domingo, 29 de setembro de 2013

Drogas: “Precisamos sair da polarização neste debate”

Por Glauco Faria
“O debate ainda está sendo feito de forma ideológica e com bastante preconceito. Precisamos vencer esta etapa e discutir soluções embasadas em dados e boas práticas.” Essa é a avaliação de Ilona Szabó de Carvalho, cofundadora da Rede Pense Livre – por uma política de drogas que funcione. Lançada em setembro de 2012, a Rede reúne cerca de 80 lideranças jovens, entre “especialistas em políticas de drogas e redução da violência, empresários, jornalistas, cineastas, médicos, psicólogos, membros da sociedade civil organizada, pesquisadores, advogados e promotores culturais”, de acordo com Ilona. O objetivo é promover um debate amplo e qualificado por uma política de drogas realmente efetiva.
Ilona foi uma das entrevistadas da matéria “O fracasso de uma guerra sem sentido”, que faz parte da edição 126 da revista Fórum, nas bancas e nas lojas da Livraria Cultura. A edição traz um especial sobre a política de drogas no Brasil, abordando diversos aspectos de uma pauta que ainda está obstruída no cenário político nacional.
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Confira abaixo trechos da entrevista concedida por Ilona.
Fórum – Quais são os principais setores que resistem a uma discussão sobre mudanças na política de drogas no Brasil? Que tipo de interesses econômicos você identifica em algum deles?
Ilona Szabó de Carvalho – Hoje vemos o debate muito polarizado entre conservadores e alguns grupos religiosos de um lado e os movimentos chamados antiproibicionistas de outro.
Acontece que em ambos os lados existem pessoas e grupos com posições menos radicais ou resistentes, que não estão conversando como deviam para achar soluções equilibradas e baseadas no que funciona de verdade, respeitando os direitos humanos e colocando a saúde e segurança das pessoas em primeiro lugar. A polarização e rotulação das pessoas envolvidas nesta causa, de ambos os lados, não têm contribuído para o avanço de uma política equilibrada e baseada no que funciona.
“A política de drogas é aplicada de forma seletiva, sempre muito mais dura em áreas marginalizadas das grandes cidades, recaindo sobre populações que já sofrem muita negligência e abuso” (Foto Rede Pense Livre)
Fórum – Muitas vezes o discurso de endurecimento da política contra dados usa dados supostamente científicos. Como esses dados são manipulados e de que forma essa aura científica acaba reforçando ideias equivocadas na sociedade?
Ilona – O que vemos hoje é o pouco compromisso com evidências científicas e o desconhecimento, de alguns parlamentares e porta-vozes da posição mais conservadora, de todo o conhecimento adquirido nos últimos anos e das experiências internacionais bem sucedidas no campo da descriminalização, redução de danos e tratamento que deram certo.
O debate ainda está sendo feito de forma ideológica e com bastante preconceito. Precisamos vencer esta etapa e discutir soluções embasadas em dados e boas práticas.
Fórum – Como a atual política da área no Brasil contribui para a criminalização da pobreza?
Ilona – A política de drogas é aplicada de forma seletiva, sempre muito mais dura em áreas marginalizadas das grandes cidades, recaindo sobre populações que já sofrem muita negligência e abuso. A política atual de drogas permite que a lei do asfalto não valha para a favela. Por exemplo, nas favelas, a polícia entra na casa das pessoas sem mandato judicial, a qualquer hora, e pode fazer revistas, apreensões e cometer abusos graves, sem que tenha que responder por isso.
Esta política de guerra e enfrentamento também é responsável por boa parte das mortes por homicídios de jovens negros entre 15 e 19 anos, geralmente intitulados traficantes, como se isso justificasse execuções e outros abusos.
Fórum – Que países atualmente poderiam servir de modelo na questão da política de drogas no mundo?
Ilona – Diversos países da Europa vêm implementado reformas centradas na descriminalização do uso de drogas para consumo pessoal. Geralmente, as novas leis eximem os usuários de drogas ilícitas do processo criminal e da pena de prisão pelo consumo ou por atos preparatórios como aquisição, porte simples ou cultivo para uso pessoal.
O impacto da mudança tem sido avaliado como positivo. Em primeiro lugar, as diferentes experiências indicam que a descriminalização do uso não provocou um aumento geral no consumo de drogas, como se temia. Tampouco transformou os países que adotaram a medida em centros turísticos para o consumo de drogas, atraindo o chamado narcoturismo.
Do mesmo modo, em vários países a medida aliviou consideravelmente a pressão sobre as agências que integram o sistema de justiça criminal, possibilitando a utilização de mais recursos policiais na repressão do tráfico de drogas e do crime organizado. Por outro lado, a política também ajudou a remover as barreiras que impedem o acesso dos consumidores com padrões problemáticos de uso aos serviços de tratamento e de redução de danos.
Em julho de 2001, Portugal se transformou no primeiro país europeu a descriminalizar o uso e a posse de todas as drogas ilícitas. Muitos observadores criticaram esta política, acreditando que conduziria ao aumento do uso de drogas. Mas não foi o que aconteceu.
Na Espanha, a posse de drogas para consumo pessoal não é considerada crime e se encontra sujeita apenas a sanções administrativas, como multas, quando o consumo for feito em lugar público. Porém, a multa pode ser suspensa se o indivíduo aceita submeter-se a um tratamento.
Uma iniciativa interessante e inovadora vem ganhando corpo na Espanha. Os usuários de cannabis criaram um tipo de cooperativa na tentativa de organizar um abastecimento para o uso recreativo e medicinal da planta, sem ter que acudir ao mercado ilegal. Assim surgiram os chamados Clubes Sociais de Cannabis (CSC). As sementes da cannabis são compradas no mercado legal, por que seu comércio não se encontra proibido na Espanha, com dinheiro proveniente dos associados, que “financiam” o clube na proporção que consomem. Assim, através dos clubes, associados conhecem exatamente a origem e qualidade da substância que estão consumindo, valorizando sua autonomia como usuários.
Embora ainda não exista uma legislação que regulamente a atuação dos clubes e nem todos têm exatamente as mesmas regras de funcionamento, normalmente, para ser sócio, é preciso ser maior de idade, ser consumidor habitual de maconha e pagar uma quantia para poder consumir. Os sócios têm idades entre 18 a 70 anos e recorrem à sede para fumar sua cota mensal.
A principal intenção destes clubes é romper a relação dos usuários com os traficantes, criando uma alternativa de fornecimento legal para quem já usa maconha e inibindo simultaneamente o crescimento do mercado ilegal. Outra intenção foi a de criar espaços privados para o consumo de cannabis em grupo, já que o consumo em lugares públicos se encontra proibido.
