quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Em dois filmes, a cartografia dos afetos

Cena de “Ventos de Agosto”
Em “Os Amigos”, personagens vivem saga de um dia, numa S.Paulo congestionada e caótica. “Ventos de Agosto” surpreende por imagens fortes e originais
Por José Geraldo Couto, do Blog do IMS
A expressão “cinema dos afetos” se banalizou nos últimos tempos, mas em poucos casos ela é tão apropriada quanto para qualificar a filmografia de Lina Chamie. Seu novo filme, Os amigos, é a prova cabal disso.
Quem conhece os longas-metragens de ficção anteriores da diretora (Tônica dominanteA via láctea) sabe que ela se empenha numa espécie de cartografia afetiva da cidade de São Paulo, por onde se deslocam personagens movidos pela carência e pela potência do afeto.
TEXTO-MEIO
Em Os amigos a ação se concentra num único dia, balizado por dois acontecimentos importantes na vida do arquiteto Theo (Marco Ricca): o enterro de um velho amigo de infância e o aniversário do filho de uma amiga (Dira Paes). Entre um e outro, Theo se locomove por uma cidade congestionada e caótica, em que todas as estações do ano alternam-se no mesmo dia. Essa jornada é entremeada por flashbacks da infância e cenas de uma adaptação teatral da Odisseia representada por um grupo de crianças.
Saga urbana
Desnecessário dizer que a própria Odisseia (o tema do acidentado e perigoso retorno ao lar) e sua versão moderna, o Ulisses de Joyce (“a volta ao dia em oitenta mundos”, para dizer como Cortázar), são a referência e a bússola dessa modesta saga urbana.
Lina Chamie e Marco Ricca na filmagem de “Os amigos”
A habilidade de Lina Chamie consiste em manter coeso e envolvente seu conjunto de focos narrativos (que inclui o pequeno drama da empregada doméstica de Theo, numa viagem de ônibus pela cidade alagada), sem perder o ritmo e a vibração poética.Na dialética entre concentração e dispersão que esse tipo de construção narrativa pressupõe, talvez haja uns poucos momentos dispensáveis e frouxos (como os diálogos com um jovem casal de clientes, no escritório de Theo, ou a discussão deste com um engenheiro sobre a reforma de uma escola), mas em geral o olhar afetuoso e poético da diretora mantém o edifício em pé. Tudo conflui, como se verá, para a sutil e permeável fronteira entre a amizade e o amor (no sentido erótico e carnal da palavra).
Faltou dizer que a música, como sempre no cinema de Lina Chamie, cumpre um papel fundamental nessa ponte entre o cotidiano e o mito atemporal construída pelo filme. Por outro lado, dizer que Marco Ricca e Dira Paes são atores formidáveis é chover no molhado. O que chama a atenção aqui é o visível entrosamento, o prazer de contracenar que traduz lindamente a ternura entre os personagens.
Ventos de agosto
Uma abordagem bem distinta, mas igualmente poderosa, de ambivalentes relações humanas e de interação entre personagens e seu meio encontra-se em Ventos de agosto, primeiro longa de ficção do pernambucano Gabriel Mascaro, conhecido por documentários como Avenida Brasília Formosa Doméstica.
Aqui, acompanha-se de modo distendido – e aparentemente descosturado – o dia a dia de uns poucos personagens num vilarejo no litoral de Alagoas. Jeison (Geová Manoel dos Santos) trabalha catando cocos e, nas horas vagas, pratica uma pesca submarina artesanal, em busca de polvos e lagostas. Sua namorada, Shirley (Dandara de Morais), que já morou na cidade grande, acompanha-o no barco, dirige o caminhãozinho do coqueiral e cuida da avó idosa.
Tudo se passa como que num tempo fora do tempo, em que signos da modernidade (celular, iPod, música pop) convivem com ritmos e costumes arcaicos. Esse contraste ganha realce quando entra em cena um pesquisador (o próprio Mascaro) empenhado em gravar os sons do local, em especial os turbulentos ventos de agosto.
Não ficamos sabendo quem é esse forasteiro, nem o motivo de sua pesquisa. Tampouco sabemos se é dele o cadáver que aparece na praia. O que importa é que o destino desse corpo assume um caráter quase surreal, de humor negro e desconcertante, banhando os personagens numa nova luz.Narrativa aberta
Ao contrário de Os amigos, que acaba por amarrar todos os seus pontos numa narrativa circular, Ventos de agosto permanece aberto, num sentido bastante radical. Parece que o filme poderia continuar indefinidamente, revelando a cada sequência novos aspectos e belezas daquele ambiente físico e humano.
Dito assim, pode-se dar a falsa impressão de monotonia, mas a todo momento uma imagem forte, original e bela – como os relâmpagos que iluminam o mar revolto e os estragos do vento numa noite de tempestade, ou os corpos nus dos jovens amantes filmados do alto sobre os cocos do caminhão – impacta a retina e incendeia a imaginação do espectador. É o que se costuma chamar de epifania.

“A fábrica da loucura e da depressão não acabou”

