sábado, 1 de outubro de 2011

hypomnemata 136


 Boletim eletrônico mensal
 do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 136, agosto de 2011
 
Comunicações e governos ambientados pela web.
 O efeito imediato das NTICs (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação) foi possibilitar, simultaneamente, a rápida circulação de comunicação e o maior controle das informações. Elas emergiram entre as disputas da Guerra Fria, nas salas do Pentágono do governo estadunidense, e se popularizaram graças ao desenvolvimento da fibra óptica e dos computadores pessoais.
Os softwares tornaram a produção e circulação de informações mais integradas e articuladas à Internet; formaram-se em ambientes de compartilhamento, grupos de discussão eletrônicos e comunidades virtuais ou em redes socais digitais. Ao mesmo tempo, os objetos, ou hardwares, que rodam esses programas foram se tornando cada vez menores, mais compactos, mais móveis (celulares, laptopstablets), portáteis e popularizados, ampliados pela comunicação via satélite.
No Brasil, hoje há um número maior de aparelhos e linhas de telefones celulares do que de pessoas. São mais de 210 milhões de linhas, para uma população estimada de 193 milhões, segundo dados da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), publicados em outubro de 2010.
Hoje, vive-se em uma situação aparentemente paradoxal: essas tecnologias são, ao mesmo tempo, tomadas como a principal arma contra governos ditatoriais e a favor do que se nomeia como aprofundamento da democracia (democracia real, democracia radical ou simplesmente democracia), mas são, também, o meio mais eficaz de se mapear uma área, monitorar fronteiras, registrar e controlar a circulação de pessoas, mercadorias e informações: criar bancos de dados.
Por meio das NTICs, conectam manifestações pela cidade e nas redes sociais como os tuitaços; promovem-se ataques a sites do governo, realizam-se petições e abaixo assinados, coordenam-se ações de rua. Enfim, expande-se a convocação à participação e geram-se visibilidades para os temas, problemas e pessoas das mais variadas procedências e interesses. Pela internet, você cuida de seus interesses e de interesses comuns; das insatisfações e insuficiências do local onde vive às insatisfações e insuficiências do planeta. Comunicam-se interesses e expandem-se necessidades.
O mundo da internet não dispensa elaboração e proliferação de regras, acessos controlados e autorizados, assim como o mundo off-line, governado pelos protocolos e suas interfaces.
Não há politização possível, há uma política que intensifica a articulação entre política e polícia (como prática local e conduta individual), dinamiza e intensifica os gostos por cuidar, monitorar, reivindicar, denunciar, exigir transparência, em uma palavra: policiar. A disseminação do uso de aparelhos eletrônicos abriu a possibilidade de incluir quase tudo em um único ambiente controlado. Essa possibilidade dá a cada cidadão o poder de ser fiscal do governo, das ações na cidade, das condutas alheias.
Forja-se uma subjetividade que se faz e refaz no ambiente eletrônico e na comunicação deste com momentos espetaculares de rua; que aceita ser controlada, em troca de poder controlar. Realiza-se uma permuta democrática, negociando o governo de sua vida para poder governar os outros, e participar de governos no planeta.
 brevidades
As ações de rua conectadas por meio das NTICs já possuem uma história nesse começo de século XXI. Iniciaram-se com articulações globais contra a globalização e o neoliberalismo. Desde 1999 em Seattle, passando por Gênova, até sua formalização nos Fóruns Sociais Mundiais, anunciava-se uma nova forma de fazer política, uma nova esquerda, uma nova maneira de conjugar reivindicações, e buscava-se uma outra globalização, ou o altermundialismo.
Isso ganhou corpo e velocidade na medida em que os projetos de mídias, alternativas ou independentes, intensificavam-se com a criação de sites compartilhados, blogs e as novas redes sociais digitais que agregavam, uniam e aproximavam as pessoas no ambiente da web. Desde então, uma produção infinita de palavras circula e se multiplica com um único objetivo: comunicar o maior número de pessoas possível. Para isso, a condensação, resumo com efeito de convocação, o comunicar em poucas palavras, é a tônica: estaríamos numa nova era das palavras de ordem?
 M A R C H A’s
Os fatos do momento, relacionados ao poder da comunicação na web são: os protestos contra as ditaduras no Magreb, na África, as movimentações de indignados, nos chamados PIGS da União Europeia, as Marchas das mais diversas no Brasil e América Latina; as periferias de Londres que rememoraram as periferias francesas da metade da década passada. Analistas apressam-se para indicar o impasse das classes médias diante da crise global; explicam-se os distúrbios urbanos como manifestações de excluídos do consumo e miram na produção de um comum global.
A esperança é que o espetáculo das ruas, anunciado e coordenado via internet, expresse uma resposta ao domínio dos bancos, do capitalismo financeiro e de seus ditadores. Em uma palavra, vê-se, nas manifestações de rua o crescimento do desejo por democracia como um imperativo desta época. Enquanto isso, a ditadura chinesa segue em crescimento econômico vertiginoso, as apostas nas economias emergentes animam os investidores e nas empresas de softwares os investimentos atingem picos inimagináveis de valorização nas bolsas. Nesse fluxo, os acertos de cúpula para aparar a propalada crise realizam seus ajustes e os governos locais seguem ativando o uso da violência para conter os ânimos mais exaltados e fazê-los voltarem para casa, satisfeitos com os efeitos espetaculares e a promessa de melhorias ou abertura de novos fóruns globais de discussão sobre o tema pautado.
 mensagens
É preciso atentar para os efeitos desse jogo de reivindicações: as mensagens se sobrepõem e a velocidade de sua repetição dá o tom às graduais mudanças. As mensagens se sobrepõem, colocadas por movimentos que dizem repudiar os partidos, mas com soluções sempre de governos parlamentares: nova política educacional no Chile, atenção à regulamentação da questão dos imigrantes na Europa, maior controle do governo de Estado sobre a economia, planos planetários de implantação de governos democráticos no Magreb, regulamentação de condutas criminalizadas, revisão de políticas criminais, maior controle da corrupção estatal.