Fórum – Como você vê o projeto do deputado Osmar Terra (PMDB-RS)? Quais os principais efeitos que teríamos para a questão da políticas sobre drogas, hoje, caso ele seja provado?
Ilona – A Rede Pense Livre se posiciona contra o projeto de lei apresentado pelo deputado Osmar Terra, que está em vias de ser votado no Senado Federal, pois ele é um projeto ultrapassado que não leva em consideração o aprendizado e evidências científicas dos últimos anos.
O PLC 37 (antigo PL) 7663/2010 representa um retrocesso em relação às conquistas e aos resultados positivos obtidos no campo do tratamento de saúde para usuários e dependentes de drogas. Propõe o endurecimento das penas relativas aos crimes envolvendo drogas, a retomada da política de internação compulsória e involuntária como pilar central para o tratamento dos dependentes.
Em 2012, a Organização das Nações Unidas recomendou aos países-membros a extinção imediata das internações compulsórias e dos centros de reabilitação forçada por não haver evidências científicas que os apontassem como estratégias exitosas de tratamento para usuários com dependência.
O próprio Ministério da Saúde defende uma perspectiva mais ampla de redução de danos em que a abstinência não é pré condição para o tratamento. A Lei 10.216/2001 determina que a internação nunca deve ser a primeira opção no tratamento das pessoas que sofrem devido a problemas associados ao uso de álcool e outras drogas.
O texto cria também um sistema paralelo ao SUS para atendimento dos dependentes e descredencia as comunidades terapêuticas que, apesar de controvérsias, fazem parte do sistema. Ao retirá-las da rede integrada de atenção, a política de saúde seria colocada em risco, uma vez que essas comunidades não estariam submetidas aos critérios mínimos estabelecidos pela política nacional de saúde.
Fórum – De que forma você enxerga o papel da mídia na discussão sobre o tema?
Ilona – A mídia tem papel fundamental: oportunidade de ajudar a quebrar de vez o tabu e incluir o tema de forma equilibrada e responsável na agenda política nacional. Pesquisa de opinião recente indicou que “ter um filho consumindo drogas” é uma das principais preocupações dos brasileiros. A mídia deve buscar o esclarecimento e a normalização do debate desta questão de saúde pública, deixando de alimentar o medo e o estigma e buscando discutir uma agenda positiva que de fato ajude a sociedade a lidar melhor com o problema. Precisamos sair da polarização neste debate.

Tanta água e a vida das horas mortas

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Diretoras uruguaias estreantes produzem filme sobre tempos aparentemente melancólicos, em que se operam transformações invisíveis. Adolescente concentra tensão
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Alfred Hitchcock tinha uma máxima: “O drama é a vida sem as partes chatas”. O que dizer então de toda uma linhagem de filmes que se detêm justamente nas “partes chatas”, naqueles tempos mortos em que parece não acontecer nada? Não é nada fraca essa vertente, na qual poderíamos incluir de Ozu a Lucrecia Martel, passando por Antonioni e pelo Wenders da primeira fase, a despeito das imensas diferenças culturais, filosóficas e estéticas que os separam.
Pois bem. É a essa linha que pertence o ótimo Tanta água, longa-metragem de estreia das uruguaias Ana Guevara e Leticia Jorge, muito bem recebido no último festival de Berlim.
No filme, Alberto (Néstor Guzzini), quiroprático quarentão divorciado, aproveita as férias para levar o filho pequeno (Joaquin Castiglioni) e a filha adolescente (Malú Chouza) a uma estância termal. Chove quase o tempo todo e eles ficam confinados a um chalé sem televisão nem computador.
Clausura e desconforto
A situação é mais exasperante para a garota, Lucía, que nos hormônios de seus 16 anos oscila entre o enfado e a inquietação. É ela, na verdade, a grande protagonista do filme, a personagem em que se concentra a tensão e se operam as transformações.
A sensação de clausura e desconforto é reforçada por uma decupagem que privilegia os closes e pormenores em enquadramentos obstruídos por algum objeto (ou distorcidos pela água), mostrando quase sempre apenas partes dos corpos e sonegando ao espectador os planos abertos, as visões de conjunto.
Nos ínfimos detalhes é que observamos o drama íntimo de cada  personagem. Pequenos eventos – como o encontro de Lucía com outra adolescente em férias, ou o tombo de bicicleta de seu irmão menor – suscitam revelações e mudanças sutis em cada um e no jogo de relações.
Arte da melancolia
A julgar pela literatura de autores como Juan Carlos Onetti e Mario Benedetti e pelo cinema de diretores como Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll (o mais famoso deles é Whisky), os uruguaios têm uma singular capacidade de captar e expressar a melancolia do tempo que passa, da “vida que poderia ter sido e que não foi”.
Tanta água de certa forma confirma essa tendência e, paradoxalmente, foge dela, ao centrar seu foco em Lucía, a adolescente que traz em si o germe da rebeldia e da transmutação. Ainda não foi nestas férias, mas quem sabe nas próximas?

Para uma escola além dos livros

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Filósofo australiano fala sobre um museu da empatia e aposta que mudanças sociais ocorrerão através das relações entre as pessoas, do compartilhamento da “arte de viver”
Por Patricia Gomes, no PorVir
O filósofo Roman Krznaric atrai públicos numerosos para suas palestras sobre amor, trabalho e vida. Mas, apesar da popularidade, ele dispensa formalidades. Senta-se no sofá do lobby de um elegante hotel na avenida Paulista, oferece um café e começa a falar com as pessoas que ele acabara de conhecer como se fossem velhos amigos. Fala sobre seus dias no Brasil, amigos em comum e já envereda para um de seus temas preferidos: o fato de os sistemas educacionais dos quais fez parte, como aluno ou como professor, não o terem preparado para a vida. “Vamos para a escola ou universidade e não aprendemos sobre as coisas que mais nos preocupam na vida, como a forma de construir relacionamentos, de lidar com problemas familiares ou de escolher a carreira”, diz o australiano que passou parte da vida em Hong Kong e atualmente está radicado em Londres.
É principalmente na capital inglesa que Krznaric tem posto em prática a resposta que ele e um grupo de outras pessoas deram para esse descompasso entre vida e escola. Ele começou na cozinha de casa, convidando amigos, depois amigos de amigos, depois amigos de amigos de amigos, para conversar sobre o amor. Daí, claro, a cozinha ficou pequena e os encontros passaram a ocorrer em locais públicos. Era o início da The School of Life, ou Escola da Vida, instituição que dá aulas, oficinas e cria materiais sobre temas relacionados a trabalho, amor, família, política e diversão e que agora chega ao Brasil para trazer para cá oportunidades de discutir os dilemas do cotidiano.