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Paulo Amarante, precursor do movimento antimanicomial no Brasil, provoca: só mudança cultural profunda pode salvar a reforma psiquiátrica — e o próprio SUS
Entrevista a Bruno Dominguez*, na Revista Rádis
Desde o início da década de 1970, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante, acompanha de perto as mudanças no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Mais do que isso, participa ativamente dessas mudanças, como um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a instituições, como ele mesmo afirma, Paulo orientou-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. “David Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta entrevista à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da reforma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. E defende uma reforma da cultura. “É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro”.
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Amarante: “SUS perdeu espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório. Queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços”.
Como surgiu seu interesse pela psiquiatria?
Começou cedo, durante a faculdade [de Medicina], porque meu irmão já era psiquiatra. Meu pai brincava que a Reforma Psiquiátrica era uma briga minha com meu irmão, já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual sou um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma aversão muito grande às instituições. Fui do diretório acadêmico, do movimento estudantil secundarista, fui expulso do colégio… Aliás, tenho uma história longa de expulsões; na escola, por causa do movimento estudantil e porque escrevia um jornalzinho com questionamentos, denúncias de situações do colégio, em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil para mim ser enquadrado.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Botelho, onde travou seu primeiro contato com a Psiquiatria?
Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto grande. Na época havia 800 internos, em uma instituição que talvez não pudesse acolher adequadamente nem a metade disso. Muito mau cheiro, ausência de condições mínimas de habitação, descaso, boa parte dos pacientes nus – isso era comum em hospitais e um dos argumentos era que os pacientes não gostavam de usar roupa, uma verdade, depois de tantos anos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega, João Batista Magro, que também éramos músicos, começamos a reunir os internos para ouvir música, quando ainda não se falava em musicoterapia. Então, fui chamado por um diretor, que disse não ser digno para um médico tocar violão em uma instituição, que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi que falta de seriedade era aquilo que acontecia no hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas, mal cuidadas.
A atividade com música foi intuitiva ou já estavam influenciados por autores?
Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido, mas dentro da faculdade certamente não – não se tocava e ainda não se toca praticamente no nome desses autores. Quando apresentei o trabalho de conclusão da minha especialização em 1978, no Rio, fui advertido por estar usando autores contrários à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas. Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa de ser supostamente homossexual. Como não havia ninguém para dar lhe alta e, depois, sob o argumento de que não poderia ser cidadão responsável, ficou décadas internado. Também fiz um filme sobre ele, um dos primeiros sobre loucura. O contato com os autores aconteceu quando vim para o Rio, na Uerj, e trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde nos reuníamos em grupos de estudos.merdicalizacao 2
Veio para o Rio imaginando que aqui seria diferente?
No último ano da faculdade, em 1976, vim fazer o internato no Rio com essa expectativa. O primeiro contato com o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ] não foi ruim. Era uma clínica universitária, com 30 leitos, 15 femininos e 15 masculinos, aquele padrão de enfermaria, com prédio administrativo no meio – sempre houve nessas instituições a preocupação de que os pacientes não fizessem sexo. Eram pacientes de livro, como a gente chama na Medicina, pacientes clássicos: a paciente com sífilis cerebral, o paciente esquizofrênico paranoico com delírio místico. Moravam no hospital porque eram pacientes de aula: quando tinha aula do tema, eles eram levados para a sala, sem qualquer constrangimento.
Se o paciente melhorasse, atrapalhava…
Se tivesse alta, acabava a aula. Alguns citavam os próprios sintomas, já tinham as aulas decoradas. A professora perguntava: “A senhora ouve vozes?” E a paciente respondia: “Ouço, sim, estou ouvindo a voz da senhora”.
A psiquiatra Nise da Silveira trabalhava no hospital nessa época. Havia afinidade entre vocês?
Ela trabalhava em outra linha. Era psiquiatra, mas odiava psiquiatras, como gostava de dizer. E eu respondia: eu também, para provocá-la. A Nise acreditava que o psiquiatra era irrecuperável, e tínhamos que mostrar que estava errada. Os primeiros questionadores da psiquiatria foram psiquiatras: Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper, Thomas Szasz, Aaron Esterson. No Brasil, também: eu, Pedro Gabriel, Ana Pitta, Jairo Goldberg, todos psiquiatras na fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Era preciso criar uma outra psiquiatria, não uma antipsiquiatria – Basaglia dizia que o termo antipsiquatria podia dar margem a incompreensões. Ele procurava fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. A psiquiatria errou por focar na doença, fato abstrato, que tomou como fato objetivo, concreto, no modelo das ciências naturais. Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito. Nise chegou a buscar pesquisas demonstrando que nossa linha de trabalho estava equivocada. Nós dávamos alta aos pacientes e ela dizia que  eles não tinham preparo para a vida social, que seriam vítima de violência, abuso. A internação representava um certo cuidado, na visão dela. Existem pessoas do campo da reforma psiquiátrica que têm esse pensamento, mas instituição nunca é proteção; favorece mecanismos de violência, controle, perda de autonomia.
O que os levava a defender a internação?
A pesquisa mostrou que, quando aumentávamos as altas, aumentavam também as reinternações, e o dado estava correto. Por isso, tivemos a preocupação de criar uma rede forte de suporte externo, não só de serviço de saúde, mas também familiar. Nise teve papel importante, porque mostrava que outras formas de trabalho eram efetivas. Ela marcou por se recusar a aplicar eletrochoque, por não acreditar que medicação era o grande tratamento. Mas tivemos que tensionar com ela, porque isso tudo poderia ser feito também fora dos hospitais. No final da vida, ela nos apoiou.
Como era a conjuntura nessa época pré-mobilização dos trabalhadores de saúde mental?
De 1976 em diante, começou a haver um movimento de mudança no sindicalismo médico e no conselho de Medicina no Rio. Um exemplo foi a criação do Reme, Renovação Médica, em que médicos questionavam a medicina. Faziam parte nomes importantes, como Carlos Gentile de Mello, que denunciava a mercantilização da saúde, e outros mais jovens, como Sergio Arouca e Reinaldo Guimarães. No mesmo ano, fiquei sabendo que haveria uma reunião para fundar um centro de estudos de saúde, e se criou o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos em Saúde]. De uma vez só, conheci [José Gomes] Temporão, Arouca, Reinaldo [Guimarães], Eleutério  Rodriguez Neto, Eric Jenner, Hésio [Cordeiro]. Sempre gostei de escrever, tinha uma máquina portátil, como se fosse o notebook de hoje, e logo me viram como redator do grupo. Tenho comigo o projeto original do SUS – A questão democrática na área da saúde –, que levamos ao simpósio na Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. E apresentei no mesmo dia o documento Assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado, o primeiro da reforma psiquiátrica brasileira. Dentro do Cebes, surgiu a ideia de se criarem núcleos de saúde do trabalhador, saúde da mulher e saúde mental – fiquei responsável por este último. Era um cenário muito favorável, chegamos a ganhar o Conselho de Medicina por um período.
Como se deu sua demissão da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), junto a dois colegas, episódio que se tornou marco do movimento?
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Em 1978, comecei a trabalhar na Dinsam e notei ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos internos, violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros pacientes). Investigamos e as conclusões deram muito problema. Outra denúncia era da existência de presos políticos em hospitais psiquiátricos, inclusive David Capistrano, pai, um dos fundadores do Partido Comunista – e existem fortes indícios de que era ele mesmo. Havia médicos psiquiatras envolvidos em tortura e desaparecimento de presos políticos – a Colônia Juliano Moreira [no Rio] tinha um pavilhão onde só entravam militares. Fui chamado na sede da Dinsam e demitido, com mais dois colegas. Oito pessoas, entre elas, Pedro Gabriel Delgado e Pedro Silva, organizaram um abaixo-assinado em solidariedade a nós. Depois, mais 263 pessoas foram demitidas. Isso caracterizou um movimento. Conseguimos manter a crise da Dinsam, como chamávamos, na imprensa por mais de seis meses. 
E essa discussão ganhou corpo…
Em 1978, dois eventos importantes aconteceram, um deles, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de outubro, em Camboriú (SC). Era um evento clássico de Psiquiatria. Nós nos reunimos em um grupo e o invadimos. Já havia uma articulação em rede: em Minas Gerais, o João Magro; na Bahia, Naomar de Almeida Filho e Luiz Humberto, que depois foi deputado federal; Ana Pitta, em São Paulo. Um médico conhecido, já idoso, Luiz Cerqueira, que deu nome ao primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no Brasil, levantou questão de ordem para que o congresso reconhecesse a importância do nosso movimento, e esse ficou conhecido como o congresso da abertura. No Rio, houve o 1º Simpósio de Políticas, Grupos e Instituições, organizado por Gregorio Baremblitt e Chaim Samuel Katz, dois psicanalistas que vinham rompendo com a psicanálise, até então restrita aos médicos. Eles trouxeram para a discussão Franco Basaglia, Thomas Szasz, Erving Goffman,  David Cooper, Ronald Laing e Shere Hite, com grande destaque na imprensa.
A comunicação está sempre presente nas suas respostas — cobertura da mídia comercial, denúncias da mídia alternativa, experiência pessoal com comunicação e saúde, a apropriação por grupos de pacientes…
Sempre gostei de escrever. Criei logo um jornalzinho do movimento, com letras recortadas e coladas uma a uma para formar os textos, porque não tinha equipamento. Como eu estava proibido de entrar em qualquer hospital da Dinsam, ia para a porta distribuir o jornal. Buscamos a apropriação dos meios pelos pacientes, como parte do entendimento de que eles são sujeitos, atores políticos. Daí a ideia de experiências como a TV Pinel [no Rio de Janeiro], a rádio e a TV Tan Tan [em Santos]. Muitos profissionais ainda trabalham a partir da concepção de que fazer jornalzinho é terapia, e não é. É intervenção política, de cidadania, são outras formas de mostrar o mundo, de pensar a diversidade. Hoje existem vários jornais impressos, tevês e rádios comunitárias, com nomes muito criativos, como Antena Virada, TV Parabolinoica e Rádio Delírio Coletivo. São iniciativas importantes, que constroem uma outra noção de identidade desses sujeitos.
Quando se deu sua vinda para a Fiocruz?
Fui convidado várias vezes, mas recusava. O Arouca me chamou em 1982, para trabalhar em planejamento, e eu não conseguia me soltar da saúde mental. Trabalhei com o Arouca quando ele assumiu a secretaria de Saúde do estado do Rio [em 1987], com a tarefa de abrir 33 centros de saúde mental. Quando deixou o cargo, ele e Sonia Fleury me convidaram a criar um núcleo de saúde mental na Fiocruz e aceitei. A Sonia tinha acabado de lançar Reforma sanitária: em busca de uma teoria e, em analogia, eu escrevi Reforma psiquiátrica: em busca de uma teoria. Eu falava que não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”. Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém sujeitos. É um desafio dos Caps ainda hoje. Deslocam a tutela para tecnologias menos violentas e invasivas, mas ainda tutelam. Há muita dificuldade em aceitar que as pessoas são diferentes e devem ser diferentes. Minha luta atual é que se pode até suspender a medicação. Isso para médico é um absurdo: eles não acreditam que se possa ser um psicótico sem tomar antipsicótico. É um mito que a indústria farmacêutica criou, que só há um jeito dele se manter vivo, tomando remédio.
O movimento pedia a superação do modelo psiquiátrico. Isso parcialmente se deu na assistência, mas a medicalização continua.menos capsulas
Há uma confusão sobre a superação do modelo assistencial hospitalar asilar manicomial, que está em processo razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização, como as comunidades terapêuticas e as instituições religiosas. O Luiz Cerqueira calculava que o Brasil tinha de 80 mil a 100 mil leitos psiquiátricos no final dos anos 1970. Hoje, são em torno de 30 mil leitos. De fato, reduzimos. Criamos Caps, estamos criando projetos de residências, que já são 2 mil, projetos de economia solidária, projetos culturais. Chamamos de dispositivos de saúde mental. Mas nosso trabalho se concentrou na desospitalização. Quando falamos em desmedicalização, não estamos falando em diminuição do medicamento, e sim na diminuição do papel da medicina. Queremos diminuir a apropriação que a medicina faz da vida cotidiana, o discurso médico sobre a vida. Isso não conseguimos. Um desafio hoje da reforma psiquiátrica é a formulação discursiva muito médica. Por exemplo: as pessoas são contra o manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica. 
Como lidar com o que se chama de epidemia de depressão?
Temos que pensar até que ponto o próprio aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia — uma discussão central, que não é feita devido ao controle da produção de conhecimento pela Psiquiatria e pela indústria farmacêutica. Boa parte da chamada crise mundial de aumento da depressão é produzida pela Psiquiatria, que não está se preparando para evitar, mas para produzir a depressão. Os relatórios contribuem para que pessoas se identifiquem como depressivas. Os intelectuais orgânicos da indústria farmacêutica têm muito claro que é possível aumentar o número de diagnósticos de depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora muito? Tem ideias de morrer?”. Isso produz identificação e as pessoas não dizem que estão tristes e sim que estão depressivas. [Michel] Foucault ensinou que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a produção social da doença. 
No final dos anos 1980 começam a surgir iniciativas alternativas ao manicômio: em 1987 o primeiro Caps e, em 1989, a reforma em Santos (SP). Como se pensavam essas novas formas de cuidado?
As alternativas — ambulatórios, hospitais-dia, centros de convivência — começaram a aparecer no início dos anos 1980, quando deixamos de ser oposição e fomos para o Estado de alguma forma. Em 1987, foi criado o primeiro Caps, em São Paulo, com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia essa concepção de rede, território e integralidade. O marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. A cidade tinha sua primeira prefeita eleita democraticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela fez uma revolução na prefeitura, nas políticas públicas como um todo. Na saúde, o secretário era David Capistrano Filho, mentor intelectual do Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele levou à frente uma intervenção na clínica Anchieta, que tinha alta mortalidade. Não quis reformar, mas sim criar uma estrutura substitutiva e territorial — foi a primeira vez que apareceram essas expressões. Hoje se fala muito em rede substitutiva e territorial. A primeira gestão municipal que trabalhou com o projeto aprovado do SUS, ainda que não regulamentado, foi a de Santos. 
Como avalia a participação social nas políticas de saúde mental?
A participação está diminuindo. O SUS perdeu o espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório, e virou mais um sistema de saúde. E o mesmo aconteceu na reforma psiquiátrica: queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços. Houve redefinição do usuário, tido não mais apenas como paciente, mas que não chegou a ser o ator social que queríamos ter — é ator coadjuvante das políticas. Vai nos congressos, nos conselhos, mas não tem força.
E como está a rede de atenção psicossocial hoje?
Desde o início desse processo, levantei a preocupação com os Caps funcionando em horário comercial, descontextualizados do território, como ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma oficina de teatro dentro do Caps em vez de usar o teatro da cidade? E não basta transformá-los em Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios, quando deveriam ser a substituição. É necessário mudar as bases conceituais dos serviços: as noções de doença, terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou sem medicamento. Sempre se tem a ideia de uma normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar, apontar que a doença é do indivíduo, está nos neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e tutelar pelo resto da vida. 
Que reflexões sua doença recente, um câncer e complicações decorrentes, provocou sobre a institucionalização?
A doença me marcou muito, por minha posição anti-institucionalizante. Minha experiência com hospitais é muito negativa: a relação do aparato médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei, pela perda de autonomia, de identidade. Os profissionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei se a expressão é humanizar, porque humanização me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a mudança profunda na qualidade da relação com as pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam, as pessoas foram voltando para o atendimento clínico e eu segui com a discussão do direito à saúde. A ideia de reforma psiquiátrica é limitada, porque o que eu buscava era uma reforma da cultura. É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro. Busquei a transformação da relação da sociedade com a loucura. E mudar cultura é um processo longo, muito demorado.

