Aos 83 anos, José Paulo Bisol recebeu o Sul21 em sua casa, em Osório, RS. Em uma entrevista de três horas, ele repassou momentos importantes de sua trajetória. "Eu saí da política porque eu fui muito perseguido, muito judiado. É difícil aguentar".
A entrevista é de Nubia Silveira
e publicada por Sul21, 05-09-2011.
Neto de um descendente de italiano, dono de “uma coloniazinha” em que produzia vinho, e filho de um carroceiro que vendia vinho em Santa Maria, o ex-senador e ex-secretário de Segurança do Rio Grande do Sul José Paulo Bisol teve uma infância pobre, ao lado de uma irmã e dois irmãos. Estudou – “coitado do meu pai, foi obrigado fazer das tripas coração para que os filhos estudassem” -, formou-se em Direito e foi ser juiz no interior do Estado. Com o golpe de 64, trocou o Direito pelo Jornalismo. Depois entrou na política, sendo deputado estadual e senador pelo PMDB. Disputou a eleição presidencial de 1989 como candidato a vice na chapa de Luiz Inácio Lula da Silva, seu amigo. Hoje, vive afastado da política, em meio aos livros, na bela casa que construiu em um condomínio de Osório, a 95 quilômetros de Porto Alegre, onde recebeu a equipe do Sul21 – Benedito Tadeu César, Nubia Silveira e Ramiro Furquim. Foram três horas de conversa.
Aos 83 anos, que serão completados em outubro, quatro filhos, nove netos e um bisneto, acaba de passar por mais uma cirurgia. Já foram 30. A última, do quadril, o impede de subir e descer escadas como gostaria. Prefere ficar recolhido em seu escritório, lendo, escrevendo, ouvindo música e o canto dos passarinhos. Não perdeu a capacidade de se emocionar até as lágrimas. “A música para mim, é um problema, porque se eu ouço música, fico louco”, afirma. “Choro demais. É muito complicado. Com Mozart, com Beethoven, eu me arrebento. Melhor não ouvir. Eu me desmancho como uma criança”. Vera, a sua mulher, é testemunha de que esta é uma emoção sentida não apenas com os clássicos.
Bisol também não perdeu a esperança de encontrar o novo. E a falta do novo no governo Lula o decepcionou. “No seu governo, Lula se revelou claramente um capitalista liberal. Ele não tem nada de novo”, afirma. Mas, ressalta que o amigo, com quem ainda mantém contato, fez um bom e generoso governo. Acredita que a sua sucessora, Dilma Rousseff, é uma mulher poderosa que poderá até governar melhor do que Lula.
Tem saudades do PT dos primeiros anos – “era uma coisa fantástica”. Ele e Lula faziam uma boa dupla de oradores. Bisol começou a discursar antes dos 10 anos, no casamento de um tio. “Desde então, nunca mais parei de discursar e fazer palestras”, diz. Desde criança, também, escreve poesias. Só que, agora, não guarda mais os poemas.
Nesta entrevista Bisol fala de sua vida como juiz, jornalista e político. Revela que abandonou a política porque foi “muito perseguido, muito judiado”.
Eis a entrevista.
A sua vida profissional começou no Direito. O senhor foi promotor, juiz.
Na verdade, não sei o que é o começo. Agora, estou aprendendo o que é o fim. Sei que sou uma diversidade incrível. A maior descoberta da minha vida é que o eu é imaginário, o eu é lacaniano (risos). Ninguém sabe quem é o eu, porque ele é puramente imaginário como diz Lacan (psicanalista francês Jacques Lacan – 1901-1981). E para ser sujeito é preciso um evento, incorporar o acontecimento. Por exemplo, para falar dos mais antigos, tu precisas encontrar Cristo. Aí descobres um evento. Você incorpora o acontecimento e pode se tornar um sujeito. Se não encontrar, não vai se tornar um sujeito.
O senhor encontrou Cristo?
Fui educado dentro da religião católica. Mas, eu sinto Cristo como uma revolução, um evento, um acontecimento. Acho que o mundo está envolvido nisso hoje. Quer dizer, não há mais eventos. O que diz o (cientista político nipo-americano Yoshihiro Francis) Fukuyama? Terminou a história. Não haverá mais eventos. Não haverá mais revoluções. Tenho que viver da saudade de Robespierre (um dos principais nomes da Revolução Francesa), porque agora não vai acontecer mais revoluções. O capitalismo é o capitalismo e acabou. A verdade é esta.
Mas, o senhor não acredita no fim da História.
Aqui, em Osório, toda a população vive como se Fukuyama tivesse razão. E o Fukuyama tem razão aqui em Osório.
A sua vida profissional foi sempre marcada pela defesa da igualdade, dos direitos humanos. Como o senhor trocou o Direito pelo Jornalismo e foi trabalhar em televisão?
Sempre fui um rebelde. Quer dizer, sempre estive em desacordo com o mundo. Estou sempre do lado de lá do comum das coisas. Eu não tenho ajuste. Nunca tive. Como é que eu fui estudar Direito? Nem sei. Acho que estudei Direito por medo de não ter inteligência suficiente para ser outra coisa. Direito seria mais fácil. E foi uma experiência importante para mim. Estudei bastante no Direito. Fui professor, e acho que não fiquei na mediocridade. Nesse período, elaborei uma teoria da norma jurídica. Hoje, vejo meu filho trabalhar sobre ela e chegar a conclusões interessantes. Eu estava ali, mas sempre em desacordo.
Também em desacordo com o Direito?
Como é que vou acreditar em Direito nesse momento, em que, há cerca de um ou dois anos, o ex-vice-presidente norte-americano Dick Cheney disse: “Nós também temos o nosso lado negro, sem o nosso lado negro nós não sobrevivemos”. Isto quer dizer: “nós torturamos, nós estudamos tortura”. E aí eu vou continuar fazendo discurso sobre os direitos humanos? Eu não sou hipócrita. E sem o discurso dos direitos humanos, o que é o Direito? Para que serve? Se não é pra matar a fome dos famintos, se não é pra curar os doentes, se não é pra dar algum sentido aos desesperados, pra que serve o Direito? Então, este é um fracasso na minha vida.
O senhor considera esta luta pelos direitos humanos a mais …
Eu vivi a defesa dos direitos humanos com paixão. Mas vi que era uma grande farsa. É só quando tudo está bem que os direitos humanos funcionam. Quando está mal, há tortura, violência. E quem mais tortura? Os americanos, o exemplo de democracia. Outra coisa que me espanta incrivelmente são as tais revoluções militares na América Latina. Todo mundo fala que os exércitos nacionais fizeram revoluções. Isso é uma mentira socializada. Os militares foram instrumentos dos americanos, o que coloca até a questão do nacionalismo deles em jogo. Todos os movimentos – no Chile, Guatemala, Uruguai, Argentina, Brasil – se deram da mesma forma. Um pouco mais violento aqui, outro um pouco mais violento lá. E quem elaborou tudo? Quem controlou tudo? Quem determinou tudo? Foram os americanos. Agora eu pergunto para vocês: como vou levar isso a sério? Quer dizer, existem mentiras sagradas, existem silêncios sagrados, onde ninguém toca, e todo mundo sabe. É só se deter um minutinho e todo mundo sabe a verdade, mas ninguém fala. A mídia nunca dirá e nunca disse uma só palavra verdadeira sobre o assunto.
O senhor está falando especificamente sobre o golpe, ou a mídia não diz a verdade sobre nenhum assunto?
Eu estou falando sobre a verdade.
A mídia não diz a verdade sobre nada?
Olha, até pode dizer, circunstancialmente, a verdade…
O senhor fez parte desta mídia. Então, o senhor acreditava que dizia a verdade. O que mudou de lá para cá?
Quando eu estava nessa mídia, vivíamos sob o governo militar. Quer dizer, eu escrevia meus artiguinhos e era decidido lá, por não sei quem, se podia publicar ou não.