O próximo evento da The School of Life Brazil está marcado para domingo, no Rio de Janeiro, ocasião em que Krznaric vai falar sobre outro tema que lhe é muito caro, a empatia (as inscrições custam R$ 100 ). Ele é tão ligado ao tema que uma de suas maiores ambições na vida é criar o Museu da Empatia, espaço em que estranhos podem tentar se conhecer e estabelecer conexões, um pouco à luz de outra iniciativa que liderou, quando estava à frente da organização Oxfam Muse. Na época, ele promovia encontros um tanto inusitados: chamava grupos heterogêneos – 100 empresários e 100 moradores de rua, por exemplo – e promovia espaços em que representantes de cada um dos grupos pudesse ter conversas pessoais e profundas com desconhecidos sobre suas experiências com as diferentes formas de amor, com a morte ou algum outro tema existencial.
“Primeiro, eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a melhor forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam”, disse Krznaric, que além de professor universitário de sociologia e política, já experimentou – e adorou – ser jardineiro, é apaixonado por tênis e gosta de fazer móveis. Dentre os livros que já escreveu, Sobre a Arte de Viver (Zahar) e Como Encontrar o Trabalho da Sua Vida (Objetiva) estão disponíveis em português. Além disso, mantém o blog Oustrospection, em que divide seus pensamentos sobre a empatia e a arte de viver.
Em conversa com o Porvir, Krznaric falou ainda sobre como ele imagina um modelo de escola tradicional que fosse capaz de abordar os assuntos “que realmente importam” e citou modelos bem sucedidos de trabalhos com empatia. Veja os principais destaques da conversa.
“Primeiro, eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a melhor forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam”
Como começou sua inquietação com os modelos tradicionais de ensino?
Quando eu olho para a minha própria educação – graduação, pós, doutorado – eu a considero um fracasso porque eu não aprendi nela habilidades para a vida. Nós vamos para a escola e não aprendemos sobre as coisas que mais nos preocupam na vida, como a forma de construir relacionamentos, de lidar com problemas familiares ou de escolher a carreira, como pensar sobre a criatividade e seu potencial. Nada disso se aprende nos nossos sistemas de educação. Sempre achei que tinha alguma coisa faltando na minha própria educação.
Na minha jornada pessoal, eu era um acadêmico tradicional, ensinava sociologia na universidade. Mas a burocracia estava me deixando louco. Eu achava que só poderíamos mudar a sociedade por meio de partidos políticos. Mas então eu comecei a entender que a forma de transformar a sociedade era mudando a maneira como as pessoas se relacionam. Na forma como eu e você aprendemos uns com os outros, como nos colocamos no lugar do outro, como agimos com empatia, como você se compreende enquanto pessoa.
Pode dar um exemplo?
Comecei a trabalhar com isso na Oxfam Muse. A ideia era criar momentos de conversa entre estranhos e cruzar limites sociais. Reuníamos 100 empresários com 100 moradores de rua. Os convidávamos para um jantar em qualquer lugar, num museu, num parque. Entregávamos menus. Não menus de comida, mas de conversa. Havia perguntas sobre aspectos humanos universais: o que você já aprendeu com as diferentes formas de amor na sua vida? De que forma você acha que pode ser mais corajoso? A ideia era criar conversas de 1 para 1, em que as pessoas podiam se conectar umas com as outras para ir além do papo superficial.
Fizemos esses encontros também em escolas entre estudantes de diferentes idades, entre professores e alunos… Quando você tem 14 ou 15 anos, você pensa sobre tudo isso. Pode ser que você não tenha a linguagem ou espaço para falar sobre esses assuntos, mas todo mundo é especialista em sua própria experiência.
Qual era o propósito dessas conversas?
Criar conexões. Quando você tem uma conversa legal com alguém, você sente que mudou um pouco, criou-se uma espécie de igualdade. Nas escolas, estamos sempre cercados de estranhos. O que as outras pessoas pensam são pontos obscuros para nós. Em empresas também. O diretor de uma empresa pode não saber que sua secretária é uma exímia cineasta. Existem muitas coisas que não sabemos sobre pessoas que estão próximas e assim se perde muito potencial. Conversas são importantes para abrir a cabeça das pessoas.
Isso foi o início da The School of Life?
Tive muitas conversas com pessoas sobre os diferentes aspectos da vida. Entendi que eu queria dar aulas sobre a arte de viver. Percebi que havia um tipo de educação que ainda não existia. E nós até sabemos muitas coisas sobre vida, amor e morte porque as pessoas estão pensando sobre isso há milhares de anos, mas sempre podemos aprender mais se entendermos o que as pessoas da Grécia Antiga pensavam sobre o amor, o que as pessoas do Renascimento pensavam sobre morte, como as pessoas no oeste africano pensam sobre relacionamentos, o que podemos aprender, que ideias podemos ‘roubar’.
Então você já tinha a ideia e era só começar?
Eu não tinha um lugar. Aí minha mulher sugeriu que usássemos nossa cozinha no sábado seguinte. Chamei uns amigos para discutir, de manhã, como encontrar um trabalho que nos satisfaça e, de tarde, para repensar as ideias sobre o amor. Fui fazendo isso mais vezes e precisei sair da cozinha. Fui para espaços públicos e comecei a desenvolver uma metodologia sobre o que funcionava, que fosse um aprendizado pessoal e significativo. Queria ensinar filosofia grega de um jeito que não fosse só teoria.
Educação para a arte de viver não existe para crianças e jovens na maior parte dos países.
E como foi isso?
Eu e outras pessoas desenvolvemos cursos em cinco grandes áreas da vida: trabalho, amor, família, diversão e política. Passamos um ano pesquisando, pensando, conversando com pessoas para definir essas cinco áreas. Passamos dois anos desenvolvendo materiais, como as aulas seriam – mais do que um professor ir à frente e falar –, como seria a participação das pessoas, os debates, o tamanho das turmas, o material visual. Começamos a The School of Life e foi um sucesso. Mais de 100 mil pessoas já vieram ouvir o que temos para falar. Fomos para outros países do mundo, agora estamos chegando no Brasil e na Austrália e vamos expandir para outros lugares.
