terça-feira, 30 de outubro de 2012

flecheira.libertária.272


balancinho eleitoral: uma dúzia
As abstenções finalmente invadiram as pautas dos analistas político-eleitorais. Por que tanta abstenção? Porque: 1) esse povo não aguenta mais a mesmice; 2) está cagando e andando para o voto obrigatório e responde pagando a taxa estatal em cartório para não se ver prejudicado como trabalhador; 3) tem mais o que fazer do que perder o tempo em filas para digitar números de candidatos repaginados, anular ou deixar em branco; 4) sabe que votar é manter as coisas como estão quando quer mudanças; 5) sabe que votar nulo não é mais maneira de contestar a obrigatoriedade do voto na falaciosa democracia brasileira; 6) não quer ser governado; 7) quer ser governado e pouco importa o governante: 8) compõe um conjunto heterogêneo e de difícil mapeamento; 9) o assunto vai virar dissertaçãoe tese de alpinistas acadêmicos; 10) domingo fez sol; 11) todas e nenhuma das anteriores; 12) diga qual foi a sua. 
resistência guarani-kaiowá
Diante  do despacho da Justiça Federal para que certos índios abandonassem suas próprias terras, retomadas de proprietários, os  guarani-kaiowá do  tekoha denominado  Pyelito Kue/ Mbarakai, publicaram  uma carta, na qual, anunciam ao governo como decretarão  sua “morte coletiva”. Disseminada por blogs e redes sociais, a carta gerou protestos e publicações pelo planeta. Frente à preocupação crescente com o possível suicídio dos guarani-kaiowá, um líder do Pyelito Kue/ Mbarakai, Apykaa, afirmou que a “morte coletiva”, exposta no texto, não significa dar cabo da própria existência. Se for para a gente se entregar, nós não nos entregaremos fácil. É por causa da terra que estamos aqui, nós estamos unidos com o mesmo sentimento e com a mesma palavra para morrermos na nossa terra. Esta terra é nossa mesmo! (...) Nós morreremos se os fazendeiros atacarem. Ao contrário do suicídio, a “morte coletiva”, frente ao acossamento pelo Estado, proprietários e jagunços, afirmou a perspectiva de uma resistência vital.
para além do direito
Sob o efeito da publicação da carta, representantes da Justiça do Mato Grosso do Sul pronunciaram-se em nota explicando que a liminar expedida era referente à “manutenção de posse” e não de reintegração, isto é, a liminar servia  somente para reiterar  e lembrar os  guarani-kaiowá de que os proprietários daquele solo, segundo o Estado,são os fazendeiros.  Todavia, a  ardilosa distinção técnica, que escancarou ainda mais a escusa articulação entre proprietários e a Justiça, não alterou o ímpeto de resistência guarani-kaiowá. Mesmo sob alvo da violência amparada pela aliança entre os canalhas de toga e proprietários com seus jagunços armados até os dentes, um antigo guaranikaiowá, sentado sob o tronco de uma árvore,  bradou:  esta terra não é dos brancos, é nossa e de nossos antepassados.
para além do território
A nota emitida pela Justiça somente atestou a continuidade das violências contra os índios. Pouco se comentou, mas precisamente na mesma semana da sua publicação pela Justiça do Mato Grosso do Sul, uma jovem do Pyelito Kue/ Mbarakai, foi estuprada numa propriedade próxima, quando voltava do centro de Iguatemi em direção ao tekoha. Não é de hoje que certas mulheres  guarani-kaiowá são estupradas por proprietários e seus seguranças. Não é de hoje que índios são expulsos de suas terras e covardemente assassinados. Não é de hoje. A violência abominável contra os índios cresceu, precisamente e ao mesmo  tempo, com a criação do território chamado Brasil.  
elas não vão parar
Após apuração de recurso, uma das integrantes presas do  Pussy Riot, teve sua sentença revogada. Yekaterina Samutsevich foi posta em  liberdade condicional  no último dia 10 por, não ter participado,  formalmente, da manifestação política] na Catedral, pela qual ela e a mais duas pussy riots foram condenadas a dois anos de prisão. No mesmo dia em que saiu da prisão, deu entrevista a um renomado jornal estadunidense. Em meio a uma série de perguntas tolas, foi questionada: “você diz que vai continuar com seu protesto. Mas veja, você esteve na prisão por tantos meses e há cada vez mais leis e outras coisas que dificultam protestos na Rússia. Você não está com medo?”. A jovem russa respondeu que em momento algum, nem mesmo agora, teve medo e que, além das questões políticas que elas combatem continuarem em jogo, suas amigas seguem presas e isto é insuportável. Com um sorriso, acrescentou que apenas será “mais esperta” para não ser pega de novo. E a luta das pussy riots não cessa.
nós também não
Na semana passada, as outras duas  pussy riots presas foram enviadas pelo governo russo  a dois “campos de trabalho” no interior do país – os campos de Mordovia e Perm que, entre muitos outros, serviram para extrair força de trabalho, sangue e vísceras de milhares de pessoas durante o período da Ditadura do Proletariado. A justiça russa ainda não se pronunciou oficialmente sobre o caso e  a imprensa internacional não dá  notícia. Talvez porque a continuidade dos  gulags  sirva bem à produção capitalista; porque as pessoas não se incomodam com castigos e prisões; porque as torturas e mortes que  a partir  deles, impreterivelmente, seguem, e perpetuam ditaduras e democracias. Nadezhda Tolokonnikova e Maria Alyokhina estão encarceradas! Na Rússia e em cada canto do planeta milhões de pessoas estão presas! Como é possível que apenas para tão poucos isso seja insuportável? Será que só a filha de Nadezhda, uma criança de quatro anos, desenha rotas de fuga com escavadeiras para derrubar os muros da prisão e soltar a sua mãe?

sábado, 27 de outubro de 2012


Por meio de relatos, o filme revela a violência e as atrocidades cometidas contra internos em hospitais psiquiátricos. Retrata o tratamento e a injusta condenação que ainda recebem os portadores de sofrimentos mentais no Brasil. Neste tribunal, os hospitais psiquiátricos, com todo o seu notório saber, e a maioria de seus médicos, enfermeiros e atendentes, estariam no banco dos réus. 

O filme denuncia a falência do hospital psiquiátrico enquanto recurso assistencial. O caráter violador dos direitos humanos, os altos custos financeiros de sua manutenção e a sua ineficiência contradizem a força da sua presença no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Para o CFP, o cenário atual dos manicômios brasileiros é preocupante. Pelo menos 60 mil pessoas ainda estão internadas em hospitais psiquiátricos e diariamente são submetidas às mais perversas condições e situações de violência. E não é só. Há, ainda, 300 manicômios no Brasil, dos quais cerca de 80% são privados. Porém, todos eles, públicos ou privados, são financiados por recursos governamentais, consumindo cerca de 500 milhões de reais por ano. 

Em 2001, uma das vitórias das entidades que lutam pelo fim dos manicômios no Brasil foi a aprovação do projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG). Sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 6 de abril deste ano, o projeto de lei, que ficou 12 anos tramitando no Congresso, dispõe sobre a extinção gradual dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistênciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória, consolidando as emendas e subemendas aprovadas no turno suplementar. "Este é o momento mais importante da minha vida", festejou Geraldo Peixoto, vice-presidente da Associação Franco Basaglia e pai de ex-interno. 
buscado em: http://www.youtube.com/watch?v=x8d1ksPo0xs

flecheira.libertária.271


semelhanças 
Dominou as televisões paulistas: jovem denunciado pela mãe visando sua interdição dispara contra agentes judiciários e depois se entrega. Diagnosticado como esquizofrênico, ele declara ter suspeitado serem eles ladrões entrando em sua casa e atirou. Ele tinha um pequeno arsenal de armas obtido legalmente. Não precisa estar diagnosticado esquizofrênico para ter claro que as ações de ladrões e polícia se assemelham. Tampouco haver em grande parte dos cidadãos o desejo de matar infratores. Se os alvejados fossem ladrões talvez os psiquiatras consultados não o enquadrasse como anormal e a mídia o incensasse como herói do dia. Enfim, estamparam-se as semelhanças entre práticas legalizadas e os ilegalismos, a sede de vingança, a crença na punição generalizada e o ambíguo discurso psiquiátrico. 
contra o extermínio dos guarani-kaiowá
O consentimento com o extermínio dos guarani-kaiowá não cessou, pelo contrário, transformouse em apoio  explícito do Estado por meio de um despacho da Justiça Federal ordenando a expulsão dos índios das margens do Rio Hovy. Ameaçados, cercados entre jagunços, despachos da Justiça e as celas de fétidas prisões, os índios decidiram não abandonar a terra mesmo sob decisão do Estado. Em carta amplamente divulgada, os guarani-kaiowá afirmaram: sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do Rio.  
pela vida 
Nos últimos oito anos, mais de duzentos índios foram assassinados no Mato Grosso. Diante de tais violências, os guarani-kaiowá do tekohá denominado Pyelito Kue/Mbarakai pronunciaram-se afirmando que mesmo com o despacho de expulsão não sairão de suas terras.  Na carta que tornaram pública, os índios reclamam que o Estado decrete oficialmente “a morte coletiva” da gente que vive em Pyelito Kue/Mbarakai para que enfim possam morrer sob a mesma terra de seus antepassados. O extermínio dos  guarani-kaiowá pelo Estado e proprietários segue em frente e não é de hoje. Entretanto, se até recentemente ele ocorria na calada da noite, em ciladas pelas estradas, em atropelamentos duvidosos, e prisões, agora ele corre solto pela adesão escancarada do Estado por meio de despachos da Justiça favoráveis aos fazendeiros do Mato Grosso. O sangue não escorre mais somente no chão de terra batida dos guarani-kaiowá. Ele se esvai também, longe dali, entre o branco das folhas dos trâmites e o preto rançoso das togas. É preciso dar um basta no extermínio de índios no Brasil, já! 
balancinho eleitoral
Eleições paulistanas: com suas propagandas televisivas pautadas em louvar um em detrimento do outro, os dois candidatos, ambos o melhor ex-ministro, apresentam seus  clips  divulgando seus mirabolantes programas de governo recheados de depoimentos de gente simples. Somam índices de aceitação e rejeição; sobem e descem nas pesquisas. Fazem suas alianças políticopartidárias denunciadas por um e outro com base na moderação. Enfim, para um telespectador minimamente inteligente explicitam que governam pela programação da gestão com interesses específicos mostrados como interesse geral. Os governados nada querem saber do funcionamento de um governo; escolherão o mais qualificado tecnicamente. Por isso, o marketing eficiente investe na  catação de votos obrigatórios  de uma população que ama ser governada e que pouco sabe sobre o controle de empregos públicos. Abobada, ela assiste ou fica sabendo dos espetáculos de julgamentos de corrupções inerentes à existência de Estado e governos. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ninguém pode viver sem Estamira


Por Victor Melo
Estudou psicologia na Universidade Estadual de Londrina e fez mestrado na Universidade Paulista Júlio Mesquita - UNESP-Assis. Atualmente é professor no curso de Psicologia do CEULP-ULBRA, em Palmas.


