terça-feira, 31 de julho de 2012

flecheira.libertária.259


da continuidade do extermínio 
Aconteceu novamente. Desta vez sem suicídio. O perdedor radical invade o cinema e mata. Com “armas legais”, compradas na internet e com vasto conhecimento em explosivos para continuidade do ato, ele não é o terrorista islâmico, tampouco o personagem de videogame. Se diz o vilão dos quadrinhos e da telona. Jovem, altamente investido de  capital humano, doutorando em neurociência, exercita, violentamente, sua frustração dando forma à vontade de extermínio dele e dos seus que, querendo vencer, se convencem da derrota. Desta vez sobrou espaço para o espetáculo dos tribunais e o Estado cumprirá sua missão de morte contra um já diagnosticado transtornado e sua imagem moderninha. Cumprirá? Ou os diagnósticos neurais darão outro fim à trama? Mais uma vez, a escolarização estendida mata e não há religião, pobreza ou bullying que explique. Seguem as notas do extermínio macabro.
polícia é polícia 
Circulou em destaque que a polícia militar do estado de São Paulo cometeu mais dois assassinatos. Rotina de assassinos. Um era pobre, o outro classe média. Parentes de um e outro alegaram inocência das “vítimas” e “abusos” nos procedimentos policiais. Governador e autoridades anunciaram inquéritos, apurações e punição dos responsáveis. “Se fosse um  bandido, mas não era...”, declarou uma das moradoras do morro de Santos sobre um dos assassinados. Onde há uso, há abuso. Polícia é feita para matar e mesmo diante de uma tragédia irreversível, parentes, amigos e moradores dos morros não vêem outra resposta além de mais polícia, justiça e punição. Apenas desejam um polícia a seu serviço. Que polícia não mata?
segurança e polícia 
Os "cidadãos de bem" querem a segurança de seus carros, casa, empregos, e, desta forma, não abrem mão da polícia para proteger sua propriedade e a moral de sua família. Não há policial despreparado assim como não há segurança sem polícia. O papel da polícia é assegurar que o Estado e a propriedade não sejam abalados por qualquer suspeita de ameaça. Quem quer segurança quer polícia. O limite da ação policial é o assassinato. Assustou? 
colômbia mais humana... 
Bogotá projeta-se como um dos mais importantes destinos de negócios do mundo. Nos últimos anos destaca-se pela eficiência de seus programas por conta da segurança. Neste ano, o novo plano de desenvolvimento urbano e combate à insegurança leva o slogan “o ser humano como referência central da política pública”. O projeto Bogotá Humana foi aprovado pelo Instituto Distrital de Participação e Ação Comunitária que busca “promover e gerenciar espaços e processos sustentáveis de participação dos cidadãos”. Quer pra você?
... e mais segura 
Pelas ruas de pedra da Cidade Muralhada em Cartagena das Índias perambulam muitos turistas. A construção de 8 km de muro foi feita na época da colonização para espantar os inimigos que chegavam pelo mar. Palco do Tribunal da Inquisição que prendeu, matou e torturou homens, mulheres e crianças, a cidade também é sede do complexo defensivo Castelo  de São Felipe que serviu de fortaleza durante sangrentas guerras entre corsários espanhóis, franceses e ingleses. O que se espalha agora, por ali, são inúmeras câmeras de vigilância, já que o perigo pode estar dentro ou fora dos muros e a população clama por segurança. Em resposta ao monitoramento a maioria dos visitantes diz: melhor assim, a Colômbia agora já é um lugar seguro para passear e  fazer compras com tranquilidade. Diante destas vidas blindadas, as muralhas do castelo são adorno da história.
brooklin-bronx 
No trem que liga o Brooklyn ao Bronx, durante a madrugada, um grupo de jovens de calças jeans rasgadas, camisas e óculos coloridos se diverte. Parecem estar voltando de Woodstock. Em certa estação, o trem demora mais do que o normal para sair. Um policial entra no vagão. Interroga alguém em tom ameaçador. O policial veste luvas e faz com que uma pessoa se levante do chão e saia do trem. Não é um dos jovens de longos cabelos loiros. Um rapaz preto, cabelo curto, que não parece conseguir responder ao policial de onde vem e para onde vai – perguntas que o defensor da ordem, também preto, não para de fazer, em tom cada vez mais alto – é recebido na plataforma por mais três policiais. As portas se fecham, no alto falante se ouve um pedido de desculpas pelo atraso. O trem parte e os jovens neo-hippies continuam a festejar, sem se importar com o que acabara de acontecer precisamente ao seu lado. Ninguém viu nada, ninguém disse nada. Todos sabem também que a cidade que nunca dorme não pode parar, e que o trem deve seguir a linha. 
paradise now 
Sing, dance, love, peace, graze, trip. Do your own thing. Free yourself. No East Village, bairro boêmio e underground de Nova York, a porta do Living Theatre, grupo de teatro anarquista com mais de cinquenta anos de existência libertária, está sempre aberta,  com a frase acima gravada com tinta vermelha. Paraíso agora, sem mediações, sem porteiro, recepcionista, interfone...  Num sábado à noite de verão, depois da apresentação de uma peça em um festival de teatro independente, público e atores se juntam para transformar o palco em pista de dança. Alguém  propõe um desafio de dança, e logo a pista é tomada por bailarinos e outras pessoas dançando das maneiras mais livres possíveis.  Free yourself. Do your own thing. É sempre possível encontrar uma mordida deliciosamente livre na big apple.

sábado, 28 de julho de 2012

Útero, serviço à sociedade?