Descobrimos uma espécie de ‘fome existencial’ e estamos agora em um momento de inflexão da história. Temos um nível recorde de insatisfação com a vida. As pessoas estão procurando por significado em suas vidas. É por isso que, mesmo que não saibam quem eu sou e o que eu faço, as pessoas comparecem para ver o que eu tenho a dizer sobre repensar o trabalho. Elas querem alguma coisa. A educação moderna está fracassando. Claro, existem muitas organizações como a The School of Life que estão preocupadas com um aprendizado mais significativo, mas ainda é muito pouco. Educação para a arte de viver não existe para crianças e jovens na maior parte dos países.
Como você imagina uma escola que tenha um programa para ensinar a arte de viver?
Imagine que, numa escola regular, uma tarde por semana seja dedicada para a aula de vida, com três componentes. Em um, é o aprendizado tradicional, na sala de aula e ensina, por exemplo, os seis tipos de amor da Grécia Antiga. O segundo seria de conversas. Os alunos sairiam às ruas para falar com estranhos, visitar casas de repouso para cegos. Essas conversas podem ser de muitas maneiras, inclusive on-line, em que se pode ter contato com crianças no Quênia. O ponto é ir além do papo superficial de duas linhas do Facebook. O terceiro componente seria destinado a experiências de diferentes tipos de vida. Poderia ser ajudar alguém a construir uma casa ou um voluntariado com pessoas muito diferentes de você. Eu adoraria ver as escolas oferecerem esse tipo de educação para a vida, mas também adoraria que as escolas ensinassem empatia.
Como funcionaria?
A boa notícia é que 98% das pessoas têm a capacidade de desenvolver empatia, de se colocar no lugar do outro, ver o mundo pelos olhos de outra pessoa. Mas nós nem sempre usamos isso. Os outros 2% são psicopatas, pessoas com alguns tipos de autismo. Alguns acontecimentos na nossa vida erodem nossa capacidade de ‘empatizar’. A outra boa notícia é que empatia é uma habilidade que se pode aprender e se ensinar. Existem diferentes modelos de ensinar empatia. O mais famoso deles é o Roots of Empathy. Para mim ele é o melhor porque ele tem aqueles três passos sobre aprender, conversar e experimentar. Você coloca um bebê no centro de uma roda e as crianças interagem e falam sobre o bebê. Eles têm feito muitos estudos que mostram mudanças no comportamento das crianças. O programa torna as crianças mais empáticas, preocupadas com o outro, colaborativas, mas também as faz melhorar seus resultados em outras áreas, como autoconfiança e resiliência emocional. Mas há outros modelos.

Aborto: as estranhas razões da proibição

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Que leva a manter, por tanto tempo, uma interdição tacanha? Será apenas o preconceito contra o prazer sexual da mulher?
Por Bia Cardoso, no Blogueiras Feministas | Imagem: François Boucher
Sábado, 28 de setembro, é Dia Latino-Americano de Luta Pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Uma data para marcar ações e manifestações de apoio as mulheres que todos os dias recorrem a métodos ilegais de abortamento em momentos de desespero. Fora as que morrem todos os anos, vítimas de um sistema que condena e demoniza as mulheres por fazerem sexo.
O que vemos atualmente são ofensivas mentirosas e caluniosas, por parte dos setores conservadores, que tentam reduzir a questão do aborto a uma ameaça contra a vida de criancinhas, inclusive criando espantalhos, como na acusação de que o PLC 03/2013, que dispõe sobre o atendimento às vítimas de violência sexual no âmbito da saúde, seria uma tentativa de legalizar o aborto no Brasil. Fora outros tantos projetos de lei que ameaçam direitos já conquistados, como o Estatuto do Nascituro e a ofensiva contra uma reforma progressista do Código Penal brasileiro, que atualmente encontra-se em discussão no Congresso.
O conservadorismo e o obscurantismo do Legislativo brasileiro têm usado o tema para fazer ameaças e chantagens ao Executivo (que tem cedido e se acovardado), caso haja qualquer iniciativa de proposta. No Judiciário, ano passado foi aprovado o direito à interrupção da gravidez em casos de anencefalia, mas não andamos mais que isso. Falar em aborto no Brasil é tabu, assunto controverso, pouquíssimos políticos querem se ver associados ao tema. Há alguns anos vemos essa ofensiva contrária aos direitos reprodutivos crescer.
A vida de quem o Estado e a sociedade estão escolhendo, quando 95% dos abortos feitos na América Latina são inseguros? No Brasil, em 2007, uma clínica que realizava abortos clandestinos em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, foi invadida numa operação policial, televisionada em tempo real e transmitida em rede nacional pela TV Morena, afiliada da TV Globo no estado. Os 9.862 prontuários médicos apreendidos na operação, anexados ao processo criminal, ficaram acessíveis à curiosidade popular por quase três meses, violando os princípios constitucionais da privacidade e intimidade. Milhares de mulheres tiveram suas vidas devassadas e expostas publicamente. Atualmente, corre um processo criminal contra as mulheres que supostamente lá abortaram e também contra funcionários da clínica. O primeiro júri aconteceu em 2010.
Em reportagem da Pública – Agência de Notícias, Beatriz Galli, advogada, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da OAB do Rio de Janeiro e assessora de políticas para a América Latina do Ipas, fala sobre o simbolismo dessa ação num momento em que a descriminalização do aborto começava a ser discutida:
O habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública, que falava sobre todas as violações de direitos das mulheres durante a invasão da clínica, a falta de proteção da privacidade das mulheres, o manuseio dos prontuários por pessoas não qualificadas e a exposição dos nomes delas no site do TJ foi indeferido sem decisão de mérito”.
“Foi uma atuação simbólica, houve uma articulação política para começar uma criminalização massiva de mulheres em um momento que a gente começava a discutir a descriminalização do aborto no Brasil”, acredita Beatriz. “A maioria das mulheres fez a confissão para suspensão do processo (o que é previsto para o crime de aborto em troca de algumas condicionantes, como prestar serviço comunitário, em alguns casos, pagar multa, prestar contas ao juiz periodicamente), mas essa confissão revela uma série de desrespeitos processuais. Muita gente nem tinha advogado, não havia provas materiais contra elas. Só existiam os prontuários médicos com informações totalmente vagas. Não haveria base para elas serem realmente julgadas e condenadas” explica a advogada. Referência: Violações marcaram processos contra milhares em MS.
O livro ‘Isoladas – A História de Oito Mulheres Criminalizadas por Aborto’ conta parte dessa história, tendo como objetivo documentar, por meio de depoimentos, a história de seis das quase dez mil mulheres envolvidas no caso, além de duas profissionais que trabalhavam no local.