"Eu quero compartilhar com vocês a minha visão do mundo, das coisas".
Estamira
Foto: Marcos Prado

Estamira é uma falecida senhora brasileira que viveu por 70 anos.  Sua trajetória de vida foi retratada no documentário “ESTAMIRA” dirigido pelo fotógrafo Marcos Prado que também dirigiu “Os Carvoeiros” e produziu o filme “Ônibus 174”. Existe uma temática que é transversal nesses três filmes de Marcos Prado: pessoas em condições de vida extremas, imersas numa sociedade que, há tempos, exporta, cada vez mais, o senso de justiça e importa, cada vez mais, a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem.
No documentário “Os Carvoeiros” Prado retrata a vida de famílias do interior do Brasil, em especial dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Pará, na produção de carvão vegetal que alimenta multinacionais do aço e de automóveis. Retrata o regime de trabalho dessas pessoas e nos mostra que a escravidão é uma prática que atravessa sociedade até os dias de hoje, mesmo nos países que possuem leis de abolição à escravidão, como o Brasil.
Marcos Prado parece querer dar voz às pessoas do dia-a-dia, pessoas cujas vozes não se ouvem, anônimas da sociedade. Ele busca retratar as condições de vida dos milhares de anônimos brasileiros, desde os explorados em sua força de trabalho até aqueles que, em meio às dificuldades de viver, praticam seqüestros, de forma desesperada, como foi no episódio do Ônibus 174. Ou seja, Prado trata em seus documentários, da injustiça, da exclusão, das desigualdades sociais com a tentativa de retratar o ponto de vista das pessoas que se submetem-são submetidas à injustiça, à exclusão e às desigualdades sociais.
O mesmo ocorre à Estamira. Marcos busca essa senhora, em seus 63 anos, e lhe oferece um meio de falar de suas condições de vida, aliás, um meio de viver, nas telas, as condições de vida que vivia há mais de 20 anos. E Estamira diz que sim, que tem algo a falar para o mundo. Ao longo do documentário, ela, no poder do microfone, tece sua concepção de vida e seu ponto de vista acerca do homem. “Assim falou Estamira” é um link do sítio oficial do documentário onde se encontram frases de Estamira. É interessante notar a relação que o sítio quer fazer com o filósofo Nietsche, autor de “Assim falou Zaratustra”. E isso se deve simplesmente pelo fato de Estamira praticar, ao longo das gravações do documentário, de pensamento filosofia, tecendo críticas pertinentes, atuais e ácidas quando à sociedade que a circunda. Estamira foi uma filósofa.
Vivendo e trabalhando no Aterro Sanitário Jardim Gramacho, a desconfiança e decepção com o homem são imanentes em seu viver, transbordam em suas falas, em seu pensamento, em seu andar, em seu habitat e na relação com a família. “Eu transbordei de raiva... transbordei de ficar invisível... com tanta hipocrisia, com tanta mentira, com tanta perversidade, com tanto trocadilo.”

Aterro sanitário Jardim Gramacho. Foto: Marcos Prado

Para Estamira, o homem que explora outro homem (a exploração em todas as suas formas: econômica, sexual, afetiva e etc.) é trocadilo. “Trocadilo é Deus ao contrário!” E mesmo que trocadilo seja outras coisas para ela, é também sinônimo de “amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, canalha, indigno, incompetente...”, pois “o trocadilo fez de uma tal maneira, que quanto menos as pessoas têm, mais eles menosprezam, mais eles jogam fora, quanto menos eles têm!...”
Suas falas são auto-referenciais, aliás, o seu sistema filosófico de concepção de mundo é auto-referencial. “Eu Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso.” A meu ver, de outra maneira talvez não poderia ser, pois todas as referências que teve na vida a traíram: seus esposos a traíram, os cientistas mataram sua mãe num hospital psiquiátrico, seu filho e neto insistem em catequizá-la, mesmo depois de Deus a ter traído. Sobre deus, Estamira fala: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!”

 
Estamira gesticula e diz sua concepção de mundo: "Tudo que é imaginário, tem, existe, é.". Foto: Marcos Prado

O mundo de traição em que Estamira viveu não poderia, em minha concepção, ser-lhe a principal referência de sentido e de produção de vida... a ideia de solidariedade, de sentido de vida e de inteligência não cabem num sistema referencial embasado na traição. A meu ver, a auto-referência como fundamento do mundo é a única relação em que ela pôde identificar vida depois de ter perdido a fé em seu próprio Criador. E a ciência vai chamar isso de psicose, de esquizofrenia, de narcisismo, de projeção, de formação reativa, de delírio, de discurso desconexo – Ah, não dá!!!
Estamira, a meu ver, possui a chave para o maior mal da humanidade, maior que a própria morte: tem a chave para a solidão – suporta a solidão como poucos; está no mundo, está no universo, sozinha – não vive em função de discursos, não vive em função de ninguém. Vive na Terra, pega-lhe uma carona e cuida dela transformando o lixo utilidades. “A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.”
 
Estamira, em conversa numa língua desconhecida pelo homem trocadilo. Foto: Marcos Prado

É contra a exploração que ela passa a explorar, não as pessoas, mas o Aterro Sanitário Jardim Gramacho. É do lixo e no lixo que ela passa a viver. É no lixo, com todo o seu mal-cheiro e possibilidades de doenças, que ela encontra seu habitat, suas referências pessoais, amigos e colegas, seu trabalho, sua educação, seu lazer, sua vida. É naqueles que reconhecem a própria responsabilidade do próprio lixo que ela se reconhece. E quem assim não o faz é hipócrita. Por isso não só vive com o objetivo de transformar o lixo material, mas também ao lixo abstrato, à hipocrisia. Ela mesma diz: “A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.”
Estamira denuncia a ciência como já o fizeram Boaventura de Souza Santos e outros autores críticos do epistemicídio. Revela a classe dos copiadores e dos dopantes, independente se a burocracia acadêmica e da sociedade formalizada pelos contratos aceita sua fala ou a divulga como formadora de opiniões. Tão pouco Estamira procura tal reconhecimento.
Enfim, Estamira se apresenta no documentário de Marcos Prado e nos vínculos que deixou após sua morte. Ela foi uma mulher que morreu aos 70 anos, no dia 28 de agosto de 2011, por conta de uma infecção que se generalizou na espera de seu atendimento no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade do rio de Janeiro. E é, hoje, uma personagem que se destacou pela forma brilhante de fazer de sua vida um fluxo de transformação, disruptivo, denunciante, instituinte.

Saiba mais:

FICHA TÉCNICA
Diretor: Marcos Prado
Produção: Marcos Prado, José Padilha
Roteiro: Marcos Prado
Fotografia: Marcos Prado
Trilha Sonora: Décio Rocha
Duração: 127 min.
Ano: 2004
País: Brasil
Gênero: Documentário
Cor: Preto e Branco
Distribuidora: Não definida
Classificação: 10 anos

terça-feira, 16 de outubro de 2012

flecheira.libertária.270


balancinho eleitoral 
Entre as suavidades e as diatribes encenadas dos marqueteiros, os efeitos de sondagens eleitorais, passeios de candidatos pelas periferias e ajustes nos negócios político-partidários, segue a disputa eleitoral pelas prefeituras. Levantam-se suspeitas sobre manipulações. Mas como não haver o  melhor engendramento quando está em jogo compor o corpo majoritário na política democrática? A representação é isso. A liberdade para existir deve abalar a representação, este ato teatral pelo qual um fala e governa os demais. No balancinho eleitoral, crescem as abstenções...  
sobre abstenções 1 
Em um Estado que obriga ao voto porque os cidadãos  ainda são considerados deseducados para a democracia, deixar de se apresentar no teatro eleitoral da política começa a tomar vulto: 1/3 do eleitorado da cidade de São Paulo não compareceu ao primeiro turno. Todos terão de justificar a ausência. Esta é a rotina estabelecida, desde os tempos da ditadura civil-militar, para controlar a cada um. Contudo, há um efeito a ser analisado por politólogos, marqueteiros, políticos, jornalistas e cidadãos...  
sobre abstenções 2 
Entre os que não compareceram há, sem dúvida, os que preferem vadiar, mas há também os que combatem a  encenação democrática, os contestadores, os livres. A obrigatoriedade do voto, estatisticamente, está anunciando uma derrocada do voto obrigatório, ou simplesmente mostrando que voto facultativo e obrigatório são partes de uma encenação que está se esgotando... Adiante, isso pode ser indício de contestação mais radical como também de ampliação de um fascismo mal disfarçado. 
eleições: presos em casa 
A Fundação Casa ― enorme complexo prisional para jovens no estado de São Paulo vinculado à Secretaria de Desenvolvimento e Ação Social ― divulga seu orgulho diante do que chama de “verdadeiro exercício de cidadania”, pela participação, na condição de eleitores, dos jovens que se encontram lá encarcerados. Mas não só. Ressalta o significativo número de egressos, que voltaram à Casa para votar pois é lá que se encontra seu domicílio eleitoral. A prisão não só explicita da maneira mais crua o aprisionamento que envolve o trâmite eleitoral, como mostra sem pudor, a partir da continuidade de cárceres para jovens no país, o aprisionamento que incide na redução de qualquer cidadão a um potencial prisioneiro do território do Estado. Um jovem que cumpre ou cumpriu pena sob a nomenclatura de medida socioeducativa está enredado, definitivamente, a uma pena que não finda, e cuja dívida infinita se situa, também, no denominado direito. Esta é a obrigatoriedade ao irremediável. É o retorno de onde nunca saiu: o cárcere seja ele transvestido de domicílio ou casa. 
eleições: presos de volta para casa 
Enquanto isso, em Atalaia do Norte, no estado do Amazonas, inúmeros indígenas ficaram presos sem ter como voltar para suas aldeias, pois não tinham  dinheiro para isso. Permaneceram ali, acampados em canoas na beira de um rio, junto a fossas de dejetos, naquilo que mais parecia um campo de refugiados flutuante, sem ter o que comer e beber, após seu translado de centenas de quilômetros, até as urnas mais próximas para votar. É que os coronéis, os canalhas capitalistas proprietários de terras que 
custearam sua ida às urnas, como perderam as eleições, negaram-se a pagar a viagem de volta.  
sem volta 
Diante das condições em que ficaram expostos, duas crianças indígenas morreram. É aqui, também junto aos índios ao lado de crianças que se esvaem por infecções, desidratadas, entre diarreias e vômitos que habita o outro flanco, deliberadamente não notado, dos suaves genocídios, dos cuidadosos etnocídios, dos encarceramentos protetores, acompanhados dos exercícios inclusivos e muita prisão, que se instalam em prédios, complexos, zonas, cidades, florestas, reservas, sertões, beiras de rio, igarapés, grandes cidades, ou num mangue, ou fim de esgoto sujo, onde cotidianamente é dado cabo de um corpo de criança ou jovem. Lá e aqui, onde pastam as moscas e os ratos.  
fim de feriado 
Domingo, 14 de outubro de 2012: mais duas favelas foram ocupadas no Rio de Janeiro num prosseguimento da chamada política de pacificação do governo estadual, com apoio do governo federal. Manguinhos e Jacarezinho são favelas do corredor de entrada do Rio que inclui a via expressa que liga o aeroporto internacional às zonas sul e central da cidade. A operação foi concluída às 10h da manhã, após rápida incursão das forças de segurança, sem tiroteio e com direito a hasteamento da bandeira do Brasil e hino nacional. As autoridades comemoraram mais uma “reconquista territorial” e sinalizaram para a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora até o final do ano. Ficaram satisfeitas, também, com a lisura e eficiência da operação, finalizada a tempo de que os cariocas voltassem para casa do feriado nacional com calma e segurança.  
junto e misturado 1
Enquanto blindados da Marinha passavam por cima de rústicas barreiras deixadas nas entradas da favela e policiais militares ― com a tropa de elite na vanguarda ― entravam nas favelas de Manguinhos e do Jacarezinho, acompanhados por uma retaguarda composta por policiais civis da divisão antidrogas e assistentes sociais. Os policiais civis buscavam capturar traficantes e iniciar investigações que se desdobrarão depois da ocupação das favelas. Os assistentes sociais localizaram e recolheram ― com apoio 
da PM ― cerca de 80 usuários de crack, encaminhados para triagem e tratamento compulsório. A  pacificação de favelas é conduzida por uma coalizão civil-militar que inclui forças armadas, policiais militares, policiais civis, policiais federais e assistentes sociais. 
junto e misturado 2
Mas não só. Logo virão ― ou aumentarão sua presença ― ONGs e projetos sociais de empresas e o programa UPP Social da prefeitura do Rio, com serviços públicos bancados pelo município. Uma grande composição de forças voltada à integração e que produz modulações nos tráficos e ilegalismos que não cessam, mas que se redimensionam sob a aprovação geral de favelados, empresários, políticos, militares, ongueiros, todos de olho em novos negócios e dividendos políticos. 
pacificações: presos por ambos os lados 1 
Enquanto isso, no início da manhã dominical, uma das maiores empresas de difusão em informação do país e do planeta suspende sua programação habitual para transmitir cobertura  completa acompanhada de comentários do antropólogo  especialista em segurança pública, propalando os já conhecidos elogios ao sucesso das  operações complexas de pacificação. Derramando verborragia sobre o inaceitável, reitera o consenso sobre a internação de crianças e jovens revestidas do novo-velho termo de recolhimento. Reversos do mesmo. A prisão acolhida que corre solta pelas ruas e sobre a qual quase ninguém tem coragem de se levantar e dar um basta. 
pacificações: presos por ambos os lados 2 
O foco da ação complexa, na madrugada do domingo, dirige-se ao que nomeiam de zona periférica dos complexos, envolvendo “a nova cracolândia”. E isto muito longe de arranhar, também faz parte das contrapartidas da mesma lógica que se iniciou pelo acordo entre o PCC e Fernandinho Beira Mar para aval de entrada do  crack, o lixo reciclado da cocaína, no Rio de Janeiro. Sem acanhamento algum, a senhora especialista e autoridade responsável sobre os informes da Secretaria de Desenvolvimento e Ação Social, explicita que a prisão sempre começa por crianças e jovens ao distinguir que para adultos cabe o recolhimento e para crianças e jovens o recolhimento compulsório, e não há discussão.  
pacificações: presos por ambos os lados 3 
Distingue-se o que se reitera. Os já conhecidos argumentos do velho-termo de polícia, de qualquer traficante, ou seja, de qualquer capitalista: o sucesso da abordagem. Deseja-se manter inalterado o estado das coisas, e conservar intocada a continuidade da prisão para crianças e jovens no país, sob outros revestimentos do chamado  cuidado  com elas e de sua proteção integral, garantida também pelo que a encadeia na  cadeia: o sucesso da abordagem. Enquanto isso, neste momento, crianças e jovens estão presos. Seguem em cana entre abordagens, triagens, novos encaminhamentos, processos, julgamentos, tribunais, celas e escolinhas, programas, projetos... Isto se chama, também,  inclusão pelo aprisionamento, sob a ampliação do mercado complementar entre os chamados lícitos e ilícitos que não se apartam do mercado da proliferação de infindáveis direitos.

