quinta-feira, 8 de setembro de 2016

hypomnemata 190

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.190, agosto de 2016
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Assujeitamento 1
Olimpíadas de 2016 no Brasil. Atletas sobem ao pódio e batem continência como orgulhosos soldados servindo à sua pátria.
Dos 465 atletas da delegação brasileira, 145 são militares. Eles fazem parte do Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR), criado pelo Ministério da Defesa em parceria com o Ministério dos Esportes em 2008, na época, respectivamente, sob o comando dos ministros Nelson Jobim e Orlando Silva.
O programa tinha como objetivo inicial reforçar a delegação brasileira nos Jogos Mundiais Militares (JMM) de 2011, realizados na cidade do Rio de Janeiro. Os atletas de alto rendimento foram convocados a se inscreverem por meio de edital público aberto duas vezes ao ano.
O atleta selecionado recebe uma renda mensal de R$3.200 mais 13° salário, plano de saúde, assistência odontológica, além de usufruir das estruturas das Forças Armadas para treinamentos: Centro da Capacitação Física do Exército, Complexo Esportivo de Deodoro, Universidade da Força Aérea, Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes (CEFAN) da Marinha. Para que os atletas possam participar JMM, eles recebem das Forças Armadas a patente de 3°sargento do Exército, Marinha ou Aeronáutica.
O programa prepara os atletas para as competições organizadas pelo Conselho Internacional do Esporte Militar (CISM) e da União Desportiva Militar Sul-americana (UPMSA).
O CISM, sediado em Bruxelas, foi criado em 1948 por representantes da Bélgica, Dinamarca, França, Luxemburgo e Holanda sob o lema “amizade através do desporto”. Sua principal referência foi o Conselho Desportivo das Forças Aliadas, criado pelos EUA em 1945 e que reunia 12 países “em torno de um ideal de confraternização por intermédio da prática desportiva”. Logo após as milhões de mortes na II Guerra Mundial, deu-se às forças armadas um momento recreativo.
O Brasil, que tivera participação pífia nos jogos anteriores, culminando com a 33° colocação nos jogos de 2007, na Índia, foi alçado ao topo do esporte militar por meio deste programa: nos jogos militares de 2011, alcançou a primeira colocação do quadro de medalhas e, em 2015, nos jogos realizados na Coreia do Sul, ficou com o segundo lugar, atrás da Rússia.
O PAAR não é o único programa voltado a atletas de alto rendimento. Junta-se a ele o Programa Bolsa Atleta, do Ministério dos Esportes, que paga mensalmente R$3.100 a atletas filiados a alguma entidade de prática desportiva e que tenham integrado a delegação olímpica ou paralímpica nas últimas edições dos jogos.
O topo dos programas voltados aos atletas é o Bolsa Atleta Pódio, criado em 2011, que premia o alto rendimento esportivo por meio de um sistema para aferição de eficiência e produtividade como determinante para o pagamento dos atletas: os vencimentos mensais variam de R$5.000,00 (grupo 4) a R$15.000,00 (grupo 1), distribuídos segundo a colocação alcançada por cada atleta nos últimos campeonatos mundiais, rankings internacionais e jogos olímpicos.
Assim, realiza-se, no âmbito do chamado esporte de alto rendimento, a combinação entre rígida disciplina militar por meio do controle estatal direto, que fez o sucesso esportivo dos antigos países do chamado Bloco Soviético (Cuba, incluída), e recompensas via subsídios governamentais distribuídos segundo rendimento auferido de metas.
Vê-se, assim, que as tecnologias de governo não resultam de ideologias ou artimanhas dos que ocupam o governo de Estado, mas de práticas híbridas e variadas que se guiam pela capacidade de colher resultados. Não à toa a nação comemora o sucesso dos melhores jogos da “equipe Brasil”.