“Uma das questões presentes nesta documentação é a discussão sobre o estigma social pelo qual as mulheres ficam marcadas. O que isso representa para as suas vidas, como elas lidam com ele, de que forma isso mudou a convivência com a família, os amigos, os companheiros e no ambiente profissional são algumas das questões que poderão ser vistas a partir dos depoimentos, nos dando a ótica de quem passa pelo abortamento inseguro e como isso atinge o seu dia-a-dia.”
A questão do aborto é sempre estigmatizada, assim como o são as mulheres que abortam ilegalmente. Sim, existem métodos anticoncepcionais, há inúmeras formas de evitar uma gravidez, mas não existem seres humanos perfeitos. Como diz aquela máxima: até médicas ginecologistas engravidam sem querer. Infelizmente, a maioria das pessoas não consegue aceitar esses erros, em grande parte porque significa, na maioria das vezes, que uma mulher fez sexo por prazer. Então, o que as pessoas nos dizem é que não podemos culpar uma “criança” pelo erro de uma mulher. Mas podemos culpar essa mulher e impetrar sobre ela a pena de ser mãe compulsoriamente. Não há escolhas. Pela nossa legislação atual, se alguém decide arriscar a própria vida numa clínica de aborto clandestina, a pena deve ser cadeia. Por ter atentado contra a vida de quem nem existe.
Algumas vezes, as pessoas que abortam clandestinamente tinham o direito de realizar o procedimento legalmente, mas por pouca ou nenhuma informação, dificuldade de acesso, receio de como seria tratada ou a falta de serviços de referência, acabam recorrendo a procedimentos inseguros. O fato do aborto estar associado à criminalidade leva muitas pessoas a clandestinidade nesses casos.
É possível identificar esses fatores nos depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande:
“Eu tenho uma filha de 14 anos e, na época em que eu engravidei da minha filha, eu estava tomando remédio, anticoncepcional, e mesmo assim eu engravidei. Estava namorando uma pessoa, não era bem um namoro, era um conhecimento ainda, e fui a essa clínica para colocar um DIU. Lá, eles pediram para que eu fizesse alguns exames. Fui chamada até a sala da psicóloga e ela me disse que eu estava grávida de três semanas. Na hora eu fiquei desesperada. Minha filha tinha três anos na época. Eu sou mãe solteira, crio ela sozinha, então, para mim, foi um desespero, mais uma criança. Como que eu ia fazer?” (pg. 15)
“Estou começando a cumprir este mês essa pena. É recente. Eu acho muito injusto isso do julgamento porque eles cobram da gente uma postura com a sociedade. Na época que teve essa intimação, eu estava desempregada, como eu já disse, eu tenho uma filha e tenho a minha mãe, então, chegaram épocas na minha casa que a gente não tinha muita coisa, e a sociedade não se preocupa muito com isso. Daí, chega uma opção que eu tenho que fazer na minha vida, com o meu corpo, e aí eu tenho que prestar satisfação à sociedade. E é uma sociedade que me condena e que me dá o que em troca? Eu acho que existe um livre-arbítrio, e que cada um vai pagar, de acordo com os seus atos, então, o Estado, em vez de punir, de incriminar, deveria dar apoio, de ajudar. A política de planejamento familiar não funciona no Brasil. Então, eles não podem cobrar por uma coisa que não funciona. Eles não podem cobrar por uma coisa que eles não oferecem.” (pg. 19)
“O que me levou a fazer foi o seguinte: eu era muito jovem e já era mãe de uma criança recém-nascida. Por descuido meu… fiquei grávida novamente… e resolvi, optei por interromper a gravidez, tendo em vista que eu estava com meu companheiro na época por pressão da família, então, eu não queria persistir numa relação que não ia dar certo, na qual iria ficar amarrada por meio de filho, não achava justo ter mais um filho que os pais estariam separados e que uma filha só que eu já tinha poderia ter boas condições de criar sozinha. Durante essa gestação que foi interrompida, o médico viu, através de ultra-sonografia, que o feto era anencéfalo e tinha problemas de má-formação. Foi categórico quanto à sua perspectiva de vida, que provavelmente iria nascer e sobreviver por pouco tempo, ficar na UTI neonatal, ou ofereceria risco também para mim durante a gestação. Com toda a minha situação de vida e a pouca condição de vida do feto, optei por não ter. Como aqui era de fácil acesso encontrar essa clínica, tinha que passar por uma psicóloga na clínica dela e acertava, então não tinha porque recorrer ao meio judicial, ainda mais porque ia ser demorado.” (pg. 33)
Fala-se muito em vida quando se discute aborto. E, para muitos, colocar a vida de um feto como mais importante que de uma mulher pecadora faz mais sentido. A maioria questiona: por que não evitou a gravidez? Como se todos os métodos anticoncepcionais fossem infalíveis, como se os corpos não reagissem de diferentes maneiras a anticoncepcionais hormonais, como se fosse simples fazer uma esterilização. Como se fôssemos todos seguros de nós mesmos para entrar numa farmácia ou posto de saúde e adquirir camisinhas ou pílulas dos dia seguinte. Os depoimentos dessas mulheres servem também para pensarmos na vida de quem estamos falando.
Frente Nacional Contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto foi articulada por mais de cem entidades, espalhadas por todo território nacional, após esse episódio do Mato Grosso do Sul. Promove diversas ações em prol da descriminalização e legalização do aborto e, lançou em 2010, a Plataforma para a Legalização do Aborto no Brasil. Parece óbvio, mas é importante lembrar que qualquer proposta de legalização do aborto passa também por políticas públicas de planejamento familiar, prevenção da gravidez e direitos reprodutivos. Lembrando que não devem ser restritas apenas as mulheres, mas também devem contemplar todas as pessoas que podem engravidar, como homens trans*, por exemplo.
Então, quando falamos de legalização, não estamos falando de colocar uma “sala de aborto” em cada hospital, para onde as pessoas que recebem um resultado positivo de gravidez seriam prontamente encaminhadas. A proposta é que o Estado brasileiro garanta condições para o pleno exercício dos direitos reprodutivos, oferecendo todas as condições para que as pessoas decidam ter ou não ter filhos.
Lendo os depoimentos das mulheres criminalizadas em Campo Grande percebe-se o imenso estigma que o tema ainda carrega e a hipocrisia presente. Nos relatos há indícios de que a ação policial preservou a identidade de filhas e parentes de políticos da região. Todas são clandestinas, mas só algumas vão presas, só algumas são identificadas. Mas, muitas morrem todos os anos, especialmente as pobres, muitas vezes negras. A vida de quem o Estado e a sociedade estão escolhendo?