*Participaram Rogério LannesEliane BardanachviliElisa Batalha e Justa Helena Franco

FOUCAULT – PANÓPTICO [OU, “A VISIBILIDADE É UMA ARMADILHA”]

03/12/2014 by 

panóptico2Através de vários mecanismos surge o homem moderno. Os processos de subjetivação são vários: a família nuclear, a escola, o exército, o hospital e caso tudo falhe, as prisões. Foucault se debruçou sobre o modelo de funcionamento destas instituições e dentre suas conclusões percebeu que todas funcionavam através do modelo panóptico, figura arquitetural idealizada por Jeremy Bentham.
O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente […] A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha” – Foucault, Vigiar e Punir
Este dispositivo funciona dissociando o par ver-ser visto. Nesta nova forma de exercer o poder, você é sempre visto, mas não pode ver a torre central que te vigia. Cada preso, aluno, trabalhador, paciente, etc., é colocado em uma célula, uma divisória permanece isolado de outros estímulos e pode ser constantemente observado. Desta forma, os alunos podem estudar melhor, os trabalhadores não organizam greves e os presos não se revoltam. A multidão, lugar de trocas e de afetos, é transformada em uma coleção de múltiplas individualidades, mas separadas por uma fina divisória que não nos permite acessar por completo o diferente.
O homem moderno não se esconde, pelo contrário, se torna constantemente visível, e por consequência, plenamente individualizado. O formato panóptico de exercer o poder prescreve a cada um seu lugar. Um poder onipresente e onisciente subdivide e distribui cada um de acordo com o que lhe pertence, suas capacidades, sua história, sua origem. Através dos recursos para o bom adestramento: olhar hierárquico, sanções normalizadoras e exames, o poder é capaz de, mais que reprimir ou corrigir, produzir.
Trata-se de um poder espacial, ele age sobre as multiplicidades, elas são confusas e indóceis, é preciso discipliná-las para obter produtividade delas. “O panóptico é um zoológico real, o animal é substituído pelo homem” (Foucault, Vigiar e Punir). O poder funciona reduzindo as velocidades, fixando cada um em uma função social, trata-se de colar um rosto em sua cabeça: advogado, médico, proletário, estudante, louco. Fim do nomadismo, fim dos errantes e dos perdidos, fim das experimentações…
E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível” – Foucault, Vigiar e Punir
"Se você for um usuário-padrão, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, o que está pesquisando e, possivelmente, sua preferência sexual, sua religião e suas crenças filosóficas" - Julian Assange, Cypherpunks - Liberdade e o Futuro da Internet
“Se você for um usuário-padrão, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, o que está pesquisando e, possivelmente, sua preferência sexual, sua religião e suas crenças filosóficas” – Julian Assange, Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet
Sim, somos constantemente vigiados, e tudo pela melhor forma possível de poder, aquele que se tornou invisível, imperceptível, confiável. Cada vez que mandamos uma mensagem de nosso celular, ligamos a televisão, acessamos o facebook e o google, mandamos informações nossas que são armazenadas em um banco de dados. Criticamos o big brother, mas não percebemos que estamos imersos em um imenso big brother anônimo, difuso. “O panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles” (Foucault, Vigiar e Punir).
- Paweł Kuczyński
– Paweł Kuczyński
O panóptico não foi construído como um modelo megalomaníaco, mas está aí, sua essência constitui o poder disciplinar moderno. Códigos de barras, cartões de crédito, carteira de identidade, câmeras de vigilância, telefones monitorados. Ele se espalha nas relações, cria raízes nas instituições, ultrapassa seus limites, entra em nossa própria cabeça.
Foucault chamou este modelo disciplinar de arquipélago carcerário, nome bonito para dizer que transitamos entre uma prisão e outra. Neste arquipélago estende-se uma complexa rede de comunicação: psicólogos, conselhos tutelares, policiais, professores, gerentes, pais. Somos levados de uma instituição a outra. A partir do momento que nossos corpos já foram suficientemente docilizados na escola, estamos prontos para a universidade, ou para o trabalho, dependendo de cada caso específico. A disciplina não é a instituição, é o modelo que poder utiliza em seus processos de subjetivação.
Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilâncias: sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração de troca, processa-se o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo de sinais define os pontos e apoios do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos” – Foucault, Vigiar e Punir
Nossa sociedade nos dá a ilusão de um espetáculo porque estamos embaixo dos holofotes constantemente, mas aos olhos do poder ela é uma máquina de inquérito e confissão. “Mostrem-se! Você são livres! Contem tudo! Estamos interessados em você! Queremos saber mais!” … a visibilidade é uma armadilha:
Somos bem menos gregos que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens” – Foucault, Vigiar e Punir
A disciplina ordena as multiplicidades humanas, as individualiza e as produz em série. O nomadismo morre, o corpo-dócil nasce. A vigilância é interiorizada, o sujeito castra a si mesmo, se sabota. “O que vão pensar? O que vão dizer?“. O “rei quis” torna-se a obediência mecânica, “não pode porque não pode!”, um reflexo de submissão. Temos a constante impressão de que estamos sendo observados (e será que não estamos?), a vergonha alheia já não é mais tão alheia.
Como escapar? Como fugir desta máquina que agora age dentro de nós mesmos? Repetimos: a visibilidade é uma armadilha. Existe algum dispositivo possível? Sim, as zonas de desconhecimento, de experimentação, espaços de indefinição, estranhamento, do novo e do anômalo, a coxia é mais criativa que o palco! Se logo lhe colocam um nome, fuja, se esconda, finja, faça o contrário. Se logo te definem, experimente-se, surpreenda-se.
Não se deixar capturar é o caminho mais curto para si mesmo. Desconhecer-se é o melhor meio de ultrapassar-se. Você não é o número de sua identidade, você não é a sua conta no banco, você não é a marca de camiseta que usa. Descobriram seus segredos? Crie novos! Já sabem os seus caminhos? Trace linhas de fuga. Corra mais rápido, se torne nômade. Ande pelo escuro, com prudência, caso contrário vão te roubar, ou melhor, vão te produzir! Devenha imperceptível!
Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? – Foucault, Vigiar e Punir
200453748-001