Por pressão das bancadas fundamentalistas, Brasil pode ter lei que reduz grávidas a objetos reprodutivos. É hora de barrar ameaça
Por Marília Moskcovitch, editora de Mulher Alternativa
Um mundo onde as mulheres férteis são corpos a serviço do Estado. Elas servem para gerar bebês, reproduzir a espécie. Seus corpos são assunto público. É dever delas e de toda a sociedade cuidar desses corpos, mantê-los em boas condições. Elas são um serviço. Atentar contra este serviço é crime: qualquer ameaça a sua integridade física é punida severamente, quer venha delas mesmas ou de outrem. Por isso, são confinadas em espaços ultra-seguros, numa rotina rígida que inclui todas as práticas que a medicina considera apropriadas antes, durante e depois de uma gravidez. A vida destas mulheres vale menos do que os óvulos ainda não fecundados em seus ovários, e menos ainda do que a existência da potencial pessoa, ainda em forma de feto enquanto estão grávidas.
O cenário de horror que descrevo foi inspirado no livro O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), de Margaret Atwood. Está longe da ficção, porém: a legislação brasileira pode instaurar o mesmo tipo de contexto se algo não for feito rápido. Muito rápido.
O Projeto de Lei 478/2007, “Estatuto do Nascituro” (acesse na íntegra aqui), tramita na Câmara Federal e deve ir a votação dentro de pouco tempo. Já em seus primeiros parágrafos define que “o ser humano” começaria “na concepção”. Um erro crasso, já que a própria legislação brasileira, que proíbe o aborto, permite a pílula do dia seguinte. A pílula do dia seguinte não permite que o óvulo fertilizado se fixe nas paredes do útero e, se esse óvulo fertilizado já é vida (segundo as correntes religiosas que endossam esse projeto de lei), a pílula do dia seguinte seria o equivalente a um assassinato. Ejaculação também. É neste tipo de distorção que o Estatuto do Nascituro se baseia. Uma discussão muito lúcida sobre essa suposta “defesa da vida” está no texto “Aborto: é possível ser pró-vida e pró-escolha ao mesmo tempo?” do conhecido cientista Carl Sagan (leia aqui).
O texto do PL defende que o “nascituro” (ou seja, algo que pode ser um embrião ou um feto em qualquer estágio de desenvolvimento, pois não há especificação alguma sobre isso no projeto) tenha direito à vida (antes de nascer estaria ele morto?), à educação (intra-uterina?), à saúde (porque, afinal de contas, a saúde da grávida não importaria tanto, se não fosse pelo embrião ali dentro), à alimentação (alguém já viu grávida fazer greve de fome? Seria crime então uma mulher que passa fome engravidar, se esse PL fosse aprovado?), entre outras barbaridades e incongruências. Ao fazê-lo, coloca o embrião e o feto enquanto sujeitos de direitos numa posição mais alta do que as próprias mulheres grávidas na hierarquia de quem “merece” mais direitos e proteção do Estado e da sociedade. A função da pessoa grávida passa a ser interesse público, como se ela estivesse prestando um serviço à sociedade.
No artigo 8º chega a ser ridícula a proposição de que seria dever do SUS tratar o “nascituro” em condições iguais às de uma criança. Os artigos 9º e 10º buscam enfatizar que todo embrião ou feto necessariamente tem que nascer, mesmo que não haja expectativa de vida fora do útero, como no caso dos anencéfalos cujo aborto já é entendido como legal no Brasil.
Mais à frente, o artigo 13º é o que talvez represente o retrocesso mais odioso de todo o PL: propõe que todo embrião ou feto concebido a partir de estupro (que eles têm a “delicadeza” de chamar apenas de “violência sexual” no texto) também tenha que nascer. Este artigo ignora completamente a situação de violência vivida pela pessoa grávida e oferece uma pensão durante o primeiro ano de vida. Um suborno estatal para que pessoas que foram estupradas não façam aborto.
O texto ainda é recheado de punições penais desproporcionais caso as pessoas grávidas (que, neste escopo, se tornariam menos pessoas ao se tornarem grávidas) não sigam essa cartilha do bom comportamento, que não apresenta sequer critérios específicos como parâmetro do que “causa mal” ao tal “nascituro”, do que seria “negligência”, etc. uma vez que nem mesmo na medicina há consenso sobre que práticas são melhores ou piores para um feto em gestação.
Há risco real de estas atrocidades serem aprovadas em breve. Por este motivo os movimentos de mulheres tomaram a dianteira em organizar um abaixo-assinado nacional que mostre, nas audiências públicas e gabinetes de políticos, que a sociedade brasileira desaprova essa tutela; que entende que um projeto de lei como esse é uma ameaça muito grave aos direitos humanos de mulheres. Embora uma assinatura num documento digital pareça pouco, vale lembrar que a opinião pública ainda tem algum peso (ainda bem) na atuação de vários representantes e instituições. É o mínimo, mas o mínimo precisa ser feito.
A declaração geral do abaixo assinado, mostrando pontos cruciais de retirada de direitos que essa legislação prevê, pode ser lida aqui. No mesmo endereço, você também pode contribuir com sua assinatura no documento.
O livro de Margaret Atwood é terrível. Terrível por ser verossímil, se não agirmos rápido para garantirmos direitos básicos que não deveriam sequer estar em disputa. Ela descreve, na distopia que nos horroriza, a relação que as aias, servas reprodutivas, têm com o sexo obrigatório oferecido aos Comandantes – homens em altas posições sociais, para quem trabalham.
“Minha presença aqui é ilegal. É proibido para nós ficarmos sozinhas com os Comandantes. Nós servimos para procriar: não somos concubinas, gueixas, cortesãs. Pelo contrário: o máximo possível foi feito para nos tirar destas categorias. Não deve haver nada de interessante em nós, não deve haver espaço para a luxúria; nenhum favor deve ser trocado, por nós ou por eles, e não deve haver brechas para o amor. Somos úteros com pernas, apenas: invólucros sagrados, cálices ambulatoriais.”[1]