Outro Dia da Criança é possível

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Ansiedade provocada pelo consumismo pode deformar pequenos psíquica e afetivamente. Feiras de Trocas são alternativa socializadora e divertida
Por Lais Fontenelle Pereira
No Brasil, convencionou-se considerar 12 de outubro como Dia das Crianças. A data foi oficializada em 1924 pelo presidente Arthur Bernardes, mas só décadas depois, por volta dos anos 1960, passou a ser comemorada. Foi quando a fábrica de brinquedos Estrela lançou a Semana do Bebê Robusto junto com a multinacional Johnson & Johnson. Desde então, o dia foi mercantilizado e passou a ser vivido pela grande maioria das famílias como um dever ao consumo. Escolhi este tema para abrir, em Outras Palavras, uma coluna que pretende estimular reflexão sobre a criança contemporânea e sua relação com consumo, mídias, família, escola e cidade.
Depois dessa breve história, uma pergunta: o que de fato honramos atualmente, a criança ou o consumo? Porque para homenagear a criança faria mais sentido escolher 20 de novembro, data da aprovação pela ONU da Declaração dos Direitos das Crianças.
As crianças de hoje diferem das de outros tempos – principalmente pelo lugar de destaque que ocupam na engrenagem da sociedade de consumo. Recebem status de consumidoras no mercado, antes mesmo de estarem aptas ao exercício pleno de sua cidadania. São diariamente bombardeadas, em todos os espaços de convivência, por mensagens publicitárias abusivas que vendem a falsa ideia da realização de sonhos, felicidade e inclusão social pela posse de mercadorias. Mas as crianças são seres em desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo, e até mais ou menos os doze anos não têm capacidade crítica e abstração de pensamento formadas para retrabalhar essas mensagens persuasivas.
E aí está o problema: a construção da subjetividade da criança se dá também pela posse dos objetos que a cercam. Ela já nasce usando fraldas X, bebendo leite Z, brincando com bonecos Y. Desde muito cedo, passa a ser consumidora não só de objetos, mas também daquilo que eles representam. Outra pedagogia se instalou na vida de nossas crianças: a das mídias que falam diretamente com os pequenos, não só entretendo e informando, mas ditando valores e hábitos de consumo.
A criança brasileira é das que mais assistem TV no mundo: passa mais de 5 horas do dia sentada em frente à tela, em média (1). Em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica, esse tempo chega a espantosas 9 horas por dia – o que ultrapassa, em muito, o tempo que ela passa no ambiente escolar: cerca de 3 horas e 15 minutos. O problema se agrava se lembrarmos a publicidade veiculada por essa mídia, que parece hoje mais formadora da subjetividade infantil do que a escola, com forte impacto no desenvolvimento saudável das crianças. Isso, além de contribuir para o grave e urgente problema do consumismo na infância.
O consumismo tornou-se um hábito característico de nossa sociedade. Mas, como nenhuma criança nasce consumista, vale uma reflexão sobre quais hábitos e valores estamos transmitindo às crianças contemporâneas, para que prefiram comprar a brincar. Valores que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. A infância não pode ser aprisionada nos falsos ideais de felicidade vendidos pela sociedade de consumo. Criança precisa de muito pouco para ser feliz: precisa de olhar, de palavra, de escuta e de acolhimento.
Convoco então pais e cuidadores a inverter, nesse 12 de Outubro, a lógica consumista dominante e a trocar o shopping pelo parque, o brinquedo pelo afeto. O dia das crianças pode ser comemorado de outras formas. Foi pensando nisso que o Instituto Alana teve a iniciativa, engajada e divertida, de convidar pessoas de todo o país a organizar Feiras de Troca de Brinquedos (em eventos simultâneos no sábado, 12 de Outubro), para gerar um movimento nacional de transformação do olhar à relação da criança com o consumo.
Uma Feira de Troca de Brinquedos é também uma boa experiência para repensarmos a forma como nós, adultos, consumimos. São espaços que convidam a outra socialização e ao exercício de desapego, e maneira de colocarmos em prática a economia solidária e o consumo colaborativo. Nelas, as crianças têm ainda a chance de exercitar a conquista por meio da negociação entre pares. E o mais bacana é que na troca os objetos perdem seu valor monetário – e ganham outros valores, simbólicos e afetivos.
Ao emprestar novos significados e usos a objetos antigos, ao afirmar que as relações sociais e afetivas não precisam ser pautadas pela compra, a experiência das Feiras de Troca torna-se enriquecedora para pais e para filhos. Trocar pode, sem dúvida, ser bem mais divertido que comprar. Que tal, então, se engajar nesse movimento para celebrar o dia das crianças de forma mais humana e sustentável? No site do Alana estão disponíveis materiais de apoio para ajudá-lo a organizar uma feira. Compartilhe a ideia e divirta-se!
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1. Painel Nacional de Televisores (IBOPE/2012) – crianças entre 4 e 11 anos, classe ABC.

sábado, 28 de setembro de 2013

hypomnemata 160

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no.
 160, setembro de 2013.
Breves anotações sobre Estado, mercado e cultura.
A ditadura civil-militar instituiu, pela primeira vez no Brasil, uma política cultural. Se, desde a ditadura de Getúlio Vargas, os investimentos estatais na área da cultura eram difusos, em 1975 se estabelece a Política Nacional de Cultura, vinculada ao Ministério de Educação e Cultura, que objetivava fornecer as diretrizes para o incentivo à produção artística.
Além da criação ou reformulação de diversos órgãos, como a Funarte e a Embrafilme, esta política visava promover o financiamento de produções nas áreas de cinema, teatro, dança, música e artes plásticas por meio do repasse de dinheiro público sequestrado de cada um, sob a forma de imposto, e transmutado em verbas do tesouro nacional.
Determinou-se a necessidade do Estado de “estimular as concorrências qualitativas entre fontes de produção”.
A qualidade das produções se vincularia à precaução do que é denominado como “culto à novidade”, reiterando-se, com isso, a necessidade da censura prévia, executada por meio da Lei de Censura a Diversões Públicas de 1946.
Em meio ao milagre econômico, articulou-se a necessidade de criação de um mercado de cultura ajustado à política de segurança nacional, realizando o programa de instauração autoritária de uma racionalidade neoliberal.
Com a redemocratização, em 1985, foi criado o Ministério da Cultura. Em 1986, promulgou-se a Lei Sarney de Incentivo à cultura, primeira política de incentivo fiscal neste âmbito, substituída posteriormente, durante o governo Collor, pela Lei Rouanet, de 1991.
Em vigor até hoje, esta lei possibilita às empresas deduzir do pagamento de impostos o patrocínio à cultura.