A sua história de vida é de engajamentos, revoluções, desde a sua militância no Direito, na mídia, na política, pelos direitos humanos.
E agora tu vês. Dá uma olhadinha, já que colocaste isso que me parece rigorosamente verdadeiro; dá uma olhadinha nas revoluções. A revolução de Cristo se transformou numa igreja perversa, que tem 600 anos de assassinatos, por meio da Inquisição. A Revolução Francesa de Robespierre. Ele sabia que toda revolução para ser mantida tem que usar o que Walter Benjamin chamou de “violência divina”. Não usou adequadamente. E o que resultou da Revolução Francesa? Uma revolução com a qual Kant ficou espantado. A parte sangrenta não interessava a ele, mas a transformação interessava. Hegel não é fruto dessa revolução também? Mas a revolução deu em quê? Conseguiu extinguir a monarquia francesa e tal, mas caiu no Napoleão. Quer dizer, fracasso! Mencionei dois fracassos.
E a revolução comunista?
É a revolução do século XX. Tem que respeitar Marx até hoje. É só ler um pouquinho com atenção. O cara é extraordinário. Além disso, o coração dele é enorme, pensando num ser humano de muito mais qualidade. Os fundamentos desse evento, desse acontecimento, são nobilíssimos. E superinteligentes. E mais do que isso: muito verdadeiras. E deu no que deu, rapaz. Deu em Stalin. E o que era o Stalin? O equívoco se chamava materialismo histórico. O que era materialismo histórico? Um fetiche. Transformou-se num totalitarismo. A história foi um instrumento, que o Partido Comunista usou para uma dominação total. Fracasso! Não pelas razões que se dizem aí. Fracasso porque inclusive a “violência divina” chegou a ser utilizada brutalmente e deu no que deu, afinal das contas. Bom, vamos adiante: uma revolução dentro da revolução: a chinesa. Vou procurar resumir bastante, se não a entrevista de vocês vai ficar impossível. O que aconteceu com Mao Tsé-Tung? O sujeito fez a tal da revolução cultural, que foi de uma violência incomum, e destruiu padrões tradicionais da China e tudo mais. Para quê? Para ele transformar o trabalhador chinês na mão de obra mais barata do mundo e utilizar o comunismo como instrumento da realização capitalista da China. Um sujeito pegou o comunismo como instrumento de desenvolvimento capitalista real, verdadeiro. E a China vai ser a maior economia do mundo, daqui a um pouquinho. Já é quase.
De certa forma isso aconteceu, também, na União Soviética.
Tanto que fizeram com os agricultores e não com os operários.
Então, fazendo uma análise de como acabaram as grandes revoluções…
Eu só queria dizer isso: a vida não tem sentido se você não se engaja a um acontecimento que tenha uma significação ética de trazer o homem novo. Entende?
Vamos falar das suas revoluções. Como elas acabaram?
Do mesmo jeito.
O senhor participou da Constituinte, que foi uma verdadeira revolução no país.
Não sou um niilista. Sei que eu consegui contribuir – e até razoavelmente bem – com algumas coisas boas, no meu tempo. Mas, essencialmente, as coisas continuaram duras para os pobres, para aqueles que são parte nenhuma da sociedade. São parte, mas a parte nenhuma da sociedade.
Dê um exemplo de quem é parte nenhuma da sociedade.
Meu pai representava a parte não-parte da sociedade. Essa expressão “parte não-parte” é utilizada pelos novos comunistas hoje. O proletariado é a parte não-parte da sociedade. Não é o cara que devia estar trabalhando e não trabalha porque não tem emprego. É toda a parte não-parte da sociedade.
Mas quando o governo Lula tirou da pobreza milhões de brasileiros, ele não fez essa parte não-parte ser parte?
Esse é o jogo da esquerda liberal e tal. É o jogo desse francês que fez uma palestra aí em Porto Alegre…
Edgar Morin.
Morin, Morin.
Mas, estes milhões de brasileiros que saíram da miséria não passaram a ser parte?
Mas é insignificante. Eu e meus irmãos estudamos e saímos. Vivemos uma vida bem razoável com sobras. Mas a maioria não sai.
O que queremos dizer é que há um movimento de ascensão social que é bastante expressivo. Calcula-se que, talvez, 30/40 milhões de pessoas tenham ascendido socialmente, inseriram-se na sociedade de consumo, sociedade de massa, capitalista.
Mas, eles foram inseridos em quê? Eles foram inseridos num mundo vazio, sem sentido. Quer dizer, você vai falar em política hoje e a linguagem na rádio e na televisão é a do “economês”. Você não fala mais em política. Não existe mais problema de política. Só existem problemas econômicos. Só existe o “você tem que lidar com o dinheiro”, o fetiche dinheiro.
Há um processo, que é uma dinâmica inerente ao processo de transformação das revoluções, de institucionalização das revoluções. O senhor participou de diversas grandes mudanças no Brasil, nos últimos 50 anos. O senhor participou, desde o início, da era Lula. Foi candidato a vice-presidente na chapa de Lula. O Lula acabou sendo presidente por dois mandatos e fez a sua sucessora. O que o senhor acha disso?
Continuo achando o Lula uma criatura incrível, de uma inteligência poderosa. O sujeito tem um sentido criativo fora do comum. Mas, se vou raciocinar friamente, como estava examinando os eventos, o evento Lula é um fracasso tremendo (risos), porque a gente se envolveu – eu pelo menos me envolvi – na crença do novo. Na crença de uma partilha mais adequada dos valores. E o Lula se revelou claramente um capitalista liberal no seu governo, que foi até bom, comparado com outros. Mas, ficou bem claro que ele é um neoliberal capitalista. Ele não tem nada de novo.
Qual a sua proposta para o novo?
O novo foi o que todas as revoluções procuraram e não acharam.
E há como achá-lo?
O de certo modo o que Slavoj Zizek disse: “é o comunismo”. A começar pela razão comum, de tornar a razão, a inteligência, o conhecimento comum a todos. A começar por aí. Em suma. As revoluções tentam, buscam, procuram, mas não chegam.
O que o senhor esperava do governo Lula? Por que o senhor se frustrou?
Que ele trouxesse uma ideia de reforma mais profunda, de transformação mais profunda. Mas eu não sou contra o Lula; acho que ele governou bem o Brasil.
Vamos falar um pouco da sua vida partidária. O que levou o senhor um juiz e um comunicador brilhante a entrar na política?
Até hoje eu me pergunto isso, porque não tenho nenhuma vocação pra isso. Eu tenho vocação político-cultural, no sentido de discutir ideias. Mas fazer política, arrumar voto é a coisa mais nojenta do mundo. Agora, eu também não pedia voto. “Vota em mim” é um horror sem fim.
O senhor começou no MDB?
Não. Eu era juiz. E não tinha partido mesmo. Agora, eu era de esquerda, era filho de um carroceiro, tinha consciência desse problema. O problema da pobreza. E como juiz eu não me comprometi com partido nenhum. Aí eu saí, e saí por causa de uma falsa revolução, sobre a qual eu acabo de falar: o golpe militar. E sempre que acontece um golpe de direita, a primeira força que se coloca do lado desse golpe, que é utilizada por esse golpe, é a Igreja. A segunda é a Justiça. Essas duas entidades são a coisa mais triste que existe na história da humanidade. Eu estava lá na Justiça. Meu professor de Direito Constitucional foi o Paulo Brossard. E o sujeito armou a derrubada do Jango! Ele me ensinava Direito Constitucional! Depois, durante o governo militar, ele foi, no Congresso, o “representante máximo da democracia”. Do outro lado estava um militar, o Jarbas Passarinho. Esse Brossard, um “modelo de democracia” – democracia virou brincadeira neste país, sabe? Um sujeito que armou a queda: “Não podia, Jango não pode”. Uma mera adversidade política explica qualquer ato moral. Quer dizer, o cara deixa de ser constitucional no “Jango não pode”. Não sou a favor nem contra o Jango. Não é isso. Só que ele não era comunista e todo mundo sabe disso. E, de repente, o professor de Direito Constitucional está contra a Constituição, porque ele é contra o Jango. Que valores são esses? Parece que a Constituição tem uma importância tremenda, mas o que tem a importância é o seu jogo partidário. Entende o que eu quero dizer? Decepção profunda…
O senhor começou a vida política no MDB ou já no PMDB?
