Costumo dizer que aqui em casa, a sexta-feira à noite é dia-sagrado. Ou é dedicada à conversa, ou à leitura, ou à discussão, ou à música, ou ao cinema, ou à culinária, ou outras coisas, ou tudo isso junto. Há sextas mais amenas e outras mais intensas.
Hoje, depois d’a semana me abater, a última sexta foi dia de recolhimento e de cinema. Uma das fitas que rodou em meu projetor, foi “Não me abandone jamais” (sobre a qual fiz a postagem anterior).
É claro que, pelos acontecimentos dos últimos dias, no campo do trabalho público municipal, minhas itinerâncias seguiram os rumos dos fatos! Acabei escolhendo essa fita pra ver, por indicação feita por uma colega de um dos grupos virtuais de discussão de que participo.
A fita, na verdade, versa sobre uma hipotética prática de criação de clones para a doação de órgãos. Os clones, depois de criados, são levados para escolas fechadas que se responsabilizam pela educação e controle dos corpos. Os “clones” não problematizam nada, seguindo à risca a ordem de que não devam ultrapassar os limites... uma menina, depois de uma nova tutora questionar o fato de um aluno não ter ido buscar uma bola que caiu depois dos muros e do portão, responde-lhe: “nós não vamos além dos limites, é muito perigoso”... o perigo pregado pelos controladores de corpos era a notícia sobre aqueles que ousaram ultrapassar os limites e foram encontrados mutilados e mortos!
Nada se coloca sobre a mutilação e apropriação indébita dos corpos para doações de órgãos... ou seja, talvez fosse mais digno ultrapassar os limites, abrindo os portões pra ver o que há do outro lado!
Lá pelas tantas, na fita, quando os “clones” completam 18 anos e alcançam a condição legal de “doadores”, são levados para outras instituições –que não mais a escola- que os abrigam enquanto aguardam a sua vez de doação. Nessas instituições, assim como na escola, as idas e vindas são controladas por uma pulseira eletrônica que é passada no sensor pra sair ou pra entrar. É uma plena liberdade controlada e vigiada!
Nessas idas e vindas, um casal de “clones” vê, na cidade, alguém que pode ser a “original” de uma de suas colegas. Levam-na para conferir e ela fica indignada por sua “original” ser uma executiva quadradinha. Em seu surto de indignação brada que eles estariam tentando criar outras versões para o fato de que eles eram somente e tão somente frutos da escória. Eles eram a escória que servia à doação de órgãos e a nada mais!
Há, ainda, na fita, a idéia do amor romântico, que faz circular um boato de que os casais que comprovassem sentirem “o amor verdadeiro”, um pelo outro, poderiam solicitar o adiamento do processo de doação de órgãos, para poderem vivenciar por algum tempo o tal amor! No fim, nem os apaixonados, nem os amantes alcançam adiamento.
Agora, como é que se dá esse processo de doação em vida? Cada doador consegue alcançar um número X de doações, ou seja, faz uma doação e aguarda o processo de recuperação, para então fazer outra doação. Alguns conseguem fazer várias doações, enquanto outros “completam” já na primeira ou na segunda (completar significa desistir e morrer, sem doar e sem sofrer mais!).
Eu não poderia esquecer de uma outra condição que pode ser alcançada pelos clones, que é a de se candidatar à função de cuidadores (isso adia um pouco o início das “doações”), para cuidarem dos doadores que já iniciaram o processo. Cuidar até “completar” o processo!
Enfim, a indicação da colega não se deu pelas questões específicas que a fita aborda, mas sim, para tomá-la como metáfora das situações que temos discutido nas últimas duas semanas, no que se refere à situação de assédio moral sofrido por alguns colegas de trabalho e que vem sendo pauta de algumas postagens aqui no blog. A sugestão veio especificamente do momento em que discutíamos a questão da saúde mental do trabalhador público.
Disse-me ela, olha o quanto morremos a cada doação que nos leva a “completar” o processo, ou seja, conseguimos jogar a bola para além dos limites e dos portões, mas não podemos segui-la para além dessas fronteiras, sob pena de sermos mutilados e massacrados! Segue dizendo que alguns têm capacidade de realizar várias “doações”, mas muitos desistem na primeira!
Nesse caso (o dos trabalhadores públicos), também não há adiamento para os apaixonados. Os apaixonados na verdade só conseguem sofrer mais!
Depois da fita, além de ecoar as problematizações da colega, fiquei a pensar se ninguém pode acabar com essa barbárie de doações-estéreis! Ninguém? Afinal, quem é que se alimenta da esterilização dessas doações? Quem é que tem o direito à vida, as custas da vida do outro? Com certeza, não é o campo da bioética que há de nos responder essas questões!!!
Ah! Não poderia esquecer de um outro ponto! O "doador" que, apaixonado, acredita que ele e sua amada possam solicitar o adiamento (apesar dele já ter iniciado o processo de doação), cria sua interpretação para a existência de uma galeria de arte na escola em que foram confinados. Acredita que a galeria servia para identificar, através da arte e da criação, aqueles que fossem realmente apaixonados. Crente nisso, investe nessa idéia e leva suas melhores criações para apresentar às controladoras de corpos e de afetos, esperando um adiamento, mas recebe como resposta, que na verdade nunca souberam exatamente o que fazer com as produções e que, mantinham a galeria para saber se tinham mesmo alma! Sem mais palavras!
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