Completado por benefícios de outros programas “mais gordos”, vindos da iniciativa privada via patrocinadores, os atletas brasileiros gostaram mesmo de bater continência no pódio. Exercitaram e exemplificaram a tolerância entre ricos e pobres, gays e mulheres, pretos e brancos, e quase todos jovens, desfilando condutas retrógradas confirmadas no solene gesto militar do alto da vitória.
Não têm vergonha de demonstrar seu amor pela disciplina militar-esportiva, escancarar patriotadas, derramar-se em lágrimas pela “preservação de valores seculares e de respeito à família”. Juntam-se ao conservadorismo moderado do momento, fazendo-se de equilibrados senhores e senhoras de suas performances.
E, desse modo, renova-se a imagem de uma instituição autoritária que segue matando em todo território nacional.
Assujeitamento 2
Olimpíadas de 2016 no Brasil. Atletas sobem ao pódio e batem continência como orgulhosos soldados servindo à pátria.
O poder de polícia das Forças Armadas não cessou com o fim da ditadura civil-militar. Além da institucionalização da Polícia Militar, o governo da presidenta que sentiu na pele os efeitos da ditadura acionou por diversas vezes a medida militar de Garantia de Lei e Ordem (GLO), Portaria Normativa no 3.461 /MD, de 19 de dezembro de 2013, caracterizada pelo emprego das Forças Armadas em operações consideradas de “não guerra”.
Essas operações, realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República, visam “garantir a ordem pública” e o “funcionamento regular das instituições” em áreas seletivamente triadas e por períodos limitados, sob o que se considera um estado de emergência.
Agem contra a “perturbação da ordem” e diante de “ameaças à incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Dão às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) o poder de polícia em períodos e locais determinados, podendo efetuar prisões e utilizar a força sempre que considerar necessário.
No caso específico do estado do Rio de Janeiro, as GLO foram acionadas para os eventos Rio+20, Copa das Confederações (passando por revisão devido aos acontecimentos das jornadas de junho de 2013), visita do papa Francisco à Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo e Olimpíadas.
Por solicitação do governo estadual, a GLO foi requisitada nas operações da pacificação dos Complexos da Maré, Penha e Alemão.
A ostentação do aparato militar deu tons mais precisos aos campos de concentração chamados comunidades. A presença das Forças Armadas nas favelas garante odireito de ir e vir do Estado na vida daqueles que, nomeados como vulneráveis, permanecem como indesejados e perigosos que devem ser mantidos monitorados.
Reproduzem-se nestes espaços os guetos que garantem a sobrevivência desde que contidos em seu determinado quadrado. A garantia de direitos que servem de justificativa para as intervenções, e não fazem mais do que melhorar a condição de favelados aprisionados em um ambiente seguro para o resto da boa sociedade.
Rafaela Silva, judoca medalha de ouro, contemplada pelo (PAAR) tornou-se 3º Sargenta da Marinha. Dias após a conquista da medalha de ouro, ela voltou ao Complexo do Alemão onde nasceu.
Em cima de um carro de bombeiros, desfilou pelas miseráveis ruas das comunidades. Foi acompanhada por centenas de moradores que cantavam a todos os pulmões: “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci” e, orgulhosos, bradavam: “favelaaa, favelaaa, favelaa, eu sou da favela”.
Para quem vive cercado e ama essa condição é mais fácil aderir a um mundo novo olímpico do que inventar um mundo outro.

