lei Fiscal da Maconha, temendo que a medida pudesse limitar o estudo clínico e potenciais receitas médicas. Em 1942, depois de muito tempo listada no United States Pharmacopeia, um compêndio de regras para remédios e alimentos, a cannabis foi removida.
Em 1970, o congresso aprovou a Lei de Substâncias Controladas, que classificou a maconha junto com a heroína como droga do Anexo 1. Drogas nessa categoria podem viciar e não há nenhum valor medicinal. (Ópio, base da morfina, e anfetaminas pertencem ao Anexo II, e são classificadas como menos nocivas apesar de suas propriedades altamente viciantes.) Logo depois, o presidente Nixon lançou a “guerra às drogas”, e, em 1986, o presidente Reagan assinou a Lei Antidrogas, que condenava pessoas à prisão sem liberdade condicional por posse e venda de todas as drogas ilegais, inclusive maconha.
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O estudo dos canabinoides, tanto os que provêm da planta quanto os endocanabinoides que existem naturalmente em nosso corpo, é uma grande iniciativa global que reúne diversos cientistas do meio acadêmico e de empresas farmacêuticas.
Mitch Earleywine, renomado pesquisador de drogas e vício na Universidade de Albany (SUNY), apontou a semelhança dos resultados dos estudos atuais sobre a maconha com os borrões do teste de Rorschach: “As pessoas veem essas figuras ambíguas do ponto de vista delas e revela-se mais sobre elas do que sobre a tinta.” Muitos que criam políticas públicas ou estão associados a grupos de interesse respondem à pesquisa com a maconha de acordo com a visão desses grupos, argumenta ele. Suas interpretações evidenciam mais seus próprios preconceitos que as informações factuais. Por exemplo, os proibicionistas defendem que o THC frequentemente aparece no sangue de sujeitos envolvidos em acidentes de carro; só omitem o fato de que muitos desses indivíduos também consumiram bebidas alcoólicas. Antiproibicionistas citam pesquisas que mostram que usuários crônicos não possuem nenhum sinal de perda memória, mas não mencionam que os testes cognitivos são tão fáceis que mesmo uma pessoa mentalmente incapaz poderia fazê-lo.
Duas análises recentes evitam tais vieses e examinam de modo crítico as informações colhidas em mais de centenas de testes clínicos aleatórios envolvendo placebos controlados em cerca de 6.100 pacientes de diferentes condições médicas.10 A maconha parece útil no tratamento de anorexia, náusea e vômito, glaucoma, síndrome do intestino irritável, espasmos musculares, esclerose múltipla, sintomas da esclerose lateral amiotrófica (mal de Lou Gehrig), eplepsia, e síndrome de Tourette. (Testes clínicos recentes confirmam muitas das teses do imperador Shen Nung e do Dr. O’Shaughnessy.) Apesar das descobertas em experiências no meu laboratório e outras, os efeitos anticancer em pacientes são mais duvidosos e nem o THC nem o CBD são comprovadamente agentes antineoplásticos, isto é, adequados para tratar o crescimento anormal de tecido.
Judy Foreman, uma excelente jornalista da área médica, dedica um capítulo à maconha no seu mais recente livro A Nation in Pain: Healing Our Biggest Health Problem11 [Uma nação em dor: curando nosso maior problema de saúde, em tradução livre]. De forma lúcida, ela examina as informações sobre riscos e benefícios da maconha enquanto terapia para pacientes com dor, destacando onde parece melhorar, e onde é insuficiente, e onde não é possível afirmar valor algum com clareza. Foreman escreve:
Para irmos direto ao ponto, a maconha funciona. Não de forma muito impressionante, mas tão bem quanto os opioides. Isto é, pode reduzir dor crônica em mais de 30%. E com poucos efeitos colaterais sérios. Para se ter certeza, alguns estudiosos acham muito cedo considerar a maconha e os canabinoides sintéticos como tratamento de primeira linha para dor, argumentando que outras drogas devem ser testadas antes. Essa visão, porém, pode ser cautelosa demais.”