hypomnemata 148 - nu-sol


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 148, setembro de 2012.
 livres em linhas de fuga
 livres, pussy riots
            Após Vladimir Putin anunciar sua candidatura às eleições presidenciais de 2012, no final do ano passado, um grupo de jovens mulheres russas criou oPussy Riot  grupo punk feminista cujas letras e performances atacam dispositivos da política Russa.
         Desde então, as pussy riots tomaram lugares simbólicos da história política do país tocando punk rock de letras contundentes e vestindo balaclavas e roupas coloridas.
Sobre os muros vizinhos do Centro de Detenção de Moscou elas gritaram:

a urgência da morte à prisão!

Dentro da estação central de metrô moscovita chamaram uma revolta popular.
Na Praça Vermelha, ao lado do Kremlin, saudaram a revolta russa que faz “Putin se mijar”.
Elas se apartam dos protestos-clamores em torno de ressuscitações de nacionalismos.
Lembrando uma história atravessada por lutas anarquistas cantaram o jorro da “Kropotkin – vodka” sobre o telhado de um café gran fino, enquanto simulavam masturbações na vitrine de uma butique luxuosa e interrompendo um desfile de moda na passarela.
Na Catedral do Cristo Salvador oraram a “Reza – punk: Virgem Maria, ponha o Putin para fora”.
         As garotas foram presas após quase todas essas apresentações, e soltas pouco tempo depois.
No começo de março, depois da apresentação da reza-punk, três integrantes do Pussy Riot  Nadezhad Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich e Maria Alyokhina  foram presas e permaneceram na prisão aguardando decisão judicial.
         As outras duas integrantes que também tocaram na Catedral escaparam da Rússia.
A escolha das garotas por atacar lugares políticos simbólicos é por um combate aos dispositivos de governo sacralizados.
Ao profanarem esses dispositivos elas produzem novas linhas de fuga.
         Por conseguinte, as três garotas, depois de 5 meses presas, foram condenadas a dois anos de prisão no dia 17 de agosto de 2012.
         A atenção da imprensa global sobre este caso aumentou na medida em que se aproximou a data do julgamento e foi impulsionada, em grande parte, pela manifestação de grupos em defesa dos direitos humanos como a Anistia Internacional, organizações feministas e lgbtt’s, e astros da música pop como Paul McCartney, Björk, Sting, a banda Red Hot Chilli Pepers e a cantora Madonna.
Ao clamar pela libertação das garotas, por eles consideradas “presas políticas” e vítimas de uma “política tipo stalinista”, em nenhum momento os pop stars e os grupos de defesa de direitos questionaram a existência da prisão enquanto dispositivo político inerente e imprescindível a qualquer Estado democrático ou ditatorial.
         As garotas mostraram que a sua prisão não se reduz a ataque específico ao Estado russo com relação à liberdade de expressão, mas sim ao roubo sistemático praticado por qualquer Estado.
Nadezhad Tolokonnikova, antes de adentrar ao tribunal com o braço esquerdo em riste, declarou à imprensa:
“Nós estamos na prisão.
É um sinal claro de que a liberdade está sendo roubada por toda a Rússia”.
         Chefes de Estado de vários países se declararam contrários à decisão do governo russo.
Diplomatas estadunidenses rapidamente se pronunciaram acerca do veredicto considerando o deferimento “desproporcional”.
         Enquanto isso, em frente ao consulado russo de Nova Iorque, mulheres e homens vestindo balaclavas coloridas foram presos pela polícia local.
Mais uma vez escancarou-se a imprescindibilidade da prisão enquanto dispositivo político inerente a qualquer Estado, desta vez, a partir do modelo da democracia estadunidense.
Além de Nova Iorque, no dia da condenação, protestos aconteceram em diversas cidades do planeta, com maior expressão em Berlim e em Moscou.
Nesta última, dezenas de manifestantes foram presos, entre eles, os integrantes de um grupo que escalou as paredes do tribunal e gritou “free pussy riot”, assim como o campeão de xadrez, Gary Kasparov, que mordeu a mão de um policial que tentava prendê-lo.
         Presas em um cubo de vidro, Nadezhad Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich e Maria Alyokhina riram constantemente durante todo o julgamento.
Elas se recusaram a pedir perdão ou assumir a culpa e de modo contundente responderam a quem pretendia perdoá-las:
 “que vá para o inferno como o seu perdão!”
Fora da prisão, outras integrantes do Pussy Riot compuseram a música “Putin acende o fogo”  escancarando que

as detenções não cessam as revoltas
e que quem as teme é o Estado e não o contrário.

         As pussy riots continuam na luta, profanando dispositivos, inventando novas linhas de fuga, escapando, por hora, de suas capturas.
Não foram pegas pelo investimento da imprensa nem demais instituições, pois ainda que estejam encarceradas, não participaram do tribunal, e permaneceram rindo: refutaram a culpa, o perdão e a desculpa.

f r e e        c      a     g   e
setembro de 2012, diversas homenagens foram organizadas para celebrar o centenário do compositor inventor libertário john cage.
em um de seus escritos liberadores, cage afirmou: algumas vezes você usa o acaso e outras, não. os cogumelos são uma dessas ocasiões em que você não pode usar o acaso porquê você corre o risco de se matar.
os cogumelos e a música, mushrooms and music, certamente foram duas das grandes paixões deste inventor nascido em 1912, na califórnia, eua, país onde nasceu mas que descobriu somente depois das leituras, na década de 1930, do poeta walt whitman.
happenings e concertos celebraram cage em seu centenário.
pouco se comentou acerca de seus escritos.
e foi precisamente nesses escritos que ele afirmou de maneira mais incisiva sua perspectiva libertária estética em sua própria existência.
inovadores, imprevisíveis, surpreendentes, refinados, enfim não faltam qualificativos aos seus livros.
neles está o pensamento do inventor para além da música, expondo seus ditos singulares acerca de ecologia, arquitetura, tecnologias avançadas, cogumelos, povos indígenas dos estados unidos, guerras, comunicação, filosofia oriental, entre outros múltiplos motes.
por meio da exposição da verve dos escritos do inventor estadunidense, poderíamos somar a isso tudo uma outra paixão sua, a anarquia.
escreveu nos anos 1960, em “fim de papo”, citando henry david thoreau que o melhor governo é o que não governa coisa nenhuma.
prosseguiu no mesmo ensaio, para enfim concluir:
se prestarmos atenção à prática de não-ser-governado, observaremos que ela está crescendo (...) a queima dos cartões de convocação. haight-ashbury;
a evasão de impostos. catorze mil americanos renunciaram à cidadania em 1966. desobediência civil;
não pagamento de impostos...
dez anos depois de “fim de papo”, ao articular anarquismo e música numa conferência em nova iorque, analisou sob perspectivas anarquistas de educação libertária e do antimilitarismo que existem recursos intocados em crianças e adolescentes, aos quais não temos acesso porquê os mandamos para a escola; e entre os militares, que perdemos por mandá-los para lugares ao redor do mundo, e sob sua superfície, para instalações ofensivas de testes de bombas.
se a escritura de cage foi pouco comentada durante as comemorações de seu centenário, menos ainda se falou sobre o anarquismo singular deste homem que quando veio ao brasil, envolveu-se com as agitações libertárias em plena ditadura civil-militar.
em 1968, participou de um encontro realizado no rio de janeiro.
o libertário pietro ferrua recordou que o convidou para falar sobre anarquismo depois de conhecê-lo na casa da compositora jocy de oliveira.
ferrua combinou de ligar no dia seguinte para cage.
contudo, como relembrou posteriormente, conseguir uma linha de telefone no final dos anos 1960, no brasil, podia resultar em mais de duas horas de espera na fila.
cage aguardou a ligação em vão.
todavia, os libertários descobriram o endereço em que ele estava hospedado e enviaram um carro para buscá-lo.
no encontro, cage falou sobre paul goodman e revolução não-violenta associando-a com a utilização de novas tecnologias, irritando alguns sindicalistas presentes.
quando começou a dizer sobre sua paixão pelos cogumelos foi interrompido por um provocador, provavelmente infiltrado, que se levantou e disse que a plateia esperava dele a receita de uma revolução e não aquela culinária.
recebeu como resposta do inventor libertário a seguinte pergunta: como vocês querem fazer uma revolução se os telefones não funcionam?
ao despedir-se de cage, pietro ferrua convidou-o a escrever algo sobre anarquismo para ser divulgado como propaganda libertária.
o inventor anarquista replicou afirmando que no percurso de seus textos já havia passagens recorrentes sobre o seu libertarismo.
vinte anos depois, escreveu o livro anarchy, composto por mesósticos dedicados a kropotkin, tolstoi, emma goldman, thoreau, entre outros libertários.
2012: centenário de john cage.
no momento em que certos jovens articulam-se nas chamadas “marchas” que reivindicam desde a denominada “democracia real” e a legalização do uso de substâncias consideradas ilegais pelos governos, podemos recuperar suas afirmações de desmilitarização da linguagem e abolição da comunicação.
precisamos de uma sociedade na qual a comunicação não seja praticada, na qual as palavras se tornem nonsense, assim como acontece entre amantes.
hoje, enquanto militantes saudosistas se alojam por trás de léxicos do século XIX, ecologistas radicais defendem o primitivismo diante da utilização das tecnologias, chefes de estado negociam políticas em nome do “futuro”, acompanhar o movimento liberador dos escritos de cage, free cage, é ainda mais urgente.
distanciando-se dos consolos e tristezas utópicas, cage instigou a anarquia como experiência em movimento.
desde o final da segunda guerra mundial, as movimentações políticas que explodiriam nos anos 1960, já eram anunciadas por certos libertários estadunidenses. paul goodman, participara na segunda metade dos anos 1940, da publicação libertária why? e de encontros com refugiados da revolução espanhola na sede da SIA (solidariedade internacional antifascista). julian beck e judith malina, inventavam em 1947, o living theatre. nesse mesmo instante cage combinou em sua escrita libertária as práticas de liberdade de thoreau com a de libertários como emma goldman . ultrapassando os embates do século XIX e início do XX, ainda incorporou em suas afirmações as experiências estéticas propiciadas por invenções de alta tecnologia. deste modo inventou um anarquismo singular, interessado em embates desvelados no presente.
se a gente ‘pensa’ de modo fixo, imóvel, sobre o ‘quando os homens estiverem preparados para isso’ esse ‘quando’ parecerá sempre inatingível.
Para além das comemorações o vital é cage free, now!