flecheira.libertária.365

assassinato institucionalizado
Dados divulgados na semana passada pelo 8º anuário de segurança pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, nos últimos cinco anos, uma média de 6 pessoas foram assassinadas diariamente pela polícia no Brasil. Em números absolutos, 11.197 execuções. Os números oficiais indicam a tropa do Rio de Janeiro como a mais letal do país, mesmo apresentando-se com “redução expressiva da letalidade”. A diretora-executiva do Fórum vê esta redução como “bom desempenho” e concede créditos à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora na cidade. Para além dos números oficiais, das estatísticas, das declarações cabotinas, dos créditos, é preciso escancarar que o maior assassino no Brasil é o próprio Estado.
por todos os lados
No anuário lê-se: “falar de segurança e paz significa pensar em um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil”. A conclusão do documento estabelece novas metas de segurança. deságua em infindáveis reformas da polícia como instituição central imprescindível ao fortalecimento do Estado e oscila entre gastar mais ou gastar menos para monitorar mais e melhor. Assegura que “as melhores práticas na redução da violência e da criminalidade têm se concentrado sobre o tripé: aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência e da investigação”. A conclusão do anuário é mais polícia portodos os lados. Em outras palavras, e a seu modo, o anuário defende a continuidade do assassinato institucionalizado, com ou sem reduções.
refúgio covarde
Em meio à disputa por qual estado mata menos ou, por qual é mais transparente na concessão dos números de assassinatos, parte da população expressa seus fascismos dizendo que todos esses índices são baixos demais. Em nome da segurança, posts disseminados em blogs, sites, redes sociais, expressam o desejo de extermínio de pobres, pretos, putas, craqueiros, catadores.
banho de sol
Durante o mês de novembro, mulheres e trans podem se inscrever no concurso Nova Musa Toplessinrio 2015 ou Toplessaço. O concurso empreendido por uma jornalista carioca teve “inspiração” na Marcha das Vadias e pretende “mais do que seios à mostra, uma atitude”. O júri que escolherá a miss topless será composto por celebridades e empresários. Para além do show business, o inclusivo projeto é comprometido socialmente: a miss escolhida será a representante da reivindicação pela regulamentação do topless em praias cariocas. Além da paz mundial, as novas misses de conduta alternativa querem institucionalizar o direito a poder tomar sol semi-nuas. Talvez, o que estas mulheres querem coroando a sua miss seja uma concessão a mais. Descoladinhas, elas recorrem ao Estado para regulamentar como e onde poderão tomar sol sem a parte de cima do biquíni e aparecem na mídia como novo hit do verão. E só. Uma atitude de liberdade com o corpo não depende de concessão de conduta pelo Estado.
às loucas
Desde o final de outubro mais de cinco mulheres foram flagradas, em diferentes momentos, correndo nuas pelas ruas de Porto Alegre. A recorrência e o desconhecimento do porquê deixou a imprensa e autoridades em alerta. A primeira detida correndo nua pelas ruas da cidade foi “encaminhada” a uma unidade psiquiátrica emergencial, dopada e autorizada a sair. No último final de semana, ela foi novamente internada numa dessas unidades. Pela falta de uma explicação razoável, ou por uma atitude considerada obscena ou perversa, passível de criminalização, o corpo dessa mulher será encarcerado, entupido de drogas legais. Às chamadas loucas, os novos e sutis redimensionamentos do manicômio. E a continuidade de uma violência imensa exercida há séculos pelo Estado, seus machos e garantida pelo assujeitamento de suas mulherzinhas. Nesta mulher corajosa está a diferença entre atitude e conduta de miss.
segredos da vida
Distante a 510 milhões de quilômetros, o módulo Philae surfa pelo sistema solar a bordo do cometa Churyumov-Gerasimento. Assim que pousou na superfície do cometa, Philae transmitiu diversas  informações que permitirão conhecer mais sobre o universo e também sobre a vida. Na poeira que recobre o cometa, foram encontradas moléculas orgânicas, confirmando achados feitos anteriormente por sondas e observações telescópicas. Acredita-se que os cometas tenham sido responsáveis por espalhar pelo universo elementos imprescindíveis para o desenvolvimento da vida, inclusive para o seu surgimento na Terra. A vida permanece o acontecimento, cujo segredo também os cometas podem contar. 

Educação e liberdade

Autor: Edson Passetti
publicado em: publicação on-line 60 anos, 60 ensaios, São Paulo: PUC-SP, 2006.


Educar não é instruir, infundir bons modos, exigir austeridade, respeito pelos superiores ou propagar a conformidade. Educado não é aquele que desempenha papéis de acordo com as convenções. Este é um sujeito que representa o que dele se espera, educado para sujeitar e ser sujeitado.
No século XVI um jovem chamado Ettiènne de la Boétie, escreveu um opúsculo chamado “O discurso da servidão voluntária”, no qual defendia a liberdade como princípio da existência. Questionava o que chamou por servidão voluntária, ou seja, o ato de alguém sujeitar-se, deliberadamente, a uma autoridade superior. E perguntava: até quando perdurará a nossa covardia?
Desde crianças as pessoas são ensinadas a acreditar na autoridade superior como verdade inquestionável. Acreditam nos pais, governantes, padres e pastores, patrões, médicos, advogados e professores a partir de uma sociabilidade baseada no respeito à hierarquia ¾ o que antecede qualquer ato de contestação acerca da vida no planeta, ao mesmo tempo em que exige a reposição posterior da autoridade centralizada.
Estamos falando de uma educação que gira em torno do soberano centralizado, chame-se rei ou representante. E como sua existência parametra as relações entre pessoas, no limite, tolera-se o questionamento de sua autoridade e a legitimidade da substituição.
A convenção acerca da justiça pautada na racionalidade jurídico-política que gradativamente instituiu o acesso à igualdade política fez deslizar a autoridade do rei, dos aristocratas e do clero, para o que se convencionou chamar de povo, uma categoria que procurou agrupar todos os segmentos e classes sociais ao mesmo tempo em que dissolveu as diferenças na unidade. Formou-se o que la Boétie designou por UM, num outro tempo histórico. No lugar do rei, o povo; da tradição baseada na hereditariedade, a racionalidade individual; e afirmou-se o presente no lugar do passado.
Não tardou para que, no século XIX, em nome da restauração do passado (aristocracia), da afirmação do presente como eternidade (burguesia) e da solução das desigualdades sócio-econômicas no futuro (socialistas) explodissem as tensões fazendo aparecer a ditadura ¾ como forma exacerbada da autoridade como viemos a vivê-la no século XX ¾ e o discurso moderno sobre a justiça social, compartilhado por anarquistas e comunistas.
A ditadura apareceu sob a forma de nazismo e fascismo exigindo um Estado nacional capaz de colocar-se acima das pessoas e dos demais Estados. O resultado foi a guerra mundial. Da mesma maneira o socialismo proposto por Marx, levou primeiro os bolchevistas ao governo da Rússia e depois à sua expansão pela Europa com o final da II Guerra. Logo ele se propagou pela Ásia, depois da ascensão dos comunistas na China, e chegou à América Latina e África entre o final dos anos 50 e início dos 70. Se, por um lado, a vitória aliada na II Guerra extirpou os diversos regimes fascistas, por outro lado, ela opôs os vencedores socialistas e democratas, até que com a derrocada do socialismo pela introdução do neoliberalismo, desde os anos 70, restou a idéia de democracia como valor universal. Contudo a defesa de tal valor ocultou e camuflou as mais diversas formas de autoritarismo como foram as ditaduras militares na América Latina, dos anos 70 e 80, em nome da verdadeira representação democrática, da justiça social ou da liberdade de mercado. A história nos mostra que os soberanos se instituem com base numa autoridade centralizada e hierarquicamente organizada e que, em nome da justiça legal ou da justiça social, fizeram progredir as mais diversas formas de arbitrariedades sobre a liberdade das pessoas, muitas vezes em nome da própria democracia representativa.
A substituição de soberanos não nos leva, portanto, além da própria continuidade da autoridade centralizada para quem devemos prestar contas de nossa vida pagando impostos, declarando nossas intenções políticas através do voto (muitas vezes obrigatório) para que outras pessoas nos representem, nos reprimam, nos eduquem. David Thoreau em “Resistência ao governo civil”, escrito em 1849 ¾ após uma noite na prisão por recusar-se a pagar impostos desviados para interesses de guerra ¾, afirma que os legisladores, políticos, ministros e funcionários servem ao Estado com a cabeça, ou seja, servem tanto a Deus quanto ao Diabo. Servem a qualquer soberano. Resta saber se há um melhor soberano.
A história nos mostra que a democracia é sempre preferível à ditadura ¾ com isto também concordava o anarquista Pierre-Joseph Proudhon, em “O princípio federativo”, escrito em 1863, quando argumentava a respeito das diferenças entre os regimes de autoridade (comunismo e monarquia, baseados nas decisões centralizadas) e os regimes de liberdade (baseados na divisão de poderes e descentralização, no qual incluía a democracia e a anarquia), ressaltando que o Estado é sempre usurpação da liberdade. De acordo com esta constatação, qualquer soberano que se instale no governo vindo do exterior a nós mesmos (e não somente os que vêem do estrangeiro, como invasores) e pretenda colocar-se acima de nós, chame-se democrata, socialista, sacerdote ou cientista, será um tirano, como bem sublinhou Mikhail Bakunin, em “Deus e o Estado”, escrito em 1871, mas somente publicado pela primeira vez em 1882. Como afirmava Thoreau, “o Estado não confronta intencionalmente o senso de um homem moral ou intelectual, mas apenas seu corpo, seus sentidos. Não está armado com a superioridade intelectual ou moral, mas com a superioridade da força física”.
A maioria nunca sendo justa aos olhos da minoria, podendo desviar-se para a exigência da unanimidade, assim como o governo de minoria, mesmo em nome da maioria desliza para a ditadura, nos leva a postular a cidadania recusando-nos a condição de súditos!
Educar para a soberania centralizada é educar justificando o uso da força. Ela precisa ser contida num determinado lugar e seu uso nas várias relações de soberania e encontra no Estado a autoridade para dispor dela como monopólio e com legitimidade. De cima para baixo na hierarquia vão se definindo os poderes do monopólio da força: abaixo do Estado (regulamentado pela Constituição), os pais (regulados pelos Códigos Penal e Civil) e depois os diversos níveis em que o uso da força é intolerável e para os quais o Estado moderno, como mediada de proteção, utiliza os aparatos repressivos. De baixo para cima legitima-se um discurso que se fundamenta em saberes que caracterizam a natureza original violenta do homem. E, neste trânsito, a competitividade, liberta da arbitrariedade do uso da força monopolizada no Estado, emerge como potencializadora de talentos no interior que devem ser preservados do exterior. Para a segurança interna haverá a polícia, o hospício, o internato, e muitas vezes, a escola e os próprios pais e parentes; para a segurança externa, mas podendo ser utilizada a qualquer momento internamente, sempre haverá funções para o exército. A educação baseada no princípio da soberania centralizada exige obediência: é a educação para o medo!