Comecei esperando um convite do Brizola, porque quando eu era juiz eu me entusiasmei com a coragem do Brizola na Legalidade. Até hoje… Mesmo o Brizola tendo me perseguido. Ele cometeu injustiças sérias comigo e inventou absurdos a meu respeito. Não sei por quê.
Inventou quando era governador ou quando retornou do exílio?
Nesse período aí todo. Foi fazer as pazes comigo depois que nós trabalhamos juntos na última campanha. Mas eu tenho admiração por ele, porque a Legalidade não foi uma página pequena. Foi uma página de um homem realmente forte, generoso e corajoso. É uma página bonita. Eu fui para a praça pública, em Santana do Livramento, discursar a favor dele. Como juiz, eu não tinha partido, nem compromisso nenhum. Mas fui. Porque era a defesa da nossa constitucionalidade, era a defesa da legitimidade, em suma, era a defesa da verdade, da nossa verdade.
E o senhor ficou esperando um convite do Brizola para entrar no PTB ou já no PDT?
Aí eu entraria no PTB. Tava esperando. Mas não vinha, não vinha, não vinha. E eu comecei a ficar nervoso porque não tinha nenhuma experiência política. E eu queria fazer a experiência de deputado. Aí eu entrei pro PMDB.
A convite de quem?
Acho que foi do próprio Pedro Simon.
E pelo PMDB o senhor foi eleito deputado estadual (1982) e logo depois senador (1986) para a Assembleia Nacional Constituinte, não é mesmo?
Fui senador por acaso. Briguei com o Pedro Simon, por razões do partido. E aí, eu ia ser candidato a deputado federal e o Pedro, que gerenciava o partido, as candidaturas, me botou de candidato a senador, numa época em que tinha aquela dupla (sublegenda, revogada em dezembro de 1986), na certeza de que eu seria derrotado. Eu tinha certeza que eu não ia me eleger, mas já que as circunstâncias me trouxeram pra cá, vou pra essa luta. Aí, eu ia pros comícios do PMDB e eles não me deixavam subir no palanque. O Sinval Guazzelli, que era meu amigo pessoal e candidato a vice governador, ficou chateado. Dizia: “pô, tu é candidato do partido e não pode participar dos comícios, nem nada”. Então ele disse: “eu vou fazer campanha em separado e tu vem comigo”. E aí eu fiz a campanha toda com o candidato a vice. E pra surpresa do Pedro, e até minha, me elegi. Passei por cima de gente importante da época, que eram políticos consagrados.
O Guazzelli foi governador indicado pelos militares, nos anos 70.
É, não tem explicação mesmo. Até eu tenho um livro publicado contra o Sinval. O Sinval era um mistério. Mas uma pessoa boníssima. Tinha seus repentes de histeria, perigosos. E ele tinha aquela história com o pai dele, que o pai dele era um velho coronel. Aquilo estava entranhado nele. E os militares tinham confiança nele por esses vínculos com o coronelismo gaúcho. Sofreu muito, coitado do Sinval. Esse foi uma das pessoas que morreu com muito sofrimento. Coisa horrorosa a doença dele. Eu cheguei um dia na casa dele e ele me disse: “Olha, domingo passado lá na fazenda, caí do cavalo e agora eu estou meio paralítico”. Era o começo da doença dele. Não tinha nada a ver com a queda do cavalo. Era uma doença degenerativa. E aí ele foi paralisando, paralisando, paralisando tudo. Paralisa até a respiração.
O senhor ficou pouco tempo no PMDB? O senhor foi, junto com o Mário Covas, um dos criadores do PSDB, não foi?
Fui deputado estadual, como membro do PMDB. O PMDB teve um belo papel durante o governo militar. Mas, talvez, ele tenha se tornado grande demais, assim, insolúvel, sem sentido. Mas isso também não tem muita importância. Tinha essa maravilha que era o PT. O PT era uma coisa fantástica. Era uma coisa generosa. Era uma convicção de que a gente podia, de que outro mundo é possível, foi uma coisa fantástica. Mas depois se dissolveu no próprio governo Lula, que foi um bom governo, mas se dissolveu no neoliberalismo.
O senhor chegou a fundar o PSDB com o ex-governador paulista Mário Covas?
Eu ia participar da fundação do PSDB com Mário Covas. Eu admirava o Mário Covas. Mas aí o pessoal me chamou para um canto e disse assim: “olha, a única possibilidade que nós temos de um vice para o Lula és tu. E tu não podes entrar nem pro PT e nem pro PSDB”. Aí, a pedido do próprio Lula, eu me inscrevi no partido socialista (PSB).
O senhor, então, não chegou a assinar ficha no PSDB?
Eu não sei se cheguei a assinar alguma coisa. Mas, não cheguei a trabalhar… O único partido em que me senti confortável, realizado, foi esse partido que acabo de falar: o PT daquela época. No que eu pude, eu lutei. Só não entrei pro PT naquele tempo, porque pra ser vice eu não podia entrar. Isso em 89 e 94.
Na campanha de 89, houve um incidente envolvendo o senhor e o Brizola, não é verdade? Acho que foi num palanque, no Rio de Janeiro.
Acho que não foi no Rio. Foi aqui mesmo no Rio Grande do Sul. Acho que em Novo Hamburgo. Ele disse que não iria ao palanque em que eu estivesse. Ele me surpreendeu completamente, porque nunca tinha me dito nada. Alguém soprou alguma coisa no ouvido dele e ele acreditou. É por isso que eu digo que ele fez muita bobagem em relação à minha pessoa. Depois se arrependeu. Quando nós fizemos as pazes ele me pediu desculpas.
Dali para a frente ficaram amigos?
Ficamos distantes. Eu continuei a ser um testemunho favorável a ele, do seu momento mais importante, que foi o momento da Legalidade. Não dá para a gente gente desvalorizar o valioso porque houve uma coisa errada. Essa grandeza é mínima.
Nós estivemos juntos durante os últimos 10 dias da campanha de 89. Fomos de São Paulo para Curitiba e depois para o Nordeste. E lembro do bimotor em que viajamos para lá e o episódio que ocorreu.
Tu estavas naquele aviãozinho desgraçado? Mas que maravilha, rapaz. Eu me lembro muito bem disso aí.
(Benedito Tadeu César) – Naquela época não tinha celular. Liguei para o Gilberto Carvalho e ele me disse assim: “não conta nada, mas a gente tem uma informação aqui sobre um atentado. Não deixa o avião sozinho, porque pode acontecer alguma coisa”. Bom, o meu papel não era te deixar preocupado. Fui até ao avião e disse ao piloto: “Não sai daí”. Não sei se foi antes ou depois disso que aconteceu a história daquele manete, que não funcionava e foi preciso usar um cabo de vassoura.
Eu já nem conto mais isso porque vão me chamar de mentiroso. Agora, tenho uma testemunha aqui (risos). Fazer o Amazonas com um aviãozinho daqueles é preciso coragem. Meu Deus do céu. E a gente ia numa cidadezinha pequeninha e pensava: “Ih, daqui não vai sair nada”. E quando via começava a sair bandeira daquele mato. Essa imagem não me sai mais da cabeça. Que fenômeno o PT! Nunca aconteceu e nunca mais vai acontecer. Foi uma campanha inacreditável. Irrepetível. Aquela campanha foi um cântico, uma glorificação.