Educação para a Potência Aula 1 (Ditos Transcritos)

(Transcrição literal sem revisão do autor feita por Renata Melo)
EDUCAÇÃO PARA POTÊNCIA - Aula 1 / Ano 2008 - Turma II
Por Luiz Fuganti
Esse curso faz parte de um projeto maior, “bem ambicioso” chamado Filosofia na Primeira Idade, que tem uma visão muito diferenciada em relação a educação, a filosofia, a estética, a ética, a memória. São estas as questões que vamos trabalhar aqui. Educação para Potência é um nome que contrasta com os modos tradicionais que, a meu ver, são todos voltados para uma educação para a obediência. Nossa idéia é desmontar, desconstruir o sentido que se tem de educação. É muito raro ver uma educação que, de fato, se volte para a potencia. Existem escolas que trabalham a competência, mas a competência é ainda algo que se refere às disciplinas. Não que a disciplina seja em si algo ruim, mas o uso que se faz dela que pode ser algo muito nocivo. E a disciplina num sentido moderno, kantiano, tem a ver com certo instante de autoridade ou de autorização. Então você adquire um saber e na medida em que se torna apto a aplicar esse saber, você adquire uma competência e também uma autoridade. A educação está toda fundada neste modelo.
Por mais que se diga que a educação liberta, a nosso ver, esse tipo de educação aprisiona. A educação é uma forma de engajar o desejo, assim como a família e outra instituições, numa forma humana de viver, que a nosso ver, ao longo da vida, vai despotencializando a vida. Então esse curso se insere numa postura crítica em relação aos valores estabelecidos, às nossas práticas humanas em todas as áreas, ao mesmo tempo em que nos insere numa postura criativa. Criar uma linha de fuga afirmativa, uma outra maneira de existir, de agir e de pensar. Essa postura lança um desafio que não é pequeno. Um dos motivos que nos levou a investir nessa área também é que hoje em dia os homens mais conservadores, os mais moralistas, os mais místicos, os mais de esquerda, ou seja, todo espaço entre deus e o diabo, entre o bem e o mal, todos dizem, unanimemente: a educação é a saída. É de se estranhar essa unanimidade? Não, porque a educação sempre foi uma máquina de fazer com que a vida, de alguma maneira, se conformasse com um modo moral e racional de ser. Muitas vezes vemos estudantes universitários se rebelarem, que a educação está errada, que os currículos enchem lingüiça, muita coisa não tem nada a ver com a prática da vida, mas na verdade, se analisarmos, veremos que não está nada errado. Se a sociedades com suas instituições, quisessem, de fato, mudar a educação, já teriam feito. Mas não há este investimento, esse desejo. O desejo é sistematicamente quebrado sempre que ele tenta mudar uma postura, ou inventar outra maneira, ele é quebrado pela máquina de anti produção social, que mais tarde vamos falar. O que mais a gente vê são professores, coordenadores, diretores, educadores, se queixarem que o ensino está ruim, a rede do estado, do município, da união, etc. E há um investimento de forma quantitativo na educação, assim como na saúde e outra áreas. Nenhuma criança fora da escola. Será que não seria uma sorte uma criança ficar fora desse tipo de escola? Ser incluído neste sistema educacional é bastante complicado, pois é um sistema que está montado numa certa formatação, cujo objetivo nunca é dito. A transmissão de conteúdo, de verdades é secundária em relação a uma operação formal de corte, de separação da vida do que ela pode. É isso que a máquina da educação faz efetivamente. É neste corte que vamos operar o tempo inteiro, de modo critico e, ao mesmo tempo, fazer do corte uma ponte para uma postura criativa. De que maneira?

Imagina-se que o problema escolar ou educacional é de conteúdo. Tem muitas escolas alternativas que alteram o currículo, ou mudam o conteúdo, mudam até a forma, mas não transmuta a forma, transforma, criando outros sistemas operacionais. Mas antes dessa forma ou conteúdo existe uma operação de separação que é silenciosa, é muda, surda, cega, e opera numa zona de nós mesmos que faz com que a gente se transforme no mesmo lugar, imperceptivelmente, através de uma transformação incorporal, que impede que a gente fale em nome próprio, que experimente realmente, que encontre o imediato do pensamento, do corpo. Essa quebra essencial nos põe demandando por educação, competência, autorização, formação. Alunos e professores se tornam cúmplices dessa máquina, por mais rebeldes que eles sejam, por mais que queiram criar outras maneiras. Existe um corte mais imperceptível, mais sutil, que vamos trabalhar. Precisamos atingir uma zona virtual do modo de viver. Nessa zona virtual é que ele opera. É uma espécie de superfície de inscrição que se dá tanto no tempo como no movimento. Tanto no pensamento, através da linguagem, como no movimento ou no corpo, através da sensibilidade ou das imagens. Vamos ver qual o regime das imagens e da linguagem onde a coisa opera. A idéia então não é mudar os paradigmas, mas sair dos paradigmas e atingir, de fato, onde interessa que é a produção de um desejo intensivo, de um pensamento afirmativo, de um modo ativo de viver, cuja força dominante é a capacidade de criar a própria condição da experiência. A única nobreza da conservação seria conservar a capacidade de criar. Na medida em que se mantem colado à capacidade de criar não se demanda referências, sistemas, provedores, providências, tutores. A única referência é o seu modo de vida, que varia a capacidade de se fazer a seleção, a capacidade ética, estética e a capacidade de pensar. O pensamento, estética e ética estão absolutamente interligados, um atravessando o outro, gerando uma condição de sustentabilidade para um devir ativo. Nessa medida ele se torna produtor de memória, que não é mais representação do passado, mas é função de futuro.
Os 5 blocos:
-Experiência do pensamento
-Experiência do corpo
-Experiência da seleção
-Experiência da produção de memória ou de um plano de continuidade para devires ativos auto sustentáveis.
E por ultimo a esfera do ensino e do aprendizado para multiplicar esse modo de viver, pois a gente nunca para de aprender e ensinar. Mas a relação ensino-aprendizado em si se torna de outra natureza na medida em que desconstruimos e criamos uma outra atitude em relação ao pensamento, ao corpo, à seleção e à disponibilidade de futuro.