1. O Estado, a língua, os costumes, os corpos saudáveis.

            Diz-se modernamente que um território deve ser governado pelo Estado; que ele garante a segurança dos cidadãos que ali habitam, independentemente da procedência social; e que estes devem respeitar as leis e costumes nacionais falando uma língua comum a todos.
O Estado nacional homogeiniza a língua e os costumes, transformando-se em proprietário da gramática e celebrador de seus próprios feitos com espetáculos cívicas. Ele dilui as diferenças em nome de uma artificial nacionalidade e forma no seu interior, naturalizada, a idéia de superiores e inferiores. É um pacificador artificial da suposta violência original representando, por meio da espetacularização da política, uma cultura nacional. Contudo a cultura que predomina num Estado nada mais é do que a afirmação da superioridade de uma cultura oficial sobre as demais, tradicionais ou não, incluindo-se aí diferenças raciais, étnicas e religiosas; é a confirmação do princípio de maior adaptação de alguns à competitividade dividindo a sociedade em ricos e pobres; e é também a referência para o Estado pensar o controle sobre os corpos saudáveis.
Os homens livres no mundo moderno são disciplinados a partir da existência de múltiplos soberanos que se reconhecem na hierarquia capitaneada pelo governo central, com maior ou menor conivência com os preconceitos raciais e sociais. No século XIX, em especial, os alvos do investimento seguro sobre o corpo era formado por povos colonizados vindos do exterior e migrantes pobres nas cidades. No século seguinte serão os pobres, os imigrantes, os migrantes, as mulheres, as crianças, os homossexuais, os negros e não poucas vezes, seitas religiosas e etnias compartilhando, preferencialmente, os espaços urbanos. A intolerância com o diferente levou os sujeitados de ontem a sujeitar hoje em dia os seus antigos algozes, recolocando a guerra no centro das relações sociais, em nome da independência nacional ou da autonomia dos povos. Uma revanche colonizada que restituiu o princípio da centralidade moderna
O preconceito racial e o social sobre as classes pobres e etnias levou também, no último quartel do século XX, a uma política complementar, tolerante, que em nome do avesso, ou seja, da preservação da diferença, nada mais fez do que isolar gradativamente grupos sociais e etnias dentro do princípio de aceitabilidade circunstancial conhecido como relativismo cultural ou politicamente correto. Em nome da vida comum, passou a ser tolerável o que não prejudica e reafirme a autoridade central. E os que se sublevam continuam sendo vistos como subversivos, inimigos da nação e da paz entre os povos, fomentadores de guerras civis.
O Estado nacional gerou preconceitos e, ao mesmo tempo, de maneira conservadora, seu avesso: a política de tolerância e de preservação da diferença. Restaurou o princípio da competitividade como sendo o mais justo para fazer emergir o talento das pessoas e para que todos tivessem restituído o suposto direito à riqueza em dois movimentos: pelo alto, com políticas neoliberais, e por baixo pela revolta do mercado contra o intervencionismo estatal.
Mantendo-se a competitividade como fonte do merecimento, as pessoas continuaram acreditando na naturalidade dos talentos e no respeito àqueles que deram certo dentro do princípio disciplinar que valoriza o consumo das energias produtivas do corpo em detrimento das suas energias políticas. E, assim procedendo, as pessoas deixam de dar atenção à política acreditando que a democracia representativa é o melhor dos regimes por garantir-lhes igualdade política pela ilusão do merecimento. Frente a esta ambigüidade, Friedrich Nietzsche, entre 1881 e 1882, escreveu em “A vontade de potência”, que a democracia passaria a ser a religião do rebanho no século XX. Anteviu o povo transformar-se em massa e alinhar-se para um pastor, convencida que ele deveria ser seu educador, condutor, mestre, por ser mais inteligente e perspicaz na luta pela vida na competitividade; por ser capaz de mostrar o caminho da virtude e dos benefícios materiais e, em troca, eles se entregaram passivamente.
            A competitividade é um procedimento de acúmulo de poder e riquezas. Realiza-se através da confluência de diversos fatores, dentre os quais, não resta dúvidas, se encontra o mérito. Mas seu reconhecimento se dá por meio de alianças, castrações e adesões implícitas colocadas pelas situações que vão se apresentando como exemplares para a afirmação do poder de cada um na rede de sujeições. A meritocracia e a competitividade escolhem talentos a partir de grupos de referências e pinçam entre os setores mais pobres, “genialidades” extemporâneas que legitimam a ilusão do recrutamento. A competitividade não suporta a ajuda mútua; ela afirma a seletividade pelos mais “aptos” e subalterniza os demais expondo-os aos ditames da filantropia privada de empresários e religiosos ou da filantropia pública que redimensiona a privada por meio de políticas sociais.
            Neste sentido a instrução pública, ou o que o Estado chama por educação, desempenha papel preponderante na construção de corpos saudáveis na sociedade disciplinar. A “educação para todos” sempre foi meta dos liberais. John Locke, em “Escritos sobre a educação”, de 1693, defendia escola para todos desde que estivessem estratificadas em escolas para os governantes e escolas para os que devem obedecer, pois a criança é vista como um receptáculo a ser moldado pelo adulto.
No mundo moderno, obedecer sempre foi a atitude esperada por todos os soberanos envolvidos nas redes de poderes. O pátrio poder, portanto, nada mais é do que a expressão da tolerância com o uso da força física pelos pais para obter a obediência dos filhos. Faz parte do duplo efeito da obediência: servir como súdito ao governante e fazer do outro seu súdito. É a exigência da transformação do outro no UM, no supostamente igual, e daí decorre que só é verdadeiro quem se parecer com o UM. É o tempo do narcisismo individualista, do solitário, dos que carecem de amigos, pois na massa todos se igualam; qualquer um pode ser “amigo”, mas como o sujeito se dilui no UM, o amigo de verdade tende a desaparecer e o individualismo que funciona como defesa pode transforma-se, simultaneamente, em arma.
            A instrução pública, neste circuito, deve cuidar da educação para a obediência: o educando disciplinado deve ser ao, mesmo tempo, o bom educando e espelho do melhor educador. O pai austero, o melhor exemplo de respeito a ser seguido pelo filho subserviente, ou a beira de um extravasamento de ódios que o leva a inusitadas formas para impingir a dor no outro. Crianças e mulheres sabem bem o que significa o circuito de repressão no qual estão inseridos como parte frágil, como desejo substituto de pais, maridos, companheiros, patrões, amantes, professores... São também, paradoxalmente, parte deste mesmo circuito quando adultos ou mães em relação a filhos, enfim, não há um lugar para ser visto como vitimizado ou vitimizador a não ser perante o direito penal que se impõe como universal e que pretende fazer crer na ameaça e na punição propriamente ditas como meios para endireitar o mundo.
            Não existe mundo disciplinar sem competitividade, punição, hierarquia, obediências cegas, soberanos mais ou menos autoritários, escolas para pobres, postos de saúde e hospitais precários, cestas básicas, internatos, hospícios, prisões.
            As exigências da sociedade disciplinar, baseadas na soberania, disciplina e segurança,  têm como corolário os corpos saudáveis. Eles devem ser repostos diariamente para que a produtividade não caia. Devem ser corpos educados para responder ao que se espera deles numa fusão mecânica. Suas energias políticas devem ser absorvidas e quando isto não ocorrer, seguramente, antes de transferir-se para a revolta, elas devem ser recicladas na violência doméstica. As exigências disciplinares para o corpo saudável deixou as mentes na miséria e francamente disponíveis para seguir os pastores.
            O tempo da sociedade disciplinar, dos séculos XIX e XX, foi o tempo dos pastores da massa, de um povo que se transformou em massa, que abriu mão da frágil igualdade política em nome de benefícios sociais e que pretendem a justiça social. Foi a mais perfeita tradução para o fracasso da idéia de progresso dos positivistas, de aumento de produtividade dos socialistas e de bem-estar-social dos capitalistas.