Se durante a ditadura civil-militar estava em jogo a formação de um mercado, na democracia se explicita o vínculo entre Estado e empresas nesta área de investimento.
Em 2007, o então ministro da cultura Gilberto Gil propôs a implementação de um Plano Nacional de Cultura (PNC), que apontou novas diretrizes e estratégias de ação do Estado. Tendo como pressuposto a corresponsabilidade entre poder estatal e sociedade civil, ele foi elaborado através de seminários e encontros públicos tendo em vista uma “gestão pública e participativa” das produções culturais e artísticas.
As políticas compreendidas pelo PNC dizem respeito tanto ao incentivo fiscal, onde o Estado serve como intermediário entre empresa e artista, quanto ao fomento, em que o repasse de verbas do Fundo Nacional de Cultura é feito de forma direta.
Estado e mercado não estão separados. E não existe liberal, nem autoritário, que abra mão do Estado.
Fomentos, alternativas e empresários de si
Depois de décadas de reivindicações pelo comprometimento do Estado no financiamento à cultura, hoje os próprios artistas são convocados a participar na elaboração das políticas de fomento.
Os editais compõem um fluxo ininterrupto: sempre há um edital disponível para inscrição de projetos vinculados a temáticas variadas nos quais se pode propor espetáculos teatrais, performances, gravação de discos, publicação de livros, turnês, jam sessions, aulas de dança, exposições, ocupações, seminários, cursos, encontros, ações sociais, desfiles de moda, etc..
A noção de cultura, no interior das políticas de Estado, é cada vez mais elástica. Ela já não se restringe às produções artísticas, incluindo ano a ano novas categorias.
Hoje, interessa “ampliar a participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável”. É preciso que cada cidadão, além de produtor, se torne consumidor de cultura.
Se, por meio da Lei Rouanet, o investimento por parte dos empresários se dá preferencialmente sobre produções de grande abrangência e impacto comercial, as políticas de fomento possibilitam também o financiamento de ações locais voltadas a públicos mais reduzidos.
Não só o Estado, mas também empresas de capital privado promovem uma série de editais de financiamento. Há também as ferramentas colaborativas de financiamento online, o crowdfunding – o atual financiamento coletivo por intermédio da junção de múltiplas fontes, ou o eufemismo in english para uma das denominações de valor agregado capitalista para um produto.
Entre financiamentos estatais, empresariais, público-privados ou alternativos, há espaço para todos. Desde que o projeto responda aos interesses do proponente do edital ou consiga um número mínimo de seguidores dispostos a custeá-lo.
O que importa é que se produza cada vez mais, ocupando e entretendo tanto o público quanto os propositores de projetos.
Essas vias de financiamento apresentam lógicas similares e funcionamento complementar: submete-se uma proposta, contendo as devidas contrapartidas e inovações adequadas a cada caso. É possível se candidatar a uma ou outra destas modalidades, a depender dos interesses do propositor ou de suas necessidades financeiras.
Este trânsito permite que a produção seja m o d u l á v e l, contínua e inofensiva.
Se os artistas não dependem mais da indústria cultural, é preciso que se tornem empreendedores de si, aptos a formular projetos que articulem suas propostas aos interesses dos possíveis financiadores.
Se não está mais em jogo apenas a produção artística voltada para uma elite cultural, interessa a universalização do acesso à cultura como a garantia e condicionalidade regulamentar de cidadania.
A cultura funciona hoje como uma importante via de fortalecimento do Estado. É uma prioridade, articulada com a segurança, na agenda de ações voltadas para os denominados ambientes degradadospopulações vulneráveis.
pacificação e diversão
Nas favelas do Rio de Janeiro o que não falta é entretenimento e diversão patrocinados por parceiros da atual política de pacificação.
Todos os dias há um evento para ocupar, em especial, crianças e jovens. Afinal, agora é necessário atender à demanda de uma nova parcela consumidora que foi ampliada com a pacificação, e que se articula aos investimentos políticos, econômicos, sociais, culturais derivados dos empreendimentos voltados ao protagonismo e ativismo juvenil.
Os moradores ocupam seu tempo, investem em seu capital humano e fortalecem seu vínculo com a comunidade; os turistas – dos gringos às patricinhas da zona sul – podem entreter-se com a criatividade e a alegria desse lugar exótico, e depois voltar para casa.
Para que cada perfil encontre o programa perfeito, um jornal de grande circulação oferece um Guia Mensal com as melhores opções de lazer nas favelas “pacificadas”.
Passeios turísticos, festinhas badaladas, shows ecléticos – do funk à música clássica (inclusive da bandinha da polícia) –, exposições, sessões de cinema 3D, peças de teatro, espetáculos de dança, circo, colônia de férias, recreações, oficinas de artesanato, circuitos de mountain bike e festinha de aniversário da UPP. Essas são algumas “dicas culturais e de entretenimento” do Guia.
O presidente de uma das associações de moradores diz que este guia proporciona ao leitor a oportunidade de conhecer o lado mais bonito do que nomeia como “comunidades pulsantes”, isto é, sua cultura.
Entre esse e aquele entretenimento, a FLUPP (Feira Literária Internacional das UPPs) leva às favelas uma variedade de gente famosa e descolada para falar sobre literatura. Uma espécie de FLIP para quem não vai à Paraty.
A Feira procura formar novos leitores e autores a partir de encontros que acontecem previamente ao evento oficial, compondo a sessão que recebe o nome de FLUPP Pensa.
Seu objetivo é aproximar população e polícia, lembrando os policiais que é preciso abandonar o velho modelo de tratar favelados para passar a reconhecer a humanidade e complexidade de tal espaço.
Quem levará a questão à Academia da Polícia Militar será um conhecido cientista político, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Sobre o que falará? A respeito do processo civilizatório que diz estar chegando às favelas. De academia em academia, fortalece-se a autoridade do Estado.
Esses entretenimentos compõem políticas sociais governamentais, privadas ou ambas – as chamadas parcerias público-privadas.
Funcionam a fim de estabelecer certa aproximação entre Estado e população, de maneira que este vínculo alimente a crença na solução de problemas via instituições e intervenções, ditas pontuais e ambientais, do Estado.
A variedade de programas atrativos levados às favelas faz com que a população indesejada circule menos no asfalto. E grande parte da população pobre se satisfaz.
A mediocridade os faz crer que todo pobre tem seu lugar.