É a reforma do entendimento no sentido de Spinoza. Não é uma reforma, é uma mudança de natureza, sair do regime da imaginação e entrar no campo do entendimento real, que não é uma realidade abstrata. Não existe outra saída, não adianta fazer reforminhas. Não adianta ficar no campo da reforma lingüística, estética, moral, se a gente não habita aquela região que chamamos de primeira idade, do imediato. Sempre precisamos de uma mediação. O imediato é aquilo que se encobre por essa mediação. O imediato em si mesmo, vivido diretamente, é sempre visto como ameaçador, como algo imprevisível, que deve ser controlado, que deve ser legitimado, justificado, gerenciado, inscrito num plano de intencionalidade, de verdades, de justiças, de utilidades, de bem. Você inscreve o imediato neste campo intencional. Ao mesmo tempo funda uma interioridade baseada no senso comum, que se liga a um bom senso, e faz com que o desejo fique prisioneiro de uma memória. Memória enquanto representação de passado, que seria a origem da nossa identidade. Esse desejo se projeta num futuro que jamais se alcança, pois essa produção futura ela é idealizada do ponto de vista da forma. E o que se perde nesse processo todo é justamente o devir, o presente como acontecimento, a dupla dimensão do acontecimento. Tanto a dimensão presente do acontecimento como a dimensão virtual e inefetuável do acontecimento. Não que o acontecimento vai embora, ele segue acontecendo. O problema é o uso que fazemos dele. A nossa vida segue em acontecimento, mas o devir que nos atravessa é um devir reativo e não ativo. Como a gente opera o reencontro do imediato em nós? É o essencial desse curso. Como a gente recupera, reconquista, reencontra, porque a gente já encontrou numa primeira idade de nós mesmos esse imediato. Como se manifesta o imediato em nós? Ele se manifesta pelo tempo próprio que nos constitui e que nos atravessa assim como pelo movimento próprio que constitui o nosso corpo e que o faz variar. O imediato do movimento e o imediato do tempo. Esse duplo imediato que não é dicotômico, é uma dupla multiplicidade, cuja singularidade é uma relação necessária com o fora, com a fronteira de nós mesmos.
É nesse fora, nessa fronteira, nessa superfície de nós mesmos que o poder e o saber se inscrevem. Não há poder que não seja exercido tanto para aquele que transmite uma palavra de ordem, uma determinação extrínseca, quanto para aquele que sofre. Este também exerce poder. Ninguém numa relação de poder é só vítima A vítima também é cúmplice. A gente quer trazer a dimensão não da culpa, mas da cumplicidade. Porque uma vida separada do que ela pode precisa investir naquilo que supostamente a ligaria novamente com essa potência. Mas como essa relação é extrínseca, essa potencia vira uma relação de poder. Já é uma impotência que precisa de poder. Mas há um círculo vicioso. Porque a sociedade não muda? Porque ela precisa daquilo que a enfraquece. Pela imaginação você morde o anzol. Como se diz, o peixe morre pela boca. Você vai buscar o alimento fora, o poder, o reconhecimento e aí que você alimenta o buraco, a falta em você. E quanto maior o buraco e a falta mais necessidade de buscar o objeto fora para preencher. A pessoa fica no campo da imaginação, do simbólico, da estrutura. Existem sistemas extremamente sofisticados de se operar isso hoje em dia. O estruturalismo é um deles.
Existe em nós, sempre, uma presença que é disponibilizada no mecanismo da atenção, da atualização. Uma parte desse mecanismo é consciente ou não é disponibilizado, mas a presença está lá, algo em nós está. Os modelos geralmente fracassam, principalmente os de esquerda, pois a esquerda é prisioneira da falsa demanda, da inconsciência que estão alienados. Esse modelo da ideologia, da alienação, da consciência, é extremamente falido e sabemos que não teria outro destino porque ele já parte de um resultado, não daquilo que produz. Já parte de uma determinação operada na consciência. A consciência é um dispositivo sempre retardado, sempre chega depois que o mais importante já foi decidido. Algo decide em você e você acredita que foi uma consciência em você que decidiu, mas ela foi determinada a decidir psicologicamente. Tem uma determinação anterior a essa decisão psicológica. Isso opera no campo do encontro. Por isso precisamos retomar o modo de relação, o modo de encontrar, o modo de acontecer porque a determinação se opera no acontecer e produz algo em nós e esse efeito é que se torna consciente em nós. Nós só temos consciência do efeito, mas não entendemos a causa que operou e produziu isso em nós. E pelo efeito, uma vez que a gente não ultrapassa o efeito na consciência, a gente vai precisar imaginar a causa. E aí vai imaginar a causa com o um outro efeito desse algo que se põe no lugar da causa. Então você vai inverter, por o efeito no lugar da causa, explicar de modo invertido. É um mecanismo que acontece e vários pensadores vão desconstruir esse mecanismo: Epicuro, Lucrecio, os estóicos e principalmente, Spinoza, Hume, Nietzsche, Bérgson, Foucault, Deleuze-Guatari. Spinoza faz isso com muito rigor, com uma plenitude, insere tudo num campo de imanência e Nietsche também, com uma outra linguagem. Nietzsche chama de imagem invertida e Spinoza de ilusão de consciência. Bérgson chama de visão retrospectiva.
A questão é que mesmo na consciência alienada existe uma cumplicidade. Algo que deseja em mim tem vantagem nesse modo de viver. É o certo ao contrário. Mas a vantagem o torna ainda mais refém e dependente. Uma sutileza atual extremamente refinada vem de Kant e tem muitos filósofos e educadores que seguem essa linha, que dizem que é importante trazer a filosofia para a escola. Essa filosofia que eles querem trazer para a escola é a filosofia da autonomia. Mas a filosofia da autonomia é aquela que você conquista uma pura forma de ser, que nada mais é que dever ser e, nessa medida você se torna autorizado e autorizador como diz Kant, um legislador, até capaz de inventar leis, a partir dessa pura forma. Você adquire uma competência. Uma autonomia extremamente refinada, onde você não é mais comandado por nenhuma coisa de fora. Como diz Nietzsche, outrora eu tinha deus para nos carregar. Nós como burros de carga carregávamos nos valores divinos. Agora o homem diz: chega de deus, deus morreu, eu mesmo me carrego, não preciso de deus. Essa é a autonomia moderna. Carrega-se os valores morais nos ombros. É o tal do imperativo categórico em Kant. Você não faz uma coisa porque vai obter vantagem, faz por puro desinteresse, por verdade, porque é a maneira superior de ser. É uma maneira desinteressada, faz por pura verdade. Eu amo meu pai porque ele é meu pai. Eu me relaciono com a lei porque a lei é a lei, é universal. Essa é a mentira ainda mais hipócrita. É mais fingida, mais mascarada. É a questão moral de modo superior, não do ponto de vista da religião. Deus morreu. É a lei a serviço do bem. Mas o bem que é resultado da lei. O que importa é a lei, a pura forma de dever ser e o resultado que vai ter daí é uma autorização, uma justificação, uma legitimação. É a nossa sociedade, jurídica, legal, legalista, dos direitos humanos, da cultura da paz. E aí tem muitas instituições que investem nisso, numa ficção no que é violência. Uma visão mascarada da violência real. Essa cultura da paz é totalmente hipócrita em grande parte, uma paz que é uma rendição das forças mais interessantes do homem. Uma espécie de deposição de armas. Vamos nos desarmar todos. Mas que armas que se tem? São armas bizarras, nesse sentido é bom desarmar-se , mas não para ficar desarmado e sim pegar autênticas armas. Armas que combatem tudo que vive das paixões tristes. Armas que produzam uma máquina de guerra em relação a tudo que precisa se combatido, da miséria, da tristeza, do enfraquecimento, da opressão, da apropriação para viver e fundar o seu poder. Aí sim, esse tipo de arma a gente precisa construir. Não depor as armas ou achar que pelo convencimento racional vai se chegar a alguma coisa. Primeiro precisa ver que tipo de razão é essa. Existem vários tipos de razões que são sempre postas em um campo de forças. Não existe uma racionalidade verdadeira. Todas são verdadeiras ou todas são falsas. Você tem a racionalidade que merece, assim como a vida e a sociedade, depende do uso que faz dela, o que motiva, qual o motor dessa racionalidade, o que ela objetiva, como ela funciona.
Mas nosso argumento essencial é reencontrar o imediato do movimento e do tempo, pois já o encontramos alguma vez, já foi presente em nós de modo dominante. Não que ele não está mais aí. Ele está, mas não de modo dominante. Ao contrário, o que é dominante em nós é uma mediação. Essa inversão que precisamos operar, essa desconstrução, sob o ponto de vista crítico e um cultivo sob o ponto de vista criativo para que essa dimensão se torne dominante em nós e auto sustentável. Esse é o desafio.
A primeira esfera que nomeamos experiência do pensamento ou filosofia na primeira idade pode dar um panorama na medida em que a gente vai explicitar a palavra experiência, que não é uma palavra, mas um conceito. O que é experimentar? O que é pensar? O que é filosofia? O que é primeira idade? Na medida em que vou desconstruindo isso vamos também entender o que é a experiência do corpo, ou a estética na primeira idade. Vai, ao invés de situar o pensamento onde se colocou, em vez de situar a filosofia a gente situa a estética.
Vamos agora desdobrar a experiência, a idéia do imediato do pensamento, que é a primeira idade que se refere ao pensamento, ao corpo e depois aos modos de escolha. Em seguida temos a experiência da escolha ou do modo de fazer a diferença na vida ou de criar uma superfície seletiva, que não é nem do ponto de vista do imediato, que vamos chamar de ética, que entra em contraste com a moral, o modo moral e racional de decidir. Existe uma zona que decide em nós, uma zona imediata, que faz a diferença, que não tem nada a ver com a consciência, ainda que ela se apresente. Primeira idade se refere ao que falei de imediato. Faremos também uma diferenciação conceitual entre primeira idade e primeiridade.
Primeira idade é o encontro com o imediato. O imediato acontece em mim, tanto do ponto de vista do corpo, quanto do pensamento, quanto da capacidade seletiva. Eu faço parte do imediato e o imediato faz parte de mim, eu sou parte disso.
A primeiridade é algo mais adiante, é uma conquista da capacidade de manter esse imediato como comandante na minha vida, é tomar parte do imediato. Ser capaz de conduzir o próprio destino e criar a si mesmo. Estilizar a existência. Criar corpo, pensamento, desejo, capacidade seletiva.
Na esfera da memória a mesma coisa vai se operar. Vai haver uma experiência do tempo ou do registro do tempo ou da condução de registro do tempo imediato. Nessa medida, no tempo que se conserva ou que se apreende a si mesmo e se redispõe em direção ao futuro. Isso que diz respeito à produção de memória de futuro ou produção de pontes, ou plano de continuidade para um devir ativo ou intenso, auto sustentável. Fazer de si um moto continuo. Nós, de alguma maneira, somos moto continuo. Aquilo que Varela chama de auto poresi. Auto fabricação de si, de modo ativo, afirmativo, sem ser determinado de fora. O fora como excitante e aliado, e não como opressor, determinante ou algo que submete a vida a alguma autuação. Esse imediato na produção e disponibilização do tempo e da memória é um outro tipo de experiência. Cada esfera é uma esfera distinta de experimentação. São cinco: A do pensamento, do corpo, da seleção, da continuidade ou da duração que produz memória de futuro, e a última que é esse encontro com o imediato no ensino aprendizado, enquanto a experimentação te põe em contato com o próprio imediato do movimento e do tempo. O que o tempo e o movimento apreendido de modo imediato, transmite, ensina, cria, aprende, apreende. Como se dá esse processo? E como a partir desse processo há então uma capacidade de multiplicação? De vontade de expansão.

Experiência do pensamento ou filosofia na primeira idade
O que é experiência? O que é experimentar para nós? Para nós, geralmente é se apropriar de algo, saber usar, ter uma disponibilização à medida que aumentamos o contato com o objeto em experiência.
A gente vai experimentar porque acha que vai se enriquecer. Experimentar é motivado pela promessa de enriquecimento. A gente geralmente copia, porque saltamos uma etapa. Saltamos, pois a própria experimentação é sabotada. Há uma dimensão imperceptível que sabota a experimentação e o que se coloca no seu lugar é o consumo. Nós consumimos imagens, sensibilidades, sentimentos, sensações, afetos, sempre do ponto de vista de uma imagem. Os afetos sobre a imagem são paixões e sofrimentos, no melhor dos casos, é o que consumimos. Muitas imagens, muitos signos, discursos, muitas palavras, muita instrução, muita formação. No lugar da experiência se é disponibilizado uma capacidade de consumir. É por isso que o sistema não te exclui ou descarta. Ele não pode, ele precisa de você, como um consumidor e, ao mesmo tempo, como um produtor. Essa dimensão da experimentação é a dimensão do consumo. Então o que se passa é que em vez de você se conectar com a fonte real que sustenta a capacidade aberta de experimentar, realmente, o inédito, o imediato, o novo, você é condicionado na experimentação a investir num certo padrão, numa certa referência, num elemento que legitimaria uma experiência tolerável. Admissível socialmente, politicamente, moralmente, economicamente, racionalmente, religiosamente. Isso para o seu próprio bem, senão você vai ser esmagado. Há um corrente de transmissão de covardia. Carta ao Pai, de Kafka, é isso: meu pai, você baixou a cabeça, você quer que eu baixe também? Eu te perdôo por você ser covarde, mas não queira que eu seja também. Porque queres que eu baixa a cabeça? Para o meu bem? E a forma mais hipócrita de baixar a cabeça é levantar com autoridade. Aquele que tem a cabeça em pé, sustentada pela autoridade, esse já baixou, perdeu a cabeça. Pôs o rosto, que é um incorporal, no lugar da cabeça, que é o corpo. Em nome da autoridade você pratica o autoritarismo. É por isso que a forma esconde uma violência e um terrorismo. Não adianta dizer que a forma é democrática. Por mais democrática e pulverizada que seja, a forma é micro fascista. Assim como todo poder. Não adianta dizer: Ah, o poder é dos brancos, vamos dar para os negros, índios, mulheres e crianças, pois só o adulto macho tem. Não adianta pulverizar o poder, ou a forma da decisão, numa democracia que todo mundo tem o direito de dar a sua opinião, seu voto, a seu isso ou aquilo. Você já é refém de uma instância que autoriza. Aqui se esconde o elemento inconfessável. O conteúdo é sempre um diagrama de forças. A forma está articulada, mas é uma forma vazia, que não se sustenta sem o conteúdo, que são forças dominantes. Em nome do bem se invade o Iraque, o Afeganistão, faz as piores coisas. Assim é a lei. Dizem sempre que só ganha quem tem mais dinheiro. Nenhuma lei tem uma interpretação verdadeira em si mesma. Toda lei depende da força que a está interpretando. Há um interpretante atrás do elemento a ser interpretado. E esse interpretante é força, não é forma, não é formal. Essa é a enganação, a hipocrisia.