léxico
Já disseram que o meio é a mensagem. O que se assiste hoje é a encenação de mensagens sobrepostas — de circulação, comentários e interpretações cada vez mais velozes e sintéticos —, que disputam visibilidades para qualificarem as ruas ambientadas pela web em verdadeiros sujeitos de contestação.
Assiste-se à enxurrada de palavras tornadas mensagem.
 a n a r q u i a
Em 1972, em um ensaio sobre o futuro da música, John Cage escreveu que a palavra tornada mensagem é instrução, governo, coação, exército. Segundo o músico libertário estadunidense, o escritor Henry David Thoreau já havia alertado para os pés marchando nas construções de certas palavras. Marchar, segundo o léxico, significa andar. O Aurélio define o verbo como seguir os devidos trâmites.
Ao digitar marchas num site de buscas da internet obtêm-se mais de 145.000.000 referências. A maior incidência em português de escritos sobre a realização das marchas concentra-se em blogs e fóruns de discussão sobre o confronto ocorrido em junho deste ano, na Avenida Paulista, entre os militantes da denominada Marcha da Maconha e a polícia. Após a ação policial, os organizadores da marcha convocaram o que denominaram de vítimas das mais diferentes injustiças — gays, negros, vegans, ciclistas, artistas de rua — para unirem-se num mesmo ideal na intitulada Marcha da Liberdade.
Depois do conflito, da atenção causada pela articulação da nova marcha, do apoio de intelectuais a um debate amplo em relação à regulamentação do uso da erva, a caminhada em prol da descriminalização da cannabis foi autorizada pelo Supremo Tribunal Federal.
A onda de marchas não cessa. São marchas de protesto e marchas para protestar as de protesto; marchas para celebrar a família e Jesus, ou ainda, marcha das autodenominadasvadias, supostamente, para defender a liberação das mulheres. São, ainda, marchas de índios, como a dos Kaiowa que foram a uma sede da FUNAI, em Dourados, para denunciar o que chamaram de violência e barbárie contra os povos indígenas do Mato Grosso. Militantes do Movimento Sem Terra do mesmo estado marcharam rumo a um edifício do Ministério Público para denunciar irregularidades na atuação de funcionários do INCRA. Por fim, no início de agosto, foi agendada a Marcha contra o Tabagismo, organizada pela Vigilância Sanitária da pequena cidade mineira de São Sebastião do Paraíso.
Lado a lado às Marchas citadas acima encontramos ainda a Marcha das Mulheres, da Educação, do Boquete, entre outras. Ao contrário das marchas realizadas no final da década de 1990, como a dos Cem Mil, convocada por partidos políticos de oposição, parte dos chamados movimentos sociais, ONGs e sindicatos, as recentes marchas, divulgadas por meio da criação e compartilhamento de eventos no facebook ou hashtags no twitter, declaram não pertencer a partidos ou possuírem lideranças tradicionais. Entretanto, em cada texto ou manifesto exposto na rede, a palavra organização é reiterada como modo de articular novos protestos.
Pautadas pela falta, pela reivindicação de direitos ao Estado, pelo clamor por justiça, uma democracia chamada de verdadeira, as marchas arregimentam indignados curtidos diante da tela do computador. Importa mais o número de seguidores na rede do que as estimativas fornecidas pela polícia, que quase sempre atua como cordão de isolamento, reservando somente um pedaço da rua aos integrantes das marchas, no dia do desfile.
Para além do Brasil, as reivindicações dos estudantes chilenos por uma reforma na educação também são denominadas assim. Compostas não só por jovens, mas também por mineiros, ecologistas, médicos, desempregados, o encontro de centenas de milhares de pessoas sob a neve ficou conhecida nas redes sociais como Marcha dos Guarda Chuvas.
Ao ser questionado por Toni Negri, no final dos anos 1980, se as sociedades de controle ou de comunicação não suscitariam novas formas de resistência, o filósofo Gilles Deleuze responde que isso não dependeria de as minorias retomarem a palavra, pois segundo ele a fala e a comunicação estavam apodrecidas. É preciso um desvio da fala, instigou.
A palavra marcha associa-se com a dureza, o uniforme, a farda, o peso. É preciso relembrar que na história recente do Brasil, a “Marcha da Família com Deus pela liberdade”, articulada por entidades como a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina, entre outras, somada a setores conservadores da Igreja Católica e políticos como Ademar de Barros, abriram espaço para o golpe militar de 1964.
Marchar direito e por direitos. As palavras, quando comunicam, não chegam a ter efeito algum, afirmou John Cage no breve texto publicado em 1972. Para o músico, começa a se tornar evidente para nós que precisamos de uma sociedade na qual a comunicação não seja praticada, na qual as palavras se tornem nonsense, assim como acontecem entre amantes.Desmilitarizar a linguagem, segundo Cage, é uma preocupação musical.
Palavras são armaduras que muitas vezes carregamos sem ao menos perceber.

Nenhum comentário:

Postar um comentário