2. Educação e sociedade de controle.

            A sociedade disciplinar foi cedendo a vez a uma sociedade de controle, baseada na produtividade do corpo, não mais ancorada na mecânica e numa disciplina em espaços, mas fazendo conhecer uma nova saúde do corpo. Agora, o que interessa é a mente e esta deve ser tratada de maneiras diferenciadas. Ela deve ser ocupada com múltiplas atividades que possam vir a ser potencializadas, num tempo de produtividade virtual individualmente, na qual o corpo como um todo deixa de ter importância. Agora as partes devem desempenhar, com habilidade, o que antes se exigia do todo.
            Não é mais o tempo de “mente sã em corpo são”. A mente deve ser saudável para o trabalho e o corpo, enquanto partes para ser apreciadas, incluindo-se a fragmentação da sexualidade e a diversificação das formas de reprodução de espécies. Em tudo deve haver mais trabalho e a mente deve estar ocupada. Neste circuito, se despreza a política abandonando-a aos representantes corporativos que, por sua vez, midiatizados pelas imagens eletrônicas, tornam-se cada vez mais efêmeros.
O tema do panóptico, tão relevante para as sociedades disciplinares, como mostrou Michel Foucault em “Vigiar e punir”, de 1975, se transforma em seu reverso, uma profusão de telerrealidades para a qual acorrem os súditos, esperando pelas explicações, pelo sentido da vida. Não é mais o olhar que espia forçando a disciplina que gera medo e produtividade; na sociedade de controle ele está invertido, sob a forma de televisão e monitoramento eletrônico em prisões, escolas, hospitais, edifícios privados, públicos e comerciais, galerias de arte e museus. As pessoas a ela recorrem para saber o que é realidade, verdade, divertimento e participar do mundo. Ela distrai, relaxa e educa para a mente ocupar-se com a produtividade virtual. Se com o panóptico procurava-se minimizar as forças políticas do corpo, com sua inversão procura-se distraí-lo da política. O súdito constrói a imagem de si como cidadão midiático, participante de quaisquer decisões, sentido-se livre para responder ao que lhe é solicitado inserindo-se numa discursividade que sublinha as sensações de liberdade.
            Na sociedade disciplinar a obediência era o sinal para o acesso à vida, rejuvenescendo o soberano. Agora é a tolerância que dá acesso à vida como respeito ao diferente. A população deixa de ser o alvo principal dos governo para ceder lugar ao planeta: passamos de uma biopolítica da população, ¾ meticulosamente esquadrinhada por saberes que visavam fragmentar para totalizar e que nos dispunham para as especializações planejadas ¾, para uma ecopolítica planetária para a qual a multiplicidade de funções a ser desempenhadas pelas pessoas produtivas redimensionam a mesma totalidade a partir da relevância dada às partes.
            A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle instaura outra reforma geral, primeiro com o nome de neoliberalismo e depois como liberalismo social que vivemos, no final do século XX, substituindo a fase de maior governamentalização, com Welfare-State e socialismo, quando ambos quase se tocaram. Nesta “transmutação” planetária, para muitos chamada de globalização, o líder e a massa são substituídos no espetáculo público pela democracia midiática. Governa-se ancorado na mídia, nas sondagens, nas pesquisas eletrônicas e recomenda-se não só em quem votar mas com quem governar: a publicização cede lugar à publicidade e os partidos políticos, assim como o sufrágio universal, ficam reduzidos a elementos do ritual democrático-representativo.
Neste holograma, os Estados nacionais tendem a se dissolver em grandes comunidades políticas comandadas a partir das unificações de mercado. Midiatiza-se o planeta num novo princípio que se pauta na desterritorialização do Estado-nação, e com isso, novos campos de miséria, riquezas, e espetacularizações se conformam dando visibilidades aos entretenimentos.
A saúde do corpo toma o centro das atenções para ser apreciado assepticamente. Importa saber como vesti-lo adequadamente para aqueles que fazem parte do grupo de referência o que, não necessariamente, significa participação ativa ou compromissos grupais. Esta tendência faz prevalecer a amizade por interesses sobre a amizade virtuosa, como expressou-se Aristóteles, em “Ética Nicômaco”. Se na sociedade disciplinar a amizade virtuosa ganhou amplitude com a crítica ilusão da igualdade política pela tese da desigualdade social agora, em nome da amizade por interesses preponderam as pequenas traições como expressões do insuportável no mundo das artificiais tolerâncias.
Recomenda-se que o socialismo seja abandonado ao mundo “jurássico”, como pretendem liberais e conservadores, ou ajustado aos tempos atuais, falando-se de socialismo democrático? Anthony Giddens, em 1994, com “Para além da direita e da esquerda”, apresenta-se como um dos mentores dessa idéia aproximando-se dos conservadores com o tema da democracia. Esquece-se, propositalmente que, entre os socialistas marxistas, a democracia foi tema defendido pelos reformistas ¾ e mote da crítica, no calor dos acontecimentos, elaborada por Rosa Luxemburg a Lenin e aos bolchevistas assinalando a iminência da ditadura na Rússia ¾, e que no limite também se aproximaram do welfare-state. Mas aceitar esta tese seria reconhecer que a vertente revolucionária, a mais perfeita seguidora de Marx, que sempre pretendeu desqualificar os social-democratas reformistas, estava redondamente equivocada. Experimentados nos governos como conservadores e liberais, os marxistas querem parecer democráticos e parlamentaristas num mundo de democracia midiática. Provavelmente devem estar tropeçando, pelos cantos, falando em manipulação dos meios de comunicação de massa, ou na relação emissor-receptor, uma das mais aceitas teses críticas no final da era da sociedade disciplinar, em que o socialismo de orientação marxista, de utopia igualitária se fez realidade ditatorial.
Na sociedade de controle a televisão também educa. Ela é a parte mais presente da mídia, a de contato instantâneo com o espectador, a criadora de telerrealidades conformistas. Da mesma maneira a televisão entra na escola com vídeos, internet, filmes telecinados, ensino a distância, enfim, aproximando e informando sobre as exigências de uma sociedade de controle que investe em potencialidades, em produtividade virtual.
Os educadores não são apenas os pais, os parentes, os vizinhos, os professores, a polícia, mas também a televisão, para a grande maioria que ainda não tem acesso aos computadores. E é neste jogo entre televisões e computadores no qual a internet atravessa todas as mídias (rádio, jornal, revistas e televisão) que a educação para resistências também emerge e que o cidadão-midiático abandona a sua faceta de súdito para exigir liberdade e expor a nudez das midiatizações.
Para além da obediência e da tolerância emerge o sentido do devir revolucionário individual sob a forma depiratarias e disseminação de virus que, rapidamente, em muitos casos leva à absorção e transformação dos resistentes em agentes de controle. Ser resistente passa a ser um meio para se obter um bom emprego e a resistência se desdobra fazendo aparecer uma terceira face do cidadão midiático.
A competitividade redimensionada para o campo eletrônico dissolve laços amistosos que inclusive levaram, no passado, à oposição entre amizade por interesse e amizade virtuosa. Aparecem sinais do fim das dicotomias, do esgotamento das teorias que operam por oposições entre protagonistas e antagonistas, de uma polivalência do exercício da soberania que exige intelectuais polivalentes se revezando nas confirmações e resistências.
Na sociedade disciplinar, o sindicato fez parte da reserva de empregos institucionalizada para os sindicalizados numa vida produtiva marcada pelo desemprego crescente. Por isso, rapidamente ele foi catapultado para o governo organizando-se dentro da aliança com empresários e burocracia estatal. Na sociedade de controle, o acesso à produção da senha e não só à senha gera um novo mercado assegurado pela vigilância eletrônica ¾ dentro e fora dos espaços produtivos ou de confinamentos ¾, exercida por satélites que mapeam, rotineiramente, as diversas camadas da Terra em nome da melhor continuidade para cada um e para as espécies.
A Terra continua azul. Ela sempre foi azul. Nós fomos informados pela voz de Yuri Gagarin e depois pelas imagens, via satélite, publicadas nas revistas coloridas. Em breve tempo assistimos pela televisão, ao vivo, a chegada na lua. Navegamos pelo espaço, construímos estações orbitais, instalamos satélites e sentamo-nos em frente a TV ou ao monitor do computador para orarmos pelos deuses midiáticos. A sociedade de controle que prepondera desde a segunda metade do século XX, ainda é uma sociedade com base numa sociabilidade autoritária, que educa para guerras, medos e supostos direitos. A sua base é a educação que acredita na punição e em supostos direitos universais de igualdade. Precisamos abolir a punição. A Terra é azul.

