Este é um escrito dedicado para um caro amigo e colega que foi atropelado por um rolo compressor, e que se encontra na UTI. É um escrito, também, para os outros caros colegas e amigos que foram atropelados pelo mesmo rolo compressor, mas que, em estado menos grave, encontram-se em observação. Esperamos que se recuperem logo, para prosseguir na caminhada que não há de parar. Estamos com o hemocentro de nossas vidas, abertos para o recebimento de doação de sangue. O sangue pode ser doado diretamente para os feridos, ou pode ser doado para o estoque, pois nunca se sabe quando haveremos de precisar dele!
Oh, João!
Acaso sois pedra,
para que as coisas aconteçam
por sobre ti e, assim, nada possas fazer,
a não ser, ser o subsolo da terra?
Oh, João!
Acaso sois o minério endurecido
ao longo do tempo,
para que as coisas aconteçam
por sobre ti e, sem ação ou vontade,
tenhas que te submeter à terra
em cujo seio as sementes caem,
enquanto tua existência
se mantém submersa, fria e rija?
Oh, João!
Acaso sois o minério triturado,
tornado pedra brita, para que,
saído de onde a natureza te deu habitar,
fostes transformado em partículas,
para servires à composição
do duro concreto
que sustenta os pilares das edificações?
Ou acaso sois o pedreiro,
peão endurecido,
que de sol-a-sol,
sem pensar, sem falar,
sem dizer ao engenheiro
que sois vós quem ergue a planta que ele plantou?
Ou acaso sois um traste,
que negocia tuas suadas horas de trabalho,
tua digna-idade,
tua fome diária,
tua sede de vida,
teu olhar, que lá do alto mira o horizonte,
tua poesia contida nos calos de tuas mãos,
tua caminhada que mora em tua pele queimada pelo sol,
fustigada pelo vento,
rachada pelo frio?
Oh, João!
andaste para trás, recuando assustado,
sem perceberes que cairias das bordas tênues
do terraço traiçoeiro?
Oh, João!
Onde anda aquela tua coragem
nascida feito resistente flor no deserto?
Oh, João!
Não vês que estarás comendo
o pão-doce que deus amassou?
Oh, João!
Dá-nos a mão
e ajuda a fazer desacontecer as coisas que
já tiveram o poder de fazer desacontecer outras!
Sai desse enterro em que te meteste,
sabemos que não sois defunto,
sabemos que não sois pedra,
sabemos que não sois minério,
sabemos que não sois um traste,
sabemos que não sois covarde,
Oh, João!
Sabemos que, ainda na borda do terraço,
haverás de nos ver no horizonte.
E que te seguraremos se vier a cair,
ou te daremos a mão se conosco voltar a caminhar.
Sabemos que não deixaste de ser a resistente flor,
mas que procuras, para florir, solo mais rico do que o árido e sofrido deserto.
Oh, João!
Sabemos que és capaz de compartilhar
com os pássaros as migalhas
espalhadas ao redor da vida e,
que não haverás de comer
o pão-doce que te mataria de dor.
Oh, João!
Caminhaste tanto,
que não foi pra isso:
pra chegares onde estás!
O caminho é duro, João!
Sabemos que muitos de nós quedarão
à beira da estrada,
assassinados pelos bramidos
dos que querem uma vendeta.
Mas não queremos vendetas, João!
Vendetas são para os que só sabem fazer morrer!
Nós, João, somos afeitos à vida!
Queremos caminhar para viver!
Viver, simplesmente,
e não perseguir uma miragem assassina,
lá no final do horizonte.
Sim, João, mostram-nos, às vezes,
um horizonte que tem fim
(vemos a miragem e sabemos que aquela não é
uma miragem que haverá de nos fazer mover,
é só uma miragem perfeitamente pintada,
num mural de cenário).
Sabemos, João, que não é para o mural
que temos que olhar.
Sabemos, João, que há os que pensam serem donos
dos passos e dos caminhos.
Mas nós sabemos, João, que a vida é feita dos passos que damos.
Sabemos, João, que a estrada somos nós que fazemos.
Não fiques, João, no buraco que te mandaram cavar.
Saia logo, antes que comecem a jogar a terra que
te haverá de sufocar, até o último instante de tua vida e então,
já sem forças, não conseguirás remorer a terra que pesa sobre teu corpo
(e nem nós conseguiremos mais te encontrar!).
Venha, João, a vida é pra acontecer agora.
Anda João, a vida é pra se viver agora.
Chega mais perto, João,
alguns de nós estão gravemente feridos,
mas também precisamos de ti pra seguir em frente.
Vem, João,
Estamos indo pelo meio da floresta,
com os bichos que lambem nossas feridas.
Fazemos compressas quando a dor é insuportável.
Mas já estamos quase alcançando uma clareira
em que poderemos sentar ao sol por algum tempo
e refazer nossa pele ralada.
Vem, João,
Porque quem te tomou por traste,
logo haverá de se tornar um, pior do que já é.
Ainda haveremos de suportar, ao longo de nossa estrada,
o cheiro fedorento desse traste apodrecido,
depois de jogado e esquecido, insepulto,
na beira do caminho.