Naquele ano era para o Lula ganhar.
Era pro Lula ganhar. Não sei se não ganhou, visse. Na época, se contavam os votos meio maliciosamente. Não sei se não ganhou. Eu vou te dizer uma coisa: acho que ele ganhou. Acho que contaram mal (risos). Essa coisa fantástica do Lula realmente também é irrepetível. Essa linguagem do Lula, essa invenção linguageira do Lula. Isso é uma invenção genial. A comunicação do Lula é genial. Genialidade absoluta. Incrível o sujeito. Que coisa, que força! De onde ele tirou tudo isso? Tenho uma admiração profunda por ele. Mas fico louco quando tenho que me convencer da verdade: que ele não passa de um neoliberal.
Um sindicalista.
Pois é, o sindicalismo é neoliberal. O sindicalismo é capitalista. E nunca foi generoso. Sempre foi de passar a perna no outro. É o lado mau que nós tínhamos. Nós éramos sindicalistas. E os sindicatos sempre se comeram entre si. Eles não tinham a preocupação da justiça social. O sindicato fazia a classe ganhar mais.
É a lógica corporativa. O senhor não acha que o governo Lula foi generoso?
O governo Lula? O mais generoso dos governos que nós tivemos. E o mais produtivo também. Não estou falando mal de todos os outros. O Kubitscheck foi um governo interessante também. Não gosto dele, mas o governo Fernando Henrique tinha uma certa decência.
O senhor disse que não pedia votos.
Uma vez, estávamos num comício enorme lá em Juazeiro (Bahia). Uma pobreza de sair chorando até esgotar o líquido. Uma imensa multidão. Um comício espetacular. Aí eu bati nas costas do Lula e disse: “Lula, duvido tu dizer a verdade”. “Como?” disse o Lula. “Duvido tu dizer pra eles que tu não tem como garantir uma vida melhor do que a que eles estão levando. E não é pra já”. E o Lula não me respondeu nada. Só ficou me olhando como quem dissesse “Ah! Não vem com essa Bisol”. E, realmente, a gente não tinha como dizer a verdade. É horrível ser político. É horrível. Tem que mentir.
Não dá para resolver os problemas em um passe de mágica.
É amanhã. Amanhã te darei a liberdade. Amanhã te darei a dignidade. Tu tá mentindo. E é trágico. Fazer política é muito difícil. Precisa ser um louco, indecente mesmo. E eu passei a vida fazendo discurso. “É amanhã que nós vamos fazer”.
O senhor acaba de falar da capacidade de comunicação de Lula. Mas o senhor também tem esta fantástica capacidade de se comunicar.
É, eu era bom.
Quando vocês dois falavam, as pessoas ficavam vidradas.
A gente fazia uma boa dupla.
O senhor falava de improviso?
Eu sempre fui um improvisador. Inclusive em palestras. Nunca preparei uma palestra. Nunca. Tudo improviso.
O senhor ainda mantém contato com o Lula?
Mantenho contato telefônico. Às vezes, ele me visita com o Olívio. E o pessoal da secretaria vem seguido aqui.
Como o senhor está vendo o governo de Dilma Rousseff?
Conheço bem a Dilma como uma mulher poderosa, forte. Bem estruturada. Mas tenho medo da doença dela. A doença dela não é brincadeira. Meu irmão teve também. E eu não sei até onde ela pode enfrentar isso aí. Ela tem uma vantagem: o Lula se desgastava emocionalmente, porque se doava a todos, e buscava o êxtase máximo em cada oportunidade. Ela não. Ela é bem sóbria. Talvez ela possa governar melhor que o Lula até.
Fazer uma limpeza também…
Puxa, se ela fizer… não é fácil, viu?
O senhor acha que é possível fazer essa limpeza?
É uma pergunta que deve ser feita. Não tem jeito. Só há uma maneira: tem que atirar o bebê junto com a água fria. Talvez ela consiga, mas ela vai chegar a um vazio tremendo.
A seu ver, qual é o grande mal da política brasileira?
A ignorância.
E o PMDB?
Bom, o PMDB. O que o PMDB defende?
Cargos?
Então? É brincadeira até. Mas, não é só o PMDB. São diversos partidos.
O excesso de partidos não prejudica o país, a governabilidade?
As negociatas são horríveis para sobreviver. Acho que tu tens razão. Mas e aí? Restringir? Restringir já é um princípio antidemocrático. Mas os pequenos partidos acabam incomodando. Não existe mais isso de “pelo partido”. Eu fico olhando para a Manuela. Ela é uma excelente candidata. Tem um certo fascínio. Isso para um político é uma coisa de louco. Se ela tiver um partido atrás, meu Deus do céu, até onde ela vai? Mas o partido comunista tá vazio. Nem sequer tem conhecimento dos novos comunistas que acabei de falar. Eles nem sabem que existem novos comunistas. Não lêem Alain Badiou e Slavoj Zizek. Não sabem que eles existem. Eu não sei, o partido comunista é um dos mais vazios. Grande partido era o PT mesmo.
Era? Não é mais?
Era sim. Não é mais, de jeito nenhum. O PT tinha vertentes, origens sensacionais. Uma mistura do que havia de bom no cristianismo com o que havia de bom de ateus, uma mistura maravilhosa. E todo mundo com uma visão generosa do futuro. Não tem mais jeito. Quer dizer, não tem mais jeito só no sentido que eu digo: vamos esperar o evento, vamos esperar o acontecimento.
Quando começou esta mudança no PT?
Nos governos. Quando Lula perdeu a eleição de 89, ele sentou na casa dele – e eu estava hospedado lá – e me disse: “Bisol, é a última derrota”. E eu entendi claramente. Chega de ser esquerdista. “Vou ganhar a próxima”. E ganhou. Teve que deixar de ser esquerdista.
Ele é pragmático.
É sim. Só que pra um governo adianta. Ele fez e conseguiu. Mas teve que negociar pra comprar o Congresso. Nós não conseguimos acabar com isso. A coisa mais negociável do Brasil é o Parlamento. Todo mundo compra. Todos os governos compram. Não é uma novidade do Lula. Mas o Lula, quando disse pra mim que não ia perder mais, ele sabia que ia ter que comprar os caras. A gente entendia, eu entendia bem o Lula.
E a Dilma? Está ou não está comprando o Congresso?
A Dilma talvez não faça isso. Mas vamos ver, porque ela vai ser apertada.
Dizem que uma das coisas que levou ao impeachment de Collor foi ele não ter negociado com o Congresso.
ois é possível. Ele ia negociar com uma turma como a nossa? Não tinha como (risos). Não tinha como. A turma do PT, por exemplo: os petistas eram todos seres humanos absolutamente por cima dessas coisas, sem nenhum interesse pessoal, realmente acreditando.
Naquele momento, o PT era minoria.
Era minoria, mas era uma minoria forte. Os caras nos respeitavam. Meu Deus, eu tinha um gabinete junto ao restaurante. O pessoal ia pro restaurante e quando me via, ali na porta do meu gabinete, batia assim… (o teu tá aqui)… Eu era ameaçado, diariamente, de morte. Não dava a mínima. Nunca pedi segurança, nem nada.
Ameaçado por outros parlamentares?
O filho do Sarney era o que mais me ameaçava. O Zequinha que, agora, está no PV.
Qual o político que o senhor mais admira ou admirou?
O político que eu mais admirei se chama Florestan Fernandes. Era uma consciência cristalina, uma coragem simples, simples assim como um regato deslizando. Espontâneo, e tudo era puro nele, tudo era verdade nele. E não havia um momento de fraqueza daquela criatura. Passei todo o meu tempo no Congresso – ele era deputado e eu, senador – sentado ao lado dele nas reuniões do Congresso. E foi uma das melhores coisas que eu fiz na minha vida. Aquela criatura realmente exemplar. E grande. Moralmente grande.