Artigo escrito para a comemoração dos 60 anos da PUC-SP e SESC para a publicação on-line 60 anos, 60 ensaios, 2006. http://www.pucsp.br/60anos/60ensaios/download/EdsonPassetti.pdf


Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol
Texto extraido de http://www.nu-sol.org. Acessado em: 03/12/2014.

Foucault e o libertarismo

Autor: Edson Passetti e Salete Oliveira
publicado em 2007.



Silêncio.
Estragon: Para fazer direito, seria preciso me matarem, como o outro.
Vladimir: Que outro? (Pausa) Que outro?
Estragon: Como bilhões de outros.”
Samuel Beckett, Esperando Godot


As pesquisas de Foucault atingiram as humanidades de maneira contundente. Não pouparam a segurança que estas imaginaram ter como ciências, e tampouco a aposta do iluminismo no sujeito livre e autônomo, oscilando entre a governamentalidade e a utopia da sociedade igualitária.
Na perspectiva política de Foucault, que acompanha à sua maneira as sugestões da genealogia do poder traçada por Nietzsche, não cabe espaço para totalitarismos. Trata-se de um filósofo e historiador que se encontra no interior de relações de poder e resistências; é um escritor que não se deixa capturar por identidades ou especialização, nem que se acomoda no sábio patamar reservado aos condutores de consciência; é também um libertário demolidor.

História de lutas
Foucault foi um historiador político lidando com o presente, atuando propositalmente em reduções de relações de poder centralizadas e aproximando o intelectual dos problemas imediatos. Ao revirar a noção negativa de poder para mostrar os efeitos de suas positividades, propunha-se a responder como acontecem e repercutem as lutas entre forças. Mas nesta escolha não repousava o aperfeiçoamento de uma situação corrigindo sua anomia. Procurava desassossegar a razão, as instituições, as leis, as soluções políticas sustentadas confortavelmente por projetos e programas de reformas. O poder para Foucault é uma situação estratégica configurada por forças em luta que desencadeiam diversas e indissociáveis resistências.
A análise genealógica do poder não busca o grande começo nem a grandiosidade do gesto inicial que teriam sido distorcidos mais tarde e que aguardam restauração por meio do saber desinteressado em nome da humanidade ou de uma classe social. Ao contrário, ela se ocupa dos baixos começos, ali onde o que se pretende superior foi mesquinho. Como aconteceu no direito. Antes das belas palavras, das declarações e das leis universais o direito ocorre pelos desdobramentos de situações conflituosas.
A genealogia do poder capta a vitória de uma força ou da coalizão de algumas sobre as demais no instante em que declaram sua superioridade particular como universal, lançando mão de arbitrariedades e sagacidades. Ao anunciar a procedência dos grandes valores ela também noticia a emergência dos seus baixos instintos. Afasta-se dos proprietários da verdade, da inabalável razão iluminista e de seu suposto controle sobre as paixões. Não há mais a Idéia ou o Espírito, apenas forças em luta. Não há também uma teoria do poder, mas estudo de relações de poder sob o regime da soberania, da disciplina, dos controles, implicando em captar suas incômodas descontinuidades.
As relações de poder implicam resistências e estas também não ocupam um lugar especial, nem estão reduzidas à expressão de valores superiores; as resistências podem ser tanto ativas e contestadoras, como reativas e conservadoras. Na modernidade e na contemporaneidade, as relações de poder e resistências não cessam, combinando lei, religião, economia, organização, linguagem, pessoas. Elas provocam a aparição de novos costumes capazes de inventar novas tradições, experimentações inusitadas, liberações surpreendentes e incontroláveis, liberdades infinitesimais. As relações de poder e resistências acontecem em diversos âmbitos e encontram ressonâncias, acomodações, contestações e perseguições dentro e fora do Estado. As relações de poder são ascendentes e descendentes, desdenham da legitimidade e encontram-se indissociavelmente vinculadas à produção de saber.
Desta maneira o que acontece no âmbito da microfísica do poder são também produções de saber repercutindo desde resistências locais até efeitos de poder de Estado. A interminável luta por liberdades contra autoridades centralizadas e governos superiores de pais, adultos, hierarquias e Estado escancaram os efeitos das lutas (de causar a vida até a eficácia de causar a morte) e dos supostos refúgios seguros acolhidos nas doutrinas.
Não há um saber desinteressado a favor da humanidade ou de uma classe; todo saber é interessado e procede de relações de poder. Foucault leva, então, o estudante e o pesquisador a entrarem na luta, problematizando instituições inquestionáveis, como por exemplo, Estado de direito ou Sociedade sem Estado, enfrentando nas diversas sociedades a sociabilidade fundada na punição e na recompensa, provocando inquietudes ao experimentar liberdades.


Anarquistas
De fato, os anarquistas contemporâneos começaram a se interessar por Foucault a partir de suas análises genealógicas. Mas, rapidamente, também, captaram os questionamentos éticos que derivam para a afirmação de uma estética da existência na atualidade. Os anarquistas passaram, então,  a estabelecer relações entre as sugestões de Foucault desde Vigiar e punir até as suas derradeiras pesquisas que compuseram os volumes 2 e 3 de História da Sexualidade com alguns ditos-e-escritos e cursos que lentamente foram publicados.
Como mostrara desde a aula inaugural no Collège de France, depois publicada como A ordem do discurso, na modernidade, sexo e política foram as principais interdições que acumularam desde saberes anátomo-psicocanalíticas até os disciplinares esquadrinhados em espaços de vigilância e punição. Para os anarquistas, a liberdade sexual arruinando a monogamia burguesa e as experimentações de vida associativista, com base na reciprocidade e em relações federativas, compõem a experimentação da Anarquia no presente em confronto com a era Propriedade comunal, privada, estatal ou mista da modernidade e defendida pelos liberais, conservadores e socialistas.
Para muitos anarquistas Foucault é um pensador inopinado. Chegou junto com as invenções libertárias durante o acontecimento 1968, e, em pouco tempo, passou a ser também companhia de transgressivos jovens estudantes e professores libertários.
mundo havia mudado mesmo. O intelectual não era mais o cérebro do trabalho manual, nem o diretor de sua emancipadora consciência; as relações de poder não se restringiam mais a redes como na milimétrica descrição de Foucault sobre sociedade disciplinar com sua vigilância panóptica, acoplada aos sutis e escandalosos dispositivos de punição; agora, tomava vulto os fluxos de poder com suas virtualidades, pois a inteligência passava a ser o alvo da produtividade e a democracia o articulador entre a economia e a grande política.
O corpo e a biopolítica deixavam de ser os alvos principais das utilidades e docilidades perseguidas pelas relações de poder e contestada por resistências. A expansão do universo, a ocupação do espaço sideral, a comunicação constante, o fluxo ininterrupto de produtos e serviços, o conhecimento pormenorizado das entranhas do corpo e de sua constituição pelo DNA, levaram, também, o próprio Foucault a se deslocar para uma sociedade que começava a se modificar e que mais tarde Gilles Deleuze chamou de sociedade de controle.
1968 desdobrou e deslocou Foucault para múltiplas resistências e para a estética da existência. Os anarquistas, na mesma ocasião, também se desviavam da crença na grande revolução procedente das reflexões e práticas de Mihkail Bakunin para o associativismo de Proudhon, os efeitos do anarco-individualismo, que veio de Max Stirner, problematizando a pertinência do anarco-sindicalismo, que alcançara um contundente efeito na Revolução Espanhola e que tivera grande influência no início do século 20, inclusive no Brasil.
Para estes anarquistas desassossegados Foucault contribui de maneira decisiva, incentivando a volta ao combate às relações microfísicas do poder, rompimento com doutrinas, e aproximação com novas experimentações libertárias. São vários os pesquisadores e ativistas libertários que combinaram Foucault com demais saberes libertários e de outros filósofos anti-universalistas como Salvo Vaccaro, Todd May, Wilhelm Schmitt, Saul Newman, Christian Ferrer, Margareth Rago... Para os demais, como Noam Chomsky, David Graeber e Eduardo Colombo, entre outros, Foucault é uma figura nociva, na medida em que abalroa os anarquismos como condutores de consciência e os identificam compondo com um novo cristianismo.
Foucault, pelo sim e pelo não, assim como o 1968 tornaram inevitável que os anarquistas mostrassem tanto seu lado conservador, como as suas capacidades inventivas. Mas principalmente, ele colaborou para problematizar a expectativa da revolução redentora e o sentido consolador e narcotizante da utopia igualitária. As singularidades anarquistas podem ser descritas em suas atividades de resistências ativas (do Living Theatre às zonas autônomas temporárias) ou reativas, circunscritas ao movimento anti-globalização em que os comunistas e socialistas re-paginados pelo discurso por uma outra globalização capturam os jovens-velhos libertários que, em pouco tempo, transformam-se de associativistas em ongueiros. Alguns anarquistas conservadores, também não admitem anarquismos nas universidades, seguindo as datadas reflexões de Piotr Kropotkin. Contudo, e inevitavelmente, desde o início do século 21, estudantes e professores defensores deste anarquismo se estabeleceram nas universidades, compondo um inusitado anarquismo acadêmico, em que defendem a continuidade da doutrina de Bakunin a Mahkno.