O que a gente chama de experimentar é, geralmente, consumir referências, autorizações, reconhecimentos. A gente geralmente consome aquilo que, justamente, nos devolve poder, e não potência. A gente consome para se enriquecer. A gente experimenta para se enriquecer. Mas se a experiência é fraudada, inviabilizada, e no seu lugar é posto uma relação de consumo de imagens, de signos, de discursos, de sentimentos, de instruções de formações, de objetos de prazer, o que se passa, efetivamente, é que vou me entupindo no corpo, no pensamento e na vida. O que era para ser um elemento enriquecedor através da experiência, tornou-se um elemento mortificador. Seguimos nessa relação, pois a morte é lenta, em vida. E, ao mesmo tempo, esse elemento nos dá uma ilusão de satisfação. Mas sabemos que no fundo a insatisfação e a frustração crescem. E quanto mais insatisfação e mais frustração mais necessidade de “enriquecer” com o consumo. Mais objetos de consumo.
Não há investimento do desejo ou submissão do desejo que não tenha uma cumplicidade do próprio desejo. Então, o primeiro reencontro que precisamos operar em nós, a lição que temos que fazer no corpo, que é a nossa casa, é cultivar a capacidade de experimentar realmente. Aprender isso, praticar isso. Um investimento de uma capacidade receptiva, que Spinoza chama de potência de ser afetado, que não é uma passividade, é uma potência em ato, não uma mera paixão. É uma potencia que se cultiva, que a gente desdobra, desenvolve. Implica numa abertura tal, que aquilo que se passa na relação da vida com o que envolve a vida não tem atravessador, não tem intermediário, é uma relação direta. Aí se dá uma experimentação. A capacidade receptiva precisa ser investida e ao mesmo tempo produzida em nós. Precisamos nos preparar para sermos capazes de experimentar. Somos também cúmplices dessa falsificação da experimentação, que põe o consumo no lugar da experimentação, que é um falso enriquecimento, na verdade, é uma mortificação de nós mesmos, que estimula em nós, não uma dança, mas um espírito de gravidade, de pesadume. Ficamos cada vez mais pesados quanto mais consomimos. Ao invés de nos enriquecermos, no sentido de ficar dinâmico, leve, veloz, potente, a gente enriquece no sentido que vai se entupindo, cada vez mais sedentário, mais ancorado, mais tristes. Esse investimento na capacidade receptiva, essa produção implica em acessar uma espécie de crítica. Precisamos aprender a dizer não para aquilo que se quer por no meio, aquele atravessador da nossa experimentação direta. O modo como nos relacionamos com a imagem que se produz na relação, é ela que acaba entupindo os poros do corpo, que acaba segmentarizando os movimentos, criando uma cadeia de ações e paixões que vai organizando nosso corpo e nosso movimento. A gente vai criando poses, etiquetas, posturas, maneiras de se movimentar, a gente cria cidade, arquitetura, as nossas caixas, nossas gaiolas, nosso movimento ordenado, coordenado, organizado. Isso tudo se dá pelo campo da imagem ou da sensibilidade. Isso que vai entupindo nossa capacidade de experimentar no corpo ou de acessar o imediato do movimento que se engendra em si mesmo e não o movimento que, separado dele mesmo, se pendura numa referência, para aderir a uma cadeia social de organização corpórea, um regime de luz ou de corpo, que disponibiliza o corpo e até retribui muitos prazeres que ficam aderido para que esse corpo agüente o tranco do dia a dia. Outra maneira de inviabilizar a experiência é por o signo ou a palavra no lugar do pensamento. É como se tivesse uma dimensão de nós mesmos que fica comentando o que vamos fazer, agora estou fazendo isso, agora isso outro, fica mediando o acontecimento com essa consciência e isso é operado, na verdade, no campo da linguagem, no uso que faz da própria linguagem. Põe a linguagem no lugar do pensar. O pensamento é silencioso, mas a gente acha que ele é tagarela. Para cada coisa bem vulgar, existe os refinamentos máximos, bem elevados, filosofias, ciências extremamente refinadas.
O signo no tempo, esse é outro atravessador, outro mediador. Esses mesmos elementos são usados pelo poder para nos separar do que podemos e para nos religar a ele, investir nele. Da mesma maneira que há um entupimento da nossa capacidade receptiva quando o estado de corpo, ou pensamento ou o estado do desejo ou da potência ocupa o lugar do acontecimento. O acontecimento é primeiro. O acontecimento é a pura capacidade de variar, virtualmente. Virtualmente, somos pura variação e atualizamos essa capacidade de variar na medida que nossa potência, nossa presença, freqüenta a fronteira dela mesma, numa relação com o que há em volta, enquanto potência e não enquanto estado de potência. Mas a potência que encontra sempre produz algo e esse algo enquanto produto pode se instalar e falsificar, produzir uma inversão. À medida que é apenas um estado, ocupar o lugar da própria potência, da própria essência ou do que nós somos inteiramente, é uma parcialização de nós mesmos que se põe no lugar do nosso desejo ou potência plenas. É claro que ele está investido de potência, mas uma potência separada da capacidade de acontecer diretamente, porque ela é mediada no acontecimento por esse estado. Isso é o que Nietzsche chama de ressentimento, mas a maneira como ele explica isso é bem sui generis. Spinoza chama de dupla ilusão do livre arbítrio, como causa primeira de si mesma, o desejo começa em mim e como ilusão de causas finais ou a ilusão da intencionalidade que a natureza opera em nós, agimos por vista de um fim, são duas ilusões, que fazem com a gente perca a capacidade ética, seletiva real porque, como diz Nietzsche, só retorna o que afirma plenamente, o que afirma inteiramente o acontecimento. O próprio acontecimento como afirmação da diferença que produz uma diferenciação ou uma singularização, faz essa mesma diferença diferenciante, diferencial, diferenciar novamente. Faz o retorno dela. O retorno da diferença, não o retorno do mesmo. Isso é uma capacidade seletiva, só retorna a diferença que afirma plenamente a si mesma. Essa capacidade seletiva, nós a perdemos quando colocamos o estado de desejo no lugar do acontecimento. Aí o retorno que acontece é o retorno de estados, de permanências, de paradas, de repousos, de identificações, de fixações, de unificações, de totalizações e a gente vai relacionar mais com o ser, e o devir vai ser apenas uma função desse ser. (Na verdade, o ser deve ser filho do devir. No fundo de tudo só tem devir, só tem variação. Aquilo que já dizia Bérgson, a única substância é a mudança. Ou a substância de Spinoza que é a potência absoluta de acontecer, de variar a si mesma, de produzir a si mesmo e a todas as coisas.) Isso inviabiliza nossa capacidade ética e vai fazer com a gente se relacione a uma demanda moral. A gente vai precisar criar uma referência para se constituir como critério de escolha, que nos afasta do mal e nos liga ao bem, que nos afasta do nocivo e nos liga ao útil, que nos afasta da injustiça e nos liga a uma máquina de justiça, que nos afasta do erro, do engano e da falsificação e nos liga a uma verdade. Então a gente se torna verídico, veraz, bom, justo e útil. Os quatro valores cultivados do homem fraco que com eles a gente mascara a impotência e a fraqueza de que são constituídos. O individuo acredita numa justiça que deveria chamar vingança, que ele é impotente para realizar e demanda, que um estado faça por ele, ele demanda a lei. Policia para quem precisa de policia.
Aqui então existe um terceiro elemento critico que é a ética, encoberta pela moral, que faz com que o estado de corpo se confunda com a essência, e esse estado de desejo ou de potência (tanto ao corpo como ao pensamento) que ocupa o lugar da própria potência, que não tem forma a priori. A potência é uma potência em ato e o ato é o acontecimento que a envolve, então não tem forma para ele. O acontecimento é aberto, é uma linha de devir. É o próprio estado de potência que me põe em uma relação de impotência comigo mesmo, eu me separado capacidade de acontecer, porque este estado vira mediador do acontecimento e esse mesmo estado de impotência que faz a leitura do real. E essa leitura vai ser sempre vista de uma forma fixa que já me constitui. Então eu só vou ver e avaliar coisas fixas. Kierkeegard faz um movimento oposto: vejo somente os movimentos, mas nós, ocidentais e mesmos os orientais, vemos apenas paradas e repousos, o que chamamos de ser. Ver somente movimentos já é investir numa capacidade receptiva do reencontro com o imediato. A gente acredita que o devir é inapreensível, não pode ser objeto de conhecimento, nem sujeito do pensamento, porque nós mesmos já entregamos o nosso desejo e a nossa potência à um estado de
desejo, de potência. Esse estado é justamente o testemunho da nossa incapacidade de nos pormos novamente em devir, em acontecimento, em devir ativo ou acontecimento afirmativo da própria potencia que se relaciona. Entramos num devir reativo porque o estado de desejo passa ser mediador do acontecimento e o acontecimento evidentemente jamais para de acontecer, só que o que é dominante em nós não é o acontecimento enquanto acontece, mas é o estado que sobrevoa o acontecimento. Isso que é a condição da moral. Geralmente nem se localiza o problema nessa região, pois se trata de uma coisa abstrata, onde menos se pensa que está o problema. Nem se localiza essa região. É um nada. O que é esse relacional, essa superfície, esse acontecimento? Precisamos apreender a realidade disso que não tem existência, mas não é por isso que não é real. O real não se reduz a existência, ele é também virtual. O virtual não existe, mas é real. Há uma natureza naturante que não se apresenta como existência. O que se apresenta como existência é a natureza naturada. Mas a “existência” da natureza naturante é um outro tipo de realidade que nem mereceria o mesmo nome de existência para não confundir mesmo, mas é uma realidade. Nessa zona de realidade que se passa os entupimentos e as capturas, tanto do ponto de vista do movimento, do corpo, das imagens, quanto do ponto de vista do pensamento com signos, e também do ponto de vista da capacidade seletiva com estados de corpo, de mente e objetos fora de mim, da mesma maneira, ou seja, o campo da imaginação. Aquilo que Spinoza chama de primeiro gênero do conhecimento. Esse campo da imaginação é dominante em nós e a consciência será a nossa potência reduzida a esse estado de corpo, de mente, de decisão. O que decide em nós? O estado? O que pensa em nós? È um sujeito chamado estado mental? O que age em nós? É um individuo chamado estado corporal? Nós achamos que existe uma instancia em nós que move o corpo e que recebe o movimento, na verdade é um estado de corpo. Que há uma instância em nós que pensa, um sujeito de pensamento. Na verdade é um estado da captura do pensamento em nós, que chamamos de alma ou sujeito, que ninguém admite não existir. A questão do estado de escolha que habita a zona de indeterminação do acontecimento, simplesmente como uma zona primitiva ou entupida pelo campo de possibilidade, que nada mais é que essa retroprojeção do que já foi vivido, só que reprojetado no futuro, de modo melhorado, de modo moral. Eu vivi assim, mas podia ser melhor ou eu vivi essa merda e isso tem que ser eliminado. Tem um campo do possível mal que vou evitar, afastar, destruir e um possível bom que eu vou investir, vou trazer para o presente. Então esse estado de escolha seria evitar o mal e seguir o bem, evitar o engano e seguir a verdade, evitar a injustiça e seguir a justiça. Dicotomiza a escolha supostamente alojada na existência da consciência. É uma maneira de entupir a capacidade seletiva.
A extração em tudo, seja do passado, do presente, ou de uma idéia inédita, algo que seja seu próprio elemento afirmativo. Esse elemento afirmativo da idéia, ou da memória ou de uma instância incorporal é uma maneira de acontecer da própria potência, que põe isso no horizonte do meu futuro. O que me dá direito ao futuro? O que me disponibiliza o futuro ou a continuação de mim mesmo? É uma espécie de liga, de ponte, que é uma passagem de um aumento de potência. Um acontecimento que é o crescer da potência que está antes da própria potência que vai crescer. Então esse crescer da potência, que Nietzsche chama de vontade de potência, que determina a escolha do ponto de vista afirmativo e ativo, determina a seleção e a produção de memória de futuro, é o que faz crescer. Isso é o que comanda em nós e é o que captura em nós porque também investimos no poder, no consumo, na imagem, no signo, no espelho, pois aparentemente isso nos dá direito ao futuro, a se manter ligado, consumindo e se enriquecendo, só que dependendo de uma instância exterior a si mesmo. Então essa vontade de potência vira vontade de poder, você vira refém de uma referência. É um modo de se capturar a decisão e a escolha. Inverte. Aí a moral e essa racionalidade, que pressupõe esse sujeito moral, entram com tudo.