Haveremos de rezar por sua penada alma,
que já vaga e se faz carma em nossas vidas.
Rezemos, João, com nossa poesia bonita que
espanta penadas almas.
Rezemos, João,
com a força de nossa esperança,
que desfaz carmas que tentaram largar em nossas mãos!
Vamos, João, porque o inverno está acabando
e a primavera está chegando.
E nós temos que estar prontos para recebê-la,
porque as flores ainda são aquelas,
nascidas de tudo o que plantamos.
Sim, fomos nós, João,
que plantamos essas plantas que estão
por florir!
Vem, João,
porque a primavera
fomos nós que inventamos!
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(da série oh, poesia con(m)texto)
Só você, Maria Poeta...
ResponderExcluirO atropelamento é sempre um evento traumático e doloroso. Apesar disso, a sua postagem é inspiradora, representa certo alento em um momento tão difícil. Permite-nos ver que do solo esmagado também brotam flores.
Porém, esta questão do atropelamento é controversa. Já ouvi dizer que houve negligência por parte do pessoal atropelado, insinuando excesso de valentia ou pirraça. Imagina só, serem atropelados por um rolo compressor, só querendo muito! Por outro lado, há quem diga que houve flagrante desrespeito aos pressupostos básicos do trânsito, que o motorista teria conseguido a habilitação como prêmio em uma ação entre amigos, ou qualquer coisa parecida, não sei direito. O certo é que a condução de um veículo tão pesado exige zelo redobrado, assim como a condução de uma política pública. São tarefas que implicam responsabilidade e acima de tudo uma postura ética frente ao espaço coletivo. Este é um pressuposto ao qual não se pode declinar. Do contrário, iremos em direção à barbárie, e o trânsito, que é um espaço público, vai se confundir com o espaço privado. Neste cenário, obviamente, os rolos compressores e assemelhados levam vantagem.
É claro que a caminhada continua. Isto é verdade porque, como diria minha grande amiga Carine, caímos sempre em pé, como gatos. O tempo que vivemos é um tempo necessário. Só isso. Os ideais e as convicções permanecem inabaladas, sólidas, enquanto horizonte a ser perseguido, sem pressa, com a serenidade e a firmeza que orienta os nossos passos a cada dia, na certeza de que não são somente as cicatrizes de batalha o que nos resta. Você e tantas outras pessoas com anos de trajetória no serviço público, colegas de valor, são prova viva disso.
Prosseguindo, cara colega...
ResponderExcluirEste é um debate antigo e não tem dono. O que vínhamos defendendo era a idéia de um debate franco e transparente, envolvendo a comunidade e as instâncias de controle social, buscando materialidade à fanfarra ideológica. Para isso acontecer precisam cair as máscaras da bondade e da excelência, para podermos perceber o que tem por detrás dos títulos e insígnias apresentadas como referência. A nossa miséria, só isso. Nessa hora, me vem a imagem do castelo de cristal, que se coloca como metáfora interessante, independente da perspectiva.
Desse modo, trago um fragmento de escrito com o qual me deparei recentemente. Este fragmento coloca-se como contribuição singela ao hemocentro:
“Credes no palácio de cristal, indestrutível, para a eternidade, ao qual não se poderá mostrar a língua, nem os punhos às escondidas. Pois bem! Eu, se desconfio do palácio de cristal, é talvez justamente porque é de cristal e indestrutível e porque não se poderá lhe mostrar a língua, mesmo às escondidas.
Vede: se em lugar de um palácio eu só dispuser de um galinheiro, quando chover, eu me insinuarei talvez no galinheiro, para fugir à chuva, mas, ficando-lhe embora muito agradecido por ter-me preservado, não tomarei meu galinheiro por um palácio. Ridez, dizeis-me que, em semelhante caso, palácio e galinheiro se equivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para não estar molhado.
Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isso é a minha vontade, isso é o meu desejo. Vós não conseguireis me arrancar essa vontade senão quando tiverdes modificado meus desejos. Pois bem! Modificai-os, apresentai-me outro fim, oferecei-me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso-me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível? Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zombarias, mas recusar-me-ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está conforme as leis da natureza...
Não me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palácio de cristal pelo único motivo de não lhe poder mostrar a língua. Se eu falei assim, não é que eu goste de mostrar a língua. Acontece porém que, e é isto precisamente o que me irrita, de todos os vossos edifícios, não há um ao qual não se possa mostrar a língua. Ao contrário, eu faria cortar minha língua, por gratidão, se se arranjassem as coisas de tal maneira que eu não tivesse mais desejo de mostrá-la”.
Memórias do subsolo - Dostoiévski
estou postando no blog, como texto, o comentário do vladinei no escrito o desacontecimento das coisas, para que aqueles que não costumam ler os comentários, possam apreciar a grandeza desses e de tantos outros que "estavam dando problema" no espaço em que trabalhavam (talvez, esperam que, tendo atitudes rasteiras e sorrateiras contra os trabalhadores, possam fazer-lhes deixar de "dar problemas" (para os desavisados, onde se lê "problemas", leia-se "problematização, capacidade crítica, protagonismo, grandeza humana, etc").
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