Ao combinar-se diversão, integração e polícia, mina-se a revolta e compõe-se a articulação da velha prevenção geral, que sempre se inicia por crianças e jovens, voltada agora não para o que capitalismo, Estado, proprietários e comunidades chamaram um dia de ‘meio marginal’, mas para o que passam a denominar de ambientes vulneráveis, atravessados pelo carcomido conceito de crime do qual nenhum Estado, nenhum proprietário abre mão.
Está em jogo formar jovens cordatos e comandados: protagonistas governáveis.
O que antes era considerado como manifestações marginais, como o rap e o funk, torna-se capitalizável pelo mercado para ser consumido dentro e fora da favela. Dissemina-se a cultura do gueto – onde, por meio da identidade, a raiva se transforma em amor pela chamada comunidade.
Cada coisinha dessas, que entretém, ocupa e diverte, fortalece a política de pacificação, justificada também pela responsabilidade em levar lazer para os morros.
Enquanto isso, no asfalto da cidade maravilhosa, grandes festivais e variados eventos para outro público, os mesmos assujeitados.
no rock in rio
A realização de grandes festivais, antes promovidos por empresas privadas, hoje se mostra cada vez mais como um interesse também estatal. Trata-se de um eficiente meio de publicidade – tanto para empresários quanto para governos –, além de uma forma de movimentar a economia.
A articulação entre Estado e empresas, e a própria constituição do Estado como uma empresa intensifica a produção desse tipo de evento no Brasil.
Nessa onda, ocorreu neste mês a quinta edição da versão repaginada do Rock in Rio, que de festival local tornou-se uma franquia planetária de entretenimento.
Para além dos patrocínios milionários e dos ingressos salgados, a marca-festival conseguiu a captação de R$8,8 milhões em dedução de impostos via Lei Rouanet.
Em quatro horas, os ingressos foram esgotados com uma média de 1.200 compras por minuto, atraindo milhares de pessoas sedentas por consumir as atrações que figuram – ou um dia figuraram – nas paradas de sucesso do Brasil e do mundo. E postar tudo no facebookinstagram e similares, em tempo real.
Dentre suas atrações principais, o mega evento trouxe a diva texana Beyoncé.
Em sua perfomance espetacular, a cantora trocou de figurino diversas vezes, montou e desmontou cenários e exibiu, ao longo do show, trechos de um vídeo produzido e protagonizado por ela.
No vídeo, Mrs. Carter, como a cantora gosta de ser chamada de modo a lembrar de seu maridão, o bem sucedido rapper Jay-Z (Mr. Shawn Corey Carter), interpreta a si mesma em sua ascensão de jovem sofrida e desmotivada à rainha sedutora e autoconfiante.
Beyoncé desponta em meio ao pop como figura feminina empoderada. Ela vende esse empoderamento com hits como Runthe world (girls) no qual canta: “Quem comanda o mundo? Garotas!” e o associa a um poder de sedução. Algo não muito distante da “buceta é o poder” das funkeiras cariocas do proibidão.
No entanto, Beyoncé comanda a ala das bitches de família. Produzida em meio ao machismo do hip hop e à ostentação da sensualidade aos moldes machistas das cantoras pop estadunidenses, vende uma imagem sensual e provocativa, mas a qual não abre mão de uma conduta sexual muito bem regrada e socialmente aceita.
Casada, fiel e poderosa ela canta, em um de seus maiores hits Single ladies (put a ringon it), “Se você gostava, então deveria ter colocado uma aliança”.
Afeita às causas humanitárias, Mrs. Carter se diz realizada ao final do vídeo, exibindo imagens suas em missões na África e entre refugiados.
No ano passado, Beyoncé causou polêmica ao vender um show privé a Mutasim-Billah, filho do ditador libanês Muammar Kadafi, por cerca 1,2 milhão de libras. Diante da pressão da imprensa e de alguns de seus fãs, doou o dinheiro para o Haiti.
Adepta à causa das mulheres, Beyoncé se calou diante da prisão das integrantes da Pussy Riot – acontecimento que causou furor entre artistas ao redor do planeta.
Ou seja: a benevolência também faz parte do negócio gerenciado por artistas e seus empresários, preocupados com a consolidação de sua marca.
arruinando mercado e Estado
A banda punk Pussy Riot com seus concertos punks em lugares “ilegais” – públicos e privados – recusa a autoridade do Estado e as investidas da indústria fonográfica e seus shows espetaculares.
Ninguém paga para ver um show das Pussy Riots. Suas músicas estão todas disponíveis na internet. Tudo é pensado e feito por elas, sem financiamentos, patrocínios, empresários... sem negócios!
O uso das ruas russas como lugar para o fazer artístico não é algo novo. Antes das pussies, os integrantes do grupo Voina (ao qual também foram associadas algumas integrantes da Pussy Riot) já praticavam uma ação anarquista artística de rua.
O Voina atacou museus, galerias e exposições de arte. Pichou um pau enorme em uma ponte, em São Petesburgo, ao lado da rua dos escritórios da KGB. Virou uma viatura da polícia para pegar uma bola, chutada por um menino para debaixo do carro. Cantou um punk rock, dentro do tribunal, durante um julgamento em Moscou.
Integrantes da Pussy Riot e do Voina são alvos da polícia russa e odiados pela parte boa da população do país. Alguns deles estão presos, outros respondem a processos na justiça. Uma delas iniciou, em 23 de setembro, uma greve de fome para expor o trabalho forçado ao qual foi submetido junto das internas, na Colônia Penal nº 14, utilizadas na produção de fardas para o exército russo.
No entanto, continuam a viver sua arte livre, contra o Estado e contra o mercado.
Desde a década de 1980, o movimento punk e algumas de suas vertentes inventaram formas de resistir ao Estado e ao mercado.
Deste tanto inventado pelos punks, uma parte acabou servindo ao Estado e ao mercado a partir de redimensionamentos menos combativos e mais afeitos a negociações, como algumas bandas que figuraram no Rock in Rio.
Hoje, há punks tocando em eventos organizados e financiados pelo Estado. Há punks envolvidos com ONGs, coletivos de alternativos empreendedores e uma ou outra “empresa do bem”.
Mas há punks que escapam tanto à nostalgia das décadas passadas quanto à independência alternativa.
Não só com o punk, mas outras práticas de associações livres produzem e divulgam fanzines, revistas, shows, gravações musicais, vídeos de forma autogestionária. A produção estética sempre foi uma prática importante para dar forma à combatividade anarquista.
Diante da convocação à criatividade para se produzir inovações que ocupem e entretenham a população, aperfeiçoem e movimentem o mercado e fortaleçam o Estado, libertários experimentam, pelo planeta, novas práticas que arruínam o Estado e o capitalismo, por meio de invenções livres.