Na política atual ainda há homens assim?
O interessante é o seguinte: quem aparecia não era importante. Era o Ulysses Guimarães, um pobre diabo. Um homem que não sabia nada. Só tinha esperteza. Entende o que eu quero dizer? Isso que é o duro na vida.
O Ulysses não tinha, obviamente, a cultura do Florestan, mas cumpriu um papel fundamental na Constituinte.
Digamos assim: o seu temperamento era de mais atividade, num lugar onde a atividade tinha repercussão. Aquele não era um lugar para aparecer a atividade do Florestan. Não estou negando a importância do Ulysses; só estou dizendo que, se tenho que viver junto com uma pessoa, prefiro viver junto com o Florestan. Seria uma felicidade para mim viver ao lado de uma pessoa como o Florestan. E vai ser um inferno se eu tiver que viver com um cara seco e insignificante culturalmente como era o Ulysses.
E o Sarney?
O Sarney é marginal.
E qual a sua avaliação sobre o PSOL?
Tem gente boa lá, que eu gosto muito. Mas é um partido nascido do ressentimento, não pode dar certo.
Não pode dar certo?
Não, porque nasceu do ressentimento. Da mágoa, da briga interna.
O PSDB não nasceu do ressentimento do PMDB? O PFL não nasceu do ressentimento com a ARENA?
É possível. Mas, quem nasce do ressentimento não tem salvação.
Mas, as ações políticas, muitas vezes, são baseadas nos ressentimentos.
É. Por exemplo, a oposição sistemática é uma coisa desagradável.
É uma coisa ressentida.
Uma coisa medíocre, pesada. Eu ouvi, hoje, uma entrevista do Sérgio Guerra (presidente nacional do PSDB). Meu Deus do céu, o cara é um cínico. Ele não tem nada a dizer, a não ser, sistematicamente, desvalorizar o governo. Até podia ter sentido isso aí, mas não tem nem fundamento o processo de desvalorização. É horrível o cinismo. Muito cuidado com o cinismo, que é a ideologia do mundo moderno.
O senhor diria que, atualmente, há pouca revolta na sociedade?
É. Acabou a indignação. Onde é que ela está? A indignação é solitária; ela não é mais compartilhada. No nosso PT, era indignação compartilhada, convivida apaixonadamente.
Será que não estamos vivendo um momento de mudança? O partido político foi, talvez durante 100 anos, o grande veículo da indignação e da transformação, mas será que não é uma forma que está esgotada? Será que estamos formando cidadãos?
Cidadão é uma palavra neoliberal, sabe? “O sujeito é um cidadão”. O que significa isso? Tem que ser um ser humano, em primeiro lugar. Ele tem que desenvolver as suas potencialidades de amor. Tem que ter controle de seus ódios, porque ele tem os seus ódios. Há pessoas aí – e está cheio delas – que seriam boas pessoas, mas elas têm uma neurose e não sabem que são neuróticas. E essa neurose vai trabalhando e as transformando em más pessoas. A neurose é isso: liquida com o sujeito. Quer dizer, o sujeito é bom, se ele é valioso, se ele é produtivo
Mas, aquele círculo infernal e repetitivo da neurose acaba com a generosidade e a criatividade do sujeito.
Então, tem que ter muito cuidado com essas coisas. Tem que levar a sério a humanidade e a sério a humanidade dos outros também. E acabar com ilusões: “Ah! O amor ao próximo”. Praticamente não existe amor ao próximo. O que existe – e a psicanálise revela isso – é que o outro é sempre um abismo. Tu não sabes quem ele é, não sabes o que ele é, não sabes até onde vai a profundidade. O outro é sempre um susto. Eu sempre olho pros outros. Estou falando, fazendo uma palestra, a pessoa está me ouvindo, eu olho, observo bastante. Fico espantado: “Como será que estou acontecendo na cabeça dessa criatura?” Eu fico louco simplesmente. Tu aconteces de múltiplas maneiras. Não é de uma maneira só. Não é da maneira que tu estás pensando. Tu estás acontecendo no outro das maneiras mais diversas, menos da maneira que tu estás pensando.
Mas, no momento em que o senhor se indignava e, como político, lutava pela melhoria dos brasileiros, o senhor não estava tendo amor ao próximo?
Bem, não nego isso, que a gente luta pelos outros também. O que eu digo é que o próximo sempre assusta. É sempre um mistério, e tem forças e sentidos que te ultrapassam sempre. E que não tem como não te assustar com o outro, porque ele é um abismo pra ti. Tu tens que abstrair essa verdade pra viver.
O senhor está altamente filosófico. Na verdade, o que o senhor está dizendo é que a alteridade é um grande desafio.
Puxa se é. Dou um passo além, meio lacaniano. O Lacan dizia que se tu vais procurar o centro da tua fantasia, o gestor da tua vida, o gestor do teu gozo, tu não encontras o centro a não ser fora de ti. A maior intimidade está fora de ti. Quer dizer, a primeira alteridade, talvez a mais misteriosa, é a tua própria. É o teu eu.
Falando em fantasia, qual foi ou qual é a sua grande fantasia?
Acho que a minha grande fantasia foi a política mesmo. Achar que um dia a gente ia fazer uma sociedade partilhada e convivida. É uma baita fantasia.
Os barbudos de Cuba não conseguiram essa sociedade partilhada?
Bom, eles tiveram, como em todas as revoluções, o seu momento. Um momento maravilhoso. Foi um evento, um acontecimento. Eles criaram o novo. Mas sustentar esse novo até agora, não tem registro. A gente fez aqui uma síntese, desde o Cristianismo, a Revolução Francesa, a Revolução Russa. Foi espetacular a Revolução Russa, a partir das ideias. Não há nada mais próximo de Jesus Cristo do que Karl Marx. Foi uma coisa espetacular. Fracasso total também. Mesmo assim, a gente tem que fazer a revolução. Tem que estar sempre fazendo a revolução, esperando o acontecimento pra se engajar e fazer. E criar o mundo completamente novo.
Talvez sejamos de uma geração que acreditou na revolução. Talvez o grande segredo é que tem que existir milhares de revoluções. Elas têm que estar sempre no processo, têm que estar sempre acontecendo.
Bom, então aí o capitalismo é o máximo. Nunca vi um sistema que produza tantas revoluções como o capitalismo.
Mas, de certa forma, elas andam sempre na mesma direção. A frase está lá no Manifesto. Marx diz que o capitalismo revolucionou e moveu as forças produtivas.
Tu vês essa coisa chinesa de usar o comunismo, de usar o proletário pra transformar a China na maior economia do mundo. Capitalista. E essa é a maior lição do momento da vida.
O senhor acredita que se possa fazer uma revolução que seja definitiva?
Não. Justamente, estou dizendo que é preciso estar atento, porque a única maneira de ser sujeito, quer dizer, de ser si mesmo, é se engajar em uma ação que vai trazer o novo, uma nova forma de vida, um novo modo de pensar, um novo modo de sentir. Uma invenção artística, uma descoberta cientifica, uma relação amorosa diferenciada. Isso é revolução. O problema é não viver essas coisas como se não fosse. Aí tu vais viver mediocremente.
Como político, o senhor sofreu nas mãos da mídia, principalmente quando foi secretário de Segurança do governo Olívio.
Falando em mídia, a mídia hoje é um discurso em torno do dinheiro. O que é a Globo? Gosto de futebol. Sou um sofredor. Sou gremista. Ouço a Rádio Gaúcha, porque é a melhor. As outras são mais fraquinhas. Mas é uma vergonha. Os caras são completamente colorados. É a ideia dominante deles, o sentimento dominante deles. Eles são colorados. E se tu dizes que eles são colorados, eles te chamam de paranoico. E tu não tens chance de dizer pra eles: “Vem cá, se uma pessoa tem um ciúme e esse ciúme é paranoico, pouco importa que seja verdade ou não”. Isto é, que o ciúme tenha razão de ser, ou não tenha a razão de ser. Ele é paranóico. Tem que ser tratado. É uma doença. A mídia não tem essa visão. Você pega essa equipe da Rádio Gaúcha de futebol e eles falam que são isentos. Alguns têm a decência de falar assim: “eu sou colorado e tal, mas sou isento”. Os caras passam por cima de todo Freud, como se fosse uma barbada ser isento.