[1] Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (“O Conto da Aia”), capítulo 23, tradução livre.
> Edições anteriores da coluna:
Planejamento familiar ou controle de natalidade?
Programação da Rio+20 inclui debate indispensável; qual a diferença entre intervenção estatal sobre reprodução e direito da mulher ao corpo?
O discreto preconceito dos intelectuais
Ser escritora, pesquisadora ou artista é socialmente mais relevante que faxineira? Problema está na profissão ou nas condições de trabalho?
O discreto preconceito dos intelectuais
Ser escritora, pesquisadora ou artista é socialmente mais relevante que faxineira? Problema está na profissão ou nas condições de trabalho?
Feminismo em disputa
Não aceito o controle do corpo e o moralismo como estratégias de combate. Sobretudo nos movimentos pela emancipação
Onde você mostra o seu machismo?
Ninguém é imune a ele: a diferença está em como reagimos. Um teste para homens e mulheres avaliarem suas atitudes
O MMA sem preconceitos
Por que passei a acompanhar esportes de combate e pensar que podem ajudar a entender nossa cultura e organização social
Por que não dou dinheiro para a cerveja do trote
Seria assumir lenda da meritocracia (“parabéns, vocês passaram no vestibular”). Seria celebrar um privilégio enorme, de um sistema muito desigual
Mulheres: corpos disponíveis?
Toda a delícia do carnaval vem da liberdade. Nas três histórias a seguir, as mulheres foram violentamente privadas desta festa
Bispos, sexo morno e os “bem-amados”
Das duas, uma: ou o religioso que atacou ministra Eleonara projetou suas frustrações afetivas; ou deixou aflorar seus desejos políticos…
Aos indignados da sacolinha
E se a resistência à mudança de hábitos indicar que colocamos a Ética do Consumidor acima de todas as outras?
O emblemático Oscar de Melhor AtrizPergunta que não quer calar: a escolha da Academia levaria em conta algo mais, além da capacidade de interpretar?
A CasaSete rolos compressores sujando as minhas e as suas mãos de sangue. A intimidade violada de milhares de famílias. No domingo, dia de “casa”
A cena do Big Brother é um problema do Brasil“Estupro de vulnerável” consta no Código Penal. Comum e terrível, precisa ser punido: a Globo não está acima da lei
“Mulher Alternativa” estreia em Outras PalavrasColuna semanal defende radicalmente a igualdade, não crê em libertação “definitiva” e aposta que feminismo combina com liberdade sexual

A eutanásia, uma livre escolha


"Mas não sejamos daqueles que sabem sem ter praticado, daqueles que fogem da realidade da morte, que não entram no quarto dos agonizantes, que decidem a partir de seus escritórios sem jamais terem visitado um serviço de reanimação ou um hospital com doentes crônicos! Sejamos daqueles que respeitam o ser vivo em sua dignidade pela escolha de sua escolha quando seu fim não tem fim! Se essa escolha é a morte assistida, a comissão criada por nosso presidente deve emitir uma nova lei que permita a médicos designados e supervisionados efetuarem em paz um fraternal gesto de amor", escreve Bernard Lebeau, pneumologista, cancerologista e professor de medicina na Universidade Pierre-et-Marie-Curie-Paris-6, em artigo publicado no Le Monde e reproduzido pelo Portal Uol, 22-07-2012.
Eis o artigo.
Após mais de quarenta anos de prática, me declaro insatisfeito com os métodos das cerca de quatro mil abreviações de vida às quais (ou que) eu assisti. Mas e a eutanásia em si? Não sou nem contra nem a favor. Ela existe.
As últimas leis – de 9 de junho de 1999, que visam garantir o direito ao acesso a cuidados paliativos; de 4 de março de 2002, relativas aos direitos dos doentes e à qualidade do sistema de saúde; e de 22 de abril de 2005, sobre os direitos dos doentes e a abreviação da vida –  permitiram progressos, mas continuam insuficientes.
É particularmente o caso da última, votada pela Câmara por unanimidade depois de ser reduzida por emendas restritivas a um mínimo denominador comum. A mudança anunciada por nossos novos governantes deve melhorar uma situação que interessa a toda a população: nosso fim de vida. As raízes de minha reflexão se escoram nos três pilares da divisa republicana: liberdade, igualdade e fraternidade.
liberdade é uma propriedade individual, na vida e na morte. O suicídio não é mais condenado na França, mas já foi e continua sendo em outros países, sendo proibido por certas religiões. Por que a eutanásia continua a ser ilegal em nosso país?
A linha da fronteira entre o que caracteriza eutanásia passiva e ativa, muitas vezes aplicada para separar o autorizado e o proibido, é difícil. A lei de 2005 permite a suspensão de reanimações em situação de dependência irreversível. Ela autoriza também que se ministrem sedativos segundo o princípio do duplo efeito em tratamentos paliativos (agora é possível aplicar um tratamento que pode abreviar a vida caso essa administração tenha por objetivo primeiro aliviar com a dor).
Sou testemunha de que, mesmo aplicados da maneira mais adequada, esses cuidados paliativos podem continuar insuficientes. Eles não se adaptam a todas as situações clínicas que levam a pedidos de eutanásia ou de suicídio assistido.
De alguns anos para cá, a porcentagem de franceses a favor da legalização dessas práticas vem crescendo a cada pesquisa de opinião feita; agora, é amplamente majoritária. Os lobbies religiosos se baseiam no princípio “não matarás” para se oporem. Esse mandamento, justificado, que protege a vida social, tem por objetivo proibir o assassinato, mas leis estatais e leis divinas não condenam a legítima defesa, as consequências de guerras possivelmente religiosas, ou, em certos países, a pena de morte.
Um dogma não pode passar à frente da liberdade de uma escolha pessoal, contanto que esta seja ou possa ter sido expressa de maneira pensada. Ninguém deveria se permitir julgar o outro em sua escolha de abreviar sua vida caso esta respeite a lei coletiva. Em nosso país, a lei laica separa os poderes das Igrejas e do Estado.
A igualdade pertence aos direitos do homem e do cidadão desde a Revolução Francesa. Esses direitos à igualdade atualmente não são respeitados na França para aquilo que diz respeito ao final de nossas vidas. Sem falar das desigualdades de equipamentos em matéria de cuidados paliativos dependendo das regiões, é injusto que somente pacientes ricos possam atualmente ir até a Suíça para ter um suicídio assistido em estabelecimentos particulares deLausanne ou Zurique. O custo era de cerca de 6 mil euros em 2008!
Diante da morte, na prática não somos iguais. Alguns sofrerão, outros não. Alguns entendem que o sofrimento é redenção; outros não querem passar por ele. Alguns afirmam que toda vida humana continua digna de respeito incondicional, qualquer que seja o grau de sua alteração física ou mental; outros não aceitam esses declínios. Essa recusa talvez possa ser expressa de maneira definitiva em situação patológica irreversível e insuportável, ou de forma antecipada pela redação de uma preciosa declaração escrita antes do surgimento do problema letal. Todos têm razão, uma vez que é sua escolha consciente. Essa escolha é individual e não deve ser imposta aos outros, e cada um deve permanecer livre para agir de acordo com sua própria vontade e consciência. Deve ser aplicada respeitando um direito igualitário.
“Amai-vos uns aos outros!” Vamos praticar esse esplêndido espírito de fraternidade até o final da vida. Por que é criminoso dar alívio ao próximo? Claro, os centros de cuidados paliativos cumprem suas tarefas com competência, mas continuam insuficientes tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. Os médicos ocupam uma posição-chave no debate sobre o acompanhamento do doente em estado terminal, mas, como sua formação primeira visa a busca da cura, são muitos os que se opõem à prática da eutanásia.
No entanto, na Bélgica e na Holanda há muitos médicos que assumem essa responsabilidade – mais de mil casos por ano na Holanda, agora; logo, não se trata de uma situação excepcional, como afirmam certos políticos que querem evitar essa questão! Nesses países, os médicos que realizam essas mortes assistidas as sentem como positivas, devido ao habitual reconhecimento manifestado pelos pacientes e suas famílias.
Na França, assim como para o aborto, é compreensível que certos médicos rejeitem a prática desses atos por razões morais.
Mas não sejamos daqueles que sabem sem ter praticado, daqueles que fogem da realidade da morte, que não entram no quarto dos agonizantes, que decidem a partir de seus escritórios sem jamais terem visitado um serviço de reanimação ou um hospital com doentes crônicos! Sejamos daqueles que respeitam o ser vivo em sua dignidade pela escolha de sua escolha quando seu fim não tem fim! Se essa escolha é a morte assistida, a comissão criada por nosso presidente deve emitir uma nova lei que permita a médicos designados e supervisionados efetuarem em paz um fraternal gesto de amor.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A submissão da mulher está no olhar masculino