As tribos e as sociedades primitivas tem os seus anciãos, os seus espíritos que estão mortos, mas que na verdade não estão, estão inteiramente vivos em outro plano, o virtual. Quando uma sociedade dessas adoece, o xamã, ou feiticeiro ou curandeiro vai diagnosticar e geralmente ele diagnostica que ouve um desinvestimento, um esquecimento, uma ausência de uma maneira de ser e acontecer que era vital para aquela sociedade. Um espírito de um antepassado nada mais é que uma maneira de ser que ultrapassa o indivíduo enquanto indivíduo. Uma maneira de ser sem a qual a sociedade fica mais fraca, adoece. Você aprende com o passado naquilo que o passado tem de futuro, de liberador da situação presente. O passado te põe em relação com o sentido em que ultrapassa uma certa coação presente, um certo deslocamento, uma certa obstrução, uma certa fixação. O passado é uma ponte, é o próprio futuro que desterritorializa o presente das suas amarras e extratificações.
Esse aprendizado da tradição que o Foucault vai fazer em relação a história. Ele vai captar o inédito de cada acontecimento para depois entender a condição dos fatos. Os fatos são o modo como as forças dominantes interpretam o acontecimento. Mas antes de ele ficar reduzido a isso ele vai direto às condições do acontecimento, àquela maneira de ser. A maneira de ser traz consigo a capacidade de se repetir, é uma singularidade que por repetição pode, ou não, virar uma espécie de valor universal. Se ela for de fato uma emergência, uma maneira de ser afirmativa da vida, ela se torna uma potência de diferenciação, de singularização e não cai na ilusão do universal.
É uma idéia do Bérgson. Nietzsche também fala em memória de futuro, com outras palavras. Em função do futuro, uma representação do passado. Bérgson, ao contrário de Hegel, (que dizia que o passado foi e o futuro vai ser), diz: o passado é, de maneira contemporânea do presente, junto com o seu presente se traz todo o seu passado, por mais que ele não esteja ativo, mas há uma pressão virtual dele, pontas dele que se reatualizam, se diferenciam, se tornam outra coisa nesse presente. Há uma coexistência do passado com o presente. Passado e presente não tem apenas uma relação de sucessão, e se tiver, não é a principal. A principal é a coexistência. Nessa mesma medida eu também posso dizer que o futuro é. De modo virtual. Atualmente temos devir. O futuro é ser, o passado é ser e o presente é devir. O presente é um movimento. Geralmente a gente se relaciona com o passado de modo representado. A gente tem memórias de marcas que foi, do que está marcado, estigmatizado e o retorno dessas marcas que acaba repetindo, copiando, inviabilizando o inédito no presente. O presente é radicalmente inédito, é impossível que não haja o inédito, estamos sempre no inédito. O dejavú é ilusão. A gente perde o inédito porque o nosso passado já nos fixa em várias posições que faz com que a gente represente esse virtual. No lugar dele coloca uma memória formal ou figurativa e com essa memória achamos que temos direito ao futuro. Porque essa mesma memória que a gente projeta de maneira idealizada no nosso futuro. Fica o campo do possível no futuro e perde o virtual que é na verdade a potência de criar possíveis. O possível tem que ser criado. E não se submeter ao possível que é a idealização do que já foi vivido. Ah, isso não é possível porque nunca existiu! De que maneira o novo é possível? O novo jamais seria possível?
Nós usamos o termo vontade aqui no sentido de Nietzsche, como vontade de potência. Não como Schopenhauer, nem como Kant, nem Hegel, ou como na psicanálise. Não é uma vontade psicológica, não tem uma unidade psíquica, nem psicológica, nem física, nem ideal. A vontade é o querer da força. É o relacional de toda a realidade em relação. Não existe realidade que não esteja em relação. É como diz Spinoza, tudo é em modo, ou potência de modificar ou ser modificado. Tudo é essa potência. Para que se modifique é preciso estar em relação, é necessário haver um ser da relação, que é esse relacional. Esse relacional podemos chamar de vontade. Vontade não tem unidade subjetiva, nem substrato. A unidade subjetiva é a condição de julgamento, é a condição de representação, do poder. O poder que precisa representar e julgar. Para haver julgamento é preciso nivelar, unificar os desejos e por tudo de um ponto de vista do senso comum. O desejo de um tipo ativo seria o mesmo que o desejo de um tipo reativo para esse tipo de pensamento. Nessa medida, se um ativo faz maldades ele pode ser julgado. Se o reativo, que é impotente, não faz, ele pode dizer que não faz porque ele é bom e não porque ele é impotente. Ele poderia fazer, mas na verdade ele não pode. Essa é uma maneira de falsificar o real, de se desqualificar a vida, pressupõe uma base, um substrato comum chamado vontade. Não é dessa vontade que estamos falando aqui. Quando falamos dessa vontade, essa vontade como livre arbítrio, aí a gente desconstroi. Pode se usar o termo vontade, mas para que você apreenda a dimensão virtual do atual, que antes de ser uma forma seria uma força. O atual é uma força. O querer da força é o virtual da força, que é uma potência. Potência e força são nuances, são distinções, não se usa no mesmo sentido.
Sobre essa maneira de ver o tempo, Renato Russo intuiu isso na música: Quem me dera eu pudesse entender que o passado ainda está por vir e o futuro não é mais como era antigamente. Às vezes alguém qualquer produz um enunciado novo. O que pensa em alguém? Não é o fulano instruído ou o cientista, o filósofo ou o artista. É algo que pensa em nós. Aí se encontra o imediato do tempo. Ele faz com que você veja essa dimensão.
Até agora estamos vendo apenas um conceito, que é a experimentação. Não chegamos ainda no que é pensar.
E ainda estamos falando da experimentação do ponto de vista receptivo, mas ainda há a tomada de posição nesse processo de experimentação, que é uma atitude ativa. Não que a outra não seja ativa também. A outra é receptiva, ela instala uma relação com a fonte do movimento e do tempo, te põe em contato direto com o acontecimento e por isso dispensa um provedor, você não precisa do poder, de uma condição instituída para experimentar. Não precisa de nenhum artifício ou artefato social, econômico, político. Como diz Fernando Pessoa, ser milionário das sensações. Até o mais reles dos mendigos pode se conectar com essa capacidade receptiva, com a própria fonte do real que está bem diante de nós. Na nossa fronteira nós tocamos essa fonte, na fronteira de nós mesmos. Ela não está em outro mundo, numa profundidade, num inconsciente, em algum lugar do eu profundo e encoberto. Ela está bem na superfície. Precisamos fazer do nosso ser uma passagem. Justamente o contrário da práticas espíritas, passes de energia para nos potencializarmos, se tornar a passagem.
Experimentação implica não em consumo. O que a gente chama de consumo é, geralmente, consumo de coisas mortas ou o que institui em nos a morte lenta, a morte em vida. Experimentar é modificar-se. A modificação não é uma transformação, não é uma mudança de forma, nem uma transfiguração, uma mudança de figura. Não é no plano formal que a gente se modifica, nem no figurativo, nem da imagem, nem do signo. Mas se modifica no limiar do próprio desejo, no modo de desejar. A gente se transmuta e não se transforma. A modificação só é verdadeira se existe transmutação. Experimentar, modificar e transmutar. Para experimentação é preciso de transmutação ou produção de si. Isso é real, não é uma metáfora, não é uma sublimação, uma purgação, uma purificação, uma idealização, uma metonímia. É um processo real de modificação de si. Quando se apreende esse processo? Quando se atinge uma posição de ser onde se atinge uma zona da multiplicidade que te constitui, que é irreversível. Não é que não pode mais voltar no tempo. Você redispõe a capacidade de jogar, mas essa capacidade transmutada. Essa transmutação não dá para por debaixo do tapete ou fazer com que não existiu. Ela já altera em você, já é coadjuvante e co-autora em você do seu novo devir. Experimentar implica uma modificação real, uma transmutação que se dá simultaneamente no corpo e no pensamento. Depois vamos ver o que é pensar e entender o que é experiência no pensamento. Daí conseguiremos entender de modo sutil e mais refinado o que é primeira idade do pensamento e depois a primeiridade do pensamento. Começaremos a conceitualizar e investir no aspecto crítico que destrói aquilo que entope, que media e invialibiza a relação com o imediato do pensamento, a relação do tempo enquanto tempo. O próprio tempo como sujeito. E ao mesmo tempo apreende o elemento afirmativo do pensamento que é o seu principio criativo. O pensamento só cria pela afirmação. Podemos então chamar de vontade a própria afirmação. A idéia tem vontade que é a afirmação da idéia. Ela não é neutra, ela tem uma tendência, é também uma força, é uma direção, um sentido e uma potência, uma diferenciação que pode algo. Pode modificar e ser modificada. A própria idéia está em devir.
Não há criação sem natureza naturante. A natureza naturante é o principio da criação, não só de tudo, mas da criação em si. É uma realidade que se auto instaura, é auto gerativa (Spinoza chama de deus), que está na natureza, que é idêntica a natureza, só que a dimensão naturante da natureza. Tem uma dimensão que é naturada. A natureza tem uma dupla dimensão: a naturante que fabrica a ela mesma e a tudo que é naturado. Ela se fabrica como natureza naturante e fabrica a própria natureza naturada. Não há criação sem natureza naturante. Spinoza não gosta deste termo criação, pois ele está associado ao cristianismo, ao judaísmo, as religiões monoteístas que instaura um deus criador do universo, do mundo e das coisas. Spinoza usa o termo produção. Mas podemos usar o termo criação nesse sentido mítico. Nietzsche só usa criação.
O pensamento é intuição, mas não uma intuição vaga, uma intuição rigorosissíma. Uma presença de uma potência diferencial que cria um caminho, uma direção, um vetor. È isso que queremos acessar. Acessar não o que já está pronto, mas a capacidade de produzir essa dimensão. Como diz Nietzsche: Real? Invente ele. A gente produz, fabrica o real. Somos meios, instrumentos de fabricação de eternidade. A eternidade nos atravessa. E através de nós ela produz a si mesma. Podemos aproveitar ou desperdiçar isso. E se desperdiçarmos não haverá um inferno para nos punir por isso. É aqui e agora que jogamos a vida pelo ralo. Tem gente que se conforma e encontra jeitos de se consolar, de suportar essa miséria existencial, com pequenos prazeres, seduções. O capitalismo virou mestre nisso, em oferecer seduções.
Experimentar não é se enriquecer com a diversidade casual ou com o caos. Não é um enriquecer que vai satisfazer, preencher e desenvolver a forma que já estava pronta em mim. Aí não estou mudando coisa alguma. Estou apenas usando a experiência para reforçar ainda mais as fixações que já me constituem. A experiência vira testemunha, um elemento de confirmação daquilo que eu já afirmava previamente. Os meus preconceitos são reforçados. Isso é o que devemos desconstruir no que chamamos de experimentação. Ao invés de reforçar o que eu já sou, de melhorar o que já sou, ou desdobrar e desenvolver um suposto eu, um suposto sujeito ou indivíduo, me levando a me encontrar cada vez mais comigo mesmo, a me conhecer, a conhecer o profundo eu, a experimentação deve fazer justamente o contrário. Eu me torno cada vez mais afastado de mim mesmo, diferente de mim mesmo. Tem uma diferença em mim para ser diferenciada. A experimentação vira uma ocasião de transmutação, de diferenciação de si. Quanto mais eu me diferencio mais eu me multiplico, mais eu crio elementos heterogêneos, uma multiplicidade que me constitui. Esse elementos heterogêneos são co-autores, são aliados, são forças do fora selecionadas, dobradas, gerando um dentro capaz de dispor do futuro. A experimentação vira esse motor ou plataforma de lançamento para o futuro. E não simplesmente uma coisa casual, um acidente, um caos que existe por aí que dá uma enriquecida na ordem representativa e formal que me constitui. É justo o contrário. Experimentação tem um gosto real pela diferenciação, que não faz de conta.