Isso vale, talvez com mais veemência, para a cobertura política.
Muito mais. Comecei com o futebol, porque é mais fácil de perceber, pelo futebol, o que a mídia fez com o PT, no governo do Olívio. Não gosto de falar, porque eu estava no governo. Parece que estou me defendendo, mas eu não quero me defender disso aí. É tão estúpido que eu não quero me defender. Entende o que eu quero dizer? Foi tão violento, tão estúpido, tão grosseiro, que eu me recuso a ir a um debate me defender. Por que vou me defender desses idiotas? Eu os considero uns irresponsáveis. Considero uns caras que têm uma paixão chamada ignorância. A ignorância é uma paixão. E a paixão da mídia moderna é a ignorância, manter a ignorância. Isso é duro. E é duro, inclusive, de eu dizer pra vocês. Quer dizer, eu tenho que me calar, porque não adianta mais nada dizer isso aí. Não tem remédio. A coisa é definida.
Mas, afinal, por que o senhor foi o mais visado do governo Olívio?
Na época, a Polícia Civil, mas principalmente a Polícia Militar do Rio Grande do Sul, tinha um princípio: se um bandido matasse um policial, eles não queriam saber de Justiça. Eles fariam a Justiça. Eles é que matavam o cara. Aí cheguei eu de secretário, com essa minha cara e disse: “Olha, isso está errado e não vai acontecer mais”. E aconteceu três vezes no meu governo.
Três vezes?
Três vezes. E a mídia sempre ficou do lado deles. O último caso foi daqueles dois meninos que mataram uma brigadiana dentro de um ônibus, vocês lembram? Eu consegui fazer um inquérito mais que espetacular. Ficou a verdade desnudada completamente. Aí eles foram desfazendo aos pouquinhos, depois que eu já não era mais secretário, e no outro dia os caras foram absolvidos. E saiu na Zero Hora uma notícia assim, deixando bem claro que era o fim da minha perseguição. Eu era um perseguidor.
Perseguidor dos policiais?
Perseguidor dos policiais. Eu dizia que a Polícia Civil era mais corrupta que bandido. Eu dizia mesmo. Meu irmão era delegado de polícia. Eu estava falando com conhecimento profundo, legal. Só que o banditismo da polícia é difícil de provar. Mas também uma vez – vou fazer uma mistura danada – eles me levaram lá para a Assembleia e quiseram me cercar. Eu fiz um jogo. A certa altura da inquisição deles, falei: “Olha, vamos fazer o seguinte: vou dizer todos os nomes dos que estão neste recinto e envolvidos em complicações policiais. Não que eu entenda que eles estejam, realmente, comprometidos, mas estão envolvidos, (seus nomes) apareceram, e, de alguma forma, ficaram suspeitos”. Talvez vocês não se lembrem disso: deu uma confusão lá dentro daquela Assembleia! Eles começaram a falar ao mesmo tempo, a se confundir, a se agredir. Eu me levantei, fui embora e deixei-os falando sozinhos.
Naquela época, o senhor também era acusado de dar força para o bandido e não para a polícia.
É porque peguei uma série de trabalhos da ONU sobre o uso da arma de polícias, fiz um estudo de tudo o que havia sobre esse assunto e fiz uma publicação para eles (policiais), explicando como não se usa a arma, a não ser em caso de extrema necessidade. E eles ficaram loucos. O uso da arma é a glória para eles. E a mídia ficou do lado deles. E, agora, estão aí debatendo os excessos policiais. Mas, ninguém se lembra que eu tentei, oportunamente, segurar esse processo.
A reação corporativa é muito forte. E a mídia tende, de uma maneira geral, a defender o status quo.
Nesse caso, o problema é que a informação policial é uma preciosidade para a mídia. Então, eles estão sempre bem relacionados. Delegados de polícia e repórteres encarregados dessa pauta estão bem relacionados. Eu vou dizer uma coisa: tem grandes delegados de polícia no Brasil, mas com uma boa parte não dá pra fazer amizades.
Quem mais bateu no senhor foi a RBS. E o senhor tinha sido um grande nome da RBS. Como se explica esta perseguição ao senhor e ao seu trabalho?
Bom, quando o Olívio se elegeu, passou em branco uma coisa. Ninguém falou, ninguém observou. Uma coisa que tinha profundidade e que era um bom tema midiático. Quer dizer, os caras se organizaram pra acabar com a possibilidade de um governo de esquerda no Rio Grande do Sul. Um ex-secretário de segurança, falecido, e eu vou respeitá-lo porque ele era uma boa pessoa. Ele era do PMDB.
Quem era?
Não interessa o nome. Um amigo íntimo meu, de uma família tradicional de juristas do Rio Grande do Sul veio me avisar: “Bisol, os caras vão acabar contigo”. Isso muito antes de eu assumir. Porque esse secretário de segurança do PMDB estava visitando os coronéis e os delegados. Era uma comissão pra fazer a luta contra a possibilidade marxista do coitado do governo do Olívio, que é uma das pessoas mais honestas e limpas que eu conheci em toda a minha vida. O Olívio é incrivelmente cristalino, transparente. Eu acho que vocês sabem disso. E os caras fizeram isso. E a chave, o homem misterioso, oculto (era eu). Os militares sempre tiveram essa mania comigo e eu não tinha nada, não articulava nada. Mas eles achavam que eu articulava e puseram na cabeça que eu era o homem mais perigoso. Mas não só por eu ser o homem mais perigoso, mas principalmente por eu ser o ponto mais fraco de um governo, que é a Segurança. Já antes do governo Olívio a segurança era um sério problema pra população, que estava começando a observar que a criminalidade crescia.
Há coisas sobre as quais não se fala. Lembro que o senhor falava uma coisa, que eu falava frequentemente: “Se meus filhos estivessem passando fome, com certeza, iria assaltar para dar comida a eles”.
Mas claro…
Como o senhor fala isso na mídia, como secretário, teve grande repercussão, caiu o mundo.
O que eu queria? Queria que as pessoas se dessem conta de que o problema não é um problema extra-humano. É um problema do ser humano. Se a gente não se dá conta disso, não resolve.
Voltando à pergunta sobre a RBS. Por que, afinal, a RBS liderou essa campanha contra o senhor?
Bom, isso é fácil de responder. Eu tinha sofrido uma perseguição da RBS antes, não só da RBS mas de outras mídias, que inventaram uma história de uma emenda (ao Orçamento), que eu fiz e que seria corrupta, que seria no meu interesse. É claro que eu fui ingênuo nisso aí. Mas, a verdade é que eu, por escrito, pedi à Justiça que abrisse um inquérito, logo que eles começaram a falar. Abrisse um inquérito e dissesse se havia algum problema. E o inquérito foi feito, com acompanhamento do Ministério Publico. O delegado chegou à conclusão de que não havia nada. O MP deu o seu parecer, dirigindo-se ao magistrado, de que não havia nada e o magistrado arquivou o inquérito, dizendo que “não há nada que possa incriminar José Paulo Bisol”. Esse inquérito foi feito logo no início para acabar com aquele negócio. Vocês sabiam?
Isso era 1994. O senhor está falando de quando era candidato a vice-presidente na chapa do Lula e foi acusado de apresentar emenda ao Orçamento para beneficiar o município de Buritis, onde o senhor teria uma fazenda. É isso?
Isso.
O resultado da Justiça demorou 10 anos para sair?