No fim das contas, a maconha pode ser utilizada em combinação com opioides como a morfina, permitindo menores doses e poucos dos efeitos colaterais decorrentes dos analgésicos da família opioide. Embora a maconha amenize a dor crônica, seu impacto é mínimo em dores agudas, como depois de uma cirurgia.
Como a cannabis reduz a dor? Alguns dos benefícios podem resultar da dissociação cognitiva: você percebe que a dor é patente, mas não reage a ela emocionalmente. Se você consegue separar-se da dor assim, há menos sofrimento.
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Toda terapia, seja droga ou procedimento cirúrgico, requer um equilíbrio entre benefícios versus riscos. Talvez a preocupação mais controversa e importante sobre os canabinoides é a possibilidade de aumentar o risco de psicoses como esquizofrenia, situação mais recorrente entre adolescentes e jovens. Muitos estudos analisaram a saúde de jovens na Suécia, Nova Zelândia e Holanda, que admitiram uso de maconha, em comparação aos jovens que não usavam. A conclusão de pelo menos 36 estudos relacionaram o uso de cannabis ao desenvolvimento posterior de esquizofrenia e outras psicoses.12
A limitação de tais estudos observacionais é que eles sugerem uma associação, mas de modo algum provam uma ligação causal. De fato, na literatura médica há incontáveis estudos observacionais que foram levados a sério, mas depois se mostraram ultrapassados quando testes com placebo controlados vieram à tona. O Women’s Health Iniciative é um bom exemplo. Trata-se de uma pesquisa aleatória, com placebos controlados, que desmentiu o pensamento de quatro décadas sobre os benefícios alegados da terapia de substituição hormonal em mulheres na pós-menopausa, na prevenção de demência e doenças do coração. Não é possível conduzir uma pesquisa aleatória controlada com centenas de adolescentes, escolhendo um grupo para fumar ou ingerir cannabis e outro para receber placebos. Portanto, a relação causal entre maconha e o desenvolvimento de esquizofrenia e outras psicoses permanecerá um caso não resolvido.
O que está provado é que a maconha afeta reações cognitivas e psicomotoras. Numerosos estudam revelam que a droga retarda o tempo de reação de uma pessoa e prejudica a atenção, a concentração, a memória de curto prazo e a avaliação de riscos. As mudanças na performance psicomotora podem ir além da sensação de estar “chapado”.  Testes com pilotos profissionais concluíram que a maconha prejudicou a condução em um simulador de voo por até 24 horas.13 Além disso, a maioria dos pilotos não percebeu que o efeito durou até o dia seguinte. Muitas pesquisas relacionaram a cannabis a acidentes de carro: estima-se que motoristas que usaram maconha são de duas a sete vezes mais propensos a se envolver em acidentes que aqueles que não usaram drogas ou álcool.14
A Associação Americana Psiquiátrica, em seu novo dicionário médico (DSM-5), definiu o diagnóstico de “transtorno do uso de cannabis”. Essas pessoas têm por hábito o uso com consequências nocivas, como inaptidão de desempenhar grandes responsabilidades no trabalho e problemas sociais persistentes em família. Tanto o DSM-5 quanto o International Classification of Diseases 10th edition (ICD-10) também incluem uma lista de possíveis sintomas da abstinência de maconha: fatiga intensa, sonolência, retardo psicomotora, ansiedade e depressão.15 Há ainda um debate caloroso sobre se a maconha vicia ou não. Proponentes da maconha duvidam que possa haver vício real, condição psicológica com desejo e uso compulsivo a despeito de seus males. Argumentam também que a dependência, caso haja alguma, é menos nociva do que em outras drogas. Oponentes da maconha, principalmente aqueles dos institutos nacionais de saúde,afirmam que dependência e vício são riscos reais, embora em um percentual mais baixo do que a cocaína ou heroína.16
***
O livro A New Leaf [Uma nova folha, em tradução livre] detalha a história da regulação da maconha, apresentando em pormenores os conflitos legais e políticos em torno da proibição. Artigos recentes das revistas The New Yorker17 e The Nation18 descrevem de maneira sucinta a seara política em torno da legalização da maconha para uso médico ou recreativo nos Estados Unidos. No artigo da The New Yorker, o professor Mark Kleiman, especialista em política de drogas da Universidade da Califórnia em Los Angeles, vê a legalização do ponto de vista de um cientista, como se fosse uma experiência em andamento. A legalização testará um grupo de hipóteses sobre políticas públicas, e ele prefere não concluir nada até que mais informações estejam disponíveis.