Nu-Sol
Foucault é um filósofo que atravessou a difícil e sólida fronteira iluminista sinalizando para o esgotamento da revolução redentora, a permanência dos pequenos fascismos diários − muito mais perigosos à liberdade do que o grande fascismo de época − e a cruel eficácia das punições. O associativismo libertário, por sua vez, ocupa-se das experimentações liberadoras que funcionam como obstáculos aos efeitos de dominação e sujeição e à violência no âmbito pessoal e social, repudiando a sociabilidade autoritária atravessada pela cultura do medo, ainda que em nome da justiça. Para um anarquista a representação não só é inaceitável como se constituiu em um dos dispositivos mais eficazes do assujeitamento.
Um ponto muito pouco tratado pelos anarquismos contemporâneos, apesar de muito trabalhado pelosvelhos anarquistas é o do castigo. Abolir o regime do castigo na associação libertária é uma atitude rumo à formação do anarquista e expressa seu estilo de vida, pois é somente abalando a si próprio que se avança para a constante supressão das desigualdades. Não se trata, portanto, de uma ação inaugural decorrente da revolução, como imaginam os demais socialistas e comunistas, nem o ato de justiça derradeiro na história para o qual se lança mão de um similar regime da vingança.
A educação libertária está adiante dos direitos universais e da eventual reparação de suas injustiças por meio da revolução. Ela ignora o universalismo do direito para firmá-lo na relação bilateral, imediata e restrita a objetos. Com isso, pretende romper com a rede das ilegalidades inerente e fortalecedora do direito moderno, seja em sua versão burguesa ou na socialista autoritária. Foucault notou com precisão, em Vigiar e punir, a estocada anarquista à ordem pautada na razão universal, ao abordar as primeiras resistências ao direito burguês expressas na imprensa socialista operária revertendo a identificação imediata do criminoso com o pobre, o trabalhador, a criança abandonada e o desempregado para associá-la ao proprietário burguês, e de onde emergiu, em 1840, a famosa constatação de Proudhon: a propriedade é um roubo!
Em torno do direito, seus desdobramentos e suas ilegalidades os anarquistas e Foucault também estimulam conversações. Diante da educação pelo castigo atuam como sinais de alerta. E na atualidade, quando se clama cada vez mais por combate à impunidade, eles aparecem indissociáveis. Da perspectiva de Foucault está em questão abordar a emergência das súplicas pela multiplicação de punições por encarceramentos, sentença de morte ou penas alternativas, acobertadas com o nome de tolerância e no limite explicitadas como programa de tolerância zero. Do ponto de vista anarquista se espera ultrapassar a solução medicalizadora ao crime elaborada por Kropotkin, ainda no século 19, em que a prisão deveria ser substituída pelo atendimento psicológico e médico, pois o crime passava a ser compreendido como doença social.
A sociabilidade libertária com base na superação do regime do castigo nas pessoas, não admite mais a esperança científica. Foi o cientificismo no século 19, como mostrou Foucault, que não só reformou e humanizou a prisão, mas foi além, apoiado nas humanidades construiu o conceito de anormal. A ciência passou a ditar e governar o normal e o anormal, segundo suas justificativas acopladas à política. Do ponto de vista da história efetiva; distante das teorias liberal e marxista, bem como da hipótese repressiva do poder, a análise do investimento do governo sobre a vida teve como efeito uma sociedade de normalização cujas procedências longe de advirem da origem grandiloqüente que fixa o normal como anterior ao anormal, expõe a construção histórica do anormal como condição para a posterior emergência do normal. O soberano saber mais uma vez se fortaleceu segundo o governo das forças políticas vencedoras de época, explicitando a historicidade do discurso da verdade. A prisão, então reformada, não deixou de ser cruel, apenas ampliou seu raio de ação, aprisionando burocracia, parentes, comércio ilegal, corpos e desejos. Funcionando como imagem invertida da sociedade passou a informar uma nova e estranha sensação, a de que estamos todos presos! A vida na e da prisão não se esgotou nela. O manicômio foi contornado pela psicanálise. Os internatos cederam lugar aos regimes escolares. Os insurgentes foram organizados em partidos e sindicatos. Investiu-se, enfim, com sucesso, em disciplina, em normalização.
Dentre as diversas minorias identificadas como anormais e perigosas estavam os anarquistas. Eram os iracundos mais perigosos e perniciosos à sociedade como procurou provar Cesare Lombroso. Para ele Marx e os nacionalistas traziam com suas propostas benfeitorias para a sociedade, mas os anarquistas, ao contrário queriam somente a demolição. Era a maneira dos cientistas e juristas de lidar com a radicalidade dos anarquistas, em defesa da sociedade. Eles passaram a ser identificados com criminosos e anormais, principalmente desde o final do século 19, quando os anarquistas italianos passaram a ocupar áreas de opressão violenta, cujo desdobramento levou ao terrorismo tiranicida na Europa. Enquanto os demais setores revolucionários eram gradativamente disciplinados em partidos e vanguardas, os anarquistas radicalizaram suas ações e foram classificados como ameaça à sociedade da época, definição que atingiu até a atualidade. Espera-se que os anarquistas metam medo não só por estarem relacionados ao terrorismo, mas por levarem uma suposta vida libertina. Eles são tidos como a ameaça que atrai desejos. Eles são apenas a recusa à normalidade.
Os anarquistas não são anormais. São perigosos ao provocarem riscos à ordem hierárquica, desigual, violenta e tirânica da sociedade. Eles são um perigo salutar às pessoas e à sociedade, pois é no risco que se inventa a vida. É na coragem de combater o regime dos castigos em si próprio e nos desdobramentos que ele sustenta na sociedade que a anarquia é também uma prática de abolição do castigo.
O abolicionismo penal lida com situações-problemáticas, na maioria das vezes envolvendo infrações cometidas por pessoas jovens e adultas pobres, migrantes e habitando condições de miséria social e pessoal. Nestas condições um anarquista abolicionista penal rompe com o direito universal e com os modelos recomendados e se arrisca ao propor respostas-percursos. Procura, desta maneira, cuidar de cada caso como um caso especial, como ele cuida de si. Prescinde dos pastores (do juiz, do promotor, dos advogados, dos técnicos humanistas, dos funcionários de gabinete e carcereiros orquestrados para proferirem um castigo sentenciado) que zelam pela ordem no rebanho. O abolicionista penal é um anarquista apresentando para a sociedade a experimentação da maneira como ele lida com infrações no interior da sua associação. Nela ele se ocupa com a infração de um jeito análogo ao que Claude Lévi-Strauss encontrou entre populações tribais − consideradas selvagens pelos normais −, evitando expulsar, confinar ou matar, afastando-se da idéia de criar um arquipélago repressivo.
Os velhos libertários como Willian Godwin, no século 18, e o jovem Etienne de la Boétie no século 16, queriam a luta contra com o Um, o soberano. La Boétie perguntava como as pessoas preferem o governo de outrem a viver livre de governos. Anunciava a incessante luta simultânea contra os assujeitamentos e os pastores, fato crucial da cultura contemporânea como registrou Foucault. Godwin invadia radicalmente a pretensão universal do direito moderno e da prisão, também esmiuçados por Foucault. Mas ambos, Godwin e La Boétie, anunciavam uma época que levaria os radicais a acreditarem que no futuro viveria o sujeito livre e autônomo, o verdadeiro Homem. Foucault, na esteira de Nietzsche, veio explicitar que esta pretensão revelava a desertificação do Homem moderno e com isso se afastou da utopia anarquista.
O anarquista evita o poder pastoral, estudado com afinco por Foucault, e que atravessa culturas com eficácia e re-ordenamentos. Ele se recusa a comandar, a se submeter a uma razão superior, como a da ciência, e escapa da inevitabilidade revolucionária herdada de Bakunin ou do anarquismo científico de Kropotkin. O anarquista sempre soube que preso comum e preso político é somente uma distinção de quem defende a continuidade, o recrudescimento ou a reforma do sistema punitivo e prisional. Enfim, o anarquista quando escapa dos efeitos da revolução russa e da sua repercussão na revolução espanhola, sem esquecer as respectivas experimentações, fortalece a sua associação e inventa sua estética da existência.
Foucault e os anarquismos estabelecem tensas situações irreversíveis a quem se dispõe a enfrentar o regime de governo e das grandes e quase imperceptíveis punições. Alertam para o perigo dos fascismos, os encantamentos com a democracia e com os consolos socialistas. Empurram o pesquisador para conhecer outras experimentações e reflexões. Impeliram o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP,www.nu-sol.org ), desde 1997, ao encontro com Max Stirner e a enfrentar o poder em ato. Viver sem camuflar o seu poder e as suas relações, contornando os perigos do enamoramento de si − tirânico e fomentador da acomodação na sujeição − e impulsionando para os riscos com os cuidados de si − libertários e provocadores de liberações.



* Edson Passetti e Salete Oliveira são professores no Depto. de Política da PUC-SP e coordenam o Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP. http://www.unicamp.br/~aulas/pdf3/32.pdf
Campinas, Unicamp, Volume 03 (dezembro/2006 - março/2007), 14 fls.


Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol
Texto extraido de http://www.nu-sol.org. Acessado em: 03/12/2014.