Não. O da Justiça saiu logo. Dez anos depois saíram as ações de indenização. Só uma, porque as outras o pessoal não me pagou até agora. Eu tenho um crédito que me transformaria num cara riquíssimo. Por exemplo, o Jornal do Brasil não me pagou. Chega a dois milhões e meio, três milhões. E não vai me pagar nunca. A única que me pagou foi a RBS, mas o ódio ficou profundo.
A marcação decorre disso? Desta ação?
Quando eu era secretário (de Segurança), eles já tinham me indenizado. E estavam com uma raiva mortal, porque tiveram uma derrota. Quando eles estavam fazendo a minha destruição moral, eu disse numa entrevista: “olha, isso é falso, e eu posso ganhar uma fortuna de vocês”. Eu disse na televisão, pra todo mundo ouvir. E eles deram risada. E eu ganhei a ação. Foi a maior ação de indenização. Essa casa aqui foi construída com esse dinheiro.
Chegou a ter audiência de conciliação?
A juíza queria a conciliação. Eu disse: “Não quero nenhum tostão. Só quero que se faça a metragem dos espaços utilizados no jornal e que o jornal da RBS me dê espaço pra mostrar que tudo era mentira”. E a RBS não aceitou esse acordo. A Juíza se deu conta de que eu tinha razão.
O senhor ganhou por injúria, difamação…
Os três crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). Do Jornal do Brasil, ganhei até mais. Só que eles não me pagaram. E eu não fiz muitas ações. Se eu quisesse poderia ter feito umas dez ações.
O senhor processou o JB, a RBS e qual outro órgão?
Um jornal de São Paulo. A Justiça de São Paulo é mesquinha pra chuchu: me deram uma coisinha de nada.
As revistas não?
Não. Contra a Istoé me deu vontade de entrar, mas eu desisti. Contra a IstoÉ, o que me deixou muito magoado foi que eu sempre escrevi poesia, desde que era um garotinho. Desde o quarto ano primário. Inclusive tenho um livro (Sim à Vida, publicado pela Imprensa Universitária, em 1957). E eu tinha uma prima que tinha um filhinho, de um aninho, e escrevi um poema pra esse menino. Então, era um poema de amor, de encantamento por uma criança masculina. E os caras da IstoÉ publicaram o poema como prova de que eu era homossexual. Mas me deu uma repugnância, assim… E também muita tristeza. Eu não tenho preconceitos. Mas também não tenho nada, histórico algum de homossexualidade. Mas eu tenho uma gesticulação, talvez um pouco afeminada, é possível (risos). Depois de Freud, a gente tem que saber algumas coisas.
O senhor ficou um pouco depressivo devido a tudo que passou?
Não. Eu adoro a vida. Só que eu me meti no meio dos livros. Dá a impressão de que sou depressivo. Mas eu não, eu gosto da vida. Eu tomava meu vinho, agora não posso por causa da doença. Mas eu tomava meu bom vinho, eu gosto de vinho.
O senhor diz que está doente. O que o senhor tem?
Tenho diabetes, uma doença horrorosa.
Mas é possível conviver com ela.
Olha, não é muito fácil. Tenho uma neuropatia que é uma constante dor nos dois pés. Tenho problemas para sair de casa, viajar, porque meu intestino se desregulariza facilmente. Uns problemas chatos. Tive que fazer mais de uma cirurgia. Fiz mais de 30 cirurgias na minha vida.
Devido ao diabetes?
Cirurgias ao acaso, por ter nascido pra fazer cirurgia. A última foi do quadril e, até agora, não estou recuperado. Fiquei muito fraco. Mas deprimido, deprimido, de jeito nenhum, porque sou um pouco realista e isso dá uma sensação de pessimismo. Realmente, não sou um cântico de glorificação da vida do ser humano.
Mas o senhor faria de novo tudo o que já fez na vida?
Faria. Faria com paixão, como sempre fiz tudo. E com bastante coragem, se me permite dizer. Quer dizer, eu não tive medo de ser vaiado, medo de “não, não vou dizer isso”. Não, eu disse. Vocês sabem disso.
O senhor não tem autocensura.
Superego? Superego é uma coisa terrível, mas eu não tenho não. Mas, acho que sou suficientemente inteligente para saber avaliar o que estou fazendo. O que não tenho é medo. Isso é uma coisa que não tenho. Nunca tive.
Estávamos falando de Segurança. O senhor diria que a Polícia Federal, atualmente, está …
Espetacular. É uma das melhores instituições desse país. Oxalá a Justiça tivesse evoluído como a Polícia Federal.
A Justiça não evoluiu?
Não. O Direito ficou meio escanteado. Às vezes, ligo a televisão e fico olhando os julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Eles são completamente fora da realidade. Eles discutem aqueles princípios, aquelas coisas, como se aquilo tivesse existência ainda. Não tem existência. Vou lembrar um caso: o da punição dos homens públicos, sem esperar que a lei passasse um ano.
O senhor está falando da Lei da Ficha Limpa.
É. Era alguma coisa com cheiro de novo. E o novo tem dificuldades de emergir. Todo brasileiro decente tinha certeza que você estava solidário com aquilo. Quem é que não ia ser solidário com aquilo? Tava todo mundo do lado daquilo. Aí chega o Direito com seus velhos princípios. Seria simples pra chuchu fazer uma elaboração teórica, inovadora, revolucionária e justificar. Simples. Pode deixar comigo. Se estão com dificuldades, eu faço uma elaboração filosófica, jurídica, espetacular, dizendo: “é uma novidade”. Uma novidade historicamente necessária. Socialmente necessária. Culturalmente necessária. Eticamente necessária. Não é fácil fazer? E os caras, com os velhos princípios jurídicos, mataram a questão. Gente boa matou…
Há quem diga que o Supremo, em algumas questões comportamentais, tem inovado, tem sido revolucionário até. Um exemplo é o reconhecimento da união homoafetiva. Mas, nas questões, vamos dizer, políticas, e que têm a ver com a propriedade é conservador.
É, eu não tinha visto essa observação, mas me parece, a principio, que ela é verdadeira.
outros poderes não influencia o voto do Supremo?
Parlamentarismo. Não é a maior farsa da história? Não é o ponto crucial do fracasso da democracia?
O parlamentarismo?
É, o Congresso. Não só aqui, mas em qualquer lugar. E isso é triste e duro de dizer. O lugar mais podre, onde há mais vulgaridade, mais baixaria. Eu me lembro de quando estava lá dentro. Houve um momento em que eu disse assim: “Mas vem cá, onde é que estão as grandes pessoas aqui?” Aí eu comecei a me perguntar. E tinha duas grandes pessoas no Congresso: o Florestan Fernandes e aquele do PDT, o Darcy Ribeiro. Grandes moralmente. Grandes como científicos, com postura, com coragem e com inteligência e criatividade. O resto era de uma mediocridade! Uma coisa assim, de baixo calão. Com os interesses mais vis e tal. E agora a gente está vendo isso aí. Eu me lembro que quando fizemos os primeiros grandes inquéritos parlamentares – hoje, sou contra os inquéritos parlamentares, porque o Parlamento não tem como fazer inquérito – e tentamos fazer direito, o que nós descobrimos foi incrível, só que fugia do assunto.
Foi aquela CPI dos anões do Orçamento?
O que nós descobrimos naquela CPI vocês não vão nem imaginar. Isso que estourou agora em Brasília, do governador de Brasília (José Roberto Arruda), nós descobrimos naquela época (em 1993, quando houve a CPI, Arruda fazia parte do governo de Joaquim Roriz no Distrito Federal). Nós sabíamos que o cara fazia corrupção e como ele fazia. E ficou lá arquivado, porque não era o assunto (da CPI).
O senhor voltaria ao Parlamento?
Só se fosse para brigar pelo novo.
O senhor acha que estaria sozinho nessa briga? Ou teria companheiros?