Assim como toda iniciativa social, consequências negativas são prováveis, e Kleiman defende um monitoramento minucioso do uso excessivo entre adolescentes e da direção sob influência da maconha quando disponível para uso recreativo. Ele, “aparentemente”, segundo a reportagem da The New Yorker, “obtém um prazer mórbido ao informar aos políticos que eles subestimam a complexidade do problema”. Outra grande preocupação é que quando a maconha legal estiver à venda no estado de Washington, o mercado negro existente não desaparecerá; ou melhor, a maconha legal e de venda livre competirá com fontes ilícitas. Kleiman defende que para apoiar o mercado legal, deve haver ainda mais rigor na lei para aqueles que não respeitam as regras. E, em Washington, poucos congressistas querem ouvir tal proposta.
De igual maneira, Kleiman não acha que o álcool será menos visado se a maconha for legalizada. Embora reconheça que o álcool é a mais perigosa das duas drogas, o professor levanta a possibilidade de que a maconha possa ser consumida de forma complementar à bebida alcoólica. Concluindo, ele enxerga: “O mundo maniqueísta da política” – o pêndulo pode ir da ilegalidade da maconha, venda e uso levando à prisão até “aqueles que acham que ‘deveríamos vendê-la como água’”.
Em contraste com a matéria cautelosa do The New Yorker, os artigos da revista The Nation propõem uma evidente endosso à legalização. Na capa da revista, uma foto do jovem Barack Obama com o V da vitória ao lado de colegas apinhados ao redor da logo da “Choom Gang” [grupo conhecido nos anos 70 por jogar basquete e puxar “unzinho”]. O editorial, assinado por Katrina vanden Heuvel, pontua que os últimos presidentes, entre eles Bill Clinton, George W. Bush e Barrack Obama, todos “de uma forma ou outra não respeitaram as leis norte-americana de drogas”, portando ou fumando cannabis. Se tivessem sido flagrados pela polícia, poderiam estar presos, sem qualquer chance de uma carreira na Casa Branca. O livro A New Leaf destaca os riscos de prisão por porte de maconha. A discriminação racial, com um número desproporcional de afro-americanos presos, é a triste realidade da proibição:
Enquanto os usuários de cannabis que são encaminhados à delegacia raramente vão para a prisão, há ainda mais de 30 mil pessoas presas por mero porte. Segundo um amplo relatório de 2013 publicado pela União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), entre 2001 e 2010 houve mais de oito milhões de detenções por maconha nos Estados Unidos (88% por porte), e o cumprimento da lei por porte custa sozinho mais de 3,6 milhões de dólares em 2010. Em todo o país, os negros têm quase quatro vezes mais probabilidade que os brancos de serem detidos por porte, apesar de índices de uso praticamente iguais; em alguns países, o número aumenta de 4 a 30 vezes. Enfim, 62% dos capturados têm menos de 24 anos, o que significa que isso constará em sua ficha ao longo da vida adulta.”
Todo esse desperdício de horas, dinheiro e prisões tiram a atenção do uso indiscriminado e do tráfico de drogas:
Novamente, quando a maconha – que responde por 80% dos entorpecentes ilegais nos Estados Unidos – for retirada da guerra contra as drogas, o país poderá efetivamente discutir e implantar uma nova e mais flexível política de saúde pública para outras drogas pesadas.”
***
Há muitos anos, recebi uma consulta de uma jovem com anemia. O clínico tinha feito uma avaliação completa da sua condição, mas não achou motivo para a doença. A paciente tinha passado por períodos estressantes no trabalho, e quando perguntei como lidava com isso, ela disse que costumava fumar maconha toda noite. Segundo o exame de medula óssea, havia número reduzido de células, não tão grave para ser classificado como anemia plástica, mas sem dúvida anormal para uma mulher com vinte e poucos anos. Os numerosos componentes da cannabis não são tidos como tóxicos para as células sanguíneas; fumar maconha nunca causou anemia. Lembro-me, porém, que algumas colheitas ilícitas têm sido tratadas com toxinas que podem apresentar efeitos perniciosos ao desenvolvimento de células sanguíneas.
