por Neno Vasco
(em: Contos Anarquistas - ed. martins fontes)
Numa ilha fértil, solitária no meio de um grande mar, vivia uma família ociosa, bem nutrida e agasalhada, que se dizia dona e senhora de toda a ilha, proprietária das terras, casas, choupanas, arados, gado, tudo.
Para manter essa família na mandriice e na fartura, esfalfavam-se, desde manhã até a noite, meia dúzia de trabalhadores ossudos, sujos, tostados do sol, mal alimentados e mal abrigados, eles, suas mulheres e seus filhos. Só eles conheciam o seu trabalho, sabiam as épocas das semeaduras, os modos de cultivar as terras, o manejo do arado e de todos os instrumentos de trabalho, e eram eles que entre si combinavam e distribuiam as tarefas, ajuntando-se nas mais rudes, dividindo-se nas mais leves e curtas.
Quanto aos filhos do patrão, em vez de ajudar, como faziam os filhos e as mulheres dos trabalhadores, vinham estorvar e inquietar as pessoas e estragar as sementeiras. E o proprietário, então? Esse não fazia mais que vigiar os serviços, de mãos atrás das costas, dizendo de vez em quando, todo ancho e satisfeito:
- Ah! Se não fosse eu, como haviam vocês de viver?
E os pobres homens, muito humildes, respondiam, descobrindo-se:
- É verdade, é verdade: se não fosse o patrão que nos dá trabalho e nos sustenta, que havia de ser de nós?
Ora, um belo dia - belo no começo, feio depois -, o proprietário foi com a família toda dar um grande passeio pelo mar, na sua linda e veloz chalupa. E, tendo-se afastado muito da costa, sobreveio um grande temporal, que afundou a embarcação e afogou todos os que nela iam. Dias depois, os trabalhadores horrorizados encontraram na praia os cadáveres dos patrões, vomitados pelos vagalhões furiosos.
A princípio ficaram cheios de aflição e parecia-lhes que estavam ao desamparo. Mas os trabalhos não pararam. Acostumados a combinar e a distribuir entre si as tarefas, ajuntando-se nas mais rudes, dividindo-se nas mais breves e fáceis, os trabalhadores da ilha começaram a lavrar, a semear e a colher, a fiar e a tecer o linho e a lã, a criar o gado, a manejar o arado, a foice e o tear - e a terra continuou a produzir, os rebanhos a crescer e a multiplicar-se, o sol a brilhar sobre as searas.
Os trabalhadores não tardaram a reparar que tudo se fazia melhor do que antes, que já não tinham quem os estorvasse e vigiasse, que comiam melhor, andavam mais agasalhados e tinham melhor habitação e que podiam produzir mais e melhor. E por isso, no dia em que fez um ano que a tempestade os livrara dos patrões, quando palestravam sobre o caso e suas consequências, o mais velho disse tudo em poucas palavras:
- Que grandes cavalgaduras que nós éramos!
Assim dirão os teus iguais, quando se tiverem livrado dos amos, que, longe de serem úteis ou precisos, têm interesses contrários aos teus e aos dos teus irmãos de trabalho.
Os amos querem pagar de salário o menos possível, para ganhar o mais possível; e vós precisais de vos deixar roubar cada vez menos nos frutos de vosso trabalho - e isso só o conseguis associados, pois reparados, desunidos, nada podeis.
Os amos têm interesse em haver muitos trabalhadores desunidos e muitos desocupados, para que as soldadas sejam pequenas; e vós precisais de trabalhar todos, e de estar unidos, para não haver quem tenha de aceitar uma côdea por qualquer escasso serviço que apareça.
Os amos, para vender caro e com lucro, precisam de refrear a produção das coisas, de reter, enceleirar, açambarcar os produtos, e até de os deixar apodrecer; e vós quereis satisfazer as vossas necessidades. Assim é que há tantas terras incultas, tantas máquinas inativas, tantos materiais desempregados, quando há tanta gente a sustentar, a vestir e a abrigar e tantos braços desocupados ou mal ocupados.
Vós fareis como os trabalhadores da ilha; mas não podeis, como eles, contar com uma tempestade providencial. A tempestade libertadora tereis de a preparar e fazer vós mesmos.
Tu e os teus iguais tendes de vos associar desde já, ainda que não seja senão para resistir à constante ganância dos amos, para estudar e defender os vossos interesses, para conhecer bem o vosso trabalho e as vossas necessidades, assim como o melhor modo de arranjar e combinar o primeiro e de satisfazer as segundas.
E assim, quando tiverdes a força e as capacidades necessárias, com a ajuda indispensável dos vossos irmãos das cidades, passareis a viver sem amos nem mandriões, e a arranjar tudo por vossas mãos e vossa conta.
(A Plebe, SP, nova fase, ano III, nº. 86, 13 abr.1935)
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