Não. Sempre tem loucos. Louco nunca é louco sozinho.
Qual a avaliação que o senhor faz da sua atuação na Constituinte? Lá o senhor não foi um louco sozinho.
Vou dar um exemplo para que tenhas uma ideia do que eu fiz. Essa Constituinte foi uma coisa de louco. Pra sair do meu terreno, pra não ficar me autoelogiando: a Constituinte criou o Sistema Único de Saúde. Ideia genial. Naquela luta entre o chamado centro e a esquerda, a gente conseguiu criar o SUS. Quer dizer, saúde para os pobres. Não funciona. Porque os governos não querem que funcione. E porque a indústria, o capitalismo farmacêutico, os médicos não estão interessados em que funcione. Mas, se funcionasse seria uma coisa extraordinária pra nós. Então, só isso já mostra que a mentalidade da maioria daquela Constituinte foi uma das melhores mentalidades que já passou por aquele Congresso. Construíram essa Constituição, que é valiosa. É moderna. E é corajosa. Ela avança bastante. Ela faz muita confusão também, em virtude da guerra interna que havia. Mas criaram-se coisas maravilhosas. E eu tive a felicidade de ser o relator dos primeiros capítulos. Bom, eu acho que a gente conseguiu consolidar os grandes princípios jurídicos da humanidade. Só que eles não funcionam mais. Esse é o problema. São abstratos. Fora da realidade.
Precisamos de uma nova Constituição?
Não. Não adianta nada. Precisamos de uma outra anima.
O senhor foi responsável pelo capítulo dos direitos humanos, dos direitos fundamentais. O senhor acredita que estes direitos vão funcionar algum dia?
O Brasil é um país onde a polícia tortura muito. A tortura é o máximo da miséria humana. É uma coisa insuportável a ideia de tortura. Ela destroi a pessoa que tortura e destroi o torturado. Fico espantado quando leio que, nos Estados Unidos, dão uma injeção no coração dos muçulmanos, desse pessoal do 11 de setembro. Os Estados Unidos eram realmente uma democracia interessante. E acabaram com a democracia. Eles criaram aquela prisão de Guantánamo e aquela obsessão com os mulçumanos. O que é isso?
O senhor acha que o governo Barack Obama não correspondeu às expectativas?
Bah! É uma das maiores decepções da minha vida. Ele é um Bush com a pele favorável, digamos assim.
Em seu primeiro pronunciamento sobre os distúrbios ocorridos na Inglaterra, o primeiro-ministro David Cameron disse mais ou menos assim: “Os jovens que têm condições de fazer esses tumultos, também têm condições de serem responsabilizados”. Isso remete à lei brasileira de proteção à infância e à adolescência, o ECA. O senhor é a favor de mudar o ECA, de reduzir a idade penal?
Eu acho que isso não é um assunto importante, porque a punição não arruma nada. Não ajuda nada. São outras coisas que temos que mudar. É não deixar chegar lá. É a educação. Nós temos que gastar tudo na educação das nossas crianças. Mas não só dos nossos filhos. De todas as crianças. Então, quando pune, nem tem lugar pra botar na cadeia. Aí tem que soltar antes. Fico impressionado com a paixão primitiva da mídia. A mídia sempre é a favor de aumentar a punição. Isso nunca resolveu nada.
Bem, acho que a estas alturas cabe uma pergunta: por que o senhor abandonou a política?
Bom, eu saí da política porque eu fui muito perseguido, muito judiado. É difícil aguentar. É muita mentira em torno de ti, entendeu? Se há uma coisa que ninguém pode dizer – e que eu não posso suportar – é que eu me interesso por dinheiro. Eu nunca tive interesse. Não sei o quanto ganho, não vou a banco, tem que ter alguém na casa que cuide do dinheiro pra mim, porque eu estou sempre pelado. Quer dizer, dinheiro é uma coisa que me dá um pouco de nojo. Tenho resistência. E foi justamente por aí que eles foram me atacar, como se eu estivesse interessado em dinheiro. Tenho um monte de defeitos, mas esse eu não tenho. Isso me amargurou muito.
O senhor não achava que devia lutar contra isso?
Olha, não tem como lutar contra a difamação por parte da mídia. Até hoje boa parte das pessoas acreditam nisso. Não tem como.
Qual o seu sentimento em relação a estes ataques? Revolta? Tristeza?
Muita tristeza. Nenhuma revolta, nenhum ressentimento. Talvez um pouco de ressentimento. Talvez. Um pouco de resistência à pessoa do… Como é o nome daquele jornalista do eixo Rio-São Paulo, que morou nos Estados Unidos?
O Paulo Francis?
Paulo Francis! O cara que, inclusive, tinha cultura. Mas ele era um cara cruel, um sadomasoquista. Nem sei nada da vida dele, mas eu imagino que, pra ser como ele era, se o Freud tem alguma razão, a mãe dele substituiu o pai na autoridade familiar. Ele era um sadomasoquista. Quer dizer, ele gostava de gerar sofrimento pra si. E esse cara me chamava de ‘Bichol’, sem nenhuma razão. O meu melhor amigo – o escritor Paulo Hecker Filho – era amigo dele. Quer dizer, ele não podia ignorar quem eu era e tal. O Paulo Francis era um cara baixo, de maus sentimentos. E era um cara culto, inteligente.
O senhor costuma dizer que não é importante, mas estamos vendo aqui a medalha do Mérito Farroupilha que o senhor recebeu da Assembleia.
Eu não acho que não sou importante. Tenho certeza de que não sou importante. Até posso ter sido em um determinado momento, ter tido uma certa relevância, uma certa significação. Tive. Acho que fui capaz de me engajar na luta, mas eu não posso, em hipótese nenhuma, pensar que eu sou importante. E não é humildade isso. É apenas consciência.
Mas o senhor não pode negar que viveu a vida com intensidade, que contribuiu para …
Não, eu tenho esse respeito por mim.
O senhor deu uma contribuição para o mundo.
Acho que sim. Nem acho, tenho certeza. Mas isso não significa que eu seja relevante, não. Não é que eu não queira ser relevante, é simplesmente que eu constato que não sou. Não é nada de humildade, nem nada. Não. Eu tenho minha autoestima e tudo. Não estou preocupado em ser modesto. Só não quero fugir de um certo realismo: com 83 anos, estou mais perto da morte do que antes. E a morte é importante pra mim. Eu gostaria de viver um pouco mais. Mas, eu percebo que não tenho essa importância. Já posso ir e ninguém vai sentir falta.
Mas esta medalha lhe mostrou que o senhor tem importância na vida política gaúcha?
Achei que essa medalha foi justa. Só uma pessoa muito boa de coração, que sabia que a RBS não publicaria uma linha – e para ele, como político, não serviria para nada me dar essa medalha – me daria a medalha. Ele (o deputado petista Elvino Bohn Gass) me deu e isso é muito valioso. Eu digo que não sou importante no sentido de que já passei o período em que eu tinha peso.
Mudando de assunto: tem aquela máxima que diz: “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. O senhor também é criticado por morar aqui em Osório, em um condomínio que dizem ser de luxo, afastado de tudo.
É. Vim pra cá exatamente por isso. A casa, eu fiz com o dinheiro da RBS, tenho que confessar. Foi um dinheiro bom, bastante dinheiro. E eu queria me afastar de um mundo que me perseguira, que cometera sérias injustiças comigo e eu já tava cansado. E o condomínio não é luxuoso. O condomínio é um belo condomínio, no sentido de que tem áreas verdes espetaculares. E água também: a lagoa ali. Mas o condomínio não tem nenhum esgoto. Só que é uma calma, uma tranquilidade, cercada de pássaros. Muito interessante. E a esquerda tem direito em ser rica também. Eu não sou rico, mas qual é a bobagem essa de que o cara tem que ser pobre pra ser de esquerda? Isso é bem burguês mesmo (risos).
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