Artigo de Pierre Bourdieu

Inédito na Itália, o texto de Pierre Bourdieu do qual publicamos um trecho é um dos últimos escritos pelo sociólogo e filósofo francês, falecido há dez anos. Uma reflexão sobre a percepção feminina do próprio corpo como "corpo para o outro" em uma sociedade totalmente mercantilizada.

Ele foi publicado na última edição da revista Lettera Internazionale, totalmente dedicada à questão feminina. O texto foi publicado originalmente na revista Cahiers du Genre, 2002/2. O trecho foi republicado no jornal La Repubblica, 24-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Há muitos trabalhos de antropologia comparada sobre a região mediterrânea que tendem a mostrar que a Cabília[região montanhosa do norte da Argélia], por razões históricas, funcionou como um lugar em que se preservou intacta uma espécie de inconsciência mediterrânea, aquele inconsciente rastreável tanto nos textos da Grécia antiga quanto nos da Grécia atual ou da Itália do Sul, mas também da Espanha ou, em geral, de todas as costas do Mediterrâneo. A Cabília conservou esse sistema ainda em funcionamento e, consequentemente, coloca diante dos nossos olhos o nosso próprio inconsciente cultural em matéria de masculinidade e de feminilidade. Isso se deve à constância das estruturas simbólicas sobre as quais se baseia a nossa representação da divisão do trabalho entre os sexos.

E se essa constância é atestada, coloca-se a questão das condições sociais que a tornam possível. Em outras palavras, o que deve haver de específico na lógica do simbólico da qual faz parte a representação da oposição masculino-feminino para que, além das mudanças econômicas, além das transformações tecnológicas, se possam captar semelhanças tão profundas entre estados tão diferentes da sociedade?

Se o domínio masculino pode se perpetuar, sem dúvida com alterações, mas menores do que se possa acreditar, apesar das mudanças tecnológicas e econômicas ocorridas, isso talvez tenha a ver com o fato de que a ordem simbólica, ou aquele que eu chamo de mercado dos bens simbólicos, constitui um âmbito relativamente autônomo com relação à ordem econômica e à ordem tecnológica.

Há uma lógica específica da economia dos bens simbólicos distinta da econômica, e essa lógica também pode funcionar em parte dentro da ordem mais estritamente econômica (e aqui eu poderia recordar um belo trabalho sobre as acompanhantes pagas que, no Japão, acompanham os homens às custas das grandes sociedades, trabalho que mostra como as burocracias modernas utilizam as estruturas mais tradicionais da divisão do trabalho entre os sexos para cumprir funções econômicas ultrarracionais).

A lógica específica da economia simbólica se perpetua, de fato, até mesmo nos âmbitos mais estreitamente econômicos, como o das empresas, e é observada principalmente em determinados universos, por exemplo o da produção cultural (não é por acaso que se trate de um dos campos mais feminilizados), da literatura, da arte, da televisão, da rádio ou o religioso (onde se encontram, e mais uma vez não por acaso, muitas formas de voluntariado feminino), e, finalmente, na ordem doméstica.

Também se deveria mostrar, mas isso também requer muito tempo e espaço, a lógica específica dessa economia e aquilo que faz com que ela se perpetue também a despeito de todas as necessidades econômicas nas sociedades mais permeadas pela lógica capitalista.

Mas, acima de tudo, é necessário mostrar que, na base da situação dominada da mulher e da sua perpetuação para além das diferenças temporais e espaciais, está o fato de que. nessa economia, a mulher é mais objeto do que sujeito. Devem ser lembradas, nesse ponto, as famosas análises de Lévi-Strauss sobre a troca de mulheres, reinterpretando-as de modo a poder nelas introduzir a dimensão política (penso no domínio que pressupõe a troca e que se realiza e se reproduz através dela). 

Vou me deter por um instante sobre o papel passivo atribuído à mulher e que me parece se encontrar, ainda hoje, como fundamento da relação que as mulheres têm com o próprio corpo, uma relação que tem a ver com o fato de que o seu ser social é um ser-percebido, um “percipi”, um ser para o olhar e, se assim se pode dizer, um ser através do olhar, suscetível de ser utilizado, nesse título, como um capital simbólico.