flecheira.libertária.448

barricadas 
Desde quarta-feira, 31 de agosto, manifestações tomam conta de várias cidades do país. Entre as reivindicações, há desde a saída do delegado presidente passando por novas eleições, e seguindo a recomendação da ONU pela desmilitarização da polícia. No meio do trajeto conhecido irromperam os black blocs, confrontando a polícia, liberando a passeata e evitando mais repressão. Escancararam, mais uma vez, o quão violentas são as tropas do Estado. Em São Paulo, com o rosto coberto, um jovem vestindo negro, ao ouvir de um militante organizado, “aqui tem que ser pacífico”, respondeu: “aqui tem que ter barricada”. 
o papel de polícia 
Nenhum jornal de grande circulação estampou as dezenas de corpos feridos pelo Estado. Restringiram-se a dois ou três casos. Um dos maiores veículos da imprensa nacional condenou a ação dos black blocs, identificando-os como “soldados da arruaça”, “delinquentes”. O editorial do periódico, em conformidade com a ordem de pai para filhos, explicitou que se preocupa com a defesa da propriedade e esporadicamente com a vida dos milhares que saem às ruas. Expôs como exercita a figura de policial. De tão democrático ele garante que o dissabor de um colunista seja publicado. E o colunista, em seu espaço reservado, saboreia sua insatisfação e garante seu emprego sem perder a linha. Confortavelmente reiterou o editorial com o argumento senhorial de que o black bloc é coisa de moleque. Enquanto isso, em Caxias do Sul, um advogado preto que intercedeu a favor de manifestantes abordados violentamente pela polícia, foi espancado e seu filho, que saiu instintivamente em sua defesa, indiciado por tentativa de homicídio. 
de olhos bem abertos 
Na mesma semana em que os protestos voltaram a tomar as ruas, um dos fotógrafos que perdeu a visão depois de receber um tiro da polícia durante as jornadas de junho de 2013, teve a ação judicial que movia contra o Estado negada pela justiça. Na última quarta-feira, uma jovem de 19 anos também ficou cega ao ser alvejada por um estilhaço de bomba propriedade do Estado. Seja pela violência, ou política, é impossível não ver: o Estado mata, o Estado cega e o Estado é o justo! 
troca-troca da pacificação 
Após o julgamento que levou ao impeachment da presidente, movimentos de esquerda organizaram uma série de manifestações contra o delegado e agora presidente. Em algumas delas, adeptos da tática black bloc radicalizaram a monótona e ordeira marcha pacífica, quebrando bancos e atacando a polícia. Como se não bastasse os tiros e as bombas da polícia, enfrentaram a repressão no interior da própria manifestação. Líderes de organizações com vínculos partidários disseram não haver espaço “nas nossas manifestações para práticas dessa natureza” e que os black blocs deveriam ser “convidados a se retirar”. Além disso, orgulham-se em dizer que seus liderados colaboraram com a PM denunciando a presença dos mascarados. No final do ato deste último domingo, mais uma vez os que se arriscaram a se mascarar eram prontamente reprimidos pelos manifestantes pacíficos. A tática black bloc escancarou, mais uma vez, o amor dessas organizações e seus filiados pela polícia. Enquanto isso, alegremente, a direita – na companhia de skin heads –, comemorou a vitória passivamente e sem ser incomodada, deglutindo bolo com champanhe na porta da Fiesp.

sábado, 3 de setembro de 2016

porosa amorosidade

amorosidade é afeto que tem que ser bom e bonito (mesmo com altos e baixos, idas e vindas).
amorosidade é coisa que flui, porque se fosse para não fluir, seria morosidade.
amorosidade é sentimento pra produzir leveza e não peso ou gasto desnecessário de energia.
amorosidade é feita de encontros e de sintonia, e não de distanciamentos.
amorosidade é tecida no olhar de cuidado e de aconchego, e não de egoísmo e repulsa.
amorosidade é boniteza feita pra fazer florir e não para provocar esterilidades.
amorosidade é encantamento que inventa movimento e não travamentos.
amorosidade é musicalidade e não calamentos.
amorosidade é ter lugar pro outro e no outro, porque se tiver lugar somente para um, não é amor.
amorosidade é compartilhamento e parceria,
é encontrar até no desencontro,
é rir das mesmas coisas,
é alegria à desvairada,
é leveza serena,
é beber cachaça junto, só pra conversar à toa,
é andar de mãos dadas, só pelo alegramento de se estar junto,
é cumplicidade no toque,
é apaixonamento no olhar,
é sentir orgulho do que se é com o outro,
é andar sem medo (e também, andar com coragem),
é mirar todas as possibilidades e inventar acontecimentos,
inventar a vida.
vida á algo que só inventamos com o outro (qualquer outro... uma sonoridade, um fato, um ato, um afeto, uma imagem, uma palavra, uma gente).
é preciso ser poroso para inventar amorosidade.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

um velho, uma moça

relendo "memória de minhas putas tristes", do Gabo, me veio em forma de despensamento, a lembrança dum velho -corcunda-que não era de notredame. vencido, não pela idade, mas por seu desavantajado porte, nádegas enrugadas, pescoço curto, cabeça oca, foi ao mercado comprar um par para se emparceirar.
vencido, também, pela insegurança de varão insonso, molenga, desinteressante, precisava se reafirmar. e se afirmar.
escolheu a dedo, a menina que o faria se sentir um sansão. negociou-a com a mãe; não sei o que trataram no brique, mas sei que custou caro.passará a vida pagando. contam que periodicamente renova a certificação.
nunca foi enquadrado nas determinações do ECA. seu tempo, era do código de menores.