Então, juntos decidimos suspender o fumo, e depois de alguns meses a anemia estava resolvida. Um exame subsequente de medula óssea revelou a restauração completa dos números normais de células sanguíneas. Não foi uma prova definitiva, mas certamente sugeriu que algo da erva que ela comprara de um traficante foi a causa. Se não houver uma fiscalização adequada da maconha à venda, aqueles que procuram a cannabis de rua podem se expor a perigosos ingredientes.
No livro Weed Land [Terra da marola, em tradução livre], Peter Hecht, jornalista do The Sacramento Bee, mapeia a evolução da lei da maconha para fins medicinais na Califórnia, a primeira dos Estados Unidos.19 Muito do apoio para sua jornada veio da união de forças entre ativistas da Aids e médicos acadêmicos como Donald Abrams do hospital geral de São Francisco, que comprovou os benefícios clínicos para apetite aumentado e alívio de dor em pacientes com caquexia decorrente do HIV. Maconha para fins médicos, agora legal em vinte estados mais o Distrito de Columbia, é regulamentada mais como suplemento que como uma droga. Não há uma padronização de porções ideais para o THC psicoativo e o CBD não psicoativo, embora devam ser sem toxinas. (Um empresa britânica, GW Pharmaceuticals, fabrica o Sativex, um spray oral que contém extratos de duas variedades de cannabis padrão que são misturadas para dar doses exatas de THC e BD. O Sativex foi aprovado em muitos países, mas não nos Estados Unidos.) *Nota do tradutor: No Brasil, segundo reportagem da Superinteressante, a Anvisa lançará um roteiro para importar o medicamento ainda em 2014.
Para um médico como eu, prescrever terapia é uma situação desconfortável, porque a receita médica deve especificar a quantidade exata da droga recomendada. Além disso, efeitos colaterais podem ocorrer em pacientes que tomam múltiplos medicamentos, devido à chamada “interações droga-droga”. Essas interações não foram bem examinadas em relação ao THC e o CBD, em parte por causa do acesso restrito à planta para a comunidade de pesquisada clínica. Os cientistas em meu laboratório estudaram substâncias químicas puras, THC e CBD, sob restrita supervisão federal; compramos os canabinoides de empresas químicas que usam controle de qualidade. Como apontam Martin e Rashidian, o estudo médico da planta em si, contendo as susbtâncias químicas ativas, é outra questão:
O governo federal impôs uma série de restrições adicionais e exclusivas para a pesquisa com a cannabis, com pouca sensatez – exceto no campo político. O governo concedeu a uma única instituição, a Universidade do Mississipi, a permissão de cultivar cannabis legalmente para pesquisa em nome do Estado, embora seja livre para contemplar outros contratos. E a cannabis é a única substância para pesquisa cujo único provedor é o governo. Para um cientista obter cannabis da fazenda federal, na Universidade do Mississipi, é preciso um montão de aprovações… do FDA, DEA, do conselho do Serviço de Saúde Pública.”
Talvez, à medida que os estados legalizem a maconha, essa barreira à pesquisa possa ser menor, assim como foi para a pesquisa com células-tronco, antes restrita, nos EUA, por lei federal. E, quanto mais estudos sobre a maconha para fins médicos ou recreativos aparecerem, é provável que oponentes e entusiastas descubram que não estavam nem totalmente certos, nem totalmente errados.
1. Mohamed Ben Amar, “Cannabinoids in Medicine: A Review of Their Therapeutic Potential,” Journal of Ethno-pharmacology, Vol. 105 (2006); Arno Hazekamp and Franjo Grotenhermen, “Review on Clinical Studies with Cannabis and Cannabinoids 2005–2009,” Cannabinoids, Vol. 5 (2010).
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