A alienação simbólica à qual condenadas, visto que são destinadas a ser percebidas e a se perceber através das categorias dominantes, isto é, masculinas, se retraduz na própria experiência que as mulheres fazem do próprio corpo e do olhar dos outros que foi bem evidenciado e analisado por uma fenomenóloga norte-americana da qual, infelizmente, não terei o tempo para resumir as análises. 

Pelo fato de eu temer muito ser mal entendido, vou tentar me explicar com um exemplo, remetendo-me a um belo artigo sobre as mulheres e o esporte. O artigo mostra que a prática intensiva de uma certa disciplina esportiva determina nas mulheres uma transformação da relação com o próprio corpo e lhes permite aceder a uma visão dele que se poderia definir como masculina; permitir-lhes, enfim, ter um corpo para si, em vez de serem um corpo para os outros, dá-lhes um corpo que é, em si mesmo, o próprio objetivo. O que, além disso, deixa emergir claramente o fato de que o corpo imposto em tempos normais é, portanto, um corpo-para-o-outro, um corpo habitado pelo olhar dos outros, um ser percebido.

A alienação ligada ao fato de ter um corpo visível e de se encontrar, portanto, sempre sob o olhar dos outros apresenta diversos graus: é ainda mais poderoso quanto mais se desce na hierarquia social, porque se tem mais oportunidades de ter um corpo pouco conforme aos cânones dominantes. E encontra o seu próprio limite justamente nas mulheres às quais a experiência do corpo como corpo para o outro se impõe com uma força particular por causa do papel que lhes é prescrito no mercado dos bens simbólicos, onde elas são objeto, ser percebido, capital simbólico, que devem gerir – e do qual são, de alguma maneira, as contabilistas – perante os homens. 

A transformação da relação com o corpo através do esporte é acompanhada por uma transformação profunda das relações com os homens. As mulheres, nesse caso, deixam de parecer femininas, isto é, disponíveis, ao menos simbolicamente. A sua relação com o próprio corpo mudou a tal ponto que já não respondem mais às expectativas socialmente constituídas sobre o que é uma mulher. Sem dúvida, se poderiam fazer considerações semelhantes no que se refere à mudança da relação com o corpo relacionada às profissões intelectuais.

Uma última palavra para expressar uma saudade: eu recordei a existência de uma economia de bens simbólicos relativamente autônoma com relação às bases econômicas da sociedade – uma autonomia relativa, evidentemente –, mas eu não analisei sobre que se fundamenta tal autonomia e o modo pelo qual ela se radica na lógica da reprodução biológica e sobretudo social. Eu não mostrei como as novas tecnologias da reprodução biológica, por exemplo, podem contribuir para transformar a dicotomia produção/reprodução que é o fundamento da economia dos bens simbólicos. Ao longo desse caminho, eu poderia abordar o problema do nexo entre relações sociais entre os sexos e relações sociais entre as classes. Mas não posso fazer nada mais do que enunciar os títulos dos temas que eu gostaria de tratar e me deter.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

flecheira.libertária.258


servidão pirata 
Criado em 2007, o Partido Pirata do Brasil (PP-Br) apresentou na última semana os documentos necessários para tornar-se oficialmente mais uma organização envolvida no pleito eleitoral. Mesmo sob a argumentação de atrair pessoas “desiludidas com a política tradicional”, os militantes do PP-Br pretendem submeter suas reivindicações às exigências do Estado tais como a formação de uma direção nacional e o registro para controle no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sedentos por legitimação política e com uma pauta que agrega desde a revisão de leis sobre os direitos autorais até a utilização de plataformas abertas e software livre, os integrantes do PP-Br não passam de cachorros servis e covardes, expressão utilizada por um pirata do século XVII, em relação aos homens que submeteram suas vidas à segurança e às leis do governo. Não há conversa com tais cães chorões, afirmou o pirata. Cães chorões que deixam os superiores chutá-los pelo convés ao bel-prazer.
eu só quero é ser feliz? 
Após a instalação da UPP, a Rocinha tornou-se alvo  de investimentos ambientais lucrativos. Sobre a parte da favela conhecida antes como “cobras e lagartos”, área que, segundo estatísticas do governo, registrava o maior índice  de incidência de tuberculose no Brasil, a prefeitura da cidade instalou o chamado “Parque da Rocinha”. Para além de ecotrilha, paredão de escalada, arvorismo, o parque conta com áreas destinadas exclusivamente a abrigar churrasqueiras e redes para descanso, sugestões dos próprios moradores. “Nem todo mundo tem condição de sair da favela para curtir”, argumenta satisfeito e sorridente um pedreiro que sobrevive na maior favela do Rio de Janeiro. A presença permanente da polícia articulada aos investimentos ambientais mantém, entre as vielas e  barracos, existências resignadas e conformadas com esta prisão.
carrascos 
Uma criança de pouco mais de três anos encontrava-se sob os cuidados de seu padrasto, Autoridade responsável, Autoridade em exercício. A Autoridade, em seu exercício, espanca e tortura a criança até a morte. No hospital a história contada não convence. O padrasto agora é suspeito. Nas mãos da Autoridade do delegado, fechado em uma delegacia cercada de Autoridades policiais, confessa. Estranha confissão. O delegado é a Autoridade em exercício. O suspeito, réu, nas mãos das autoridades, agora ele  pequeno diante das Autoridades e da população enfurecida que quer a sua pele. Na delegacia ninguém viu a confissão, mas ali dentro sabe-se que a tortura persiste em nome da verdade, da justiça e da Autoridade. A criança foi torturada até a morte. A criança morreu. A tortura continua. Para o torturador a tortura tem sua razão de ser. Tortura é tortura, é caso de Autoridade. O carrasco da criança não difere em nada do seu próprio carrasco. Um torturador é sempre um torturador. A criança é sempre pequena e frágil. 
sossego lucrativo 
Uma série de dicas, reportagens, notícias, alertam para a importância dos momentos de paz e descanso no período de trabalho. Os especialistas afirmam que esses momentos são cruciais para o aparecimento das boas ideias e de soluções criativas. Estimulam, ainda, que cada funcionário tenha seu tempo para refletir, relaxar  e abrir seus horizontes. As empresas que adotam essa postura em relação aos seus funcionários são consideradas mais humanas e mais empreendedoras. Flexíveis, reconhecem que o trabalho intelectual demanda uma conduta não mecanicista. Vampiros parasitas, estes empreendedores aprenderam a sugar mais que o sangue de apaziguados e satisfeitos empregados. Frouxos, estes aplicados empregados doam, mais que sua força de trabalho ao humanitário chefe, suas inteligências. Isso é política na sociedade de controle.
sossego universitário 
Congressos internacionais: palavra-chave para o  lattes, para o turismo acadêmico e negócios universitários, compondo arranjos entre institutos, universidades, agências financiadoras e Estados. Era dos negócios globalizados, uma nova forma do  toma lá, dá cá, na qual a erradicação da miséria pelo desenvolvimento sustentável se torna o elemento para a fusão entre os pesquisadores e os políticos, produzindo soluções para  police makers. Certificados e conectados uma grande parte volta para casa até a próxima estadia, na qual falarão sobre as impotências dos Estados, ética e o seu quinhão. Dormem o sono dos justos!