Ser ou não ser? Devenha. De modo afirmativo. Heideger: ser no mundo. Não. Devenha no mundo. O ser não é o primeiro. O acontecer que vem primeiro. A não ser que se chame ser o acontecer. Acontecer é produzir realidade e se produzir. Isso é que é entrar em devir. Tem uma potência em variação, na experimentação você de fato se põe em variação real e não uma variação de uma constante que você é. Há uma pura variação de você, que varia e produz afetos ou intensidade ativas em você. Essas dobras de força que criam um plano de consistência em você, e não um sujeito. Crescer numa continuidade imanente do movimento que engendra o próprio movimento, do tempo que engendra tempos. E não ter um tempo homogêneo e fragmentar esse tempo homogêneo e distribuir ele pra lá e pra cá, e da mesma maneira o espaço. Elementos que ocupam um espaço aqui e ali, todo esse esquadrinhamento exterior. O esquadrinhamento exterior é superado quando você atinge essa dimensão imanente que engendra o próprio movimento e o próprio tempo, fabrica espaço e tempo. Não temos mais espaços e tempo prontos e homogêneos para ocupar ou pra ter. Nós inventamos o próprio tempo e o próprio espaço, a gente cria lugar na potência, em acontecimento. A potência em acontecimento, em ato, ela é primeira e a experimentação acontece quando eu habito a zona do acontecer. Quando algo em mim se confunde com o próprio acontecer. Quando o acontecimento passa a desejar em mim. O acontecimento antes de acontecer já é o desejo em mim. Mas o acontecimento não tem forma. Esse desejo não tem intencionalidade, não quer chegar numa forma ou numa figura, ele é potência de variar. Essa potência de variar é o começo do desejo. Onde o desejo começa? No eu? No sujeito? Não. Ele começa na fronteira, na superfície, no horizonte de mim mesmo. Arnaldo Antunes diz: o desejo é o começo do corpo. Ele começa no acontecimento e o acontecimento é o começo do corpo, do pensamento, é o começo de tudo. O começo, o fim e o meio. Na verdade, é o meio, o começo e o fim são resultantes. Objeto e sujeito são produtos. Os seres são produtos do devir. O eu e o outro são efeitos de um outrem ou de um entre. É essa zona que Spinoza chama de ser comum, onde se dá a identidade ou mesmo. O único mesmo que é real é o mesmo como afirmação da diferença. É o mesmo ser que se diz de todas as diferenças. Esse ser se chama afirmação. Afirmação das diferenças. Uma afirmação da diferença faz a diferença se diferenciar. Essa mesma afirmação de uma outra diferença faz a diferença se diferenciar de outra maneira. Não vai haver nunca uma igualização, uma identificação. O único igual, o único mesmo, a única identidade é a própria afirmação que se diz imediatamente da diferença. É por isso que é impossível haver um igual, a identidade, o equilíbrio. No máximo elas são simulacros, como zonas comuns. Por exemplo, um devir animal, um devir criança, o devir orquídea da abelha, ou devir abelha da orquídea. Que zona é essa que elas se encontram? É a mesma? É idêntica? É semelhante? Não, a semelhança e a identidade são apenas simuladas. É uma zona de indeterminação, de acontecimento, é um platô de variação. É aquilo que te põe em devir de alguma maneira. Não é um conceito, é uma zona, uma região, um limiar, uma espécie de grau do horizonte, um horizonte móvel. Tem o horizonte movente que é aquilo que separa o dentro do fora, mas que é, simultaneamente, uma fronteira que está dentro e fora. É esse horizonte movente que é essa zona que poderíamos dizer que é idêntica, que é semelhante, que é comum, mas esse idêntico ou semelhante apenas simulado é, na verdade, a necessidade de cada relação. É o relacional de cada relação. É a base ou o ser de cada relação. Na medida em que eu toco isso, eu toco o imediato tanto do tempo quanto do movimento. Isso que vamos cultivar, aproximar, desconstruir o que impede isso. Investir e criar pontes para chegar nisso e se relacionar de modo imediato com isso. Isso é um modo de vida. Por isso precisamos cultivar, tanto do ponto de vista do corpo como da sensibilidade, na musica, no cinema, na literatura, o que for que atravessa o corpo, como aquilo que alimenta o espírito (como sinônimo de tempo), ou a mente ou o pensamento. Esse cultivo implica também um outro uso da linguagem.
Experimentar não é consumir. Experimentar é modificar-se, não é um faz de conta. Você age e sente de maneira diferente quando há uma modificação. Você se torna diferente de você mesmo. Isso é essencial, pois faz você ter um gosto real pelo acontecimento e pela diferença e não um “tolerar” o acontecimento e a diferença. Os politicamente corretos toleram a diferença, eles não fazem a diferença. Eles, ou algo em nós, certas instâncias em nós, só toleram a diferença. E toleram porque tem vantagens na tolerância. Quanto mais se tolera, é civilizado, é racional, calcula, espera, não avança, em tudo tem a ordem, o tempo, seu jeito, mais vantagens você vai ter. Você é recompensado socialmente. Você é educado, amável, civilizado, respeitoso, respeitável, autorizador, autorizável. Entra naquele campo de legitimação instituído. Esse ponto essencial da experimentação de todas as atmosferas, do pensamento, do corpo, da seleção, da produção de memória, de oportunidade, da instrumentação do aprendizado e do ensino tem essa dimensão de uma modificação real que faz com você se torne diferente de você mesmo e não simplesmente mude de roupa, de casca. De fato, outra coisa que deseja em você, que pensa em você, que age em você, a cada diferenciação, a cada modificação. Aquilo que Bérgson chama de diferença da natureza. Há uma continuidade em nós, que só se divide mudando de natureza. Uma continuidade intensiva e expressiva e não uma falsa continuidade na extensão e de um falso corte na representação. É uma qualidade expressiva e não representativa, é intensiva e não extensiva.
A agressividade mais eficaz, a maneira mais potente de destruir o que precisa ser destruído, sem culpabilidade, de modo inclusive afirmativo, é a doçura, e com humor. Isso é uma conquista, é difícil. Uma coisa é essencial para não ser enquadrado pelo poder, é se tornar imperceptível, deixar de chamar atenção sobre você, se pintar com as cores do mundo, ser um homem bem comum. Não é ser humilde. Você pode ser o mais comum, sendo o mais extraordinário. Devir imperceptível. Você sabe que existe uma zona na sociedade que elogia a amabilidade, a doçura, a educação, não alterar o tom, o não se indispor, a não alterar o humor, não ser explosivo, não ser animalesco. Você pode habitar essa zona, mas com outro ponto de vista, com outra motivação, fazendo outro uso disso. O teu amável se torna um habitar um tempo próprio que te constitui e um movimento próprio que engendra movimento, sem atropelar, sem saltar, sem retardar. Isso cria uma suavidade, uma necessidade que se confunde com a falsa necessidade dos amados, dos respeitados, dos justos, dos bons, dos verídicos. É uma zona simulada. Você não finge, é amável de fato, mas de outro ponto de vista. Pode até se mostrar não amável deste ponto de vista. O amável que finge jamais abandona a carapuça, ele é covarde e precisa daquilo, ele se agarra aquilo porque não pode fazer frente a nada. Investe nisso como uma capacidade plástica, estética, você se transfigura, se exprime de várias maneiras, tem dinamismo. Mas o importante é nunca estar naquilo que te fotografa. A fotografia do instante é apenas um instante de uma passagem que é incapturável. Desse ponto de vista, confundir-se com a própria passagem gera um investimento de se mostrar ao máximo, (que é o contrário de se esconder), na passagem e não na figura ou na forma. É algo que se mostra em ser de passagem. Quanto mais se mostra como ser de passagem, mas se torna incapturável e mais se torna indestrutível. O poder não apreende a passagem, não a compreende. Ele só julga a passagem. Ele tem que fragmentar, segmentar, instantanear, encadear, registrar, mapear. Vai decalcando tudo. Se você se torna a pura passagem, ele não te pega. Isso é a potência da vida A vida é totalmente potente para fazer frente a qualquer poder. É impossível que não haja essa potencia em nós. A vida é totalmente perfeita, é uma plenitude. Só que nós, separados da capacidade de acontecer, substituímos isso. Caímos num buraco e procuramos um céu para pendurar lá e ser resgatado desse buraco, já que não temos mais superfície. Por isso dizemos que a vida é imperfeita e triste. Pois toda vez que estamos no buraco, estamos sofrendo. Um sofrimento por falta e não por excesso de vida. Isso faz com que eu identifique a existência à mal, à imperfeição. Há um mal na existência, uma falta, ao desejo falta o objeto.
Imagem pode virar mais que índice, um sinal, uma porta de entrada de um fluxo, como efeito de um movimento. A imagem viva. A imagem como instante, como elemento opaco, que impede acessar ou congela o movimento, deve ser dissolvida. Essa imagem fixa pode também ser imagem de um fluxo e aí é péssimo, pois com a imagem fixa você faz uma imagem não fixa. Por exemplo os sentimentos. De tristeza, de alegria. È a imagem de um fluxo, de um afeto, da variação de uma potência, de um desejo. Enquanto imagem eu não apreendo o próprio afeto. Mas se eu faço dessa imagem a porta de entrada para o afeto enquanto afeto, da força enquanto força, viva essa imagem. A imagem não é má, o signo não é mau, depende do uso que fazemos deles. É tudo uma questão do uso. Não existe nem bem nem mal. Existe um mau jeito e um bom jeito. Como diz Nietzsche, existe o bom e o mau jogador. O mau jogador é aquele que ressente, que é prisoneiro de um estado de corpo, que busca um ideal, que julga, que investe numa falsa verdade, aquele que carrega, que retem para si, que não quer queimar. Bom, mas a chama já está aí! Você pode mudar a maneira de queimar e viva a queimação, vamos queimar. O bom jogador é o que dança, que é veloz, potente, dinâmico. Um leva para força, como generosidade e o outro leva para fraqueza, como mesquinho. Parar o tempo, o tempo como horizonte da morte ou da decadência é um desperdício.
Ética não é aquela que seleciona entre o bem e o mal. É aquela que, em qualquer relação, seja boa, seja má, de saúde ou de doença, há o necessário nela, que pode virar combustível da minha vida. Isso que é a capacidade de transmutar e aí é o segundo momento da experiência. A experiência também me leva para maus encontros, para a doença. Não é experimentar só o que é bom e garantido. Ao contrário, a experiência não dá nenhuma garantia, por isso tenho que me preparar, não com um escudo dos mediadores, mas com a capacidade de olhar o sol de frente, de ver somente, movimentos, tempos e modos imediatos, sem mediadores de representação. Não é fácil, por isso temos medo, nos acovardamos, fugimos, temos medo das próprias forças, se desvia, dá mais atenção ao outro, ama o outro, odeia o outro. Transformar a dor num presente. É difícil também, mas sempre tem jeito. Nem Henry Miler, nem em Nietzsche existe uma acusação sequer contra a vida. E Nietzsche sofreu muito. Esse segundo momento da experiência é transmutar o que te acontece para que você se torne digno do que te acontece em vez de reclamar do que te aconteceu O que eu mereci de imerecido é, na verdade, o que diz Deleuze que transforma as nossas chagas em coisas repugnantes ou que faz do acontecimento chagas repugnantes. Isso é desperdício. A gente não experimenta, de fato, porque a gente tem medo que o acontecimento seja injusto com a gente. Por isso que temos que desenvolver a prudência e o devir imperceptível, que é um aspecto fundamental da prudência. E a preparação, o aprendizado da constituição de si, que nos faz potentes o suficiente para podermos dizer bem vindo à todo acaso e não só a parte boa do acaso, inclusive o pior deles, pois ele é inocente como uma criança.