Criação


por José Saramago
 20 de Abril
 Esta manhã, quando acordei, veio-me a ideia do Ensaio sobre a cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro - excepto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance, no sentido mais ou menos consensual da palavra e do objecto. Por exemplo: como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo de que vou necessitar? Quantos serão precisos para que se encontrem substituídas, por outras, todas as pessoas vivas num momento dado? Um século, digamos que um pouco mais, creio que será bastante. Mas, neste meu Ensaio, todos os videntes terão que ser substituídos, por cegos, e estes, todos, outra vez, por videntes... As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão e morreram cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão permanecer até a morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar, adaptando a esta época, o modelo “clássico” do “conto filosófico”, inserindo nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente para uma duração maior da história.

21 de Junho
Dificuldade resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio sobre a Cegueira tenham que ir nascendo cegas, uma após a outra, até substituírem, por completo, as que tem visão: podem cegar em qualquer momento. Desta maneira ficará encurtado o tempo narrativo.

2 de Agosto
Escrevi as primeiras linhas do Ensaio sobre a Cegueira.

15 de Agosto
Continuo a trabalhar no Ensaio sobre a Cegueira. Após um princípio hesitante, sem norte nem estilo, à procura das palavras como o pior dos aprendizes, as coisas parecem querer melhorar. Como aconteceu em todos os meus romances anteriores, de cada vez que pego neste, tenho que voltar a primeira linha, releio e emendo, emendo e releio, com uma exigência intratável que se modera na continuação. É por isso que o primeiro capítulo de um livro é sempre aquele que me ocupa mais tempo.  Enquanto essas poucas páginas iniciais não me satisfizerem, sou incapaz de continuar. Tomo como um bom sinal a repetição desta cisma. Ah, se as pessoas soubessem o trabalho que me deu a página de abertura do Ricardo Reis, o primeiro parágrafo do Memorial, quanto eu tive que penar por causa do que veio a tornar-se o segundo capítulo da História do Cerco, antes de perceber que teria de principiar com um diálogo entre Raimundo Silva e o historiador... E um outro segundo capítulo, o do Evangelho, aquela noite que ainda tinha muito para durar, aquela candeia, aquela frincha da porta...

17 de Agosto
Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor nunca saiba de quem se trata, que quando alguém lhe aparece na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos.

20 de Agosto
Uma hipótese: talvez essa necessidade imperiosa de organizar uma lembrança coerente do meu passado, dessa sempre, feliz ou infeliz, única infância, quando a esperança ainda estiva intacta, ou, ao menos, a possibilidade de vir a tê-la, se tenha constituído, sem que eu o pensasse, como uma resposta vital para contrapor ao mundo medonho que estou a caminho de imaginar e descrever no Ensaio sobre a Cegueira.

30 de Agosto
Terminado o primeiro capítulo do Ensaio. Um mês para escrever quinze páginas... Mas Pilar, leitora emérita, diz que não me saí mal da empresa.

 17 de Dezembro
Voltei - timidamente - ao Ensaio. Modifiquei algumas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a importância que pode ter usar uma palavra em vez da outra, aqui, além, um verbo mais certeiro, um adjectivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.

15 de Fevereiro de 1994
Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito de destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa  pontuação, fala como se estivesse a compor uma música e usa os mesmo elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estrutura barroca, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certas músicas contemporâneas.

27 de Fevereiro
Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela ao traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, mas o romancista.

8 de Julho
O Ensaio saiu do atoleiro em que tinha caído há já não sei quantos meses. Pode vir a cair noutro, mas deste safou-se. Há uns poucos dias eu tinha decidido deixar de lado dois capítulos que se haviam convertidos numa daquelas armadilhas onde se pode entrar com toda facilidade, mas donde não se sai. O novo parecia-me animador, abria perspectivas. Em todo o caso ainda não sentia completamente seguro. Foi então que andando por aí, hoje, ao vento, me sucedeu algo muito semelhante ao episódio de Bolonha, quando, meses sem saber o que poderia fazer com a ideia de Evangelho, nascida em Sevilha, toda a sequência do livro - enfim, quase toda - se me apresentou com uma claridade fulgurante. Estava na pinacoteca, vira a pintura da primeira sala à esquerda da entrada, e foi entrar na segunda (ou teria sido na terceira?) que os pilares fundamentais da narrativa se me definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que ainda não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. Não era nada de complicado, basta ler o livro. Neste caso, o do Ensaio - a “revelação” não foi tão completa, mas sei que vai determinar um desenvolvimento coerente da história, antes atascada e sem esperanças. Todos os motivos que vinha dando, a mim mesmo e aos outros, para justificar a inacção em que me achava - viagens, correspondências, visitas -, podiam, afinal das contas, ter sido resumido desta maneira: o caminho por onde estava a querer a ir não me levaria a lado nenhum. A partir de agora, o livro, se falhar, será por inabilidade minha. Antes, nem um génio seria capaz de salvá-lo.

22 de Março
Só escrevo sobre aquilo que não sabia antes de o ter escrito. Deve ser por isso que meus livros não se repetem. Vou-me repetindo eu neles, porque, ainda assim, do pouco que continuo a saber, o que melhor conheço é este que sou.

18 de Junho
Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei por fora, amigos e conhecido não pararam de perguntar pelos meus cegos. Chegou a altura de eles responderem por si mesmos.

9 de Agosto
Terminei ontem o Ensaio sobre a Cegueira, quase quatro anos após o surgimento da ideia, sucesso ocorrido no dia 6 de setembro de 1991, quando, sozinho, almoçava no restaurante Varina de Madregoa, do meu amigo António Oliveira(apontei a data e a circunstância num dos meus cadernos de capa preta). Exactamente três anos e três meses passados, em 6 de dezembro de 1994, anotava no mesmo caderno que, decorrido todo esse tempo, nem cinquenta páginas tinha ainda conseguido escrever: viajara, fui operado a uma catarata, mudei-me para Lanzarote... E lutei, lutei muito, só eu sei o quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda hora se me iam atravessando na história e me paralisavam.  Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, não terei que sofrer mais. Seria agora a altura de fazer a pergunta que nenhum escritor gosta: “Que ficou dessa primeira ideia?” (Não gostamos porque preferiríamos que o leitor imaginasse que o livra nos saiu da cabeça armado e equipado.) Da ideia inicial direi que ficou tudo e quase nada: é verdade que escrevi o que queria, mas não o escrevi como tinha pensado. Basta comparar a inspiração de há quatro anos com aquilo que o Ensaio veio a ser. Eis o que então anotei, com nenhumas preocupações de estilo: “Começam a nascer crianças cegas. Ao princípio sem alarme: lamentações, educação inicial, asilos. À medida que se compreende que não vão mais nascer  mais crianças de visão normal, o pânico instala-se. Há quem mate os filhos à nascença. Com o passar do tempo vão morrendo os ‘visuais’ e a proporção ‘favorece’ os cegos. Morrendo todos que ainda tinham vista, a população da terra é composta de cegos apenas. Um dia nasce uma criança com a vista normal: reacção de estranheza, algumas vezes violenta, morrem algumas dessas crianças. O processo inverte-se até que - talvez - volte ao princípio uma vez mais.” Compare-se... Quanto à palavra inspiração que aí ficou atrás, reconheço que a empreguei em sentido estrictamente pneumático e fisiológico: a ideia andava a flutuar por ali, no oloroso ambiente da Varina Mandragoa, eu inspirei-a, e foi assim que o livro nasceu... Depois pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como tinha de ser, obra de transpiração..


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A PAZ COMO ESTADO E COMO PROCESSO (Hierarquização e coordenação das ações)


                                                                     Por Gregorio Baremblitt
 Introdução e Advertências           
             Como já reiteradamente observado, a classificação das modalidades de violência que vigem no Brasil (e no mundo) é de muito difícil elaboração. Uma definição muito precária consiste em qualificar propriamente de violência todo ato corpóreo ou incorpóreo que não esteja a serviço - ou atue contra - a sobrevivência e a melhoria da qualidade de vida da espécie humana como um todo. Por outro lado, chamamos de violência ao conjunto aberto de atos corporais ou incorporais extremados, cujos fins e meios estão destinados a contrariar o objetivo mais próximo que acabamos de definir.
         Em primeiro lugar, é preciso considerar as formas de violência já caracterizadas pela Lei e as que não o estão, apenas como introdução ao tema, e que, entre as que a Lei não contempla estão a natureza e o conteúdo da Lei mesma, que, sendo um produto histórico, envolve violências constitutivas de acordo com a vaga definição acima insinuada. Além dessas violências essenciais, o problema da Lei é a insuficiência e a parcialidade vergonhosa com que é aplicada.
         Em segundo lugar, e com similar imprecisão, talvez se possa falar de micro e macro violências, medindo-as em tempo e espaço convencional, sendo que, desde logo, essa divisão não é sinônima de maior ou menor gravidade dos atos praticados ou omitidos. A possibilidade de tratar a questão em termos de violência molar e molecular (e isto se repetirá com alguma freqüência neste texto) emprega uma terminologia esquizoanalítica cujo esclarecimento excede os limites deste escrito conjuntural; da mesma, só podemos dizer que, de modo geral, a violência molecular está imperceptível e predominantemente, ainda que não exclusivamente, a serviço da "Biolência".
         Em terceiro momento, e apenas como reflexão acerca de um aspecto da discutida “violência simbólica”, permitimo-nos aludir a alguns autores que afirmam que a violência no Brasil não pode ser qualificada de Guerra Civil porque um dos lados em conflito não quer implantar outra ordem ou projeto social, apenas transgredir o vigente. Esta tese é bastante questionável porque:
a) Não existem apenas dois lados, mas muitos deles, em luta.
b) Se, como parece provável, esses autores se referem a um dos lados como o conjunto artificialmente reunido do “crime organizado”, o fato duvidoso de que essa facção “não quer mudar a ordem constituída” se deve a que a natureza e a efetivação do atualmente operante é por ele considerada favorável. Não obstante, caso se tome o conjunto amplo e difuso da violência em curso como se fosse “um lado” e se lhe atribua uma intenção, o mesmo tem, sim, uma proposta de organização social; tal projeto é o de levar ao extremo compatível com uma democracia formal, nominal e indireta a impunidade relativa que hoje o protege e propicia suas ações.
c) Como conclusão, cremos haver, sim, no Brasil, um estado de Guerra Civil não declarada, não totalizável, fragmentária, dispersa, com episódios isolados ocasionais, outros notórios e organizados, porém com persistência e magnitude registradas e não registradas, assim como enquadradas e não enquadradas juridicamente, que nos permitem caracterizá-las como uma guerra interna.
d) Uma das peculiaridades que favorecem o não reconhecimento da citada condição é a infiltração mútua entre “as partes” (atravessamento) que, dito de uma maneira simplista, consiste na cumplicidade passiva ou ativa das instituições, organizações, equipamentos, agentes e práticas sociais “legais” ou “morais” (especialmente as que têm o direito ao uso monopolista da violência) com os grupamentos e ações mais ostensivas e ilegalmente violentas.
e) A questão sobre se essa contenda não ser uma Guerra Civil por ausência de conteúdo político depende, obviamente, do que se entende por política e de se acreditar ou não que a guerra “é a continuação da política por outros meios”.
         A guerra, seja qual for a modalidade adotada, é um ato notadamente político e a política, especialmente nos períodos de totalitarismo ou ditadura (e também nos de pseudodemocracia) é um estado de guerra dissimulado.  Guerra e política são imanentes entre si. Paz e política também. Suas simultâneas e sucessivas modalidades e a distribuição e dominância das mesmas em um processo incessante cujo direcionamento evolutivo e a chegada a um estado de equilíbrio estável e desejável não estão nunca garantidos.
         A violência, delituosa ou não, permeia todas os setores da sociedade brasileira, sendo a mais preocupante para o capital, o governo, a imprensa, as igrejas e os setores “mais favorecidos” da Sociedade Civil aquela que ocorre nas favelas, cidades pobres do interior e nas lutas pela reforma agrária e contra ela.

QUANDO...


  Quando o Capital, cavalgando na Globalização neoliberal, aspira a que o dinheiro produza dinheiro com o menor numero de mediações produtivas possível...
Quando o Estado, imperialista ou submetido, definitivamente a serviço da  dívida com o Capital, aspira quase exclusivamente a obter votos, poder, tributos ou dinheiro “subtraído”.
 Quando as Igrejas aspiram a obter fieis para angariar fundos (como o Capital) e a expandir seu Poder moral repressivo (como o Estado).
Quando as Ciências, a tecnologia e a industria, geram mais armas,  mercadorias e depredação da natureza que produtos e serviços para o povo (como o Capital e o Estado)
 Quando a Educação e o Saber são possuídos, planejados, recebidos e utilizados por mandarins acadêmicos vendedores e  por alunos compradores de diplomas  (como o Capital e o Estado).
Quando a Cultura e a Arte se confundem com o marketing e com o espetáculo oco e a promiscuidade grosseira (como o Capital e o Estado, a Igreja e a Escola)...
Quer dizer que tem chegado, desde sempre e definitivamente, o momento:
Da Indignação.
Da Resistência e da Luta.
Da Invenção.
Da Nova Terra.
GREGORIO BAREMBLITT

Introdução à Esquizoanálise

 Introdução à Esquizoanálise
Gregório Baremblitt

Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p

2.edição 
Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 

domingo, 22 de julho de 2012

o acolhimento e a placa


por Luis Tavares
Caminhando distraído pelos corredores do hospital, deparei com a plaquinha sobre a sala e nela a palavra: Acolhimento.
Interessante, pensei.
Olhei por alto e identifiquei elementos convidativos: uma decoração leve, gravuras, um clima ameno...
Que bom, pensei.
Há 30 anos atrás eu não poderia supor que nesse terceiro milênio da era cristã o acolhimento fosse valorizado, tornando-se um setor de uma instituição hospitalar.
Mas se tornou.
Afastei-me da sala feliz com essa constatação e fui para o repouso dos médicos.
E comecei a pensar.
O acolhimento foi parar na placa.
Palavras geralmente quando viram placas precisam ser reinventadas.
Foi assim com a palavra hospital, que quando livre, tinha a ver com hospitalidade. Virou placa, precisou da ajuda da palavra acolhimento.
Mas hospitalidade já traz em seu seio o significado do acolhimento. O problema é virar placa.
Acolhimento virou placa.
Revejo a palavra acolhimento nos seus dias de liberdade.
Não morava em placas nem em manuais nem era objeto de cursos de capacitação.
Acolhimento era livre e universal.
Nasceu no coração do homem como filha tímida do amor.
Irmã da simpatia e da boa vontade, cresceu e se espalhou por todos os labirintos da vida na terra.
Acolher tornou-se um diferencial na medida em que a sociedade foi se tornando industrial e incompassiva.
Aqueles que não se adaptavam ou se cansavam da modernidade e sem conforto com impessoalidade buscavam no acolhimento e proteção.
Então acolhimento no inicio era assim: sem regras nem limites. Entrega sem obstáculos. Criava vínculos sem culpas. Amenizava dores sem qualquer estratégia estabelecida além daquela ligada ao querer bem.
Acolhimento livre era assim: sorriso farto, largo, pão sobre a mesa, divisão de cobertor ainda que curto e da agua restante ainda que pouca.
Passaram se séculos até que aquela outra palavra, hospital, corresse em seu socorro por sentir-se desgastada e sem forças.
Foi quando trouxeram acolhimento para a placa.
E palavras quando vem para placas, vem acompanhadas de manuais de utilização.
E o acolhimento não fugiu à regra.
Assim que foi encarcerada na placa para ser distribuída por ai, estabeleceram-se parâmetros muito estranhos para aquela que vivia livre e no coração dos homens de boa vontade: quem acolheria, como acolheria, com que regras, depois de que cursos, usando que evidencias, objetivando que resultados?
Acolhimento foi se tornando uma palavra achatada e tornando-se propriedade de capacitados.
Deixou de rir alto e abraçar forte. Parou de andar descalça e de servir resto de café frio. Parou de contar piadas. Saias curtas? Nem pensar. Da placa em diante, tornou-se didática e normatizada, bem comportada e politicamente correta, adequada e universalmente adaptável ao ambiente industrial.
O homem moderno, acostumado a suas prisões sociais e comportamentais, habituou-se a aprisionar tudo à sua volta. Aprisionou pensamentos, ideias, pessoas, convenções, normas, comportamentos, nomes e palavras.
A palavra aprisionada perde sabor e cor, perde textura e força, mas como um suco engarrafado ganha possibilidade de ser distribuída em massa com alcance maior que o suco da fruta colhida no pé.
Vida que segue.
A palavra costurada na placa já não me causa estranheza ou admiração.
Percebo-a tão morna e triste quanto necessária.
Quem sabe um dia, quando a vida for alforriada pela verdade que liberta, as palavras escapem das placas e tornem a viver livres e respiradouras de vida no coração do homem.
Que assim seja.